Resumo: O presente artigo aborda a teoria da desconsideração da personalidade jurídica existente no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente a que se encontra no Código de Defesa do Consumidor e suas implicações práticas. Para tanto, apresenta seus pressupostos autorizadores e os meios processuais para sua aplicação na sistemática atual. Trata-se de um artigo teórico-documental, mais precisamente jurídico-propositivo. A título de resultados da investigação, deixa-se claro que a desconsideração autoriza o afastamento da pessoa jurídica apenas depois da análise do caso concreto e que tal procedimento não visa a anulação da pessoa jurídica. Ademais, conclui-se que a aplicação da pretensão em questão deve-se coadunar com a teoria maior da desconsideração e não com a menor, como pretendem alguns juristas. O pressuposto para que seja permitido o superamento da pessoa jurídica é a sua má utilização, por meio do cometimento de fraude ou do abuso de direito. Além disso, não existe a necessidade do ajuizamento de ação específica para que ocorra a invasão na esfera patrimonial dos bens particulares dos membros da sociedade desconsiderada. No entanto, é indispensável outorgar-lhes contraditório e ampla defesa, posto que são princípios constitucionais processualmente balizados.
Palavras-chave: Desconsideração da personalidade jurídica; Código de Defesa do Consumidor; Aspectos processuais relevantes.
Abstract: The present work approaches form the theory of disregard of the legal entity present in brazilian legal system, in especial the one that is in the code of defense of the consumer and their practical implications. For this, presents their premises and procedural ways for application in the today’s system. At last, it’s shown the conclusion of the study leaving explicit that the disregard is the distancing of the legal entity only for the real case, and that such procedure does not aim at the annulment of the legal entity. Besides concludes that the application of the referred theory must be according with the biggest theory of the disregard and not with the smaller one, as intend some jurists. The premises for that be authorized the overcome of the legal entity is his bad utilization, by means of the undertaking of the fraud and of the abuse of right. Still concludes, that there is no need to judge a specific action for the invasion of the patrimonial private properties of the members of the inconsiderate society. However, is clear, without deny, them the right to the contradictory and to broad defense, principals constitutionally delimited.
Key-words: Disregard of the legal entity; Code of Defense of the Consumer; Important procedural aspects.
Sumário: 1 Introdução; 2 A Desconsideração da Personalidade Jurídica: pressupostos; 3 A Desconsideração no Direito Brasileiro; 4 O Processo Civil e a Desconsideração da Personalidade Jurídica; 4.1 Prescindibilidade da participação do sócio no processo de conhecimento; 4.2 O devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa na desconsideração; 5 Conclusões; 6 Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A pessoa jurídica começou a ser tratada no Direito Romano, a partir do momento em que se descobriu ser esta importante para o desenvolvimento regular do Estado.
Diante da complexidade da vida civil e da necessidade de reunir esforços de vários indivíduos para a realização de objetivos comuns ou de interesse social, surge para o Direito a obrigação de equiparar à pessoa humana, de dotar de personalidade e de capacidade de ação certas entidades geradas para a consecução dos referidos fins.
O instituto da pessoa jurídica tem como base a existência distinta e autônoma das pessoas físicas que a compõem, tendo como pilar a separação patrimonial entre as mesmas.
O crescente nascimento do mercado empresarial originou também o aumento das pessoas que, escondidas atrás da pessoa jurídica, cometiam todo tipo de práticas abusivas e ilícitas. Tal fato não poderia ficar à margem do Direito, o que acarretaria um verdadeiro fomento à injustiça, sendo este o motivo impulsionador da criação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
Em função dos pilares norteadores da referida teoria, denota-se relevante o presente estudo, já que a forma como ela foi recepcionada na legislação brasileira, pelo Direito do consumidor, ainda é motivo de grande confusão e insegurança jurídica.
Ainda cabe lembrar que, por ser considerada, por muitos, uma medida excepcional, vislumbra-se importante detectar qual o procedimento mais adequado para fazê-lo, sem que haja prejuízo ao devido processo legal, direito constitucionalmente balizado, no art. 5°, inciso LIV, da Constituição da República de 1988 (CR/88).
