Resumo: O ensaio objetiva contribuir para uma problematização da história do Direito do Trabalho. Inicia esboçando a definição e caracteres da história-problema, perpassando a Escola de Annales até a abordagem das questões contemporâneas entre história e hermenêutica. A par da crítica histórica, enfrenta analiticamente a regulação estatal do trabalho escravo e dos imigrantes. Ao estudar o trabalhismo de Getúlio Vargas, tenta estabelece as relações desta política com o positivismo. Trata de desvelar a contribuição autoritária da Ditadura Militar para o sindicalismo. Conclui reiterando a necessidade de problematização da história do Direito Laboral.
Palavras-chave: história-problema; história do Direito do Trabalho; trabalhismo; positivismo.
Abstract: The test article aims to contribute to a questioning of the history of the Labor Law. Starts sketching the setting and characters of the story-problem, going through the School of Annales approach to contemporary issues of history and hermeneutics. A pair of historical criticism, faces analytically state regulation of slave labor and immigrants. By studying the trabalhismo of Vargas, tries to establish relations of this policy with positivism. It is to reveal the contribution of the authoritarian military dictatorship for unionism. We conclude by reiterating the need for discussion of the history of the Labour Law.
Keywords: problem-history; history of labor law; trabalhismo; positivism.
Sumário: 1. Introdução. 2. Uma história-problema. 3. Annales e a historiografia jurídica. 4. História contemporânea; história e hermenêutica. 5. Um período irrelevante?! 6. O mito do trabalhismo. 7. Fascismo, autoritarismo ou positivismo? 8. Sindicalismo e ditadura militar. 9. Conclusões. Referências.
1 Introdução.
“Desconhecer propositadamente o passado é, de alguma forma, negar o que o presente pode ter de contraponto.” (BANHOZ e FACHIN, 2002, p. 72).
O desconhecimento da história do Direito do Trabalho, seja pela total omissão de importantes momentos, seja pela sacralização da narrativa clássica oficial, é lamentavelmente uma realidade contemporânea. Neste quadro, a riqueza dos acontecimentos, dos olhares múltiplos ou mesmo das leituras “de contraponto” são desconsiderados, impedindo uma compreensão mais ampla e problematizante do presente da disciplina.
Almeja-se, neste ensaio, situar a necessidade da problematização da história do Direito do Trabalho, notadamente aquela consignada nos atuais manuais da disciplina. Nas referidas obras, a história do juslaboralismo nacional é narrada para fins de legitimação do presente, isto é, para demonstrar que o sistema atual representa a evolução, que o presente constitui o desenvolvimento e aperfeiçoamento do passado. Neste viés, a singularidade do Direito do Trabalho – regulação do conflito Capital-Trabalho – é seqüestrada da história, porquanto a análise político, econômica e social é subjugada pelo registro acrítico das leis, decretos e controvérsias doutrinárias.
Nestes casos, o papel do historiador afasta-se de uma consciência crítica, contentando-se com o perfil de “erudito conhecedor do passado próximo ou remoto” (GROSSI, 2004, p. 11) para fins de adorno ao discurso jurídico. Paolo Grossi, assim, denuncia o simplismo da narrativa histórica oficial que ignora os conflitos e os interesses que envolvem os fatos históricos. A história tem recebido da manualística a única função de acessório erudito[1] nos estudos jurídicos.
Na direção do resgate desta consciência crítica, uma postura similar a uma “história-problema”, a exemplo da primeira Escola dos Annales (BURKE, 1997) revela-se necessária no Direito do Trabalho. Trata-se de prostrar o positivismo histórico que alicerça as narrativas clássicas. Impõe-se combater um pretenso evolucionismo histórico que apresenta o presente como o ápice, quando o passado poderia conter modelos e práticas mais legítimas e funcionais, lembrando que, nas palavras de Palomeque López, “o Direito do Trabalho é uma categoria de impossível apreensão sem o cabal conhecimento do seu passado”. (apud ROMITA, 2001, p. 9)
Este ensaio propõe-se, assim, a pontuar traços para problematizar a história do Direito do Trabalho. Não se pretende conceber uma nova história ou nova estruturação histórica, o que seria impossível para um ensaio, mas tão somente demonstrar alguns dos muitos momentos históricos obscurecidos pela história oficial, que, caso fossem analisados profundamente, poderiam permitir outras compreensões para o tempo presente. Para tanto, será preciso esboçar a definição e caracteres da história-problema, perpassando a Escola de Annales até a abordagem das questões contemporâneas entre história e hermenêutica. Com os aportes da crítica histórica, proceder-se-á a rápida análise do período tido como irrelevante (trabalho escravo e dos imigrantes), adiante será estudo o trabalhismo de Getúlio Vargas e desvelada a contribuição autoritária da Ditadura Militar para o sindicalismo.
2. Uma História-Problema.
A historiografia no início do século XIX era caracterizada pela racionalidade positivista, produzindo supostamente uma narrativa neutra que, pretensamente, identificaria com objetividade o conhecimento histórico. A figura de Leopold von Ranke simboliza bem esta nova vertente para a historiografia, enquanto historiador que protagonizou a história-política, entendida como a abordagem histórica sobre o feitos políticos e bélicos, nos quais só interessava estudar os poderosos e os grandes homens. O modelo rankeano marginalizava tudo que não fosse política oficial (BURKE, 1997, p 19), inclusive porque sua feição positivista privilegiava os documentos, mas especificamente os documentos oficiais por serem tidos como as verdadeiras fontes históricas.
Para este paradigma historiográfico, a relação entre historiador e história transcorria numa imaginária relação estanque entre sujeito cognitivo que compreende o objeto assim como ele é. Tratava-se da máxima cientificista de crer na existência de um conhecimento neutro, que se revela exatamente como ele é, sem qualquer interferência do sujeito cognitivo. Este decadente positivismo desconhece que o conhecimento humano jamais atinge ao real em si, pela impossibilidade de “apreender” o real exatamente como ele é sem transformá-lo, seja pela linguagem, pela subjetividade, pela imperfeição da percepção empírica, pelo momento histórico. Deste modo, o processo de apreensão da realidade significa traduzir para o pensamento um objeto real, portanto transformando-o em realidade pensada[2].
A primeira fase da Escola dos Annales, representada pela geração de Lucien Febvre e Marc Bloch, demonstra com intensidade o equívoco de tal pretensão de objetividade. Febvre destaca “é o historiador que dá luz aos fatos históricos, inclusive os mais simples” (apud ROJAS, 2000, p. 96). Se hodiernamente a idéia de neutralidade científica encontra dificuldades até nas ciências exatas (SANTOS, 1998), na história, uma ciência social intrínseca ao homem, resta inconcebível pensar a possibilidade de uma história objetiva. Revela-se sobremaneira simplista uma história-relato que assepticamente coleta eventos como eles são.
