Primeiras linhas sobre a Lei Geral da Copa: Uma soberania ultrajada ou relativizada em face da moderna tendência globalizada?

Resumo: Este estudo aborda as nuances do Projeto de Lei 2330/11, que dispõe sobre as medidas a serem adotadas durante a Copa das Confederações FIFA de 2013 e a Copa do Mundo FIFA de 2014, a serem realizadas no Brasil. Enfatiza-se, primeiramente, o moderno conceito de soberania, visto na sua forma mitigada. Pontuam-se os direitos de acesso aos eventos esportivos das crianças e dos adolescentes e dos idosos; a responsabilidade civil da União por danos causados durante a realização dos eventos; o ingresso aos estádios mediante a denominada “carteirada”; os novos tipos penais e sua condição de procedibilidade; as novas modalidades de atos ilícitos; a suspensão parcial dos efeitos do Estatuto do Torcedor e do Estatuto do Idoso. Analisa-se, ainda, a eficácia ultra-ativa de alguns dispositivos da Lei Geral da Copa, doutrinariamente chamada de lei temporária, de acordo com o art. 3º do Código Penal Brasileiro.


Palavras-chave: Projeto de Lei 2330/11; Copa do Mundo; Soberania; FIFA.


Abstract: This study addresses the nuances of Bill 2330/11, which provides for measures to be adopted during the FIFA Confederations Cup – 2013 and FIFA World Cup – 2014 to be held in Brazil. We emphasize, first, the modern concept of sovereignty, seen in its mitigated form. We address the rights of access to sporting events for children and adolescents and the elderly, the liability of the Union for damages caused during the course of events, the entry to the stadium through the so-called “portfolio”: the new crimes and their pursuance condition, new forms of unlawful acts, the partial effects of the Statute of the Fan and of the Elderly. We analyze also the effectiveness of some ultra-active devices of the General Law of the World Cup, doctrinally called temporary law, in accordance with Art. 3 of the Brazilian Penal Code.


Keywords: Bill 2330/11, World Cup, Sovereignty, FIFA.


Resumen: Este estudio aborda los matices de lo Proyecto de Ley  2330/11, que establece medidas a ser adoptadas durante la Copa FIFA Confederaciones 2013 y la Copa Mundial de 2014 que se celebrará en Brasil. Destacamos, en primer lugar, el concepto moderno de soberanía, entendida en su forma mitigada. Puntuación de los derechos de acceso a los eventos deportivos para niños y adolescentes y los ancianos, la responsabilidad de la Unión de los daños causados ​​durante el curso de los acontecimientos, la entrada al estadio a través de la denominada “cartera”: los nuevos delitos y su condición de procedimiento, nuevas formas de actos ilícitos, los efectos parciales de los Estatutos de los aficionados y los ancianos. Se analiza también la eficacia de algunos de los dispositivos de la Ley General de la Copa del Mundo, doctrinariamente llamada ley temporal, de conformidad con el art. 3 del Código Penal brasileño.


Palabras clave: Proyecto de ley  2330/11, la Copa del Mundo, la soberanía, la FIFA.


Sumário: 1. Das notas introdutórias; 2. O Projeto de Lei 2330/11, que cria a Lei Geral da Copa; 3. A Soberania como direito fundamental; 4. A Ordem Social e o fomento à prática esportiva; 5. Das medidas relativas aos eventos; 6. Da responsabilidade Civil da União; 7.Dos Crimes relacionados aos eventos;  8.A venda de bebidas alcoólicas e a suspensão da eficácia do Estatuto do Torcedor; 9.Da criação de tribunais no contexto de exceção; 10.Do direito à meia entrada aos jovens e idosos; 11.Reflexões finais; Referências bibliográficas. 


“Fifa quer ser soberana e mandar no nosso país. Ela quer montar o estado dela dentro do nosso. Ainda bem que existem outros deputados que pensam como eu e não concordam com isso. Eu, como brasileiro e político, tento defender o interesse público” Deputado Romário


1. Das notas introdutórias


Atualmente alguns temas têm despertado o interesse da população brasileira: eleições, crises internacionais, catástrofes ambientais, corrupção e muitos outros. Contudo, o que tem, recorrentemente, chamado a atenção dos brasileiros, eternamente apaixonados pelo futebol, é a realização da Copa do Mundo, prevista para 2014, com o preaquecimento da Copa das Confederações, prevista para 2013.


Antes de a bola rolar pelas arenas brasileiras, construídas especialmente para essa finalidade, nossos legisladores passarão por uma prova de fogo. A votação da Lei Geral da Copa acenderá, indubitavelmente, uma acalorada discussão no Parlamento Nacional. 


A Fédération Internationale de Football Association – FIFA, uma associação suíça de direito privado, entra em cena para a criação de normas transitórias de regulação das atividades esportivas que serão realizadas no Brasil.


Tramita no Congresso Nacional projeto de lei que dispõe sobre as medidas relativas à competição mundial, denominada Copa do Mundo de Futebol.


Há entendimento de que referido projeto de lei cria um arsenal de normas contextuais de exceção, com modificações legais e administrativas de caráter excepcional, atentando contra os interesses nacionais a fim de beneficiar a FIFA e seus parceiros. Para se evitar a prevalência da FIFA sobre o Estado, alguns segmentos advogam a necessidade de uma consulta popular, com amplo debate na sociedade, justamente para não quebrar as vidraças da construção democrática, edificada em nossa sociedade a tão duras penas.


