Sumário: 1. Introdução; 2. Competência; 3. Ação penal; 4. Oferecimento da denúncia; 5. Procedimento em juízo; 6. Regras de aplicação subsidiária; 7. Últimas considerações.
“Saber as leis, dizem os jurisconsultos, não é ter-lhes em mente as palavras, mas conhecer-lhes a força e a intenção. Scire leges non est verba earum tenere, sed vim ac potestatem”. Rui Barbosa[1]
1. Introdução
Foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União no dia 9 de fevereiro de 2005,[2] a Lei nº 11.101, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, por isso conhecida como “Nova Lei de Falência”.
Entre outras coisas, conforme o disposto em seu artigo 200, pela nova lei ficam revogadas as disposições dos artigos 503 a 512 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, o Código de Processo Penal, que tratam “do processo e do julgamento dos crimes de falência”.
Por força do que estabelece seu artigo 201, a nova lei entrará em vigor em 120 (cento e vinte) dias após sua publicação, vale dizer, em 09 de junho de 2005, observada a regra do §1º do art. 8º da LC 95/98,[3] não havendo que se cogitar, por aqui, da aplicação do princípio da incidência imediata estatuído no art. 2º do CPP.
A matéria penal e processual penal vem regulada no Capítulo VII. Deste, a Seção I, que compreende os artigos 168 a 178, cuida “Dos crimes em espécie” e “fraude a credores”; a Seção II, onde estão os artigos 179/182, traz as “Disposições Comuns”, e, por fim, a Seção III, nos artigos 183 a 188, cuida “Do procedimento penal”, sendo este o objeto das reflexões que buscaremos expor nas linhas seguintes, cumprindo anunciar, desde logo, a inexistência de qualquer pretensão no sentido de esgotar a matéria nos estreitos limites deste trabalho.
2. Competência
Conforme a norma geral do Código de Processo Penal, art. 70, a competência jurisdicional será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.
Em se tratando de crime falimentar, mesmo sob a regulamentação do Dec.-Lei n. 7.661/45, a antiga “Lei de Falência”, “o foro competente para o propositura da ação penal é o juízo onde foi declarada a falência”.[4] É o juízo da quebra.
Segundo Fernando Capez: “Recebida a denúncia ou queixa, os autos serão remetidos ao juízo criminal competente, para prosseguimento da ação, de acordo com o procedimento ordinário, seja o crime apenado com detenção, seja com reclusão. Ocorre que em São Paulo, por força da Lei Estadual n. 3.947/83, firmou-se a competência do juízo universal da falência para o julgamento dos crimes falimentares”. E arremata: “Essa lei estadual constitui norma de organização judiciária, de simples divisão de competência, não ofendendo assim, a Constituição Federal. O Código Judiciário do Estado dispõe que a mesma competência firmada para a capital aplica-se no interior”.[5]
É certo que o art. 504 do CPP determina que “a ação penal será intentada no juízo criminal, devendo nela funcionar o órgão do Ministério Público que exercer, no processo de falência, a curadoria da massa falida”, entretanto, ensina Damásio E. de Jesus com a inteligência de sempre e o costumeiro acerto que: “Embora a disposição determine que a ação penal por delito falimentar deva ser intentada no juízo criminal, os arts. 109, § 2º, e 194 da Lei de Falências afirmam que ela é iniciada no juízo da falência, excepcionalmente podendo ter início no juízo criminal”.[6]
Nos precisos termos do art. 183 da “Nova Lei de Falência”: “Compete ao juiz criminal da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial, conhecer da ação penal pelos crimes previstos nesta Lei”.
Referindo-se ao “juiz criminal” da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, a lei afasta qualquer dúvida e retira do “juízo universal da falência”, que é de natureza extrapenal, a competência para o processo e julgamento dos delitos falimentares.