Trata-se de um trabalho dogmático, isto é, teórico documental, em que são analisados a teoria e os conceitos doutrinários da matéria abordada, mais precisamente jurídico-propositivo, pois questiona uma lei vigente e avalia suas falhas.
2. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: pressupostos
A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica foi desenvolvida pelos tribunais norte-americanos para impedir a perpetuação de atos fraudulentos, pelo uso da pessoa jurídica.
A expressão “desconsideração da pessoa jurídica”[1] é usada para indicar ignorância para um caso concreto da personalidade jurídica de determinado ente. Segundo Silva (2002)[2], o que ocorre é a análise de uma situação como se a pessoa jurídica não existisse, o que significa que se trata a sociedade e o sócio como se fossem uma só pessoa.
As pessoas jurídicas, sob qualquer das formas admitidas em lei, são criadas para alcançar fins sociais necessariamente lícitos.
Assim, estabelece a CR/88, em seu artigo 5°, XVII: “liberdade de associação para fins lícitos”[3], ou seja, veda-se a associação que objetiva interesses que afrontem a ordem jurídica e os bons costumes, conforme exposto por Almeida (2001)[4].
Nos dizeres de Pereira (2002)[5], ao sentir o inconveniente da imunidade da pessoa jurídica, o direito norte-americano criou a teoria da disregard of legal entity, segundo a qual deveria se desconsiderar a pessoa jurídica quando, em prejuízo de terceiros, houvesse por parte dos sócios dirigentes, a prática de ato ilícito, abuso de poder, violação de norma estatutária ou, genericamente, infração de disposição legal.
Ora, nesses casos não há que se falar em respeito ao princípio que estabelece a distinção entre o sócio e a pessoa jurídica. Os objetivos da teoria da desconsideração da pessoa jurídica são, portanto, coibir a fraude e o abuso de direito, garantir o direito de crédito e proteger o instituto da pessoa jurídica.
Como observado por Silva (2002)[6], a finalidade da teoria em questão é verificada no caso concreto, quando a pessoa jurídica permanece intacta em seus fundamentos, mas excepcionalmente a regra que declara ter a sociedade existência distinta dos sócios é momentaneamente superada, respondendo os sócios com seus bens particulares.
Dessa forma, o objetivo da teoria da desconsideração é impedir o uso ilícito do instituto da pessoa jurídica. No entanto, ressalta-se que a teoria da desconsideração não tem a pretensão de anular a personalidade jurídica do ente, visando tão somente desconsiderar, no caso concreto, a pessoa jurídica em relação às pessoas ou bens que por trás dela se escondem.
Para Silva (1999), a desconsideração é uma “declaração de ineficácia da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo ela, todavia, incólume intacta para seus outros fins legítimos”[7]. Como já dito, não há que se confundir desconsideração da personalidade jurídica com despersonificação, visto que são hipóteses completamente diferentes. Dessa maneira, a despersonificação visa a anulação da pessoa jurídica, por faltar a esta condições de existência.
Face o exposto, pode-se concluir que a teoria da desconsideração visa criar obstáculo a perpetuação de fraudes e abusos da pessoa jurídica.
Ao se tratar da desconsideração da pessoa jurídica, precipuamente, deve-se ter em mente que a própria entidade foi desviada da rota traçada pelo ordenamento jurídico, ou seja, que houve o desvirtuamento do instituto, uma deturpação na sua finalidade.
Por isso, quanto da aplicação da teoria da desconsideração, cabe dizer que existem duas correntes preponderantes, quais sejam, a dita maior (subjetiva) e a menor (objetiva), que, obviamente, divergem quanto aos pressupostos para sua aplicação no caso concreto.
De forma acertada, entende Coelho (1989)[8] ser a teoria maior (subjetiva) a mais elaborada, de maior consistência e, por sua vez, a mais eficaz, visto que condiciona o afastamento episódico da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas à caracterização da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto da pessoa jurídica.