O movimento dos Annales pensava diferente. Entendia que o importante era, ao invés de relatos cartorários, levantar o “problema”, que seria o começo e o final de toda história. (FEBVRE apud ROJAS, 2000, p. 104). Frente a complexidade e pluralidade de manifestações dos fatos históricos, uma postura metodológica fincada em um problema seria mais perspicaz para conhecer e compreender melhor a história. A partir dos problemas, normalmente aqueles ignorados pela história dos grandes feitos, podia-se refazer o conhecimento histórico, como procederam Febvre e Bloch e os Annales seguintes. Firmava-se, então, a história-problema[3].
Critica-se, desse modo, a proposta da história progressista-evolucionista que pretende, narrando linearmente os acontecimentos, enaltecer o presente enquanto expressão desenvolvida do passado. Esta história evolucionista ignora os problemas inerentes e provocados por este desenvolvimento, bem como outros caminhos desperdiçados. (HESPANHA, 2005, p. 28-29).
Outra relevante guinada de Annales foi o alargamento do conceito de fontes históricas. Em que pese o relevo dos registros cartorários, esta nova historiografia entendia que a história não se resumia ao quanto o Estado conseguisse formalizar, notadamente nos períodos anteriores à formação dos Estados modernos. Era preciso, então, recorrer a outras fontes para o devido enfrentando, com profundidade, dos problemas desta nova história. Iniciou-se o uso de fontes não-literárias, como mapas cartográficos, estatísticas, entre outras. Destaca-se, também, o inovador método regressivo de Bloch de fazer história ao inverso em termos cronológicos, eis que propunha que a história fosse construída do conhecido ao desconhecido, do presente em direção ao passado. (BURKE, 1997, p. 43)
Conjuntamente com uma história-problema, a Escola de Annales iniciava estudos historiográficos para além das temáticas do político-militar, chegando até aos assuntos cotidianos e simples, como o “o toque real” (poder de cura dos reis), mas que podiam revelar temas importantes para uma certa sociedade histórica, como, neste caso, a idéia de imaginário popular. A história-problema coabitava com uma história total “a história deveria ser a ciência do social-humano, concebida em todas suas dimensões e parâmetros constitutivos, portanto, uma história global e totalizante” (ROJAS). A história global não visa tratar de todos os acontecimentos, a globalidade pretendida é na epistemologia, não no objeto. Peter Burke sintetiza as contribuições da escola historiográfica francesa:
“[…] a mais importante contribuição do grupo dos Annales, incluindo-se as três gerações, foi expandir o campo da história por diversas áreas. O grupo ampliou o território da história, abrangendo áreas inesperadas do comportamento humano e a grupos sociais negligenciados pelos historiadores tradicionais. Essas extensões do território histórico estão vinculadas à descoberta de novas fontes e ao desenvolvimento de novos métodos para explorá-las. Estão também associadas à colaboração com outras ciências, ligadas ao estudo da humanidade, da geografia à lingüística, da economia à psicologia. Essa colaboração interdisciplinar manteve-se por mais de sessenta anos, um fenômeno sem precedentes na história das ciências sociais.” (BURKE, 1997, p. 127)
Delineada as premissas da história-problema, impõe-se adiante transpor para a historiografia jurídica as inovações trazidas pelos Annales.
3. Annales e a Historiografia Jurídica.
Não obstante a multidisciplinaridade da Escola dos Annales que assenta a base da história-total, a historiografia jurídica foi um tema pouco desenvolvido pela escola francesa. Annales manteve um certo distanciamento da história do Direito. Uma das explicações para esta distância consiste na natural associação entre a história jurídica e a história política oficial. A história do direito era vista como aquela narrativa exclusiva dos atos estatais, essencialmente as leis do Estado, configurando-se um exemplar da história positivista tão combatida pelo movimento Annales.
A historiografia jurídica prossegue dominada por uma visão positivista legitimadora e monolítica dos acontecimentos, o que faz necessário a mesma ruptura que fez a primeira fase da Escola de Annales com sua denominada história-problema. Um dos pilares deste traço legitimador da historiografia jurídica é, sem dúvida, ausência de reflexão crítica entre a relação do Estado (e sua produção legislativa) com o Direito, entendido como fenômeno muito mais amplo do que o ordenamento jurídico.
É mister salientar que a confluência entre história do Direito com o positivismo histórico provém do chamado Estadualismo/Legalismo. O Estadualismo[4] corresponde ao modelo de Estado implementado na pós-revolução francesa, baseado na separação firme entre sociedade política (Estado) e civil (Direito Privado), em mecanismos de mediação (representação política), na identificação do Direito à lei (legalismo) e no monopólio estatal da jurisdição (monismo jurídico). (BANHOZ e FACHIN, 2002, p. 56). O Legalismo propõe-se a reduzir todo o direito a tão somente a disposição da lei, tendo no movimento codificador uma ilustração de sua pretensão de redução do Direito à Lei, reunida em Código.
Verifica-se, destarte, que a Annales e sua história-problema agregam substrato teórico e metodológico para a crítica do positivismo jurídico e, por decorrência, para crítica ao Legalismo. Desse modo, o distanciamento entre a escola francesa e a historiografia jurídica não impossibilita o diálogo entre tais saberes. Ao contrário, muitos historiadores do Direito têm desenvolvido esta trilha de repensar a história jurídica a partir da contribuição de Annales, a exemplo de Antônio Manuel Hespanha (2005) e Ricardo Marcelo Fonseca (1997). O passado de distância não impede tentativas de aproximação, inclusive pode-se extrair em Marc Bloch um indício de uma história-problema no direito[5].
Aliado à história-problema, a historiografia jurídica, bem como todo o direito, carece de visão interdisciplinar a fim de obter uma perspectiva mais ampla do fenômeno jurídico. Urge, também, uma história-total na seara jurídica, que ultrapasse o legalismo e o positivismo oficialesco. Trata-se de romper com a visão jurídica insular mediante a interdisciplinaridade, no sentido de entender e estudar o contexto social, político e econômico em que se produz o direito. Não se sustenta o fim da especialização do conhecimento jurídico, mas uma consciência de que este conhecimento específico não existe isolado no mundo histórico. Em verdade, combate-se mais uma suposta autonomia do jurídico do que sua especialização, como já anotava Marc Bloch[6].
Outra questão importante que fundamentaria a distância entre a historiografia jurídica e Annales refere-se ao traço da curta duração na história do Direito. Superada a narração linear histórica dos grandes feitos, a escola francesa na busca por respostas aos seus problemas preferiu situar os quadrantes históricos não mais pela cronologia clássica, mas em estruturas concebidas a partir de períodos com características assemelhadas, denominados de história de longa duração. A história do direito somente cuidou da curta duração ou quando era de longa duração destinava-se a provar a tradição jurídica linear e progressiva, ou seja, não identificava ou pensava por categoriais estruturais, ciclos ou repetições. Com as contribuições da história-problema e da história-total, a história do direito poderá conseguir sobressair da curta duração ou mesmo de uma postura legitimadora.