Lembrando que a “nova lei” não prevê a possibilidade de concordada preventiva ou suspensiva, uma vez decretada a quebra, concedida a recuperação judicial, ou, homologado plano de recuperação extrajudicial, competente para as questões penais eventualmente surgidas será o juiz criminal da jurisdição onde tais atos se derem, aplicando-se quanto ao mais, para a fixação da competência, no caso de pluralidade de juízes igualmente competentes, as regras gerais do Código de Processo Penal (art.s 70 e seguintes).
3. Ação penal
Porquanto essencialmente público o bem jurídico tutelado na esfera penal, como se verifica na grande maioria dos casos, em regra a ação penal será pública incondicionada, e somente nos casos especialmente destacados na lei ela será de outra natureza, vale dizer: pública condicionada ou privada, em qualquer de suas modalidades.
Segundo o artigo 503 do CPP: “Nos crimes de falência fraudulenta ou culposa, a ação penal poderá ser intentada por denúncia do Ministério Público ou por queixa do liquidatário ou de qualquer credor habilitado por sentença passada em julgado”.
A previsão contempla, em se tratando de falência fraudulenta ou culposa, as possibilidades de ação penal pública incondicionada, por denúncia de iniciativa do Ministério Público, e ação penal privada, por queixa a ser ofertada pelo liquidatário ou qualquer credor habilitado por sentença passada em julgado.
Tal regra, que continuará a ser aplicada até que entre em vigor a “nova lei”, sofreu modificação visceral.
Foi excluída a possibilidade de ação penal privada em se tratando de crime falimentar, pois, consoante dispõe o art. 184 do novo diploma “os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada”.
Afastado qualquer interesse particular primário na persecução penal, subsiste, expressamente, apenas a ação penal de iniciativa do Ministério Público, por denúncia.
Há que se considerar, entretanto, a possibilidade de ação penal privada subsidiária da pública, prevista no art. 5º, LIX, da Constituição Federal, e também nos arts. 29 do CPP e 100, § 3º, do CP.
Evidentemente, observados os princípios da hierarquia e da verticalidade das normas, o disposto no caput do art. 184 não tem força suficiente para retirar do ordenamento a regra de base constitucional. Aliás, nem foi esse o propósito do legislador, tanto assim que no parágrafo único cuidou de estabelecer: “Decorrido o prazo a que se refere o art. 187, § 1º, sem que o representante do Ministério Público ofereça denúncia, qualquer credor habilitado ou o administrador judicial poderá oferecer ação penal privada subsidiária da pública, observado o prazo decadencial de 6 (seis) meses”.
Quanto à decadência e o prazo para o oferecimento da queixa subsidiária, a regra reproduz o que está disposto no art. 38 do CPP.
Assim, verificada a absoluta inércia do órgão Ministerial, qualquer credor habilitado ou o administrador judicial poderá intentar a ação penal nos moldes da regulamentação normativa, cumprindo observar, quanto ao mais, as disposições gerais do Código de Processo Penal.
4. Oferecimento da denúncia
Dispõe o art. 508 do CPP que: “O prazo para denúncia começará a correr do dia em que o órgão do Ministério Público receber os papéis que devem instruí-la. Não se computará, entretanto, naquele prazo o tempo consumido posteriormente em exames ou diligências requeridos pelo Ministério Público ou na obtenção de cópias ou documentos necessários para oferecer a denúncia”.
O art. 187 da “nova lei” cuidou da matéria nos seguintes termos: “Intimado da sentença que decreta a falência ou concede a recuperação judicial, o Ministério Público, verificando a ocorrência de qualquer crime previsto nesta Lei, promoverá imediatamente a competente ação penal ou, se entender necessário, requisitará a abertura de inquérito policial”.
Em outras palavras, porém, com o mesmo objetivo, cuidou a lei de estabelecer, mantendo as linhas do regramento anterior, que a ação penal não poderá ser iniciada sem que exista prévia sentença de decretação da quebra, e também agora, concedendo a recuperação judicial.
