INTRODUÇÃO*
Este breve ensaio se propõe a trazer um tema que não é novo: o dever da Administração Pública de anular seus próprios atos quando eivados de ilegalidade. É a expressão do princípio da autotutela.
Embora bastante debatido e consolidado pela doutrina e jurisprudência pátrias, o tema ainda não se esgotou. Faz-se imprescindível uma releitura da súmula 473 do Supremo Tribunal Federal a fim de que a autotutela não fique à margem do direito como um instituto em dissonância com a realidade prática. Este é o ponto crucial do trabalho: teoria versus prática.
Diante de uma ligeira análise teórica do princípio ora em comento, parecem não haver controvérsias. Sua aplicação é expressão direta do princípio da legalidade, norte da atividade do administrador público.
Entretanto, na atividade prática, a autotutela pode, em nome da legalidade, dar azo a injustiças. É necessário encontrar um temperamento, que seja capaz de afastar a legalidade e, por conseqüência, o dever de invalidar. Neste contexto, terá espaço a convalidação, não como um “poder”, mas como um dever, tal qual a invalidação. Ou seja, o administrador agirá pautado ou por um dever de invalidar ou por um dever de convalidar. Não havendo espaço para discricionariedades.
Esta mudança de paradigmas encontra seu fundamento no princípio da proteção da confiança, não como expressão do aspecto objetivo da segurança jurídica – não atingir o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada –, mas como a sua face subjetiva. É a confiança legitimamente depositada pelos administrados nos atos provenientes da Administração Pública em virtude das presunções que os cercam: de legitimidade, de exigibilidade, de imperatividade e de auto-executoriedade, que se está a proteger.
Para que melhor se compreenda a releitura proposta pelo princípio sob análise – proteção da confiança –, este ensaio está divido em três capítulos. O primeiro traz sua origem: “do princípio da autotutela à proteção da confiança: o caminho percorrido”. O segundo vai desde a sua incorporação até a sua aplicação ao Direito pátrio: “do dever de invalidar ao dever de convalidar”. O terceiro finaliza com a possibilidade de subsistência dos efeitos dos atos administrativos objeto de anulamento: “da técnica da modulação temporal dos efeitos da invalidação dos atos administrativos”.
1 Do princípio da autotutela ao princípio da proteção da confiança: o caminho percorrido
1.1 O princípio da autotutela como manifestação da legalidade
O controle realizado pela Administração Pública sobre seus próprios atos, sem necessidade de socorrer-se do Judiciário, é conhecido, convencionalmente, como controle interno. Seu amparo legal pode ser encontrado na Constituição Federal de 1988, em especial, em seu art. 74, que dispõe: “Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de (…)”.
Este sistema de controle interno foi ratificado, em 1969, pela súmula 473 do Supremo Tribunal Federal:
“A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.” (sem grifo no original).
Ao contrário do que se poderia pensar, não teve o “pode” da referida súmula a força de consolidar a prática administrativa do anulamento como uma atividade discricionária. Veio ele a acalmar os ânimos em torno da questão do pode ou não pode a Administração Pública rever seus próprios atos de ofício. Nada mais. Fixado estava o princípio da autotutela.