Saliente-se que as contribuições desta nova história possibilitam ao direito a descoberta de novos problemas outrora submersos no discurso oficial. Propiciam a análise do discurso jurídico, que se apresenta autônomo dos sujeitos e da história, terminando por incorporar uma perspectiva arqueológica, como fez Michel Foucault, ou seja, uma história social da linguagem jurídica. Antonio Manuel Hespanha considera que o pensamento de Foucault sobre a história estava integrado à nova história (FONSECA, 1997, p. 14). Pode-se, então, proceder à análise histórica do discurso da verdade enquanto modo de dominação (saber-poder) ou enfocar a investigação sobre o poder descentralizado para reconhecer o pluralismo jurídico, novos problemas e objetos para a história do direito além das questões estado-indivíduo.
Diante destes aportes da Escola de Annales, alguns contemporâneos historiadores do direito conseguem produzir uma história jurídica crítica e interdisciplinar, a exemplo de Paolo Grosso e Antonio Manuel Hespanha.
4. História Contemporânea; História e Hermenêutica.
Hodiernamente, as contribuições da história-problema e da história-total são premissas indispensáveis para as investigações históricas sobre o direito. Inicialmente, a idéia de história como cronologia linear – baseada numa sucessividade de avanços – vem cada vez mais se enfraquecendo, uma vez que a história é mais composta de continuidades e descontinuidades, avanços e retrocessos do que a idéia de progresso. Por essa razão, uma crítica à história tradicional do direito deve coadunar com a assertiva de Maurizio Fioravanti:
“Com efeito, com freqüência nas obras jurídicas falta constatar que os direitos não são nunca o resultado automático dos mecanismos de garantia formalmente previstos pelo ordenamento” […] (FIORAVANTI, 2000, p. 23).
Dessa maneira, cabe ao historiador problematizar os institutos e fundamentos do Direito, não acatando um simplismo otimista vindo da certeza iluminista. (GROSSI, 2004, p. 15). A história do direito se consolida como “um saber formativo” que visa “problematizar o pressuposto implícito e acrítico das disciplinas dogmáticas” (HESPANHA, 2005, p. 21). Esta missão problematizante pode ser resumida nas palavras de Ricardo Marcelo Fonseca:
“O direito atual não é o resultado natural do processo histórico e o passado jurídico não se resume às leis que foram elaboradas ou às grandes teorias jurídicas em alguma época engendradas. A nossa tradição não é o simples resultado da soma ou justaposição tranqüila, harmônica e linear de tendências e escolas jurídicas”. (FONSECA, 1997 p. 113)
Mesmo que a função crítica possa ser desenvolvida por outras disciplinas como a sociologia, antropologia e a teoria do direito, não há qualquer impeditivo para que a história do direito também se ocupe da crítica, especialmente com seus aportes específicos. Por outro lado, esta crítica histórica igualmente contrapõe-se a influência do modelo conservador dominante que têm desperdiçado a feição contestadora daquelas disciplinas. Não obstante, o discurso historiográfico também serve para legitimar do conservadorismo, eis que o argumento histórico (do vencedor) contigencia a historiografia aos interesses dominantes, vide tradição, costume, precedentes, entre outros. (HESPANHA, 2005, p. 23)
A partir da reflexão crítica percebe-se que certas categorias jurídicas (pessoas, obrigações, contrato) têm um significante antigo, embora seu significado seja delineado pela cultura local, temporalidade e contexto lingüístico, isto é, a semântica da categoria é o relacionamento com tempo e o espaço, como explica Antonio Manuel Hespanha:
“Por detrás da continuidade aparente na superfície das palavras está escondida uma descontinuidade radical na profundidade do sentido. E esta descontinuidade semântica frustra por completo essa pretensão de uma validade intemporal dos conceitos embebidos nas palavras, mesmo que estas permaneçam”. (2005, p. 27)
Questão relevante para uma historiografia crítica é contestar o fenômeno da mitificação. A mitificação é o processo de tornar absoluto as noções e princípios que são essencialmente relativos (GROSSI, 2004, p. 12), ou seja, de transmutar o conhecimento em crença. Esta mitificação é exemplificada no tratamento mitificador do instituto da propriedade na Idade Média, porque se tentou identificar a propriedade moderna, tornando este modelo de propriedade absoluto, para o período do medievo. Neste desiderato, revelou-se formalista a historiografia jurídica, por tentar enquadrar os seus conceitos modernos na experiência medieval totalmente distinta, “como se o discurso pudesse se esgotar no âmbito da gramática do jurista” (GROSSI, 2002, p. 15).
Acrescente-se que o debate sobre a legimitação/fundação do direito também é objeto desta historiografia crítica. Neste particular, Paolo Grossi defende que o direito moderno e positivista perdeu a dimensão sapiencial do direito, eis que seu fundamento de validade se dá mais pelo poder político (legislativo) do que pelo seu conteúdo. “Uma lei […] – essa dos modernos – se concretiza mais em um ato de poder do que em um ato de conhecimento” (GROSSI, 2004, p. 14). Significa ainda a perda do caráter ontológico do direito, deixando de ser uma ciência, com sua necessária filosofia, para se configurar como técnica de aplicação da norma. Este império da técnica decorre de mentalidade de formalismo jurídico, a qual pode ser conceituada como a “criação de um castelo de formas intelectualmente probantes e convincentes mas privado de uma correspondência na eficácia das forças históricas” (GROSSI, 2002, p. 37).
Na esteira da crítica ao formalismo, Paolo Grossi apresenta um diferenciado instrumento metodológico que dispõe para examinar e compreender a rede essencial de forças subjacentes da história: a experiência jurídica. Como a experiência jurídica é uma forma de viver o direito, ela está diretamente conectada às interpretações da vida[7] que têm em comum toda uma comunidade. Então o historiador do direito deve lembrar-se que, antes de estarem as regras jurídicas no corpo das leis, estavam no corpo dos homens como cultura viva. Tudo isto representa uma amplitude no campo de visão histórica e logicamente uma imersão de novos problemas.
Noutro giro, esta historiografia contemporânea retoma a controvérsia epistemológica sobre as possibilidades de se obter o conhecimento histórico. A historiografia é, assim, perpassada por um problema ontológico, que corresponde ao próprio questionamento sobre as possibilidades de identificação da história. Em outras palavras, é possível descobrir o passado, considerando que o sujeito deste processo cognitivo encontra-se em uma temporalidade (o presente) distinta e posterior a momento em análise (passado)?
A questão da submissão da narrativa ao pensamento presente é entendida, a grosso modo, por duas correntes. Para uma primeira vertente do pensamento, trata-se de problema inevitável, pois toda visão é parcial, o que importa impossibilidade de conhecimento objetivo histórico. Para uma segunda vertente, a leitura atualizante é condição para sua compreensão no presente, como explica Pietro Costa:
“Podemos conhecer o passado somente por meio daquilo que o passado deixou nas nossas mãos. O mar do tempo retirou-se e abandonou seus detritos e suas sedimentações sobre a praia: não vemos o mar e podemos somente recolher aquilo que ele depositou na margem. […] Ou seja: não podemos conhecer a realidade transcorrida diretamente, mas só indiretamente, através das mensagens, os testemunhos, os resíduos que nos chegaram […] Por meio dos sinais, buscamos representar para nós ‘aquilo que não existe’”. (COSTA, 2007, p. 10-11).