Outra corrente, em contrapartida, advoga que o Projeto de Lei 2330/11 não se trata de aberração jurídica que cria contexto de exceção, mas sim normatização que atende as necessidades do Brasil, Estado Democrático de Direito, para se adequar ao mundo globalizado, visando, destarte, a se integrar aos padrões culturais, sociais e financeiros ditados pela modernidade.


Uma terceira argumentação poderia ser construída a partir do conceito de Tribunal de Exceção, que seria aquele criado pos factum. No caso dos tribunais da copa eles estão sendo previamente regulamentados por legislação anterior à ocorrência dos eventos, o que extirparia a ideia de exceção e preservaria a concepção do juiz natural.


2. O Projeto de Lei 2330/11 e a Lei Geral da Copa.


A Lei Geral da Copa (PL 2330/11) tramita no Congresso Nacional, tendo como relator o deputado Vicente Cândido (PT-SP). O texto é tido como prioridade para o governo, mas ainda não está pronto e acabado na comissão especial que analisa a proposta. Alguns pontos causam celeuma, a exemplo da liberação de bebidas alcoólicas durante os jogos da Copa; o direito de pagamento de meia-entrada para idosos; a responsabilidade civil da União pelos danos que causar, por ação ou omissão, à FIFA ou a seus respectivos representantes legais, empregados e consultores, na forma do art. 37, § 6º, da Constituição Federal; a construção de novos tipos penais; questões de visto e permissões com modificações da Lei do Estrangeiro.


Será necessária muita cautela no exame da matéria. Há envolvimento de muitos interesses que vão além da paixão nacional e da estrita legalidade. Conforme exposto, a soberania nacional há de ser discutida, bem como a projeção do Brasil no mundo, a globalização e os recursos financeiros advindos com a copa do mundo de futebol em um país em desenvolvimento como o Brasil.


3. A soberania como direito fundamental.


Ab initio, importante mencionar a posição legal-topográfica da soberania em nossa legislação. Vem expressa no artigo 1º, da CF/88, in verbis:


Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:


I – a soberania;”


Antes mesmo de uma formulação conceitual, é mister saber o que são direitos e garantias fundamentais. Na feliz expressão de Professor José Afonso da Silva, direitos e garantias fundamentais “são aquelas prerrogativas e instituições que o Direito Positivo concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas”.


A doutrina ainda costuma citar as seguintes características dos direitos fundamentais: historicidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, limitabilidade ou relatividade e universalidade.


Vários são os conceitos doutrinários do termo soberania fornecidos por nossos estudiosos. 


Na definição léxica, soberania quer dizer autoridade suprema, poder soberano, poder político de que dispõe o Estado, de exercer o comando e o controle, sem submissão aos interesses de outro Estado.


É necessário subir muito alto para bem descortinar as ilusões e angústias da ambição, poder e soberania, já nos ensinava o Marquês de Maricá.


A advogada Dra. Raquel Perini, em sua Obra A Soberania e o Mundo Globalizado, discorre, com acerto e considerável leveza, sobre a evolução história e sistêmica da temática Soberania. Ensina a jurista com maestria:


“…foi Jean Bodin o primeiro autor a dar ao tema da soberania um tratamento sistematizado, na sua obra Os Seis Livros da República. Bodin é francês e viveu entre os anos de 1529 e 1596. Para ele, soberania é um poder perpétuo e ilimitado, ou melhor, um poder que tem como únicas limitações a lei divina e a lei natural. A soberania é, para ele, absoluta dentro dos limites estabelecidos por essas leis.


Thomas Hobbes (1588-1679) acredita que os homens, visando a obter uma convivência pacífica, submetem-se às leis e a um poder tal que torne a desobediência das normas desvantajosas. Assim, para que a criação do Estado traga segurança, os homens renunciam a seu poder e transferem-no para uma única pessoa, o que lhes incute a obrigação de obedecer a tudo que o detentor do poder ordenar, desde que os demais façam o mesmo. É o chamado “Pacto de União”.


Jellinek vê na soberania a propriedade do poder do Estado pela qual ele pode juridicamente se autodeterminar e se auto-obrigar. É a teoria da autolimitação, forma encontrada por ele para justificar a submissão do Estado soberano ao Direito.


Segundo ele, o Estado formula o Direito, mas se acha naturalmente subordinado a ele; o Estado impõe a si próprio a limitação do seu poder pela Constituição e pela produção legislativa.


A teoria de Duguit negava a existência da soberania.


Várias são as críticas feitas por ele à noção de soberania. Com relação aos seus limites, por exemplo, ele entende que há um dilema irresistível: ou o Estado é soberano e só se determina pela sua própria vontade (não há regra imperativa que o limite e, portanto, haverá o esmagamento do indivíduo pelo Estado), ou o Estado está submetido a uma regra imperativa que o limita, e, então, não é soberano.


Heller acredita que a soberania é um “fenômeno jurídico decorrente do fato de o Estado possuir a última palavra dentro de seu território; assim, o Estado, ao estabelecer o que é de sua competência e aquilo que não lhe cabe decidir, estará em verdade manifestando sua soberania.”


Partindo dessa noção, tem-se que jurisdição e soberania são fenômenos muito ligados, pois o monopólio que o Estado tem da coação física e do poder decisório, com relação aos conflitos existentes em seu território, explica o fenômeno da soberania. Deve haver, então, em cada território, uma só unidade decisória, sob pena de, destruindo a unidade do Estado, destruir a ele próprio.


