As corporações profissionais surgiram na Idade Média. Levados pela necessidade de metodização e aperfeiçoamento das respectivas atividades, os artesãos, construtores de igrejas, coureiros, armeiros, etc, se agruparam. Visavam preservação e aumento de competência, reforçando-se as comunidades, além disso, na resistência aos senhores feudais. Isso vem descrito em “best seller” de Noha Gordon. Relata-se, ali, a edificação, tijolo por de uma catedral do século XII. À volta, homens e mulheres se amavam, adoeciam de peste bubônica, morriam de morte natural ou por causas violentas. A cruz despontava aos poucos nas cumieiras. Meio século se passava antes que a igreja ficasse pronta, mas os homens aprendiam a manter íntegras as enormes abóbadas engatadas em colunas aparentemente frágeis. Dentro dos templos, o povo se ajoelhava, buscando milagres sob os olhares atentos dos bispos e desprezo dos nobres.
A Ordem dos Advogados é derivação das corporações medievas. Na realidade, quatrocentos anos atrás, em Paris, os advogados já usavam suas becas negras, freqüentando a missa às seis horas da manhã, antes de se dirigirem aos trabalhos forenses. Eram proibidos de manter cabelos e barbas compridos. Deviam observar o celibato. Provinham em grande parte dos mosteiros, porque poucos, além dos padres, eram letrados. Aglutinavam-se os advogados em torno do “Barreau”, como hoje se faz. Não recebiam salários fixos, mas honorários. Acontece assim ainda. As corporações, respeitadas particularidades regionais, se transformaram nas “Ordens”. Houve tempo em que os ditadores e governos autoritários tentaram desintegrá-las. Exemplo típico, no Brasil, foi o Decreto 74.000, prolatado enquanto vigendo o golpe de 1964. Pretendia-se, ali, a vinculação da Ordem dos Advogados ao Ministério do Trabalho. A história é comprida. Não vale a pena contá-la aqui. Certo é, entretanto, que a O A B se desenvolveu amplamente a ponto de cinturar, no país, cerca de quatrocentos mil advogados. Um poder assemelhado ao das milhares de paróquias espalhadas pela nação. Curiosamente, mesmo dotada dessa amplitude protetora e disciplinar, a corporação de advogados se enfraquece na luta contra o Estado. Há razões sérias para o envilecimento. Em princípio, desde o tempo de Jarbas Passarinho e outros Ministros da Educação, inoculou-se naquele setor de ensino uma satânica raiva contra os bacharéis em direito. Uma coisa esquisita sim, firmada na muitas vezes inconsciente reação contra redutos de censura ao poder desenfreado mantido por caudilhos que mandavam no Brasil, primeiro no Rio de Janeiro, agora em Brasília. Depois veio a cobiça. Alguns falsos educadores montaram praça no governo. Alianças diversas, firmadas sob os tampos das mesas ministeriais decoradas com relevos finamente cavados (atualmente depositadas num almoxarifado qualquer, já que não se harmonizam com a decoração moderna), deram a cúpidos empresários a capacidade de manipulação dos Conselhos e segmentos outros do Ministério da Educação, entrelaçando-se lá dentro, então, sob o influxo de apadrinhamentos imorais, o rol mefítico de agressões à dignidade do ensino e do estudo das ciências jurídicas. Formou-se, no Ministério da Educação, uma fornalha donde escapa fumaceira suja voltada a tisnar, contagiando a incompetência dos formandos, a própria dicção da Justiça. No meio de tudo, surgem cursos e cursos de Direito, sob a vista complacente dos ministros e dos conselheiros voejantes no Palácio do Planalto, guindados a cargos tais após indicações materializadas ao gosto de verdadeiras máfias incrustadas nas dobras dos reposteiros.
