Sumário: 1 Introdução. 2 O princípio da isonomia. 3 O princípio da irretroatividade. 4 Aplicação retroativa da Lei nº 10.174/01, que facultou ao fisco a utilização dos dados da CPMF.
1 Introdução
O que são princípios? À vezes eles são traduzidos por meio de preceitos constitucionais ou legais, como acontecem com os princípios financeiros e os princípios tributários, porém, não configuram normas jurídicas em sentido formal, apesar da sua força vinculativa.
Situam-se entre os valores e as normas, isto é, representam o marco inicial na escala de concreção do direito. Por isso eles são munidos do mais alto grau de abstração, o que lhes confere maior campo de abrangência. Daí porque os princípios atuam como diretrizes na elaboração de normas jurídicas, fazendo o papel de coordenadores de regras jurídicas.
Princípios tributários esculpidos na CF, portanto, representam limites impostos ao legislador ordinário no exercício da competência impositiva. Estão expressos nos arts. 150 e 151 da CF, visando a preservação do regime político, adotado, o respeito aos direitos individuais, objetivando a saúde da economia etc.
Convém assinalar que os direitos e garantias individuais não se esgotam no rol do art. 5º da CF, como se depreende do seu § 2º, que ressalva outros decorrentes do regime político e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o nosso país seja parte (IPI do automóvel importado).
Aliomar Baleeiro denominou esses princípios como sendo limitações constitucionais do poder de tributar, expressão aceita pela quase totalidade dos doutrinadores.
Alguns autores, entretanto, distinguem as limitações ao poder de tributar, dos princípios tributários. Enquanto as limitações impõem restrições ao poder de tributar, os princípios constitucionais tributários serviriam para veicular diretrizes positivas, isto é, apontar um norte para elaboração ou aplicação de normas tributárias materiais. Logo, o campo de atuação dos princípios tributários seria bem maior do que o das limitações constitucionais.
Sempre adotamos um posicionamento doutrinário pragmático e não vemos razão para um tipo de discussão. É o próprio texto constitucional que situa os princípios tributários na seção II, concernente a “Limitações do poder de tributar”.
Não temos a menor dúvida que os princípios tributários limitam o poder político no exercício da competência impositiva, a começar pelo princípio discriminador de rendas tributárias. Daí a extrema relevância de identificar cada espécie tributária pelo seu conteúdo intrínseco e não pelo nomen juris, como vem ocorrendo na prática.
Esses princípios tributários funcionam como verdadeiros escudos de proteção aos contribuintes. Será que isso corresponde à realidade atual?
Cremos que não. Quanto mais se aumenta o número de princípios protetores dos direitos e garantias fundamentais mais afrontados são esses princípios pelo legislador ordinário das três esferas políticas impositivas. Leis nebulosas, leis que se afastam do referencial ético, quer para tentar burlar os princípios tributários, que para anular o esforço de jurisprudência etc. são promulgadas com incrível freqüência, tornando a legislação tributária cada vez mais caótica e insegura.
O nosso sistema jurídico tributário padece do vício estrutural de um lado, caracterizada pela inexistência de normas tributárias estáveis e previsíveis de conformidade com os princípios tributários, que atuam como limitadores do poder de tributar. De outro lado, o sistema padece do vício funcional por, inexistir um órgão estatal capaz de afastar a aplicação de normas não conformes à Constituição e determinar o cumprimento daqueles conformados com os textos constitucionais, em obediência ao princípio maior da supremacia da Constituição. Esse é um aspecto que merece reflexão de todos. Por que chegamos a esse ponto?
Feita essa breve introdução, passemos ao exame dos temas que nos dispusemos a abordar: o princípio da isonomia e o princípio da irretroatividade, privilegiando sempre o aspecto prático no desenvolvimento de nossa exposição.
2 O princípio da isonomia
O princípio da isonomia ou da igualdade aparece no texto constitucional de forma genérica e de forma específica para o direito tributário.
O princípio da igualdade, de forma genérica, está prescrito no caput do art. 5º da CF nos seguintes termos:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”:
O princípio da igualdade tributária, por sua vez, está expresso no art. 150, II: É vedado ….:
“II instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão da ocupação profissional ou função por ele exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.
A igualdade de todos perante o fisco decorre do princípio mais amplo, o da igualdade de todos perante a lei.
Inúmeras constituições que se seguiram à Revolução Francesa reiteraram o princípio da igualdade, especificamente em relação a tributos em razão de sua extrema importância.
Esse princípio veda o tratamento jurídico diferenciado entre as pessoas sob o mesmo pressuposto fático, bem como o tratamento isonômico às pessoas que se encontram sob pressupostos de fatos diferentes. É um princípio voltado ao legislador ordinário, proibindo discriminações tributárias, privilegiando ou favorecendo determinadas pessoas físicas ou jurídicas.
É importante lembrar que quando o tratamento diferenciado dispensado pelas normas jurídicas guarda relação de pertinência lógica com a razão diferencial (motivo do tratamento discriminatório) não há que se falar em afronta ao princípio de isonomia.