Para Heller, o caráter absoluto da soberania não é abalado pelo direito internacional e pela interdependência entre os Estados soberanos, já que as obrigações resultantes de tratados entre os Estados não descaracterizariam a soberania, mas, ao contrário, a reafirmariam, porque os Estados têm o direito de lutar pela sua conservação. Mas, nesse ponto, permanece a pergunta: se os Estados podem celebrar acordos internacionais com o intuito de garantir sua manutenção, poderão também, em nome de sua conservação, simplesmente deixar de cumprir as obrigações internacionais?


Kelsen defende que o que faz uma norma superior é o fato de ela ser a fonte na qual as demais se fundam. Assim, se o sistema jurídico é o conjunto de normas, uma norma será soberana, quando ela for a fonte primordial de valor deste sistema. Mas se há vários Estados e há igualdade entre eles, poderia subsistir a idéia de soberania? Poderia a soberania pertencer a vários sujeitos?


Para solucionar esse problema, Kelsen busca algum tipo de identidade entre os diferentes sistemas, utilizando-se dos conceitos de monismo e dualismo.


O sistema jurídico para Kelsen é uno, e por isso é impossível aceitar o dualismo, uma vez que, se aceitar a primazia do direito internacional sobre o direito interno, não existe soberania, mas, por outro lado, se aceitar o contrário, a soberania existe, mas surgem outros tipos de problema. Um deles consiste no fato de que, se o direito interno é superior ao internacional, cada país só será soberano sob sua ótica e, havendo várias ordens de valores igualmente soberanas, torna-se impossível solucionar os conflitos existentes entre normas de ordenamentos diferentes. Por isso Kelsen defendeu o monismo, ou seja, defendeu que a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional não podem ser separadas, e, em caso de conflito entre normas internas e internacionais, estas últimas devem prevalecer. Nesse sentido, a igualdade entre os Estados se traduz pelo princípio da sua autonomia enquanto sujeitos das relações internacionais.”


O conceituado constitucionalista JJ. Gomes Canotilho, define soberania da seguinte forma: A soberania, em termos gerais e no sentido moderno traduz-se num poder supremo no plano interno e num poder independente no plano internacional.”


Entre nós, o professor Marcelo Caetano define soberania como sendo:


“um poder político supremo e independente, entendendo-se por poder supremo aquele que não está limitado por nenhum outro na ordem interna e por poder independente aquele que, na sociedade internacional, não tem de acatar regras que não sejam voluntariamente aceitas e está em pé de igualdade com os poderes supremos dos outros povos”.


Já professor Alexandre de Moraes, em sua Obra Direito Constitucional, ensina com maestria que soberania é a capacidade de editar suas próprias normas, sua própria ordem jurídica.


Segundo a lição de José Afonso da Silva: Soberania é “o poder supremo consistente na capacidade de autodeterminação”.


No magistério do sempre iluminado professor Luís Roberto Barroso, Soberania é um atributo essencial do Estado, sendo conceito de dupla significação: do ponto de vista do direito internacional, expressa a ideia de igualdade e de não subordinação; do ponto de vista interno traduz a supremacia da constituição e da lei e da superioridade jurídica do poder público em sua aplicação e interpretação.


O processo de globalização, a construção de acordos internacionais para o desenvolvimento da tecnologia e expansão das comunicações, “tem permitido a integração de mercados em velocidade avassaladora e tem propiciado uma intensificação da circulação de bens, serviços, tecnologias, capitais, culturas e informações em escala planetária”¸ continua o ilustre mestre.


Assim, nos dias atuais pode-se afirmar que o conceito de soberania ganha novos contornos. Deve-se relativizar o seu conceito para atender os interesses do direito comunitário, desde que seja criação voluntária e tenha por finalidade atender um nível de satisfação de uma comunidade.


No entanto, flexibilizar nossa legislação para atender tão somente a interesses financeiros de uma associação de direito privado, como a FIFA, seria ato de voluntariedade consciente ou seria manipulação coercitiva em detrimento dos direitos do povo brasileiro, historicamente construídos com derramamento de sangue?


Essa flexibilidade legal extrema implicaria perda da nossa soberania afinal? Estaríamos construindo estado de exceção para cedermos a caprichos financeiros da FIFA?  Ou apenas estaríamos nos adequando à modernidade, que exige uma integração aos ditames da globalização e dos avanços econômicos mundiais?


4. A Ordem Social e o fomento à prática esportiva.


A Carta Magna de 1988 inovou quando instituiu um Título destinado a proteger a ordem social, que tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Destina um capítulo para cuidar da educação, cultura e desporto, este tratado em uma seção, a partir do art. 217, a saber:


“Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:


I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;


II – a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;


III – o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;


IV – a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.


§ 1º – O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.


§ 2º – A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.


§ 3º – O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.”


Não resta dúvida que a realização de uma Copa do Mundo em nosso país pode modificar a vida de muitos brasileiros. Numa visão macro, é fácil entender que as competições que se aproximam trarão a inevitável visibilidade do nosso mercado econômico, a possibilidade de fomentar a economia, a abertura de canais internacionais para negociações, além da utilização do esporte como inserção de jovens nos diversos estratos sociais e prevenção contra os efeitos perversos e malignos das drogas, pois o esporte além de trazer benefícios à saúde, também proporciona momentos de prazer e interação social.


A própria Administração Pública se preocupa com a qualidade do serviço que será prestado, quando da realização da Copa do Mundo, a exemplo da Polícia Civil de Minas Gerais, que já prepara seu corpo policial, proporcionando treinamentos e cursos de capacitação, língua estrangeira entre outros.