Silva (2002)[9] explica que a teoria menor (objetiva) contenta-se com a demonstração, por parte do credor, da inexistência de bens sociais e da solvência de qualquer sócio, para atribuir ao último a obrigação patrimonial da pessoa jurídica. Desse modo, tal teoria objetiva é considerada menos elaborada, pois sua tendência é condicionar o afastamento da autonomia das pessoas envolvidas à simples insatisfação de crédito pela sociedade.
Assim, o seu pressuposto é simplesmente o desatendimento de crédito titularizado perante a sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência dela, como assevera Silva (2002)[10]. De acordo com a corrente em questão, se a sociedade é insolvente, mas o sócio possui patrimônio, isso já é motivo para responsabilizá-lo pelas dívidas daquela. Aqui não há qualquer preocupação em distinguir a utilização fraudulenta da regular da pessoa jurídica, nem indaga se houve ou não abuso de sua forma, como expõe Silva (2002)[11].
Fato é que a teoria maior nasceu do esforço doutrinário, a partir das decisões judiciais dos tribunais norte-americanos, desejando coibir o mau uso do instituto da pessoa jurídica na sociedade, enquanto a menor surge apenas como solução para a satisfação do credor.
Dinamarco (2001) é peremptório ao asseverar que “sem fraude não se desconsidera a personalidade jurídica, sendo extraordinários na ordem jurídica os casos de desconsideração”[12].
É necessário salientar que a desconsideração é diferente da responsabilidade direta dos atos dos sócios, gerentes ou diretores já prevista em diversas legislações, visto que em tais casos não há o desvio de finalidade da sociedade, mas sim imputação direta de responsabilidade sobre as pessoas dos sócios por atos próprios. Sobre a responsabilidade direta dos atos dos sócios, Guimarães (1998) dá o exemplo de um sócio-gerente que deixa de recolher a contribuição previdenciária e, portanto, ao violar a Lei da Previdência Social e estando a sociedade sem bens suficientes para saldar a dívida tributária, ele responde com seus bens pessoais para garantir a satisfação da execução.
Há que se deixar claro, então, que é pressuposto da desconsideração que existam barreiras para a responsabilização dos agentes que se utilizaram da autonomia patrimonial para praticar o desvio de função da sociedade personificada.
Por ora, insta destacar também que a desconsideração somente será viável ante a insuficiência de patrimônio da pessoa jurídica, ante seu caráter excepcional. Isto é, pode-se dizer que uma vez concedida a personalidade a determinado ente, a mesma não pode ser ignorada arbitrariamente sem que estejam presentes os critérios para sua superação.
Dito isso, se em um processo de execução ainda existem bens da sociedade passíveis de penhora, não há que se falar em desconsideração dela, pois se trata de medida excepcional no Direito.
3. A DESCONSIDERAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO
Primeiramente, cabe esclarecer que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica é possível em qualquer país em que se apresente a separação incisiva entre pessoa jurídica e os membros que a compõem.
Como exposto anteriormente, o ordenamento jurídico brasileiro reconhece a existência das pessoas jurídicas, o que enseja a conclusão de que a pessoa física do sócio é estranha à pessoa jurídica da sociedade. Dessa forma, os bens particulares dos sócios não se confundem com os da sociedade.
Verifica-se que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi recepcionada pelo ordenamento jurídico em variados diplomas legais, sendo um deles o Código de Defesa do Consumidor (CDC), ou seja, a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.
O art. 28, CDC, consagrou a teoria em estudo de forma abrangente e dispôs sobre a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica (caput e § 5°), bem como as diferentes modalidades de responsabilidade dos sócios (§§§ 2°, 3° e 4°), sejam eles pessoas físicas ou jurídicas. Nesse sentido:
“Art. 28 CDC. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§1° (vetado)
§2°As sociedades integrantes de grupo dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.
§3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.
§4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que a personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”[13].