Deste modo, o historiador tem ciência dos limites da historiografia, eis que objetivamente somente pode inferir seqüências cronológicas, o que lhe remete a nítida criação e interpretação do seu conteúdo. Deste modo, não há verdade histórica, inclusive a história pode ser considerada como gênero literário, na qual a importância reside na coerência interna (HESPANHA, 2005, p. 34). Ciente das dificuldades e potencialidades, pode-se sintetizar um papel para a história no Direito: “[…] descortinar o suposto véu de objetividade da norma jurídica, transformando-a num produto social, suscetível de conter valores e ambições, e ser mesmo por vezes, porque não dizer, injusta.” (BANHOZ e FACHIN, 2002, p. 73).
Em tal horizonte, o problema possibilidade de identificação do conhecimento histórico frente à influência do tempo presente revela-se persistente. As propostas de enfrentamento da questão caminham para conclusão de que a história aproxima-se cada vez mais da Hermenêutica[8]. Nesta aproximação história e Hermenêutica, a interpretação histórica perfaz produção de conhecimento e não mera reprodução de narrativas de fatos. “O texto é muito mais do que um cruzamento de possibilidades semânticas, tão mais amplo quanto sua tessitura é rica e complexa. O texto não exibe sozinho seu significado: o significado é produzido, mais do que descoberto, pelo leitor” (COSTA, 2007, p. 11-12).
Neste quadro, a melhor postura para o historiador assemelha-se à postura do tradutor. A tradução se mostra paradigmática, porquanto caracteriza um verdadeiro diálogo leitor (historiador) texto, no qual se reconhece os graus de criatividade do leitor no ato interpretativo, embora sempre permaneça o compromisso deste em conjugar sua leitura criativa com o sentido, o mais aproximado possível, do texto enfrentado. A tradução implica um reconhecimento da existência de um diálogo[9] entre o passado (do texto) e o presente, mediado pelo historiador e suas compreensões.
Neste modelo se elimina um subjetivismo exacerbado, que confere total poderes ao leitor-criador, constitutivo de relação sujeito-sujeito, como também se extirpa uma pretensa objetividade, baseada numa relação objeto-objeto, para, enfim, configurar uma relação interpretativa ou historiográfica sujeito-texto. Assim, a metáfora mais adequada para a historiografia é a viagem no tempo. O viajante mais tradicional acredita o itinerário deste deslocamento pode ser igualado a uma linha reta e segura entre o passado e o presente, pela qual o presente se legitima pela narrativa histórica. Pietro Costa, ao contrário, sugerindo que o viajante seja mais distraído e curioso, aponta a necessidade da crítica a esta linha reta, pois:
O passado é uma realidade complicada e confusa: não se pode reconstruí-la em sua totalidade; ela é feita somente por conjecturas e aproximações; não parecer revelar uma direção unívoca e segura; não mostra o sinal de uma linha ou de várias linhas contínuas ou claras. (COSTA, 2007, p. 17).
Frente a este emaranhado histórico, o sentido buscado pelo historiador estaria menos numa suposta relação presente-passado e mais na própria experiência histórica. Cumpre, adiante, ir em busca da experiência histórica subjugada no Direito do Trabalho, para desvelar pontos de vista[10] importantes imersos na dogmática.
5. Um período irrelevante?!
Mister, então, buscar os outros pontos de vistas não desenvolvidos pela história oficial e tradicional sobre o Direito do Trabalho. Trata-se de não de uma reconstrução da história, mas de pincelar sobre alguns eventos históricos com um olhar da história-problema, na tentativa de realçar certos problemas outrora ignorados nos Manuais. Ricardo Marcelo Fonseca prenuncia:
“[…] nos mais diversos manuais de direito do trabalho, em que a inevitável (e no mais das vezes nefasta) ‘introdução histórica’ – de regra presente no primeiro capítulo dos livros – busca demonstrar linearmente (e num procedimento de seleção factual no mínimo arbitrário e historiograficamente suspeito) como os institutos jurídicos presentes “são o que são”, indicando com isso uma visão naturalizadora do presente (o nosso presente é um resultado inevitável de todo um processo histórico) ao mesmo tempo em que se celebra uma visão progressiva do tempo histórico ( o presente é visto como o auge e cume de toda a trajetória humana). (FONSECA, 2006, p. 297)
Contudo, um passo inicial para pensar problematizando a história do juslaboralismo é enfrentar momentos considerados como irrelevantes, eis que situados em um período de proto-capitalismo (O Império). O exemplo de um dos autores mais festejados contemporaneamente, Maurício Godinho Delgado, é sintomático. Mesmo apresentando uma leitura histórica mais consistente porque alicerçada períodos sócio-políticos e não na cronologia legal, Delgado não aprofunda os traços trabalhistas da lei do referido período, por considerá-las[11] pouco significativas. Em geral, a manualística contenta-se em considerar este período como rudimentar[12], ignorando suas potencialidades.
A irrelevância sugerida, entretanto, não resiste à investigação mais profunda. No Brasil Império, pode-se identificar uma política de formação de um mercado de trabalho, por meio de uma legislação, que não cuidando do emprego (que quase não existia), regulava outras manifestações do trabalho humano, notadamente o trabalho escravo, a locação de serviços e o trabalho dos imigrantes. Desta legislação, extrai-se alguns caracteres tipicamente trabalhistas[13], inclusive sendo posteriormente aperfeiçoados e incorporados à regulação do emprego no século XX. Trata-se de investigar com interesse as mencionadas leis e sua contextualidade histórica, em busca da relevância obscurecida pela manualística, com base no estudo do economista João Carlos Kirdeikas sobre a formação mercado de trabalho.
A lei de locação de serviços de 13 de setembro 1830 destinada a regular locação de serviços é parcamente tratada nos livros de Direito do Trabalho, sendo ignorado em muitos deles[14]. A lei de 1837, também lidando com a locação de serviços, surgiu para completar as disposições anteriores, destinando-se exclusivamente para os serviços de trabalhadores estrangeiros. Disciplinava o labor de imigrantes e nacionais, sob o prisma da liberdade de trabalho, eis que não havia à época, sequer na Europa, uma perspectiva protecionista singular ao Direito do Trabalho. Cingia-se, então, como regulação civilista para as relações de trabalho[15].
O conteúdo desta regulamentação civilista, no entanto, traz institutos trabalhistas que seriam consagrados na Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 (CLT). Isto é, mesmo que garantindo forçadamente a permanência do trabalhador, em especial o estrangeiro, tal legislação implementou traços protecionistas, resguardadas as proporções para a época, que viriam a compor algumas das bases do Direito do Trabalho atual[16]. Para compreender os traços do atual contrato de trabalho, impõe-se, destarte, compreender bem tais leis.