Dessa feita, o Estado brasileiro cumpre a prescrição constitucional, na medida em que fomenta o esporte e, em época de Copa do Mundo, o faz, priorizando o futebol, não só como elemento de desenvolvimento social, mas, sobretudo, de incitador da economia.


5. Das medidas relativas aos eventos


A Lei Geral da Copa, PL 2330/11, trata de vários assuntos, alguns polêmicos, distribuídos em 46 artigos, entre os quais se destacam a proteção e a exploração de direitos comerciais; vistos de entrada e permissões de trabalho, com modificações na Lei do Estrangeiro, Lei 6.815/80; responsabilidade civil e venda de ingressos.


Contudo, os temas que causam as maiores polêmicas são concernentes à responsabilidade civil da União por danos causados, por ação ou omissão à FIFA e outras entidades; aos novos tipos penais temporários; à venda de bebidas alcoólicas nos estádios e à proibição de meia-entrada para idosos, com suspensão temporária dos Estatutos do Torcedor e do Idoso; à criação de um Tribunal para o processo e julgamentos dos delitos ocorridos no período dos eventos, à criação dos feriados nos dias de jogos entre outros.


Após tais considerações primeiras, passa-se a enfrentar alguns temas importantes para a sociedade brasileira, a começar pela reponsabilidade civil da União.


5. Da responsabilidade Civil da União


O Código Civil Brasileiro, Lei 10.406/2002, prevê o conceito de ato ilícito em seu artigo 186, com a seguinte redação:


“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”


O mesmo diploma legal prevê expressamente a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas em seu art. 43:


“Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.”


A Constituição Federal de 1988, em seu art. 37,§ 6º, disciplinou a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas, assim dispondo:


“Art. 37, § 6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”


Respeitante ao tema em apreço, o art. 23 do Projeto de Lei 2330/11, Lei Geral da Copa, estabelece seis modalidades de atos ilícitos, conforme se deduz:


Art. 23. Para os fins desta Lei, e observadas as disposições da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, consideram-se atos ilícitos as seguintes condutas, praticadas sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, entre outros:


I – atividades de publicidade, inclusive oferta de provas de comida ou bebida, distribuição de panfletos ou outros materiais promocionais ou ainda atividades similares de cunho publicitário nos Locais Oficiais de Competição, em suas principais vias de acesso, nas áreas a que se refere o art. 11 ou em lugares que sejam claramente visíveis a partir daqueles;


II- publicidade ostensiva em veículos automotores, estacionados ou circulando pelos Locais Oficiais de Competição, em suas principais vias de acesso, nas áreas a que se refere o art. 11 ou em lugares que sejam claramente visíveis a partir daqueles;


III – publicidade aérea ou náutica, inclusive por meio do uso de balões, aeronaves ou embarcações, nos Locais Oficiais de Competição, em suas principais vias de acesso, nas áreas a que se refere o art. 11 ou em lugares que sejam claramente visíveis a partir daqueles;


IV – exibição pública das Partidas, por qualquer meio de comunicação, em local público ou privado de acesso público, associada à promoção comercial de produto, marca ou serviço ou em que seja cobrado ingresso;


V – a venda, o oferecimento, o transporte, a ocultação, a exposição à venda, a negociação, o desvio ou a transferência de ingressos, convites ou qualquer outro tipo de autorização ou credencial para os Eventos de forma onerosa, com a intenção de obter vantagens para si ou para outrem; e


VI – o uso de ingressos, convites ou qualquer outro tipo de autorização ou credencial para os Eventos para fins de publicidade, venda ou promoção, como benefício, brinde, prêmio de concursos, competições ou promoções, como parte de pacote de viagem ou hospedagem, ou a sua disponibilização ou o seu anúncio para esses propósitos.


§ 1o O valor da indenização prevista neste artigo será calculado de maneira a englobar quaisquer danos sofridos pela parte prejudicada, incluindo os lucros cessantes e qualquer proveito obtido pelo autor da infração.


§ 2o Serão solidariamente responsáveis pela reparação dos danos referidos no caput todos aqueles que realizarem, organizarem, autorizarem, aprovarem ou patrocinarem a exibição pública a que se refere o inciso IV.


Art. 24. Caso não seja possível estabelecer o valor dos danos, lucros cessantes ou vantagem ilegalmente obtida, a indenização decorrente dos atos ilícitos previstos no art. 23 corresponderá ao valor que o autor da infração teria pago ao titular do direito violado para que lhe fosse permitido explorá-lo regularmente, tomando-se por base os parâmetros contratuais geralmente usados pelo titular do direito violado.


Art. 25. Os produtos apreendidos por violação ao disposto nesta Lei serão, respeitado o devido processo legal e ouvida a FIFA, destruídos ou doados a entidades e organizações de assistência social, após a descaracterização dos produtos pela remoção dos Símbolos Oficiais, quando possível.”


A Responsabilidade civil da União vem estabelecida nos artigos 29 e 30, consoante texto abaixo:


Art. 29. A União responderá pelos danos que causar, por ação ou omissão, à FIFA, seus respectivos representantes legais, empregados ou consultores, na forma do art. 37, §6º, da Constituição.


Art. 30. A União assumirá os efeitos da responsabilidade civil perante a FIFA, seus representantes legais, empregados ou consultores por todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos Eventos, exceto se e na medida em que a FIFA ou a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano.


Parágrafo único. A União ficará sub-rogada em todos os direitos decorrentes dos pagamentos efetuados contra aqueles que, por ato ou omissão, tenham causado os danos ou tenham para eles concorrido, devendo o beneficiário fornecer os meios necessários ao exercício desses direitos.”