Fica mantida, portanto, a discussão a respeito da natureza jurídica da sentença declaratória da falência, onde também se insere, a partir da nova lei, a natureza da decisão que concede recuperação judicial.
No particular assunto, entendemos que a melhor lição é aquela apresentada por Damásio E. de Jesus, que assim se expressa: “Pensamos que nos delitos falimentares, conforme a figura penal, a declaração da falência constitui condição de procedibilidade ou elemento do tipo. A diversidade da natureza jurídica da declaração da quebra depende dos elementos contidos no tipo penal. Quando a figura incriminadora não contém a declaração da falência como elementar, ela configura condição de procedibilidade”. E arremata no notável jurista: “Quando, entretanto, a definição do crime contém a declaração da quebra, esta constitui elemento do tipo. Sem ela o fato a atípico”.[7]
Nos termos do caput do art. 187, intimado da sentença que decreta a falência ou concede a recuperação judicial, o Ministério Público, verificando a ocorrência de qualquer crime previsto na lei, promoverá imediatamente a competente ação penal, prescindindo da instauração de inquérito policial, porquanto dispensável, apesar de sua inquestionável utilidade e necessidade na esmagadora maioria dos casos.
Se o material probatório disponível não for suficiente para a formação de uma convicção segura e responsável acerca dos fatos sob análise, o representante do Ministério Público deverá requisitar a abertura de inquérito policial.
Com ou sem inquérito, seguindo as linhas do § 1º do art. 187 do novo regramento, “o prazo para oferecimento da denúncia regula-se pelo art. 46 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)”.
De forma saudável, a lei adota como regra geral a ser observada, a adoção dos prazos regulados no art. 46 do CPP. Vale dizer: 5 (cinco) dias estando o investigado preso, e 15 (quinze) dias se o investigado estiver solto.
Há, entretanto, uma ressalva. Em determinados casos o representante do Ministério Público poderá “decidir”, a juízo exclusivamente seu, portanto, sem ingerência ou fiscalização judicial anômala, por aguardar a exposição circunstanciada de que trata o art. 186 da “nova lei”,[8] devendo, em seguida, oferecer a denúncia em 15 (quinze) dias, conforme dispõe a parte final do art. 187.
De tal hipótese somente se poderá cogitar em se tratando de investigado solto.
5. Procedimento em juízo
De início é preciso anotar que apenas o crime do art. 178 é punido com detenção, de 1 a 2 anos, e multa. Todos os demais são punidos com reclusão, de 2 a 4 anos, e multa, exceção feita em relação aos crimes dos arts. 168 e 176, para os quais o legislador estabeleceu pena de reclusão, de 3 a 6 anos, e multa, em relação ao primeiro, e de reclusão, de 1 a 4 anos, e multa, quanto ao último.
Como se vê, é bastante reduzida a hipótese de aplicação dos institutos da suspensão condicional do processo e da transação penal (Leis 9.099/95 e 10.259/01) em se tratando de “crimes falimentares”, e a fixação da pena de reclusão para a maioria dos ilícitos, somada ao patamar mínimo alcançado por ocasião da individualização formal da pena, bem demonstra a intenção de se punir com maior rigor as condutas tipificadas.
Se por um lado o novo diploma é claro quanto à intenção acima destacada, e se até merece algum aplauso por ter pretendido maior celeridade aos processos criminais em se tratando de “delitos falimentares”, como deixa entrever, por outro é digno do mais forte repúdio ao estabelecer no art. 185 que, “recebida a denúncia ou a queixa, observar-se-á o rito previsto nos arts. 531 a 540 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, Código de Processo Penal”.
Para que se esclareça mais uma vez, é preciso lembrar que a única queixa que pode ser recebida em tais hipóteses é a queixa subsidiária, portanto, instauradora de ação penal privada subsidiária da pública.