No cotejo da lei de 13 de setembro de 1830, verifica-se a caracterização da sujeição pessoal e corporal pelo descumprimento contratual. A garantia do adimplemento do dever do locador de serviços se dava com a própria garantia da liberdade do trabalho. O não trabalho por parte do locador implicaria sua prisão[17]. Talvez isto explique a distinção subordinação e sujeição feita pela doutrina atual, uma vez que a sujeição importaria a restrição de liberdade como na lei de 1830, diferentemente da subordinação que se limita à obediência ao poder diretivo nos limites do contrato e sem violação à liberdade individual.
Encontra-se na lei de locação de serviços institutos que irão compor traços essenciais do contrato individual de emprego. Verifica-se a existência regulação da transferência[18] do locador, para condicioná-la a não piora da condição de trabalho e ao aceite do trabalhador, disposição assemelhada ao artigo 469 da CLT. Penaliza-se a rescisão antecipada com o pagamento do trabalho já realizado e metade do valor remanescente[19], que é exatamente a regra atual na situação de rescisão antecipada do contrato a prazo, consoante artigo 479 da CLT.
Em 1879, surgiu nova lei de locação de serviços, com outros traços trabalhistas. A previsão de justa causa, embora natural no Direito Civil, como existe até hoje (Código Civil, art. 602), fora elencada e juntamente a justa causa patronal[20], prevista no decreto n.2.827/1879, que resultaria na resolução contratual por falta grave do empregador. Assim, a disciplina da rescisão indireta, inclusive a exigência de três de espera para a configuração da mora salarial, foi inserida no Brasil pela citada e incorporada, com algumas alterações, à CLT no artigo 483. Este regulação com uma leve proteção tinha um propósito nítido:
“A lei de 1879 tinha dois objetivos básicos. Primeiro, a atração de trabalho e a melhoria da imagem do Brasil nos países europeus; e segundo, a busca de garantias de estabilidade em contratos de locação de serviços, reduzindo as tensões entre locadores e locatários. Buscando garantir legalmente o trabalho regular livre na lavoura, utilizando para isso coerção (via penas de prisão)”. (KIRDEIKAS, 2008, p. 16)
O sentido da lei era a garantia da regularidade da prestação dos serviços, ou seja, a implementação de um mercado de trabalho decorrente de uma legislação de disciplina para o trabalho.
Outra questão obscurecida é a regulação do trabalho escravo. A história do juslaboralismo passa longe da análise das medidas legislativas que concretizaram a política de transição do liberto para o trabalhador juridicamente livre. Em verdade, uma política de formação do mercado de trabalho, que criminalizava a recusa ao trabalho assalariado, como aponta João Carlos Kirdeikas:
“É notória a preocupação do governo com a disciplina do trabalho do liberto. O temor do alto risco do liberto evadir-se e não se sujeitar ao trabalho regular, tornando-se um “vadio”, rebelando-se contra o sistema de trabalho da escravidão. Os legisladores buscaram formas para tentar coibir a vadiagem do liberto e de estabelecer as bases para a disciplina para o trabalho regular e sua inserção no mundo do trabalho”. (KIRDEIKAS, 2008, p. 5)
Nos termos da Lei n. 2.040 de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre), cabia ao liberto o dever de trabalhar, sob pena ser constrangido a celebrar contrato de locação de serviços[21] ou ser preso em regime de trabalho forçado ou envio à colônia. Neste aspecto, a liberdade de trabalho prevista na Constituição de 1824 não vigorava para os ex-escravos, ante a necessidade de política-econômica de se constituir um mercado de trabalho. “Então, além da legislação nacional (leis de 1871 e 1885), a legislação municipal contribuiu de forma decisiva para constituição do mercado de trabalho, controlando tanto o escravo como o trabalhador livre.” (KIRDEIKAS, 2008, p. 8)
É totalmente desconsiderada, no tocante ao trabalho escravo, a possibilidade legal de acumulação de erário pelo escravo. A Lei de 2.040/1871 estabeleceu o direito ao pecúlio dos escravos, artigo 4º, para que estes pudessem adquirir a liberdade, isto sob a autorização do seu senhor, no período da transição para o fim da escravidão. O que concretizava a tese de uma abolição lenta e gradual defendida pela maioria da elite brasileira.
Outra grave omissão, refere-se à investigação sobre o trabalho do imigrante. Existiam dois sistemas para o labor do estrangeiro: a parceria e o colonato. Criou-se na lei 108/1937, que regulava locação dos serviços do imigrante, o instituto da justa causa nos artigos sétimo[22] e décimo[23]. Mais uma vez o reiterou-se o instituto da rescisão indireta (artigo 483 da CLT) no âmbito de regulação civilista daquela modalidade de trabalho. Conclui-se que essa legislação somente serviu para garantir o cumprimento dos contratos, via coerção, impedindo rupturas antes do pagamento pelo obreiro das despesas de viagem:
“O aparato de garantias dadas ao locatário por esta lei é total. Um indivíduo (locador) que se sujeitasse a um contrato deste tipo, teria poucas condições de deixar de cumpri-lo. Com uma legislação como esta regulando o trabalho, onde a repressão e a coerção tomam contornos muito fortes, onde as garantias são prioritariamente em defesa do locatário, seria muito difícil recrutar mão de obra fora do Brasil. Aliás, esta legislação apenas piorava a imagem do trabalho no Brasil em outros países, somado à forte presença da escravidão.“(KIRDEIKAS, 2008, p. 11)
Por conseqüência, terminou desestimulando a imigração. Talvez motivados pelo insucesso da lei 108/1837, foram desenvolvidos sistemas paralelos de trabalho do imigrante. O primeiro sistema, a parceria, baseava-se na exploração dos imigrantes mediante as conhecidas dívidas de armazém (truck system), as despesas da viagem e seus juros, o que gerou inúmeros conflitos e resistências. O outro sistema, o colonato, este com as despesas de viagem subvencionadas pelo estatal, realizava a exploração via multas contratuais abusivas. “Tanto o sistema de parceria como o sistema de colonato, foram implementados pelos fazendeiros para regular e disciplinar a mão de obra estrangeira dentro de suas fazendas. Eram sistemas paralelos à legislação vigente.” (KIRDEIKAS, 2008, p. 12).
Mesmo após o esgotamento das sistemáticas de trabalho de imigrantes e fim da escravidão, o intento de forçar ao trabalho, especialmente os brasileiros livres (ex-escravos, imigrantes, pequenos artífices, entres outros) prosseguia. Isto porque provavelmente era preferível uma liberdade[24] numa vida de subsistência (inclusive através da ocupação dos sertões e grotões nacionais) do que à sujeição ao trabalho sem qualquer regulação ou proteção. Era necessária, então, uma legislação de promoção coercitiva ao trabalho. Por essa razão o código penal de 1830 consagrava a orientação de criminalizar[25] a não aceitação de trabalho, eis que não ter uma ocupação honesta ou a mendicagem constituíam tipos ilícitos.