Parece, repita-se, que há muita raiva contra os advogados na Câmara Superior de Ensino. Existe, sem dúvida alguma, desprezo enorme à capacidade de resistência da OAB. O Ministro da Educação, de seu lado, sacode os ombros, numa impassibilidade que imita a negligência de seus antecessores. A desmoralização vem a galope, trêfega enquanto os fautores de novas artimanhas respiram forte, angustiados na tarefa de leiloamento das últimas frações de um queijo esburacado pela corrupção desmedida. Nesse entremeio, a Ordem dos Advogados acorda, estremunhada, indagando o que existe de errado. Chega aos jornais protesto indignado de Rubens Approbato Machado, o “Battonier” de Brasília. Em São Paulo, o presidente da Seccional ameaça os corruptos e corruptores de instauração de processos criminais. Tem Carlos Aidar, quase ao lado, uma Faculdade de Direito recém-implantada, autodenominada “A mais nova tradição de São Paulo”, como se tradição pudesse ser recente e “antigüidade” fosse um insulto. A Ordem, tia solteirona, deixou o chá da tarde e parte para a luta. Encontra um campo minado pelo descaso das autoridades, pela cornucópia do dinheiro fácil, pela tentativa de influência, até, das poderosíssimas instituições particulares na política interna da Corporação. Uma coisa feia, sim, vitriolagem distribuída sofisticadamente a partir dos aveludados corredores do Ministério da Educação. O Ministério Público Federal, nunca apaixonado pela fiscalização do setor, não vê, não enxerga, não percebe a podridão, inciente de que sinais externos de desenvolvimento desnaturado dos cursos de direito são demonstração de que o a ética se estiolou enquanto multiplicadas as vagas. Sincronizando o esquema, há, nas universidades, um estável amealhamento de professores extraídos exatamente das instituições indiretamente aptas à fiscalização do ensino. Promotores públicos, juízes e advogados são cooptados, consolidando-se no corpo docente das Faculdades. O fiscal é consumido pelo fiscalizado, tudo em troca de magros proventos distribuídos parcimoniosamente pelas tesourarias. Os conselhos seccionais da OAB fornecem alguns mestres também, reduzindo-se, com isso, a capacidade de censura de muitos colégios de advogados. O sistema foi corrompido até o extremo. Sente-se que o elástico se aproxima da tensão máxima. A Ordem sai do mutismo. As lideranças bradam aos céus: “– Assim também não!” –, gesticulam. A Procuradoria Geral da República, absorta entre escândalos variados, deixa andar. Em Brasília, as andanças do Ministério Público têm hierarquia. O Ministério da Educação, seu Conselho e a Câmara Superior de Ensino não constituem a preocupação principal do chefe geral da persecução. Examinando o momento histórico drapejante, os abastardadores do ensino jurídico brasileiro lançam as últimas cartadas. O navio vai afundar. Salve-se quem puder. Estertorando, retardatários apressados atiram as redes, a ver se pescam um ou outro peixe. Um prédio faustoso aqui, um novo curso naquela esquina, um nome famoso ostentado no frontispício da Faculdade de Direito nova em folha, tudo sob nosso olhar benevolente. Paulo Renato vai embora, segundo dizem os taxistas do planalto (nossos arapongas). O Ministério da Educação continua tentando aviltar a advocacia (com profundos reflexos na distribuição da Justiça), embora desfeitos os esquemas postos nos labirintos criados por diversas portarias desmoralizantes. Esses fenômenos, no entanto, acontecem como a “Lei Seca” nos Estados Unidos. A bebida vai ser proibida, mas o álcool estocado basta para prover as adegas. Cá estamos nós. O Brasil entra para o “Guiness” em matéria de número de advogados. Os empresários afiam as facas e preparam as algibeiras para as eleições na O A B, infiltrando-se, já, nos conflitos pré-eleitorais, mesmo faltando quase dois anos para a renovação dos Conselhos Seccionais. Em Brasília, Fernando Henrique se aborrece com Serra e os problemas políticos gerados por Paulo Renato. Os advogados que se lixem. Aliás, Fernando e seu Ministro da Educação não entendem coisa alguma de Justiça. Deixam tudo por conta do provável novo Ministro do Supremo Tribunal Federal. Restam, tentando compor a casa, vinte e sete Seccionais da Ordem dos Advogados, representando quatrocentos mil artesãos. Estupefatas, as lideranças não sabem analisar a causa da derruição das igrejas. Basta uma simples explicação: Não vigiaram a colocação dos tijolos. É rezar para não ser tarde demais para a reconstrução das paredes. Só se consegue resultado razoável com vigilância e reações estáveis. A corrupção é praga fértil. Fica escondida nos meandros da argamassa. Mal o pedreiro saiu para a sesta, o arbusto venenoso pula das sombras e se projeta. O problema é que saímos todos, como a tia solteirona, para o chá de erva cidreira. A cidra é sonífera. Anestesia. Dá um ronronar gostoso. A gente acorda maciamente e pensa, debaixo do cobertor, que não aconteceu nada. Entretanto, a tempestade veio e destruiu o teto. Só as tias não perceberam que o prédio ruiu.
Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.
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