Em conformidade com Denari, “ao acolher em suas disposições os postulados da disregard doctrine, o CDC outra coisa não fez senão seguir os passos dessa tendência, rompendo com o esquema rígido da autonomia patrimonial das sociedades personalizadas”[14].
Analisar-se-á, neste momento, o dispositivo supramencionado, já que é evidente a existência de algumas impropriedades técnicas no mesmo, porque cita outros institutos jurídicos como se fossem a desconsideração.
O caput do artigo, em sua primeira parte, confirma que o abuso de direito, de acordo com a tradicional e mais acertada sistematização doutrinária, é requisito fundamental para o levantamento.
Entende-se que as menções específicas a excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social têm simplesmente o intuito de deixar explícito o efetivo alcance da norma, no entendimento de Garcia (2006)[15]. Nessa esteira de pensamento, diz-se que inexiste vedação para que “a lei explicite os contornos da desconsideração da personalidade jurídica e, de certa forma, amplie as hipóteses que autorizam a medida, não se restringindo àqueles tradicionais pressupostos de fraude à lei e abuso de direito”[16].
No entanto, essas últimas hipóteses dizem respeito, na verdade, à responsabilidade do sócio ou controlador, que causa prejuízos a terceiros em razão de ato ilícito próprio, o que acarretaria sua responsabilidade pessoal, não se tratando de desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita.
Dessa maneira, o comportamento dos sócios que agem com dolo ou culpa, em violação da lei ou do estatuto, não pode ser imputado senão aos próprios administradores, que nesses casos são responsáveis pelos prejuízos que causem a terceiros, independente de se apelar para a teoria da desconsideração, segundo lição de Almeida (2001)[17].
A segunda parte do art. 28, caput, CDC, amplia a possibilidade da desconsideração, alcançando as hipóteses de falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica causados por má administração. Também aqui se observa a responsabilidade direta daquele que administra inadequadamente a sociedade, isto é, nova confusão do legislador com o tema societário.
Por sua vez, os parágrafos 2°, 3° e 4°, do art. 28 CDC, disciplinam a responsabilidade solidária – em via principal ou subsidiária – das sociedades componentes dos grupos societários, bem como das sociedades consorciadas e coligadas. Pode-se dizer que as sociedades integrantes de grupos societários e as controladas, respondem subsidiariamente pelas obrigações previstas no CDC, ou seja, a sociedade somente responderá se os bens da sociedade com quem se negociou diretamente forem insuficientes para satisfazer o crédito do consumidor. Já as sociedades consorciadas e as coligadas respondem solidariamente pelas obrigações decorrentes do referido diploma, devendo-se atentar somente para o fato de que as sociedades coligadas só respondem pelas obrigações quando, comprovadamente, esta houver participado do ato lesivo com culpa.
O parágrafo 5°, do artigo em tela, apresenta redação extremamente ampla, visto que autoriza a desconsideração quando ela for, de alguma forma, indispensável ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores, estando aí o cerne das maiores divergências.
Silva (2002) pondera, acertadamente, que, se a teoria da desconsideração no direito do consumidor “pode ser aplicada sempre que houver obstáculo ao ressarcimento, não há porque o legislador estabelecer no caput os pressupostos para a desconsideração”[18].
Sabe-se que o vetado parágrafo 1°, do art. 28 CDC, apresentava a seguinte redação: “A pedido da parte interessada, o juiz determinará que a efetivação da responsabilidade da pessoa jurídica recaia sobre o acionista controlador, o sócio majoritário, os sócios-gerentes, os administradores societários e, no caso de grupo societário, as sociedades que o integram”[19].
No entanto, para Denari (1998)[20], um dos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, por um equívoco remissivo, o veto recaiu sobre o parágrafo 1°, quando, de modo coerente, deveria recair em seu parágrafo 5°, o qual apresenta excessivo rigor e despreza os pressupostos da fraude e do abuso de direito previstos no caput, do art. 28, CDC.
Mesmo assim, até o presente momento, não se verifica qualquer retificação legislativa a respeito, o que leva a concluir que o veto incidiu mesmo sobre o parágrafo 1°, do art. 28, CDC.