6. Dos Crimes relacionados aos eventos


A Lei Geral da Copa – LGC cria mais três condutas criminosas, em caráter temporário, ou seja, com vigência até de 31 de dezembro de 2014, a saber: Utilização Indevida de Símbolos Oficiais, Marketing de Emboscada por Associação e Marketing por Intrusão, artigo 16 usque 19, conforme se deflui:


Utilização indevida de Símbolos Oficiais


Art. 16. Reproduzir, imitar ou falsificar indevidamente quaisquer Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA:


Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.


Art. 17. Importar, exportar, vender, oferecer, distribuir ou expor para venda, ocultar ou manter em estoque Símbolos Oficiais ou produtos resultantes da reprodução, falsificação ou modificação não autorizadas de Símbolos Oficiais, para fins comerciais ou de publicidade, salvo o uso destes pela FIFA ou por pessoa autorizada pela FIFA, ou pela imprensa para fins de ilustração de artigos jornalísticos sobre os Eventos:


Pena – detenção, de um a três meses, ou multa.


Marketing de Emboscada por Associação


Art. 18. Divulgar marcas, produtos ou serviços, com o fim de alcançar vantagem econômica ou publicitária, por meio de associação direta ou indireta com os Eventos ou Símbolos Oficiais, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, induzindo terceiros a acreditar que tais marcas, produtos ou serviços são aprovados, autorizados ou endossados pela FIFA:


Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.


Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, vincular o uso de ingressos, convites ou qualquer espécie de autorização de acesso aos Eventos a ações de publicidade ou atividades comerciais, com o intuito de obter vantagem econômica.


Marketing de Emboscada por Intrusão


Art. 19. Expor marcas, negócios, estabelecimentos, produtos, serviços ou praticar atividade promocional não autorizados pela FIFA ou por pessoa por ela indicada, atraindo de qualquer forma a atenção pública nos Locais Oficiais dos Eventos, com o fim de obter vantagem econômica ou publicitária:


Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.”


Interessante observar que os três tipos penais criados pela legislação da copa no Brasil não defendem bens jurídicos pertencentes à nação ou ao povo brasileiro, mas exclusivamente o patrimônio da FIFA.


O ilícito penal de Utilização Indevida de Símbolos Oficiais vem descrito nos artigos 16 e 17, puníveis com pena alternativa de detenção ou multa. Por se tratar de crimes com pena inferior a 02 anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei 9.099/95.


A conduta prevista no artigo 16 é reproduzir, imitar ou falsificar, indevidamente, quaisquer símbolos Oficiais de titularidade da FIFA. Trata-se de crime de conteúdo misto alternativo ou de ação múltipla. É crime comissivo, doloso, material, plurissubjetivo e plurissubsistente. Admite-se tentativa. Trata-se de crime de ação pública condicionada à representação da FIFA. É construído com o elemento normativo “indevidamente”, o que faz exigir juízo de valor, utilitário para se saber o que vem a ser indevidamente. O objeto jurídico do tipo é a titularidade dos Símbolos e o objeto material são os Símbolos da FIFA. O crime é instantâneo, exceto as condutas de ocultar e manter símbolos previstos no artigo 17 que é permanente, aquele que se protrai no tempo.


O artigo 18 configura o delito de Marketing de Emboscada por Associação. Prevê pena alternativa de detenção ou multa. Por também se tratar de crime com pena inferior a 02 anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei 9.099/95. Trata-se de crime de conteúdo misto alternativo ou de ação múltipla. É crime comissivo, doloso, material, plurissubjetivo e plurissubsistente. Admite-se tentativa. Trata-se de crime de ação pública condicionada à representação da FIFA. O crime se perfaz com divulgação de marcas, produtos ou serviços, com o fim de alcançar vantagem econômica ou publicitária. Aqui se tem o dolo específico, chamado elemento subjetivo do injusto. O objeto material são as marcas, produtos ou serviços.


O terceiro delito é previsto no artigo 19, com o nomem juris de Marketing de Emboscada por Intrusão. Por se tratar igualmente de crime com pena inferior a 02 anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei 9.099/95. É crime comissivo, doloso, material, plurissubjetivo e plurissubsistente. Admite-se tentativa. Trata-se de crime de ação pública condicionada à representação da FIFA.


Conforme já exposto, trata-se de norma penal de eficácia temporal, definida no artigo 22:


“os tipos penais previstos nesta Seção terão vigência até o dia 31 de dezembro de 2014”.


Estamos diante daquilo que se chama em Direito Penal de lei temporária, prevista no artigo 3º do Código Penal Brasileiro.


Art. 3º – A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.”


O período de atividade de uma lei compreende o dia de sua entrada em vigor até a sua revogação por outra lei.


Existe a possibilidade de uma lei revogada continuar regendo os fatos ocorridos durante o seu período de vigência ou a hipótese de uma lei em vigor disciplinar fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor.


Quando isso ocorrer, é correto afirmar que estaremos diante do instituto da extra-atividade, que pode ser: retroatividade ou ultra-atividade.


Ultra-atividade é a característica das leis denominadas excepcionais ou temporárias, que permite a essas serem aplicadas aos fatos praticados durante a sua vigência, mesmo depois de estarem revogadas.


Leis temporárias são as de vigência prefixada, identificada na lei pela expressão: “decorrido o período de sua duração”.