(…) pela autotutela o controle se exerce sobre os próprios atos, com a possibilidade de anular os ilegais e revogar os inconvenientes ou inoportunos, independentemente de recurso ao Poder Judiciário.[1]
“A anulação dos atos administrativos pela própria Administração constitui a forma normal de invalidação de atividade ilegítima do Poder Público. Essa faculdade assenta no poder de autotutela do Estado. É uma justiça interna, exercida pelas autoridades administrativas em defesa da instituição e da legalidade de seus atos.”[2]
O princípio da autotutela foi reafirmado infraconstitucionalmente pela Lei de Processo Administrativo no âmbito da Administração Pública Federal – Lei n. 9.784/99, que em seu art. 53 dispõe: “A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos”. “Dessa forma, diante de uma ilegalidade praticada pela Administração, seja por equívoco ou não, a ela própria caberá a retificação ou anulação desse ato, de modo que não prevaleça situação não chancelada pela lei”.[3]
Do exposto, a primeira noção que se tem do princípio da autotutela não permite dissociá-lo do da legalidade, pois “(…) administração é atividade subalterna à lei; que se subjuga inteiramente a ela; que está completamente atrelada à lei; que sua função é tão-só a de fazer cumprir a lei preexistente (…)”.[4] “É regra histórica presente no direito administrativo a impossibilidade de a Administração, ao contrário dos particulares, agir sem autorização legal”.[5] “De qualquer modo, porém, e em qualquer hipótese, não prescindirá jamais a ação administrativa do Poder Público de uma autorização legal”.[6]
“(…) se a Administração Pública está sujeita à lei, cabe-lhe, evidentemente, o controle da legalidade”.[7] Ou seja, posto que há atos nulos porque praticados em desconformidade com a lei, é dever da Administração invalidá-los. Não há alternativa. “(…) o princípio da legalidade tendo em vista o sistema jurídico-positivo brasileiro, exige a fiel subsunção da ação administrativa à lei, sendo defeso à Administração Pública agir praeter legem ou contra legem, podendo atuar apenas secundum legem.”[8] “A Administração, portanto, somente pode agir dentro do Direito e com expressa autorização dele”.[9]
“Não se pode negar a existência de tal “direito subjetivo à legalidade objetiva”, sob pena de se considerar que a inserção da legalidade administrativa no texto constitucional fora em vão. Ou seja, a nada serviria falar-se em um “estado de legalidade” (em acepção ampla), se não se previsse o dever de a Administração Pública primar pela juridicidade de suas próprias condutas. Do mesmo modo teratológico seria restringir a possibilidade de anulação das condutas administrativas inválidas ao controle jurisdicional. A Administração Pública tem assim um “dever-poder” de invalidar seus próprios atos administrativos quando constatar que os mesmos foram praticados à revelia da lei aplicável e do Direito como um todo”.[10]
Embora a questão pareça não suscitar maiores dúvidas, pois a Administração Pública age pautada pelo dever de anular seus próprios atos – princípio da autotutela, bem como pela observância estrita à legalidade – à lei e ao Direito, a solução requer temperamentos. O princípio da legalidade não reina absoluto no ordenamento jurídico.
“A legalidade devidamente justificada requer uma observância cumulativa dos princípios em sintonia com a teleologia constitucional. A justificação apresenta-se menos como submissão do que como respeito fundado e racional. Não é servidão ou vassalagem, mas acatamento pleno e concomitante à lei e ao Direito. Assim, desfruta o princípio da legalidade de autonomia mitigada”.[11]
Faz-se imprescindível, diante do exposto, investigar o ponto de intersecção entre a legalidade administrativa e o princípio da segurança jurídica, em especial no seu aspecto subjetivo, que desponta via proteção da confiança dos administrados nas condutas provenientes da Administração Pública.
“Ou seja, a legalidade administrativa, em qualquer de seus inúmeros significados, não deve ser utilizada, ex abstrato e per se, como um obstáculo absoluto e, pois, intransponível à incidência do princípio da proteção da confiança, com o qual, aliás, deve conviver harmonicamente numa situação de ponderação.”[12]
Passa-se, conforme as palavras de Daniel Ustárroz, da supremacia do interesse público frente ao particular à idéia de colaboração e harmonização dos diversos interesses envolvidos[13], o que abre espaço ao desenvolvimento do princípio da proteção substancial da confiança como meio mitigador do princípio da autotutela.
1.2 Do princípio da proteção da confiança
O princípio da proteção da confiança teve seu surgimento e desenrolar na jurisprudência alemã em meados do século XX. A decisão paradigmática refere-se à anulação de vantagem prometida a viúva de funcionário, caso se transferisse de Berlim Oriental para Berlim Ocidental. A viúva assim agiu e, durante um ano percebeu a referida vantagem, ao final do qual o beneficio foi-lhe retirado sob o fundamento de que era ilegal. Havia, realmente, vício de competência. Diante deste fato, o Tribunal, comparando o princípio da legalidade com o princípio da proteção à confiança, aplicou este em detrimento daquele por entender que incidia com mais força no caso concreto. Apenas em 1976, a Lei de Processo Administrativo alemã positivou a aplicação do princípio da proteção à confiança e, nesta mesma década, foi reconhecido como princípio de valor constitucional.
