O poder constituinte originário, na sua versão clássica de origem francesa, está vinculado às manifestações revolucionárias, visando consagrar no novo texto constitucional as alterações mais profundas que a Revolução de 1789 produziu na estrutura social, econômica e política e, sobretudo, na relação de poder no Estado com seus súditos. Admitir a existência do Estado contemporâneo implica admitir a existência de um poder constituinte, desde que não se pode conceber qualquer núcleo estatal destituído desse poder. Do ponto de vista histórico, pode-se afirmar que a grande evolução do conceito de Estado reside na erradicação da confusão entre o poder executivo e o poder constituinte, estabelecendo-se de forma nítida e perceptível as diferenças entre esses dois poderes.
Graças ao pioneirismo do abade Sieyes, na obra intitulada Qu’est-ce que le Tiers État?, Publicada com o claro objetivo de divulgar o pensamento e a posição da burguesia, antecedendo a reunião dos Estados-Gerais de 1789, o poder constituinte começa a tomar forma com a possibilidade do surgimento das incipientes assembléias constituintes, consideradas na acepção ampla da expressão, e que se traduzem, justamente, nas chamadas convenções das colônias recém-libertadas pela Revolução americana. Identicamente, e ainda sob o prisma histórico, a convocação dos Estados-Gerais, por solicitação do Terceiro Estado, estabelece as distinções entre o poder constituinte e o poder derivado (ou poder legislativo).
Falar de poder constituinte é falar de democracia. O poder constituinte está ligado à idéia de democracia, concebida como poder absoluto. Portanto, o conceito de poder constituinte, compreendido como força que irrompe e se faz expansiva, é um conceito ligado à pré-constituição da totalidade democrática. Pré-formadora e imaginária, esta dimensão entra em choque com o constitucionalismo de maneira direta, forte e duradoura. Neste caso, nem a história alivia as contradições do presente: ao contrário, esta luta mortal entre democracia e constitucionalismo, entre o poder constituinte e as teorias e práticas dos limites da democracia, torna-se cada vez mais presente à medida que a história amadurece seu curso. Esse poder novo, oposto ao poder decadente e absoluto das monarquias de direito divino, invoca a razão humana ao mesmo passo que substitui Deus pela Nação como titular da soberania, nasce a assim a teoria do poder constituinte, legitimado a uma nova titularidade do poder soberano e conferindo expressão jurídica a conceitos de soberania nacional e soberania popular.
Surgiram instituições representativas, quase simultaneamente, em diversos Estados da Europa ocidental, no final do século XIV, quando o feudalismo se extinguia. Explica a simultaneidade, como deliberada imitação ou, o que ele acha mais provável, em virtude do que denomina “lei da convergência”, embora não exista nada esclarecido sobre as origens dessas instituições. A teoria mais moderna e segundo o mesmo autor a mais correta, aponta a recepção das técnicas representativas que desde muito tempo eram utilizadas na Igreja Católica e nas ordens religiosas, por organizações seculares. Mas, durante os séculos seguintes, a representação foi engolfada em toda Europa, pelo absolutismo monárquico. A Inglaterra, por causa de situações bem particulares e estudadas, teve sua Gloriosa Revolução um século antes que a francesa e a americana. Por seu aspecto limitador do absolutismo do rei, a representação política se inscreve no âmago da teoria constitucional. A representação política nos moldes em que foi concebida e posta em prática nas democracias liberais, a representação política estabelece uma distância muito grande entre o “mundo do cotidiano” e o “mundo da política”, provocando, na maioria das pessoas, um sentimento de não pertinência a este último. Ora, se o “mundo da política” fica refém daqueles que compõem o aparelho estatal e de uma minoria de privilegiados, os cidadãos não dispõem de um espaço, constitucionalmente estabelecido, para exercer seus direitos de cidadania. Observamos que a teoria da representação política, afora o núcleo permanente dos valores básicos, comporta conceitos equívocos que têm implicado em muitas discussões e diferentes orientações entre os estudiosos. Na prática constitucional dos Estados, tal equivocidade é manifesta, podendo-se identificar as adesões dos textos a esta ou aquela corrente doutrinária.