Viu-se que neste período esquecido pelos manuais de Direito do Trabalho encontra-se eventos, períodos e mesmo institutos jurídicos relevante ao ponto de tornar necessária a análise sua histórica. Descortinados importantes acontecimentos, o próximo passo, para uma história-problema, refere-se ao cotejo do período do mito do trabalhismo.
6. O mito do trabalhismo.
Por trabalhismo pode-se designar o pensamento que atribui à legislação trabalhista nacional a natureza de concessão da política de Getúlio Vargas. O discurso do trabalhismo, bem arraigado no Brasil, conduz às leituras restritas do fenômeno da consolidação/implementação da legislação do trabalho. É mister, então, tentar sinalizar questões no sentido de alargar esta experiência.
A princípio, é preciso elucidar uma premissa para a adequada compreensão do histórico das relações de trabalho no Brasil: o contexto econômico e político nacional produziu um desenvolvimento das relações de trabalho de maneira marcadamente distinta daquela ocorrida na Europa. Todavia, a premissa da diferença não permite, por outro lado, endossar o senso comum de certos manuais de que a legislação trabalhista brasileira foi uma dádiva de Getúlio Vargas, embora seja reconhecida sua contribuição na criação e consolidação das leis trabalhistas. Maurício Delgado apresenta uma análise comparativa que explica o modelo diferenciado e autoritário brasileiro:
“[…] construindo-se essa instituticionalização/oficialização ao longo de um demorado período político centralizador e autoritário (de 1930 a 1945), o ramo justrabalhista veio a institucionalizar-se, consequentemente, sob uma matriz corporativa e intensamente autoritária. A evolução política brasileira não permitiu, desse modo, que o Direito do Trabalho passasse por uma fase de sistematização e consolidação, em que se digladiassem (e se maturassem) propostas de gerenciamento e solução de conflitos no próprio âmbito da sociedade civil, democratizando a matriz essencial do novo ramo jurídico.” (DELGADO, 2005, p. 113).
Embora o Direito Laboral tenha surgido como conquista da ação organizada dos trabalhadores na Europa, suas características no Brasil são bastante distintas, uma vez que, no sistema brasileiro, a iniciativa estatal predominou, configurando um modelo de normativização autoritário corporativo (DELGADO, 2004, p. 120). Entretanto, deve-se lembrar que o seu início foi demarcado por uma incipiente organização sindical, sob inspiração da ideologia anarquista proveniente da formação política dos imigrantes europeus que compunham parte considerável dos trabalhadores no Brasil. Logo, a afirmação de que o Direito do Trabalho no Brasil representou uma dádiva da lei não pode ser propalada, uma vez que não se coaduna[26], de forma fidedigna, com a história.
A era Vargas implantou nas relações de trabalho uma nova política intrinsecamente intervencionista e protetiva, assegurando, inquestionavelmente, uma série importante de direitos e vantagens, nas relações de emprego, aos trabalhadores individualmente considerados. Em contrapartida, empreendeu uma estratégia de atrelamento da organização coletiva dos trabalhadores ao Estado, importando sua cooptação e dominação, ao controlar da criação até a extinção dos sindicatos, ao definir seus objetivos, administração, receitas e eleições. Talvez por essa dualidade de proteção-cooptação justifique-se o porquê de considerar Vargas como pai dos pobres e, ao mesmo tempo, mãe dos ricos. A época, o controle estatal era tão intenso ao ponto da doutrina trabalhista imputar ao sindicato uma nova natureza jurídica: ente de Direito Público, eis que inserto no modelo corporativista autoritário.
Infere-se que o trabalhismo de Vargas inicialmente garantiu aos trabalhadores uma proteção trabalhista inimaginável para a época, considerando a capacidade de organização e conquista do movimento sindical. No entanto, seu preço foi indubitavelmente alto, posto que causou a aniquilação do potencial emancipatório da ação coletiva dos trabalhadores, produzindo o chamado “sindicalismo pelego”.
Uma análise política também se volta a para busca da relativa aceitação do patronato nacional diante da política de Vargas em consolidação de uma legislação intervencionista e protetiva. Não se trata de imaginar que a concordância da burguesia se justificou pelo reconhecimento da justeza de um sistema protetivo nas relações de trabalho, mas ao contrário na pretensão de que a legislação recém-criada – com muitas dificuldades para se tornar efetiva, inclusive que se prolongam até os dias atuais – representaria uma arrefecimento da luta de classes, em especial com perigo soviético, e um controle estatal sobre a coletividade organizada em sindicatos. Isto é, a legislação trabalhista, que dificilmente seria cumprida, traria paz entre classes[27] e aniquilação da combatividade sindical.
Infere-se, desta maneira, a configuração de um mito fundador. Este mito manifesta-se, também nas relações de trabalho a partir da cultura, denominada por Marilena Chauí (2000), de verdeamarelismo[28] que intenta afastar a luta de classes em favor da uma colaboração capital e trabalho, sob o olhar do Estado:
“A divisão de classes é naturalizada por um conjunto de práticas que ocultam uma determinação histórica ou material de exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a sociedade sob o signo da nação uma e indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divisões reais que constituem.” (CHAUÍ, 2000, p. 89/90)
Na perspectiva de superação deste trabalhismo que impregnou a história do Direito do Trabalho, Magda Biavaschi formula uma contextualização mais crítica, assinalando uma apreciação histórica mais ampla do que a tradicional que apenas legitima o discurso da concessão de uma proteção trabalhista por Vargas:
“Depois da abolição, agundizaram-se as tensões e as necessidades sociais de proteção ao trabalho, sem que a Velha República pudesse delas dar conta. É que, afinal, a via escolhida foi a do liberalismo, a qual a Revolução de Outubro de 1930 buscou superar. Isto tudo é verdadeiro e passa a compor certa base material, sem força suficiente, porém, de impulsionar, com a força dos movimentos, a positivação dos direitos sociais fundamentais, isto é, a construção do Direito do Trabalho como ramo autônomo do Direito. Para que a riqueza desses acontecimentos não se congele em rótulos como ‘cópia fascista’, ‘Estado de compromisso’, ‘mito da outorga’, ‘roubo da fala’, é importante que se os compreenda sob o foco de uma lente múltipla, a partir de uma dinâmica envolvendo interesses contrapostos coordenados por um Estado também em transformação”. (BIAVASCHI, 2007, p. 80).
7. Fascismo, autoritarismo ou positivismo?
Traçadas bases para uma crítica do trabalhismo, resta indispensável desconstruir, de igual modo, a qualificação de fascista ao Direito do Trabalho. O diagnóstico da índole fascista do Direito do Trabalho é corriqueiro na doutrina. Explicam que “o modelo justrabalhista brasileiro, como se sabe, foi apropriado das experiências autocráticas européias do entre-guerras, fundando-se, em especial, no parâmetro fascista italiano” (DELGADO, 2005, p. 120). Concluem, assim, que “o Direito do Trabalho brasileiro nasceu sobre o signo do fascismo italiano” (ROMITA, 2001, p 18).