Da Alemanha para o mundo. Assim poderia ser resumido o caminho trilhado pelo princípio da proteção da confiança. Enquanto crescia sua ingerência nas decisões administrativas alemãs, ele aparecia no direito da União Européia. De lá para a América e, enfim, chegou ao Brasil. Não que aqui nunca se tivesse ouvido coisa parecida. Muito pelo contrário. O direito brasileiro já trabalhava com a noção de ato jurídico perfeito, coisa julgada e direitos adquiridos – Constituição Federal de 1988, art. 5°, inc, XXXVI –, porém como expressão objetiva da segurança jurídica. O lado oculto, poder-se-ia assim dizer, era, até então, a face subjetiva da segurança jurídica, que eclodiu sob nova roupagem denominada princípio da proteção da confiança. Ou seja, “no sentido subjetivo, a segurança jurídica se relacionaria com a proteção da confiança depositada pelos cidadãos em relação aos atos, procedimentos e condutas estatais (estabilidade) (…).”[14] “O princípio da segurança jurídica, em verdade, decorre de uma confluência qualificada das noções de certeza, estabilidade, previsibilidade, confiança (…)”.[15]
“Aos poucos, porém, foi-se insinuando a idéia da proteção à boa-fé ou da proteção à confiança, a mesma idéia, em suma, de segurança jurídica cristalizada no princípio da irretroatividade das leis ou no de que são válidos os atos praticados por funcionários de fato, apesar da manifesta incompetência das pessoas de que eles emanaram”.[16]
Para Judith Martins-Costa, estaria havendo um “giro hermenêutico provocado pela re-significação do princípio da segurança jurídica”, estando a ingressar no direito positivo brasileiro com um “renovado âmbito de normatividade”.[17]
Tal diferenciação entre segurança jurídica objetiva e subjetiva é devida a Almiro do Couto e Silva, principal articulador desta ramificação e responsável pela disseminação do princípio da proteção da confiança no Brasil. Explica-se:
“(..) tendo por premissa que o princípio da proteção da confiança surge de uma dedução do princípio da segurança jurídica, poder-se-ia, para fins de previsão até mesmo terminológica, tratar da questão do seguinte modo: o gênero “princípio da segurança jurídica” lato sensu, tal como compreendido e sistematizado acima, ou seja, como resultante da confluência das três dimensões referidas (previsibilidade, acessibilidade e estabilidade), poderia ser dividido, sem o esgotamento ou compartimentalização de suas concepções, em duas principais formas de incidência: a) o sentido objetivo, aqui designada de segurança jurídica stricto sensu, cujo campo de incidência seria a ordem jurídica, objetivamente considerada; b) sentido subjetivo, assim considerado a proteção da confiança depositada legitimamente pelos cidadãos nos atos e promessas feitas pelo Estado, em suas mais variadas espécies de atuação”.[18]
Embora não previsto no texto constitucional expressamente, é inegável o status de princípio constitucional que é atribuído à proteção da confiança. “A confiança, adjetivada como “legítima”, é um verdadeiro princípio, isto é: uma norma imediatamente finalística, estabelecendo o dever de ser atingido um “estado de coisas” (isto é: o estado de confiança)”.[19]
“Confiança, enfim, em que, no procedimento para ditar o ato que dará lugar às relações entre Administração e administrados, não se vai adotar uma conduta confusa e equívoca que mais tarde permita elidir ou tergiversar suas obrigações. E que os atos vão ser respeitados enquanto não demandarem sua anulação os interesses públicos”.[20]
Decorrem do Estado de Direito, respectivamente, a segurança jurídica – objetiva e subjetiva – e a proteção da confiança. É entre o Estado de Direito e a proteção da confiança que se situa a segurança jurídica como mediadora. Ou seja, a proteção da confiança apenas encontra supedâneo no Estado de Direito de modo mediato, por meio da segurança jurídica.