No tocante as divergências quanto a redação do parágrafo 5°, certo é que o mesmo não deve ser interpretado isoladamente, mas sim, de forma sistêmica, de acordo com os fundamentos da teoria em estudo, tendo em vista os critérios previstos no próprio caput, do art. 28, CDC[21].
Sobre o tema, Coelho (2002) é taxativo ao afirmar que “não se pode, também, interpretar a norma em tela em descompasso com os fundamentos da teoria maior”[22]. O autor (2002) ainda observa que a dissonância entre o texto legal e a doutrina não traz nenhum proveito à tutela dos consumidores, mas, pelo contrário, é fonte de incertezas e equívocos.
Com o mesmo entendimento, Dinamarco (2001) é incisivo ao falar que “sem a fraude não se desconsidera a personalidade jurídica, sendo extraordinários na ordem jurídica os casos de desconsideração”[23].
Em desencontro ao exposto, de forma menos ponderada, sustenta Nunes (2005):
“[…] independentemente da verificação de fraude ou infração de lei, será possível, no caso concreto, suplantar a personalidade jurídica da pessoa jurídica, se for esse o obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo consumidor”[24].
Nessa esteira de pensamento acerca do caráter protetivo da lei consumerista, transcreve-se a observação de Gaulia (2002):
“O Código de Defesa do Consumidor pressupõe, como aliás estabelece seu próprio nome, uma política de defesa ao consumidor, de modo que toda e qualquer interpretação de seus conteúdos normativos deve ser realizada sob uma ótica de extensão da proteção, já que sua restrição atentaria contra seu fundamento essencial”[25].
Com tais considerações, pode-se notar que a forma encontrada pelo CDC para disciplinar a teoria da desconsideração não foi a mais acertada. Ainda hoje, 18 anos após sua entrada em vigor, o art. 28, CDC, encontra leituras diferentes por parte dos juristas.
Sem embargo, as divergências quanto ao referido dispositivo não se encerram no alcance da norma ali contida, posto que as dúvidas também surgem no momento de sua efetivação no caso concreto, sendo esse o assunto do qual se tratará na próxima parte deste artigo.
4. O PROCESSO CIVIL E A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
O CDC, ao prever a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, em seu art. 28, não apresentou os procedimentos para se obter, com segurança, tal levantamento, tendo em vista que a aplicação do referido instituto reflete medida excepcional. Vislumbra-se, então, importante dissertar acerca de alguns de seus aspectos processuais que deverão ser levados em conta na aplicação da referida norma consumerista.
4.1. Prescindibilidade da participação do sócio no processo de conhecimento
Como a desconsideração da personalidade jurídica favorece a possibilidade de se atingir o sócio que, por trás da pessoa jurídica, utilizou-a para fins não protegidos pelo direito, inserindo-o no pólo passivo da lide para que ele responda como parte no processo, faz-se importante aclarar a melhor maneira de exteriorização da regra em questão.
Em abordagem do tema, Dinamarco (2001) afirma que o ordinário se presume e o extraordinário se prova. Assim sendo:
“[…] diante da questão referente à desconsideração da personalidade jurídica, a eventual fraude cometida pelo devedor (ou por sócios da sociedade devedora) é fato constitutivo: fato constitutivo do direito da credora a satisfazer-se, excepcionalmente, à custa do patrimônio do sócio. Reside nos eventuais atos fraudulentos a causa que em tese pode conduzir a essa solução extraordinária. Sem fraude não se desconsidera; sem prova, a fraude não pode ser reconhecida”[26].
Em continuaçao, para o referido processualista (2001), é indispensável colocar os fatos supostamente caracterizadores da fraude em algum processo de conhecimento, tendo em vista que a circunstância da invasão da esfera patrimonial do indivíduo depende da existência de título executivo, resultante da possibilidade de participação do devedor em sua formação. O título executivo judicial derivado do processo de conhecimento, de índole condenatória, conduziria ao cumprimento de sentença, isto é, ao processo de execução.