Superada a questão com o simples esclarecimento em termos de complementação, o que resta é espanto e desalento, além da certeza de que o legislador realmente está despreparado para o enfrentamento das questões penais e processuais penais, o que, aliás, já nos ocupamos de escrever outras tantas vezes.[9]
Com efeito. O procedimento regulado nos art. 531 a 540 do CPP é o procedimento sumário, e vários dos dispositivos que cuidavam da matéria já foram revogados, sendo recomendada para a perfeita compreensão do assunto consulta aos ensinamentos de Damásio E. de Jesus, em sua consagrada obra “Código de Processo Penal anotado”, onde a matéria se vê abordada em toda sua amplitude e, bem por isso, esgotada.
Pela nova lei, indistintamente, o procedimento a ser aplicado é aquele previsto para os crimes punidos com detenção.
Não se desconhece que em outras hipóteses o Código de Processo Penal prevê a aplicação de um só procedimento para crimes punidos com detenção e reclusão, dando tratamento isonômico. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de crimes contra a honra, nos termos regulados no art. 519 do CPP. De ver-se, entretanto, que por aqui estamos diante de procedimento especial, inclusive e notadamente em razão do disposto no art. 520 do mesmo “Codex”, realidade que não se confunde com a indicada pela nova lei de falência.
É certo que o novo tratamento procedimental dispensado, de certa maneira também pode ser nomeado de especial, entretanto, tal reconhecimento decorreria exclusivamente do fato de se ter determinado a aplicação de um procedimento próprio para delitos punidos com detenção a delitos que basicamente são punidos com reclusão, sem qualquer regra “especial”, diferenciadora do procedimento (ao contrário do que ocorre, p. ex., na hipótese do art. 520 do CPP).
A especialidade, aqui, é bastante simples, e resume-se ao fato de se ter escolhido normativamente, para crimes punidos com reclusão, um procedimento próprio para delitos mais brandos.
A incompatibilidade que disso decorre é preocupante e chega aos limites de um questionamento fundado em base constitucional, na medida em que se esbarra no princípio da ampla defesa, pois é cediço que uma das formas básicas de se permitir o exercício deste princípio é estabelecer uma maior amplitude procedimental para os crimes combatidos com maior rigor punitivo no plano formal.
Deve haver uma co-relação; uma congruência; e, sempre, uma coerência entre a pena formalmente fixada e o procedimento a ser aplicado na persecução em juízo.
Para os delitos mais brandos, com conseqüências menos sensíveis, os procedimentos mais céleres e menos formais. Para os delitos mais graves, punidos com reclusão, os procedimentos mais amplos, com maior amplitude de defesa e formalismo.
Não é, entretanto, o que se vê na normatização sob comento, onde apenas um delito é punido com detenção e o procedimento previsto para o processo em relação a todos os crimes é o mais brando previsto no Código de Processo Penal.
O descompasso é flagrante, tanto quanto o equívoco da opção adotada pelo órgão legiferante.
6. Regras de aplicação subsidiária
Como soldado de reserva cuidou a “nova lei” de estabelecer em seu art. 188, quando nem precisava, que “aplicam-se subsidiariamente as disposições do Código de Processo Penal, no que não forem incompatíveis com esta Lei”.
7. Últimas considerações
É absolutamente inadmissível que, após mais de uma década de tramitação, venha para o universo jurídico uma lei com tamanha incompatibilidade.
A evolução do conhecimento científico; a realidade prática experimentada todos os dias nas mais variadas Instâncias judiciárias nitidamente estranha aos olhos do Poder Legiferante, bem como o prestígio que se quer dar “Justiça brasileira”, estão por merecer melhor atenção; mais respeito, o que determina a necessidade de um intransigente conhecimento do sistema normativo em sentido amplo, e da técnica de elaboração legislativa. No particular, era de se esperar especial atenção na “escolha” do procedimento penal a ser adotado em juízo, rendendo-se homenagem, inclusive, ao princípio constitucional da ampla defesa.
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
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