“Surge, portanto, a necessidade, de se compreender o instrumento de mediatização que culmina por coligar o sobreprincípio do Estado de Direito e a proteção da confiança. Numa aproximação desde já factível, quer parecer que tal “função mediatizadora” é cumprida não de forma isolada ou absoluta, mas, essencialmente, pelo princípio (ou sobreprincípio) da segurança jurídica”.[21]
“Parece inequívoco que o princípio da confiança estatui o poder-dever de o administrador público zelar pela estabilidade decorrente de uma relação timbrada por uma autêntica fidúcia mútua, no plano institucional”.[22] “O princípio é também decisivo para solver o problema da invalidação dos atos administrativos, assim como, numa evidente correlação temática, para fixar limites à cogência anulatória de atos maculados por vícios originários”.[23]
Depreende-se do exposto que a proteção almejada está calcada, em regra, num não agir da Administração, protegendo, conseqüentemente, a confiança legitimamente depositada pelos cidadãos nos atos oriundos da Administração Pública. “(…) Proteger a confiança é quase uma não-ação, constituindo, a rigor, num dever de abstenção”[24], que pode ser assim sistematizado: “não atingir o direito adquirido ou o ato jurídico perfeito; não bulir com situações abrangidas pelo manto protetor da prescrição, decadência ou preclusão; não modificar a prática há longo tempo seguida em prejuízo do administrado; não mudar bruscamente as formas jurídicas, que são a garantia da estabilidade; não revogar ou anular, em certas situações, atos administrativos que tenham produzido efeitos na esfera jurídica de terceiros; não invadir, enfim, o campo da liberdade privada, regulado pela mão invisível de um demiurgo (mas também previsível) mercado”.[25]
Isto não exclui uma perspectiva de natureza positiva do princípio da proteção da confiança, que confere “deveres de colaboração e cooperação endereçados à Administração, justamente orientados à preservação de condutas administrativas indutoras de expectativas legítimas depositadas pelos destinatários da função administrativa”.[26]
Apesar de ainda ser tímida a positivação da proteção da confiança no plano infraconstitucional, a Lei n. 9.784/99 pode ser considerada o marco de concreção do princípio da confiança, posto que lhe faz referência em diversos dispositivos.
Enquanto em seu art. 2°, mais especificamente no inc. XIII, veda a aplicação retroativa de nova interpretação, em seu art. 54 limita temporalmente a invalidação dos atos administrativos, pela própria Administração Pública, quando maculados de ilegalidade: “O direito da Administração de anular seus próprios atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em 5 (cinco) anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”. “Ocorre que, como visto, o fundamento nuclear da decadência administrativa é justamente o princípio da proteção da confiança”.[27]
2 Do dever de invalidar ao dever de convalidar
2.1 Invalidação e convalidação: conceituação, aplicação e limites
A recomposição da ordem jurídica violada pode se dar de duas maneiras: ou pela invalidação ou pela convalidação. “A invalidação é a eliminação, com eficácia ex tunc, de um ato administrativo ou da relação jurídica por ele gerada ou de ambos, por haverem sido produzidos em dissonância com a ordem jurídica”.[28] No ordenamento jurídico brasileiro, a invalidação pode ser feita tanto pelo Judiciário como pela própria Administração.
A convalidação, por sua vez, “é um ato, exarado pela Administração Pública, que se refere expressamente ao ato a convalidar para suprir seus defeitos e resguardar os efeitos por ele produzidos”.[29] “(…) só pode haver convalidação quando o ato possa ser produzido validamente no presente. Importa que o vício não seja de molde a impedir reprodução válida do ato. Só são convalidáveis os atos que podem ser legitimamente produzidos”.[30]
A doutrina e a jurisprudência administrativa mais conservadoras não vêem alternativa senão a anulação dos atos administrativos quando carreguem a pecha da ilegalidade. Agem sob o manto do princípio da autotutela, aplicando-o de modo absoluto. Ou seja, “as condutas administrativas perpetradas à revelia da ordem jurídica deveriam ser “sempre” invalidadas”.[31] Limitam-se, elas, à anulação. Houve lesão aos cofres públicos ou a terceiros? Estava o administrado de boa-fé? Pouco importa. Para esta parcela da doutrina, o exercício da autotutela nos estritos moldes da legalidade é o único meio disponível para se recompor a ordem jurídica. Enganam-se. “(…) a restauração da ordem jurídica tanto se faz pela fulminação de um ato viciado quanto pela correção de seu vício. Em uma e outra hipótese a legalidade se recompõe”[32].