Coelho (2002)[27] menciona uma ação judicial própria, de caráter cognitivo, movida pelo credor da sociedade em face de seus sócios ou seus controladores, na qual o autor da demanda deverá demonstrar a presença do pressuposto fraudulento. Em outros termos, o credor imputará a fraude, a manipulação da autonomia da pessoa jurídica, não só a esta última, mas, também, a pessoa ou as pessoas que pretende ver responsabilizadas.
Coelho (2002) sintetiza que “a teoria maior[28] torna impossível a desconsideração operada por simples despacho judicial no processo de execução de sentença”[29]. Assim, tal doutrinador (2002) explica que se o credor obtém do Poder Judiciário a condenação da sociedade, e só dela, e, ao promover a execução, constata o uso fraudulento da sua personalização, frustrando seu direito reconhecido em Juízo, ele não possui ainda título executivo em face do responsável pela fraude. De forma que, para o comercialista (2002), não seria correto que o juiz, na fase executiva, simplesmente determinasse a penhora dos bens do sócio ou administrador, transferindo para eventuais embargos de terceiro (arts. 1.046 e seguintes, do Código de Processo Civil) a discussão sobre a fraude, pois isso significaria uma inversão do ônus probatório. Em continuação:
“[…] se o autor da ação teme eventual frustração ao direito que pleiteia contra uma sociedade empresária, em razão de manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial, no transcorrer do processo, ele não pode deixar de incluir, desde o início, no pólo passivo da relação processual, os indivíduos sobre cuja conduta incide o seu fundado temor. Sendo nesse caso, litisconsortes o agente fraudador e a sociedade”[30].
Observe-se que o que é proposto pelo autor (2002) é a faculdade de, na propositura do processo de conhecimento, em sua petição inicial, o credor, temendo eventual frustração de seu crédito, desde já, inclua no pólo passivo da relação jurídica processual os sócios que pretende ver responsabilizados, caso a pessoa jurídica não possa com seu patrimônio fazê-lo. Para essa corrente, somente após a sentença condenatória, o credor estará habilitado a promover um processo de execução em face dos sócios e, é claro, apenas dos sócios que fizeram parte no processo de conhecimento.
Cabe discordar de tal argumentação, no tocante a inserção prévia dos sócios no pólo passivo da demanda cognitiva, porque, na prática, só há que se falar em desconsideração na ausência de bens da sociedade, constatada no processo de execução.
Em sentido equivalente, entende Beraldo (2006)[31] que o deferimento do pedido de desconsideração da pessoa jurídica de determinado ente trata-se de incidente processual executivo, ao qual o juiz deve conceder a maior celeridade possível. Por ser na fase de execução a ocasião em que se tem conhecimento da insolvência da pessoa jurídica, esse é o adequado e próprio momento para a formulação do pedido de desconsideração.
Além do que, ainda segundo Beraldo (2006), a necessidade de que os sócios participem de um processo de conhecimento específico, para só então haver a desconsideração, pressupõe que “toda execução precede de um processo de conhecimento, o que não procede, uma vez que existe execução lastreada em título executivo extrajudicial[32]”. Ademais, para o mesmo autor (2006), a exigência, por parte do magistrado, de um processo de cognição completo, para somente a partir de então, executar o patrimônio particular dos sócios, inviabilizaria a sistemática do processo de execução atual.
No entanto, faz-se necessário asseverar de que a posição adotada não implica em aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica de forma atropelada e imoderadamente.
Acredita-se que o deferimento do pedido de desconsideração, no processo de execução, deve ser precedido da citação e intimação pessoal dos sócios sobre a sua possibilidade, para que seja ampliada subjetivamente a relação jurídica processual e também para que os mesmos tenham a oportunidade de se defenderem, já que poderão ter seu patrimônio atacado com o deferimento do levantamento da pessoa jurídica. O referido requerimento incidental na fase executiva deverá ser instruído com documentos comprobatórios da inexistência de patrimônio da pessoa jurídica, capaz de suportar o crédito pleiteado no feito, da existência de bens de sócio passíveis de penhora e dos atos de abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou, ainda, violação dos estatutos ou contrato social, nos termos do art. 28, CDC. Desse modo, haveria uma retroação na fase do cumprimento de sentença ou na execução amparada em título extrajudicial, indispensável para possibilitar a apresentação de uma impugnação incidental à solicitação interna de supressão da pessoa jurídica, permitindo também ao sócio a juntada de outros documentos que refutassem a pretensão do credor, ou seja, descaracterizadores dos requisitos da desconsideração solicitada pelo exeqüente.