Leis excepcionais são aquelas cuja vigência perdura enquanto persistirem as circunstâncias que a determinaram, identificada na lei pela expressão: “cessadas as circunstâncias que a determinarem”.


A característica da ultra-atividade é adotada para evitar o retardamento do desfecho do processo, expediente que teria por finalidade frustrar a aplicação da lei penal.


Assim, a Lei Geral da Copa é temporária e poderá ser ultra-ativa.


8. A venda de bebidas alcoólicas e a suspensão da eficácia do Estatuto do Torcedor


Um assunto que gera tantas discussões na sociedade brasileira é a permissão da venda de bebidas alcoólicas no interior e nas imediações dos estádios de futebol. A violência nos campos de futebol, segundo alguns especialistas, é acirrada pelo consumo de álcool. Após diversas batalhas no campo das ideias, o que gerou calorosas discussões entre torcedores e empresas de bebidas, o Parlamento brasileiro editou o Código do Torcedor, Lei 10.671, de 2003, com nova redação determinada pela Lei 12.299/2010, proibindo a venda de bebidas alcoólicas nesses locais.


Os artigos 13 e 13-A preceituam:


Art. 13. O torcedor tem direito a segurança nos locais onde são realizados os eventos esportivos antes, durante e após a realização das partidas.


Parágrafo único. Será assegurada acessibilidade ao torcedor portador de deficiência ou com mobilidade reduzida.


Art. 13-A. São condições de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo, sem prejuízo de outras condições previstas em lei:


I – estar na posse de ingresso válido;


II – não portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência;


III – consentir com a revista pessoal de prevenção e segurança;


IV – não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, inclusive de caráter racista ou xenófobo;


V – não entoar cânticos discriminatórios, racistas ou xenófobos;


VI – não arremessar objetos, de qualquer natureza, no interior do recinto esportivo;


VII – não portar ou utilizar fogos de artifício ou quaisquer outros engenhos pirotécnicos ou produtores de efeitos análogos;


VIII – não incitar e não praticar atos de violência no estádio, qualquer que seja a sua natureza; e


IX – não invadir e não incitar a invasão, de qualquer forma, da área restrita aos competidores.


Parágrafo único. O não cumprimento das condições estabelecidas neste artigo implicará a impossibilidade de ingresso do torcedor ao recinto esportivo, ou, se for o caso, o seu afastamento imediato do recinto, sem prejuízo de outras sanções administrativas, civis ou penais eventualmente cabíveis.” ( grifo nosso )


Acontece que, de forma surpreendente, de certo para atender a interesses econômicos da FIFA e de sues patrocinadores, a Lei Geral da COPA, em seu artigo 43, afasta a aplicabilidade do art. 13-A da Lei 10.671/2003 nas competições referentes à Copa das Confederações de 2013 e à Copa do Mundo de 2014, conforme se pode auscultar:


“Art. 43. Aplicam-se às Competições, no que couber, as disposições da Lei no 10.671, de 2003, excetuado o disposto nos arts. 13-A a 17, 19, 24, 31-A, 32, 37 e nas disposições constantes dos Capítulos II, III, IX e X da referida Lei.”


9. Da criação de tribunais no contexto de exceção.


Numa concepção tripartida de funções, a que muitos chamam de tripartição de poder, na linha evolutiva de pensamento de Montesquieu, em sua Obra Espírito das Leis, o Poder Judiciário exerce importante função de dizer o direito no caso concreto. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 92, define os órgãos integrantes do Poder Judiciário, a saber:


Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário:


I – o Supremo Tribunal Federal;


I-A o Conselho Nacional de Justiça;


II – o Superior Tribunal de Justiça;


III – os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais;


IV – os Tribunais e Juízes do Trabalho;


V – os Tribunais e Juízes Eleitorais;


VI – os Tribunais e Juízes Militares;


VII – os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.”


Importante considerar que a mesma Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXVII, define expressamente, como direito fundamental, imutável e clausula pétrea, a não instituição de juízo ou tribunal de exceção.


Acontece que no Projeto de Lei Geral da Copa, há possibilidade de criação de Juizados Especiais, varas, turmas ou câmaras especializadas para o processamento e julgamento das causas relacionadas aos eventos. Senão vejamos:


“Art. 37. Poderão ser criados Juizados Especiais, varas, turmas ou câmaras especializadas para o processamento e julgamento das causas relacionadas aos Eventos.” 


Caso esses dispositivos sejam aprovados, os infratores seriam julgados por um sistema diferenciado temporário e não pelo sistema convencional de justiça comum.


Isso aconteceu com a Copa do Mundo realizada na África do Sul, quando os sul-africanos, por exigência da FIFA, criaram tribunais especiais para processo e julgamento dos casos relacionados.


Embora o projeto de Lei da Copa do Mundo mencione que o Brasil “poderá” criar tribunais e varas específicas para julgar os casos ocorridos durante os eventos da Copa do Mundo de 2014, sabe-se que isso será uma imposição da FIFA, como fez com a África do Sul.


Todavia, é nosso entendimento que o Brasil não deve ceder à pressão de uma entidade que, durante 30 dias, quer usurpar da nossa soberania, modificando o nosso sistema legal, como se nossa nação fosse capacho de caprichos capitalistas.


Fica bem claro que, mesmo se criado pelo Congresso Nacional, com rigorosa observância do processo legislativo, um tribunal instituído de caráter temporário não coaduna com o Estado Democrático de Direito. Esse tribunal ofende todos os princípios do devido processo legal.