Nessa condição, tem legitimidade para impor a destituição do mandato que outorgou ao representante, e cuja finalidade foi desvirtuada por conduta ilícita, especialmente se reveladora de organização criminosa dentro do poder, improbidade e peculato em proveito próprio, incompatibilizando o exercício da representação, momento em que o agente político passa a ser nocivo à soberania popular, e ao estado democrático de direito.
Instalada, então, a infidelidade, rompe‑se a cláusula de representatividade, o mandato perde a eficácia e o exercício do poder torna‑se ilegal. Do contrário, permitir‑se‑ia a transformação do cargo exercido pelo mandatário em reduto de ilícitos e conveniências pessoais, levando os postulados e princípios constitucionais que vela a administração pública à simples quimera, letra morta. Com efeito, deixa de haver confiança e fidelidade, rompendo todos os postulados da soberania cidadã, razão da própria existência do Estado.
Diante da hipótese em que sobre a totalidade ou quase totalidade dos membros imputa‑se o mesmo ilícito, caracterizando o impedimento ou suspeita, inviabilizando a investigação política, não se pode conceber como um poder de estado democrático possa “funcionar” sob o comando de agentes organizados com a finalidade de fraudar o erário e administração pública, na prática de crime.
Em tais circunstâncias não se pode esperar eficácia do processo político por não poder os investigados de julgarem a si mesmos. Ora, a Constituição, ao estabelecer competência e atribuição aos poderes do Estado, implicitamente conferiu ao poder judiciário a cláusula do princípio dos poderes implícitos, que lhe permite encontrar meios para decidir e atingir os fins da justiça, quando o fato jurídico é lesivo a direito, e a composição do conflito não se encontrar prevista expressamente no ordenamento jurídico.
Enquanto no contrato de mandato do direito privado o mandante pode, a qualquer tempo, destituir o mandatário e este último tem como obrigações, entre outras, a execução fiel das instruções do mandante e a prestação de contas, no direito público possibilita-se uma enorme dissociação entre representante e representado, permitindo a diversos detentores de mandato eletivo atuar impunemente contra vontade de seus eleitores e em sentido diverso do defendido e prometido em campanha eleitoral. Em razão deste e de outros problemas da democracia representativa e do atual grau de desenvolvimento tecnológico, atualmente já é possível e deve ser feito um retorno à democracia direta, com consulta direta à população em relação às decisões mais importantes, até como forma de legitimá-las. O sistema eletrônico de votação no Brasil, que é modelo para o mundo, elimina as razões pelas quais foi abandonada a democracia direta.
É possível que, periodicamente (como, por exemplo, a cada ano), se faça uma consulta popular sobre diversos assuntos, como leis a serem votadas, adoção de determinadas políticas públicas e até antecipação de novas eleições para cargos no Executivo e Parlamento. O mandato fixo dos governantes deve ser condicionado à aprovação periódica de seu desempenho, quer de forma individual (como nos casos de cargos eletivos majoritários) ou coletiva (como antecipação de eleições proporcionais). A medida beneficia o Chefe do Executivo com apoio popular, mas sem maioria no Parlamento, evitando que o primeiro se torne refém do último. A consulta popular pode indicar a permanência do Chefe do Executivo e a realização de novas eleições para o Parlamento. Para atenuar a resistência dos políticos à medida, pode-se estabelecer um quorum maior para antecipação das eleições, como, por exemplo, sessenta por cento dos votos válidos, permitindo o fim do mandato eletivo apenas em casos excessivos de impopularidade. Para atenuar os defeitos da democracia representativa, criaram-se institutos para possibilitar a participação popular direta, entre os quais referendo, plebiscito, iniciativa popular e recall (inclusive até para juízes e decisões judiciais), caracterizando a chamada democracia semi-direta. No entanto, no direito brasileiro, além da ausência de institutos como o recall, a participação popular direta prevista constitucionalmente (CF, art. 14) é bastante restrita pela lei regulamentadora (Lei 9.709/98), que condiciona a realização de plebiscito e referendo à decisão do Congresso Nacional. Com isto, permite que os representantes impeçam os representados de decidirem, não só ferindo o princípio conceitual do mandato como a soberania popular prevista constitucionalmente (CF, art. 1º, parágrafo único).
Acadêmico de direto das Faculdades de Direto Curitiba
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