A qualificação de fascista para o Direito do Trabalho nacional peca por demasiado excesso. Não se olvida a influência da carta italiana durante a criação da CLT, porém não procede a assertiva de considerar o diploma trabalhista nacional uma cópia ou uma adaptação da Carta del Lavoro. O exagero sobressai porque a equiparação CLT e Carta del Lavoro somente ocorre em matéria sindical, uma vez que em muitos outros pontos verifica-se imensa distinção, seja de perspectiva sócio-político, seja de institutos jurídicos.
Assim, considerar a CLT fascista torna-se correto quando se dirige exclusivamente à matéria de organização sindical, disposta nos artigos 511 a 630 da CLT. De fato, as categorias unicidade, enquadramento e imposto sindical são conceitos decorrentes de uma lógica de sindicato com monopólio de representação[29] dos trabalhadores sob o jugo do Estado: que autoriza sua criação; que lhe reconhece a personalidade sindical; que pode intervir inclusive para destituir diretores e fechar o sindicato; e que arrecada, compulsoriamente, a contribuição sindical mediante o “imposto sindical”. Neste ponto, um dos integrantes da Comissão redatora da CLT reconhece a nítida influência corporativa em matéria de organização sindical[30]. Portanto, acusar o Direito do Trabalho nacional de fascismo destoa da complexidade e amplitude tanto da Consolidação de Leis, como das particularidades históricas:
“Tal acusação, além de confundir o todo com as partes, revela, sem dúvida, o desconhecimento da evolução das leis brasileiras sobre o Direito do Trabalho. Dos onze títulos que compõem a Consolidação, apenas o V, relativo à organização sindical, correspondeu ao sistema então vigente na Itália”. (VIANNA, 2005, p. 62)
Talvez fosse mais adequado fugir da simples qualificação de fascista, com dificuldades de sustentação histórica, para identificar o traço corporativista ou autoritário da legislação trabalhista. Para tanto, convém destacar a figura de Oliveira Vianna, sociólogo e jurista, que exerceu papel notável no processo de consolidação de uma legislação trabalhista nacional, eis que ocupou durante logo período (1932-1945) a função de consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Seu perfil pode bem indicar traços que caracterizam a índole da legislação trabalhista: “Oliveira Vianna foi um antiliberal, um anticomunista, comungava com o pensamento insculpido na doutrina social da Igreja, mas sua concepção de corporativismo sempre objetiva o fortalecimento do poder secular” (ARRUDA, 2007, p. 18).
O corporativismo propugnado decorria daquilo que Oliveira Vianna denominava de insolidariedade social. “No Brasil o sindicato é uma causa inicial de um futuro espírito associativo. […]. Se povo não é solidário, o Estado tem de intervir para organizar e fazer funcionar o sistema sindical corporativo” (ARRUDA, 2007, p. 58). Em que pese existirem proximidades e tais idéias estarem umbilicamente jungidas na história, corporativismo não se confunde com o autoritarismo[31]. É que no Brasil, as corporações não constituíram efetivamente espaços de decisão política para o Estado, o que caracteriza o corporativismo nacional mais como um autoritarismo estatal sob as vestes daquele.
Com efeito, a política varguista, de igual modo, não adotou um sistema corporativo, pois as corporações não eram centros de poderes, mas apenas de espaços de controle pelo poder central. Não havia permeabilidade para a participação política das corporações na definição da vontade soberana do Estado, pois ocorria a “ausência de mecanismos de participação das organizações do trabalho e do capital na formulação e implementação de decisões estratégicas do Estado nacional” (MENDES, 2007, p. 21)
Parece que as pretensões envolvidas pela política de Vargas mais representavam um ideal positivista de conciliação de classes, sob controle de Estado, do que efetivamente um modelo corporativista ou fascista. Embora, o contexto político-histórico da época o tenha aproximado dos governos autoritários europeus, o que estimula uma equiparação que não procede, Getúlio Vargas era adepto de um positivismo-castilhista (BIAVASCHI, 2007, p. 90) e logo se distanciou do sistema fascista[32], por outros interesses, em favor de uma aproximação com os governos capitalistas-democráticos.
Além disto, o modelo corporativo clássico, adotado na carta italiana, não coaduna com os praticados intervencionismos estatais no mercado para realizar ou subsidiar interesses eminentemente privados. Saliente-se que a Carta del Lavoro firma-se na livre iniciativa, como se vê no seu inciso IX:
“IX – A intervenção do Estado na produção econômica verifica-se somente quando falte, ou seja, insuficiente a iniciativa privada, ou quando estejam em jogo interesses políticos do Estado. Esta intervenção pode assumir a forma quer de controle, de encorajamento ou de gestão direta.” (CARTA DEL LAVORO, 2008).
Ora, de acordo com a carta italiana o intervencionismo estatal é somente suplementar à iniciativa privada. Tal diretriz não coaduna com a política intervencionista brasileira, que, contrariamente à Carta del Lavoro, que incumbe ao Estado uma administração pública dos conflitos Capital-Trabalho pelo Estado. Então, conjuntamente com o marcado autoritarismo visualiza-se a ideologia do positivismo político que se perfaz pelo normativismo. O positivismo trabalha com um normativismo que atribui ao ordenamento jurídico um papel essencial no seu intervencionismo, pois a norma expressa tanto a garantia da ordem como direciona ao progresso. No positivismo comteano, defende-se uma tutela de dos operários pela sua dependência, sem, contudo, interferência no conflito de classe, uma assistência aos carentes como medida de dignificar a pobreza via eliminação da miséria, mas continuidade da mais-valia.
Revela-se sintomática da índole positivista da CLT, o trecho final do seu artigo oitavo[33] que expressamente determina “que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público”. Ou seja, um interesse público subjaz os interesses corporativos, caracterizando um sistema mais positivista-autoritário do que efetivamente corporativista. Assim, o autoritarismo do Direito do Trabalho conforma-se como resultado mais de um positivismo de Comte[34] do que de um padrão corporativista ou fascista.
8. Sindicalismo e Ditadura Militar.
Sob o signo do autoritarismo, urge desenterrar a emblemática e sutil modificação em matéria sindical que é, lamentavelmente, ignorada pelos livros de Direito do Trabalho. No período da Ditadura Militar de 1964 a 1987, a manualística apenas registra a conhecida perseguição política, mediante intervenção nos sindicatos, com destituição de diretores, prisões e cassações de direitos, bem como a legislação restritiva[35], quase proibitiva, do direito de greve. Silencia-se que a eficácia erga omnes – que corresponde à extensão vantagens pactuadas na negociação coletiva para trabalhadores não filiados ao sindicato – das normas coletivas foi obra da Ditadura Militar.