“Com efeito, a convalidação é um ato que não visa apenas a restauração do princípio da legalidade, mas também a estabilidade das relações constituídas, o que nos induz a concluir que se alicerça em dois princípios jurídicos: o princípio da legalidade e o da segurança jurídica”.[33]
“O juízo que estipula o vício de uma norma é um momento logicamente anterior à manifestação normativa da invalidade. Mas a invalidade não é decorrência lógica do juízo constatador do vício”.[34] Neste sentido o ordenamento jurídico se manifestou por intermédio da Lei n. 9.784/99, que, em seu art. 55, dispõe: “Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração”. “Contudo, melhor teria sido se o legislador ordinário houvesse considerado que situações há em que o dever de convalidar apresenta-se superior ao de anular”.[35]
“Esta estabilização ocorre em duas hipóteses: a) quando já se escoou o prazo, dito “prescricional”, para a Administração invalidar o ato; b) quando, embora não vencido tal prazo, o ato viciado se categoriza como ampliativo da esfera jurídica dos administrados e dele decorrem sucessivas relações jurídicas que criaram, para sujeitos de boa-fé, situação que encontra amparo em norma protetora de interesses hierarquicamente superiores ou mais amplos que os residentes na norma violada, de tal sorte que a desconstituição do ato geraria agravos maiores aos interesses protegidos na ordem jurídica do que os resultantes do ato censurável”.[36]
Indaga a professora Weida Zancaner: “quando podemos dizer que a segurança jurídica ou a boa-fé dos administrados devem prevalecer sobre o princípio da legalidade administrativa?”[37] Ou seja, quando está o administrador obrigado a convalidar? A resposta é singela: quando presentes os requisitos necessários. Ou seja, deve-se fazer uma interpretação conjunta dos arts. 54 e 55 da Lei 9.784/99, de modo que “uma conduta administrativa perpetrada de modo contrário à ordem jurídica será preservada em face de um plexo de circunstâncias: efeitos benéficos, boa-fé dos destinatários, lapso temporal significativo” [38], do qual se extrai a concreção do princípio da proteção da confiança.
Para Judith Martins Costa, “o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa-fé e à segurança jurídica”.[39] “Faz o trânsito do peso mais ponderável – no arco do princípio da segurança – da legalidade estrita para a proteção da confiança, permeando-o por um viés de dinamismo.”[40] Exsurge o “caráter não-automático que se deve emprestar ao dever de anular, inclusive porque hipóteses ocorrem em que prepondera o dever de convalidação”.[41]
Esta inversão de valores parece ainda não ter chegado aos tribunais brasileiros. Na jurisprudência do STF, por exemplo, há apenas três decisões que reconhecem o princípio da proteção da confiança como a face subjetiva do princípio da segurança jurídica e como meio efetivo de limitação do exercício da autotutela.[42]
Feita esta breve análise acerca dos dois institutos, percebe-se que a solução apenas se dará no plano concreto, frente a um juízo de ponderação entre o dever-poder da Administração de anular seus próprios atos e a possibilidade de mantê-los quando não acarretarem prejuízo nem ao Erário nem a terceiros. Explica-se: “anulação e convalidação são deveres complementares e hierarquizáveis entre si, os quais decorrem de princípios que reivindicam a condição de mutuamente relativizáveis e passíveis de concordância prática, sem queda livre nas posturas típicas do ceticismo interpretativo.”
Evidente é o fato de a convalidação parecer ser menos traumática que a anulação, preferindo-se, sempre que possível, aquela a esta. “Quando possível a convalidação dos atos viciados, a Administração não poderá negar-se a fazê-lo”. A convalidação dos atos, das relações jurídicas administrativas ou de ambos não se trata de ato discricionário do administrador público, mas de um dever, exceto quando “tratar-se de vício de competência em ato de conteúdo discricionário”.[43]
“Não poderemos conceber que haja meramente um poder de invalidar por parte da Administração Pública. Esta, frente a nosso sistema jurídico positivo, ora tem o dever de convalidar ora o dever de invalidar os atos por ela exarados com vício (…)”[44]. Ou seja, “O princípio da legalidade, fundamento do dever de invalidar, obriga a Administração Pública a fulminar seus atos viciados não passíveis de convalidação”.[45]
Convém não olvidar, no entanto, que tanto a invalidação quanto a convalidação encontram limites à sua incidência no ordenamento jurídico. A possibilidade de convalidação é afastada quando o interessado, de modo expresso ou por resistência, impugna o ato – “Mister, ainda, esclarecer que não podendo mais a Administração Pública convalidar o ato sanável, após a impugnação do administrado, deverá invalidá-lo”[46] –, bem como pelo decurso do tempo, o qual basta, por si só, para gerar a estabilidade do ato.