O Brasil precisa agilizar os processos pendentes que se arrastam por longos anos nos Tribunais, fruto de um sistema retrógado e atrasado, e não ficar pensando em criar tribunais especializados com o único propósito de atender a caprichos da FIFA. Isso mais pareceria um disfarçado Tribunal de Nuremberg que, após a Segunda Guerra Mundial, incumbiu-se de julgar os delitos praticados pelos nazistas, durante a guerra.


Nessa medida, em 2014, o país há de experimentar a sensação de julgar os guerrilheiros dos campos de concentração de torcedores. Indubitavelmente, estaríamos diante de uma justiça de exceção!


Para o festejado ministro Gilmar Mendes, os tribunais de exceção concorreriam com os juizados especiais já instalados, muitos deles voltados para as questões desportivas. Alguns passariam a funcionar dentro de estádios de futebol, para resolver, por exemplo, conflitos entre torcidas.


“Em parte, as demandas da Copa já poderiam ser resolvidas com os juizados especiais. Seriam usados os existentes e outros seriam criados para atender determinadas demandas.”


Para o ex-ministro do STF Carlos Veloso, a criação dos tribunais é inconstitucional. E acrescenta:


“Se o país se submeter ao pedido da Fifa, vamos passar o atestado de republiqueta de banana. Eles não pediriam isso aos Estados Unidos, à França ou à Inglaterra.


Uma alternativa para solucionar o volume das demandas durante os jogos, segundo o ex-ministro, seriam as decisões de arbitragem.


“É quando as duas partes elegem pessoas que vão formar uma comissão responsável por fazer o julgamento.”


É despiciendo dizer como a desjudicialização de conflitos tem se mostrado eficiente para dirimir conflitos em todo o mundo. No Brasil as mediações de conflito assim como as câmaras arbitrais também tem apontado caminhos interessantes para a solução pacífica dos problemas. Deixar de utilizar essas eficazes estratégias de construção de cultura de paz para implementar tribunais de exceção é, indubitavelmente, um retrocesso na democracia e na edificação da cidadania e dignidade de nosso povo.


10. Do direito à meia-entrada aos jovens e idosos.


O ingresso para acesso aos jogos da Copa das Confederações e da Copa do Mundo é outro assunto bastante discutido.


Algumas pessoas, em razão de condições especiais e por força de lei, possuem tratamento diferenciado em nosso país.


As crianças e adolescentes, de acordo com a Lei 8.069/90 e os idosos, de acordo com a Lei 10.741/2003, além de outras pessoas protegidas em face de pertencerem à população das minorias devem ingressar aos estádios pagando a denominada “meia-entrada”, ou seja, apenas metade do preço do valor do ingresso.


Especificamente, em razão dos idosos, o Estatuto normativo, logo em seu artigo 1º, define a pessoa idosa para fins legais.


“Art. 1o É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.”


O estatuto do idoso estabelece que o envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social, qualificado como direito fundamental e direito à vida.


Assim, é obrigação do Estado garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.


A norma do artigo 23 do Estatuto do Idoso, Lei 10.741/2003 é imperativo cogente ao assegurar aos idosos seus direitos relativos às atividades culturais e de lazer com desconto de 50% nos ingressos.


“Art. 23. A participação dos idosos em atividades culturais e de lazer será proporcionada mediante descontos de pelo menos 50% (cinqüenta por cento) nos ingressos para eventos artísticos, culturais, esportivos e de lazer, bem como o acesso preferencial aos respectivos locais.”


A Lei Geral da Copa, por sua vez, estabelece as condições para o acesso e permanência das pessoas nos locais dos eventos:


Art. 34. São condições para o acesso e permanência de qualquer pessoa nos Locais


Oficiais de Competição, entre outras:


I – estar na posse de Ingresso ou documento de credenciamento, devidamente emitido pela FIFA ou pessoa por ela indicada;


II – não portar objeto que possibilite a prática de atos de violência;


III – consentir com a revista pessoal de prevenção e segurança;


IV – não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, de caráter racista, xenófobo ou que estimule outras formas de discriminação;


V – não entoar cânticos discriminatórios, racistas ou xenófobos;


VI – não arremessar objetos, de qualquer natureza, no interior do recinto esportivo;


VII – não portar ou utilizar fogos de artifício ou quaisquer outros engenhos pirotécnicos ou produtores de efeitos análogos, exceto equipe autorizada pela FIFA ou pessoa por ela indicada para fins artísticos;


VIII – não incitar e não praticar atos de violência, qualquer que seja a sua natureza; e


IX – não invadir e não incitar a invasão, de qualquer forma, da área restrita aos competidores, Representantes de Imprensa, autoridades ou equipes técnicas.


Parágrafo único. O não cumprimento de condição estabelecida neste artigo implicará a impossibilidade de ingresso da pessoa no Local Oficial de Competição ou o seu afastamento imediato do recinto, sem prejuízo de outras sanções administrativas, civis ou penais.”


Como se pode depreender da legislação que regulamenta o mundial, há a desconsideração dos dispositivos previstos no Estatuto Idoso, causando uma revogação temporária de legislação, ainda que temporária, destituindo os idosos de direitos fundamentais, garantidos constitucionalmente.


No que concerne à denominada “carteirada”, quais serão as determinações da FIFA?


Também em relação a tal questiúncula a FIFA mostra-se inarredável de seu propósito de lucro a qualquer custo.


A primeira condição para o acesso ao local de competição vem prevista no artigo 34, inciso I, do PL 2330/11, obrigando o participante a estar na posse de ingresso ou documento de credenciamento, devidamente emitido pela FIFA ou pessoa por ela indicada.