Da mesma forma, não afronta esse princípio, quando a lei elege determinada situação objetivamente considerada para prescrever a inclusão ou exclusão de determinado benefício, ou imposição de certo gravame. Exemplo: IR do aposentado e do pensionista com mais de 65 anos, cuja renda total seja constituída, exclusivamente de rendimentos do trabalho (art. 153, § 2º, II da CF – EC 20/98 revogou o preceito protegido por cláusula pétrea).
Convém não confundir, também, o princípio jurídico da isonomia, voltado para o legislador, com a errônea interpretação ou aplicação de texto legal, gerando situação de desigualdade em confronto com as soluções dadas aos vários outros casos concretos sobre o mesmo assunto. Na prática é muito comum depararmos com situações que aparentemente estariam afrontando o princípio da igualdade. Por exemplo, às vezes, sobrados germinados de idêntico padrão, tamanho e idade aparente têm os valores venais fixados de forma diferente para efeito de lançamento de IPTU provocando impugnação daquele proprietário contemplado como valor maior em relação ao prédio do vizinho (R$400.000,00 x R$300.000,00). Pode-se afirmar que no caso houve violação do princípio da igualdade? A resposta negativa se impõe, porquanto a legislação municipal que elege critérios objetivos para apuração do valor venal de cada imóvel não permite distinguir imóveis em situações iguais. O que houve, no caso, é o erro do lançador que extrapolou o valor venal ou subavaliou o imóvel. Outro exemplo: limite de potencial construtivo para efeito de expedição do alvará de edificação. Proprietário de terreno pleiteia a concessão do mesmo índice de potencial construtivo fazendo prova documental de que seu vizinho obtivera alvará autorizando construção de área maior do em relação ao terreno de sua propriedade de idêntico tamanho com as mesmas características. Não há na legislação municipal qualquer preceito legal permitindo potencial construtivo maior ou menor baseado em critério subjetivo. O que existe neste caso é o erro do agente público responsável pela análise e expedição do alvará de edificação.
Voltemos ao exame do inciso II do art. 150 da CF, que cuida do princípio da isonomia tributária.
Desse princípio da igualdade é possível inferir o princípio da generalidade da tributação, da mesma forma que do princípio nullum tributum sine lege pode-se inferir o princípio da legalidade da isenção, isto é, não há, nem pode haver isenção sem lei.
Segundo o princípio da generalidade dos tributos, todo aquele que praticou o ato tipificado ou foi o responsável pela sua ocorrência é obrigado a pagar tributos. Esse princípio não se choca com o princípio da capacidade contributiva, porque a igualdade se refere aos indivíduos que apresentam situação física igual, isto é, tratamento igual para os iguais, e não para todos indistintamente.
O princípio da generalidade pode ser excepcionado por meio da isenção, que respeite o princípio da isonomia.
O que é inconstitucional é a lei isentiva, que estabelece uma situação de desigualdade jurídico-formal como, por exemplo, a Lei do Município de São Paulo de nº 10.698/88, que estabeleceu a isenção do IPTU exclusivamente para prédios utilizados em regime de comodato pelo Instituto Mackenzie, ignorando outras instituições educacionais que se encontrem sob os mesmos pressupostos fáticos.
Essa isenção específica, que não se confunde com a isenção especial, fere o princípio da razoabilidade, que se apresenta como um limite à própria atividade legislativa.
Daí a minudência com que o princípio da isonomia tributária foi prescrito na Constituição de 1988 atendendo ao clamor do povo no sentido de proibir as isenções subjetivas para manter privilégios de poucos à custa da maior imposição tributária sobre os demais membros da sociedade. A redação analítica do inciso II, do art. 150 da CF visa restabelecer a justiça fiscal, que está ínsita no princípio da isonomia. Pela atual redação do texto constitucional os integrantes da magistratura, das forças armadas e os parlamentares sujeitam-se ao pagamento do imposto de renda incidindo sobre a remuneração respectiva.
3 O princípio da irretroatividade
No que tange ao princípio da irretroatividade, prescreve o art. 150, III a da CF que é vedado:
………………………………………….
III – cobrar tributos:
a) “em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”.
Esse princípio, é o da prévia definição legal do fato gerador da obrigação tributária.
Em uma interpretação literal, esse princípio seria de todo dispensável, pois é elementarmente sabido não há como falar em ocorrência do fato gerador sem que a norma instituidora do tributo estivesse em vigor. O princípio da legalidade tributária, por si só, já impede a cobrança de tributo, sem que antes estivesse em vigor a lei criadora ou majoradora do tributo.
Mas, o legislador constituinte de 1988 tinha motivos para instituir esse princípio. É que o art. 34 do ADCT determinou que o Sistema Tributário Nacional só entrasse em vigor em 1-3-1989, com as exceções previstas no seu § 1º, no qual não estão incluídos todos os impostos novos, como por exemplo, o adicional do imposto de renda outorgado aos estados membros.
Esse adicional de 5% só poderia viger a partir de 1-3-1989, por força daquela art. 34 do ADCT. Mas, para poder cobrar a partir de 1-3-1989 o estado teria que instituir o imposto adicional no exercício anterior em razão do princípio da anterioridade. Por isso, o Estado de São Paulo, por exemplo, instituiu esse imposto adicional, publicando a Lei nº 6.352, de 29-12-1988, prescrevendo em seu art. 11 que “entrará em vigor na data de sua publicação produzindo os efeitos a partir de 1-3-1989.”