Em contrapartida, as barreiras à invalidação estão dispostas no próprio ordenamento jurídico, ou expressas pelo princípio da legalidade ou por outros que devem ser respeitados, “ou por se referirem ao Direito como um todo, como, por exemplo, o princípio da segurança jurídica, ou por serem protetores do comum dos cidadãos, como, por exemplo, a boa-fé, princípio que também visa protegê-los quando de suas relações com o Estado”.[47]
3 Da técnica da modulação temporal dos efeitos da invalidação dos atos administrativos
Primeiro, faz-se necessário relembrar que há distinção entre o ato administrativo e os seus efeitos. São dois momentos distintos. Anteriormente, tratou-se da extinção – anulação –dos atos administrativos. Agora, perquire-se se os efeitos decorrentes desse ato administrativo viciado subsistem ou não após a sua anulação.
Não obstante a pluralidade de opiniões, a doutrina e a jurisprudência tradicionais se valem da máxima de que a invalidação dos atos viciados produz, de maneira incondicional, efeitos ex tunc. “A invalidação, em regra, tem por objeto os efeitos jurídicos conjuntamente com os efeitos fáticos do ato, de modo a desconstituir ambos”.[48] Ou, ainda, “A invalidação, inserida na competência controladora – como já afirmado –, visa a suprimir os efeitos do ato para o futuro, bem como à reconstituição do statu quo ante”.[49] “Como a desconformidade com a lei atinge o ato em suas origens, a anulação produz efeitos retroativos à data em que foi emitido (efeitos ex tunc, ou seja, a partir de então)”.[50]
Enquanto a convalidação existe apenas para se reafirmar o que já se presumia, portanto, seu acolhimento não afeta os atos ou relações jurídicas preexistentes, a invalidação, em contrapartida, traz a problemática da eficácia dos seus efeitos, se serão ex tunc ou ex nunc.
“(…) quando for o caso de se promover a invalidação de um determinado ato administrativo, a regra é a de que seja a invalidação apta à desconstituição dos efeitos jurídicos produzidos por tal ato viciado”.[51] “Casos há, entretanto, em que esta reconstituição se tornará impossível, por envolver, inclusive, problema de responsabilidade, hipótese em que à invalidação será dado o efeito ex nunc”.[52] “A eficácia fática produzida por um ato administrativo nem sempre pode ser desconstituída. Decorre da própria natureza do fato, praticado para dar cumprimento ao ato jurídico, a impossibilidade de reversão”.[53] Impõe-se reconhecer uma tendência claramente perceptível quanto ao abrandamento da rigidez dogmática da tese que proclama a eficácia ex tunc da nulidade dos atos administrativos.
Ocorre que, até o momento em que é declarada a nulidade do ato, ele estava a produzir efeitos. De fato, como o ato administrativo desfruta da presunção de legitimidade, de exigibilidade, de imperatividade e de auto-executoriedade, seus efeitos regulares produzem-se desde a sua publicação.
“É errado, portanto, dizer-se que os atos nulos não produzem efeitos. Aliás, ninguém cogitaria da anulação deles ou de declará-los nulos se não fora para fulminar os efeitos que já produziram ou que podem ainda vir a produzir. De resto, os atos nulos e os anuláveis, mesmo depois de invalidados, produzem uma série de efeitos”.[54]
Neste contexto tem lugar a proteção da confiança, que, além de ser uma forma de manutenção dos atos administrativos viciados, pode ser, também, um meio hábil de “preservação, ao menos, de parte ou da totalidade dos efeitos já produzidos em face de condutas administrativas ulteriormente nulificadas”.[55] “Para que ocorra a hipótese lançada é necessária a confluência de dois requisitos: a) o ordenamento jurídico proteger os efeitos fáticos produzidos pelo ato (princípio da boa-fé, da segurança jurídica, etc.); b) o ato viciado não comportar convalidação”.[56]
Apesar de o ordenamento jurídico não prever esta possibilidade de manutenção dos efeitos do ato após a sua invalidação, há institutos análogos capazes de fundamentá-la. No mesmo ano em que foi editada a Lei n. 9.784/99, foram promulgadas a Lei n. 9.868 – dispõe sobre a ação declaratória de constitucionalidade e sobre a ação direta de inconstitucionalidade – e a Lei n. 9.882 – dispõe sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Ambas as Leis dedicaram um de seus artigos ao seguinte enunciado: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo (no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental), e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de 2/3 (dois terços) de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. Expressa estava a mitigação da eficácia ex tunc, certamente, não como regra. Apenas em situações excepcionalíssimas terá lugar a técnica da modulação ou limitação temporal dos efeitos da invalidação dos atos administrativos, o que já significa um grande avanço. Do fragmento abaixo, uma interpretação analógica será bem-vinda ao Direito Administrativo.