Depreende-se, desse modo, que nenhuma outra legislação vigente no país terá validade, perante o poder da FIFA. Nenhum policial terá acesso a entrar nos locais de evento, a não ser que haja autorização da onipotente FIFA. Idosos, crianças, adolescentes, estudantes também somente terão sua entrada permitida, se portarem o ingresso emitido pela FIFA.


Encerrando essa questão, a FIFA arremata sem piedade, poderosamente a sangue frio e com requintes de crueldade, no artigo 32 do Projeto de Lei 2330/11:


“O preço dos ingressos será determinado pela FIFA.”


11. Reflexões finais


É certo que o Projeto de Lei da Lei Geral da Copa, PL 2330/11, tem causado acirradas e intermináveis discussões em toda sociedade brasileira.


Há quem afirme que o projeto de lei cria aberrações jurídicas e posições anencefálicas, num contexto de exceção, no qual a FIFA nulifica a vontade do povo, com suas imposições arbitrárias, a ponto de modificar direitos fundamentais consolidados, como a soberania que é a força que o país tem de criar e construir suas normas.


Não se pode também fechar os olhos para a necessidade de modernizar com as grandes construções do direito comunitário, fruto da evolução dos tempos e do processo integracionista, responsável pela emancipação daquilo que chamamos nos dias hodiernos de direito comunitário, com o inevitável surgimento da teoria da relativização do conceito de soberania.


Essa nova tendência deve ser utilizada para a formação de benefícios bilaterais, às vezes com o aparecimento de interesses supranacionais, mas sempre levando em conta o desejo de organização e funcionamento eficaz de uma comunidade econômica dentro de um mercado comum, sem os problemas das vantagens excessivas para uns e prejuízos para outros.


Não se pode desconsiderar que, em obediência ao princípio da proibição do retrocesso social, o nosso constituinte de 1988 inovou ao acrescer um título destinado à proteção da ordem social, fomentando num rol de prioridades o desporto, por meio de regras previstas a partir do artigo 217 da Lei Maior.


Das medidas mais relevantes inventadas pela FIFA estão a questão da responsabilidade civil da União perante a FIFA e seus representantes legais, empregados e consultores, criação de novos tipos penais temporários, a permissão para a venda de bebidas alcoólicas no interior dos estádios, rasgando o estatuto do torcedor nesse quesito e, por último, a possibilidade de criação de um tribunal de exceção para o processo e julgamento das ações criminosas praticadas por torcedores.


Relativamente à suspensão da eficácia do Estatuto do Idoso que, do jeito que se encontra, permite a redução dos bilhetes de entrada em 50%, entendemos que a boçal exigência da FIFA fere com pena de morte o direito à vida do idoso, que possui direito de envelhecer com dignidade e respeito por tudo que fez e ainda faz pelo país. O Estatuto do Idoso estabelece que o envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social, qualificado como direito fundamental e direito à vida.


Assim, é obrigação do Estado, garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.


Numa análise própria de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, acometida pelo fenômeno da interpretação sem redução de seu texto, e atendendo a preceitos de mutação social, conclui-se que essa regra reducionista do ingresso aos estádios com o pagamento de apenas 50% dos bilhetes não pode ser modificada nem mesmo por Emenda Constitucional, a teor do artigo 60, § 4º, que determina não ser objeto de deliberação de proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa, o voto direito, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais, funcionando a norma como escudo protetor da sociedade brasileira.


Por derradeiro, é fundamental explicitar que o povo brasileiro deseja a realização da Copa das Federações e do Mundo, mas não se podem aceitar intervenções gratuitas, arbitrárias e efetivadas ao arrepio da lei por uma associação de cunho essencialmente privado que, sequer, possui a audácia de perturbar países evoluídos, mas que se aproveita da fragilidade do mundo rastejante e faminto de alegrias para soltar suas malditas peçonhas, contaminando a inteligência do nosso povo.


Mais do que preservar nossa soberania, é preciso, conforme já exposto, demonstrarmos nossa dignidade humana, não nos curvando a interesses mesquinhos financeiros e gananciosos que a poucos beneficiam, mas à maioria prejudicam.


O Brasil há de se mostrar altaneiro e independente, mas, sobretudo, um Estado Democrático de Direito garantidor da humanidade de seu povo, assegurando-lhes os direitos fundamentais inscritos na nossa Carta Magna de 1988, como cláusulas imutáveis. 


 


Referências bibliográficas:

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. – 5. ed. – São Paulo: Saraiva, 2009.

CAETANO, Marcelo. Direito Constitucional. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987.p.169.v.1.


FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, p.07.


MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 4ª edição – Revista e Ampliada, Editora Atlas S.A. – 1998 – p. 43.

PERINI, Raquel Fratantonio. A soberania e o mundo globalizado. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 76, 17 set. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/4325>. Acesso em: 10. jan. 2012.  

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. Ed Malheiros, São Paulo, 15ª Ed., 1998.

wikipedia.org, acesso em 10 de janeiro de 2012, às 21h47min.

www. dicio.com.br, acesso em 10 de janeiro de 2012, às 15h53min.


Informações Sobre o Autor

Jeferson Botelho Pereira

Delegado Geral de Polícia Civil em Minas Gerais, Chefe do 2º Departamento de Polícia Civil de Minas Gerais, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Teoria Geral do Processo, Instituições de Direito Público e Privado, Direito Penal Avançado, Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela FADIVALE em Governador Valadares/MG, Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino, Buenos Aires – Argentina


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