A lei instituidora do fato gerador estava em vigor no ano de 1988 em respeito ao princípio da anterioridade, porém, seus efeitos ficaram suspensos até 28-2-1989, passando a atuar a partir de 1-3-1989. Com isso, respeitou-se o princípio da irretroatividade à medida que o adicional só poderia ser exigido a partir da data em que a norma jurídica de tributação tivesse aptidão para incidir sobre os fatos concretos.
Esse princípio que, na verdade, é um princípio geral de direito, ou seja, da anterioridade da lei aos fatos, merece exame mais detalhado para efeitos práticos.
O aspecto temporal do fato gerador, ou seja, o momento de sua ocorrência no mundo fenomênico, define a legislação tributária aplicável ao caso.
O art. 105 do CTN prescreve a aplicação imediata da legislação tributária aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim considerados aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do art. 116. O art. 116, por sua vez, define o momento em que se considera ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos distinguindo as hipóteses de situação de fato e de situação jurídica.
O art. 106 prescreve hipóteses de aplicação retroativa da lei:
I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade às infrações dos dispositivos (LC nº 118/05, art. 3º confere efeito interpretativo ao inciso I do art. 168 do CTN, declarando que a extinção do crédito tributário ocorre no momento da antecipação do pagamento).
II – tratando-se de caso não definitivamente julgado:
a) quando deixe de defini-lo como infração;
b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulenta ou não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;
c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da prática.
O inciso I cuida de hipótese de lei interpretativa, modalidade de interpretação conhecida como interpretação autêntica. Na verdade, interpretação não é tarefa dos legisladores, mas da doutrina e da jurisprudência.
Não cabe ao legislador, sob o manto da interpretação autêntica proceder a alteração ou inovação do texto legal interpretando, como aconteceu com o art. 3º da Lei Complementar nº 118/03 que, a pretexto de interpretar o disposto no inciso I do art. 168 do CTN, promoveu a redução do prazo prescricional para propositura de ação de repetição de indébito tributário, retirando daquele preceito exatamente o sentido tido como correto pela reiterada jurisprudência do STJ, intérprete máximo em termos de legislação federal.
As hipóteses do inciso II retro mencionadas têm matriz constitucional no princípio da retroatividade benigna da lei penal.
4 Aplicação retroativa da Lei nº 10.174/01, que facultou ao fisco a utilização dos dados da CPMF
Uma interessante questão foi decidida pelo STJ em relação à Lei nº 10.174/01, que facultou a utilização de dados obtidos pela CPMF para instaurar procedimento administrativo tendente à apuração do crédito tributário, quando o titular da conta bancária devidamente intimado não comprova documentalmente a origem dos recursos financeiros movimentados.
Tratava-se de uma investigação criminal pela suposta prática de crime contra ordem tributária, baseada em dados obtidos pela CPMF em período anterior ao advento da Lei nº 10.174/01, quando vigia a proibição de utilização de dados obtidos por meio da CPMF.
O STJ rejeitou o habeas corpus, sob o fundamento de que é possível a retroação da Lei nº 10.174/01, porque ela tem natureza procedimental, portanto, com aplicação imediata e passível de alcançar fatos pretéritos (HC nº 31.448, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima).
Tenho minhas dúvidas em face do princípio da retroatividade da lei penal benigna, em seu sentido amplo.
Quer-me parecer que não se trata do princípio da aplicação imediata das normas processuais, mesmo porque aplicação imediata não significa aplicação retroativa para refazer o que já foi feito sob o império da lei anterior.
Nem se trata, salvo melhor juízo, de aplicação do disposto no § 1º, do art. 144 do CTN, in verbis:
“§ 1º Aplica-se ao lançamento a legislação que, posteriormente à ocorrência do fato gerador da obrigação, tenha instituído novos critérios de apuração ou processos de fiscalização, ampliado os poderes de investigação das autoridades administrativas, ou outorgando ao crédito tributário maiores garantias ou privilégios, exceto, neste último caso, para o efeito de atribuir responsabilidade a terceiros”.
Não vejo nesse dispositivo, aliás, sequer invocado no HC em questão, qualquer expressão ou palavra que autorize a aplicação retroativa da Lei nº 10.174/01 para validar a prova ilícita. Não se trata a meu ver de simples questão processual que possibilita a utilização de novos critérios de fiscalização e apuração do crédito tributário ou de ilícito penal, mas de utilização retroativa de prova tida como ilegal.
Em recente julgamento, envolvendo os 40 acusados do “Mensalão”, o STF rejeitou a denúncia em relação a dois dos envolvidos no processo, sob o fundamento de que os dados transmitidos diretamente pelo Banco Central à Comissão Parlamentar de Inquérito, sem autorização judicial, e que serviram de base para a formulação da denúncia do Ministério Público, configuravam provas ilícitas, impondo-se o decreto de rejeição da denúncia nesse particular.
SP, 18-9-07.
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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