“Saliente-se que se adotou no Brasil também a tese da nulidade absoluta do ato inconstitucional. Ele sempre assim foi entendido (e continua sê-lo), havendo, inclusive, abundante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Cumpre observar, porém, que essa nulidade “retroativa” encontra limites, em nome da segurança jurídica, como os que resultam da preclusão e, mormente, da coisa julgada.”[57]
Esta tendência, que não é nova, posto que largamente utilizada em sede de controle de constitucionalidade, viabiliza o exercício da proteção da confiança, mediante a restrição da eficácia ex tunc. Faz-se tal limitação ou restrição à retroatividade eficacial a fim de que não sejam prejudicadas as expectativas legitimamente depositadas pelos destinatários ou por terceiros no ato ou nas relações jurídicas administrativas ou, ainda, em ambos.
Assim, quando a situação, em nome da boa-fé, da segurança jurídica e da proteção da confiança exigir, viável será a invalidação do ato, se não for possível sua convalidação, persistindo os seus efeitos como forma de minimizar os prejuízos advindos ao administrado. Por mais que a Administração, diante desta conduta, venha a sofrer prejuízos, eles serão infinitamente menores que a desconstituição dos efeitos dos atos viciados, simultânea à sua anulação, poderia causar na órbita jurídica.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, percebe-se a importância que o princípio da confiança vem galgando, lentamente, no ordenamento jurídico nacional. Foi necessário o desvelar do aspecto subjetivo da segurança jurídica – proteção da confiança – complementando seu lado objetivo e formal para que a confiança dos administrados não restasse abalada diante da Administração Pública.
A releitura da súmula 473 do Supremo Tribunal já vem em boa hora, posto que sua aplicação estrita estava consolidando situações injustas em nome da legalidade. Por certo que a legalidade está a fundamentar o Estado de Direito, mas não menos certo é o fato de que não há Estado de Direito sem confiança. Neste contexto, a segurança jurídica é a responsável pelo elo entre o Estado de Direito e a proteção da confiança.
Assim, percebeu-se o papel fundamental desempenhado pelo princípio da proteção da confiança na ordem jurídica brasileira, seja porque desfez a máxima de que a Administração Pública tem sempre o dever de invalidar seus atos, seja porque permitiu que os efeitos dos atos administrativos subsistam embora o ato tenha sido invalidado.
Como geralmente ocorre, foi necessário o seu surgimento e o seu desvelar no Direito alienígena, para que o princípio da proteção da confiança fosse recepcionado no Brasil. A jurisprudência ainda se revela tímida quanto à sua aplicação, porém é possível perceber-se uma nítida perspectiva quanto à abertura do sistema à aplicação do princípio ora em comento. Isso se deve ao fato de que muitas decisões eram proferidas de maneira acertada, protegendo os administrados, porém sob fundamentação errada, o que prova o desconhecimento ou pouco uso da confiança no Direito pátrio.
O intuito deste trabalho nunca foi o de exaurir o tema. Para o objetivo proposto, estas breves notas parecem ter alcançado seu intuito, qual seja, o de uma releitura acerca do princípio da autotutela e o desabrochar do princípio da proteção da confiança, numa ponderação necessária, embora tardia, entre legalidade e segurança jurídica.
Advogada, Aluna do curso de Pós Graduação em Direito Público da Pontifícia Universidade Católica Do Rio Grande do Sul.
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