O sindicalismo brasileiro tem história, inicialmente, comparável, a grosso modo, à Europa até a década de 1930. A partir da abertura dos portos e incipiente industrialização do país, começa o despontar as ações sindicais no Brasil, especialmente com a chegada dos imigrantes, muitos com vivência sindical e anarquista em seus países de origem. Registre-se a greve dos Tipógrafos de1858 no Rio de Janeiro, tida como a primeira paralisação no país; a greve dos Caixeiros em1886; a grande greve geral de 1919. Deste modo, surgem as organizações operárias, tais como a Liga Operária em 1970, a União Operaria em 1886, a Confederação Operária Brasileira em 1920 e Partido Operário em 1902. Não obstante tais primórdios de ação sindical urbana, a primeira lei sindical dirigiu-se somente aos sindicatos rurais[36], sob o pretexto de que a maioria da população ainda residia na zona rural.
Com o governo Vargas inicia-se a política de cooptação e aniquilação dos sindicatos[37], via sistema positivista-autoritário para as relações de trabalho. Desde o Decreto 19.770/1931, que regulamentou os entes sindicais, verifica-se que a disciplina legal “tinha objetivo inequívoco, embora não confessado, de desmobilizar o avanço das lutas operárias” (ARRUDA, 2007, p. 52). No breve lapso democrático-social da Constituição de 1934, a política de cooptação recua em favor da pluralidade sindical[38], consagrada na Carta Magna, embora não posta em cumprimento.
Retomada a matiz autoritária em 1935, constata-se que a Constituição de 1937 que sinalizava para a eficácia erga omnes das normas coletivas, consoante artigo 137, a, que dispunha:
“Art 137 – A legislação do trabalho observará, além de outros, os seguintes preceitos:
a) os contratos coletivos de trabalho concluídos pelas associações, legalmente reconhecidas, de empregadores, trabalhadores, artistas e especialistas, serão aplicados a todos os empregados, trabalhadores, artistas e especialistas que elas representam; (BRASIL, a, 2008)” (grifos nossos).
Mesmo a Constituição sugerindo a eficácia das normas coletivas foi regulamentada pela CLT, artigo 612, que restringia a aplicabilidade das convenções exclusivamente aos associados, ex vi:
“Art. 612. O contrato coletivo, celebrado nos termos do presente capítulo, aplica-se aos associados dos sindicatos convenentes, podendo tornar-se extensivo a todos os membros das respectivas categorias, mediante decisão do Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio. [redação anterior ao Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967] (BRASIL 2008)” (grifos nossos).
A eficácia exclusiva para associados não coadunava com um sistema autoritário e corporativo, pois estimulava a associação de trabalhadores e um decorrente fortalecimento e combatividade do sindicato. Nesse sentido, Oliveira Viana defendia a vinculatividade aos não-associados, pois, nas palavras de Evaristo de Moraes Filho “de acordo com a lógica do sindicato único, com as origens italianas (corporativas) da Carta de 1937. Se o sindicato era único, se recebia imposto sindical de toda a categoria, não havia por onde não lhe dar poder normativo inicial e primário” (apud ROMITA, 2001, p. 86).
Destarte, a consagração do viés autoritário e aniquilador do movimento sindical proveio de uma sutil alteração legislativa em 1967 pelo Decreto-lei nº 229, que estabelecia:
“Art. 611 – Convenção Coletiva de Trabalho é o acôrdo de caráter normativo, pelo qual dois ou mais Sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho”. [Redação dada pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967] (BRASIL, 2008)
Ora, a extensão de vantagens normativas para os não-associados implica uma política nítida de desestímulo à sindicalização. Isto porque a não diferenciação entre associados e não associados – que têm idênticos direitos, embora deveres distintos, recaindo mais contribuições sindicais sobre os associados – resultaria, como ocorre atualmente, no incentivo a não filiação. Configura-se perspicaz política legislativa autoritária que enfraquece o sindicato para valorizar o Estado.
A ausência do debate sobre as implicações do Decreto-lei nº 229/67 no Direito Coletivo do Trabalho produz graves complicações na análise da liberdade sindical atual. Tão situação se agrava em razão da atual Orientação Jurisprudencial nº 17 do Tribunal Superior do Trabalho[39] que, a título de defender a liberdade sindical individual, revigora a política de enfraquecimento dos sindicatos, quando ao tempo que isenta o trabalhador não-filiado das contribuições sindicais, assegura-lhe os mesmos direitos do filiado, tornando economicamente desaconselhável a filiação.
9. Conclusões.
Percorridos alguns dos episódios e questões não enfrentados pela história oficial do Direito do Trabalho, pode-se inferir certas conclusões de ordem historiográfica e sobre o próprio Direito do Trabalho.
Perante as reflexões críticas trazidas pela historiografia, verifica-se a urgente necessidade de uma história-problema – ou problematização das narrativas – que se proponha a contestar o positivismo histórico-jurídico na investigação do Direito do Trabalho. Enfim, trata-se de superar história enquanto cronologia de leis em direção ao progresso do contrato de emprego, como sintetiza Ricardo Marcelo Fonseca:
“De fato, sobretudo em função da herança do positivismo jurídico (até hoje amplamente hegemônico), que se contenta em esgotar-se na relação interna entre normas, ignorando no mais das vezes o seu entorno e a sua historicidade, as relações de trabalho acabam sendo lidas pelos juristas a partir de um modelo linear e progressivo, no qual o conjunto das relações de trabalho aparece como uma espécie de “acréscimo de racionalidade progressiva”, onde o trabalho assalariado (no seu modelo contratual: o contrato de trabalho) é o ápice e o ponto de chegada.”(FONSECA, 2006, p. 297).
De outro lado, impõe-se o afastamento do lugar comum no qual estão as assertivas de que o Direito do Trabalho nacional é fascista, corporativo, cópia da Carta del Lavoro, para enfrentar, com convicção, a influência do positivismo político na implementação e consolidação do sistema trabalhista. Rodrigo Adélio arremata:
“Conclui-se que o Direito do Trabalho encontra explicação no movimento do positivismo comteano, mencionado no tópico sobre o histórico no Brasil; foi facilitado pelo movimento do constitucionalismo, de que são exemplos a Constituição do México e de Weimar. Mas, antes de tudo refletiu a luta dos trabalhadores e a luta no campo das idéias, por sua vez derivadas da condição de vida precária. Assim, embora tenha parecido obra paternalista de Getúlio Vargas, pode ser dito, sem nenhuma vergonha, que o Direito do Trabalho no Brasil emergiu da questão social brasileira, representando o efeito da justiça social no Direito pátrio.” (LINARES, 2006, p. 33)
Deste modo, o positivismo histórico e político se apresenta, com intensidade, como racionalidade delineadora do Direito do Trabalho e de sua história. Cumpre, adiante, investigar, criticar e verificar as idéias acima esboçadas no intento de refazer a história do Direito do Trabalho sob outros ângulos e olhares para, compreendendo melhor o passado, entender e transformar o presente.
Juiz do Trabalho na Bahia e Professor Adjunto da UFBA, Especialista e Mestre em Direito pela UFBA, Doutor em Direito pela UFPR, Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho – IBDT
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