Assim, pode-se dizer que os sócios da sociedade que dela se utilizaram para fins não desejados pelo ordenamento jurídico, poderão figurar no pólo passivo da lide executiva, como partes no processo, mesmo que não tenham participado do processo de conhecimento que formou o título executivo contra a pessoa jurídica.
Contrariamente, caso o exeqüente não possua a documentação configuradora dos pressupostos autorizadores da desconsideração da pessoa jurídica, precisando da prova oral (testemunhas e eventual depoimento pessoal) ou ainda da pericial (contábil, por exemplo), não restará outra alternativa ao credor senão o ajuizamento de processo de conhecimento, já que no processo de execução não existe a ampla possibilidade de produção de provas que não sejam as documentais. Finalmente, na hipótese do sócio, incluído na lide, necessitar da produção de provas que não sejam as documentais, ele só poderá fazê-lo por meio de impugnação ao cumprimento de sentença (arts. 475-L e 475-M, CPC), no prazo de 15 dias contados da intimação do auto de penhora e avaliação de seus bens particulares (art. 475-J, parágrafo 1º, CPC); ou, ainda, pela oposição de embargos de devedor à execução por quantia certa lastreada em título extrajudicial, antes mesmo da constrição de seu patrimônio (arts. 736 e seguintes, CPC), em 15 dias da publicação da decisão interlocutória que deferiu o levantamento do velo da pessoa jurídica, o inseriu no pólo passivo e determinou a penhora dos seus bens particulares (art. 738 CPC).
4.2 – O devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa na desconsideração
O princípio denominado de devido processo legal, encontra-se disposto no inciso LIV, do art. 5°, CR/88, e é gênero do qual se originam os princípios espécies do contraditório e da ampla defesa, sendo esse nada mais que uma exigência de que o processo seja conduzido de acordo com a forma prevista na lei instrumental, ensina Montenegro Filho (2006)[33].
Os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa estão assegurados no inciso LV, do art. 5°, CR/88, dessa forma: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”[34].
Certo é que o princípio do contraditório garante às partes a ciência dos atos e termos do processo, permitindo-lhes se manifestarem, em igualdades de condições, sobre as alegações e provas que seus adversários apresentem.
Já o princípio da ampla defesa deriva do princípio do contraditório, sendo que nele inclui-se o poder de discutir, assim como também o de provar, nos termos da lição de Silva (1999)[35].
Por isso, na esteira de Beraldo (2006)[36], para que os sócios respondam pelas dívidas da pessoa jurídica, com seu patrimônio pessoal, é necessário que eles tenham a possibilidade de se defenderem, inclusive produzindo provas, em atendimento, portanto, dos princípios antes comentados.
Sobre o assunto, esclarece Nery Júnior (1997):
“Todos aqueles que tiverem alguma pretensão de direito material a ser deduzida no processo têm direito de invocar o principio do contraditório em seu favor. Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis”[37].
Com isso, pode-se concluir que não há que se falar em matéria de defesa por parte do sócio atingido pela desconsideração, alegando-se a inobservância dos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Além do mais, não existe a impossibilidade dos sócios de se defenderem, visto que a própria parte a ser atingida pela decisão da desconsideração estaria presente na demanda, direta ou encoberta pelo manto da personificação jurídica, segundo o entendimento de Silva (1999)[38].
Dito isso, é possível constatar que não haverá violação de nenhuma regra ou principio processual, o que ocorrerá na verdade, é a possibilidade do credor obter de forma mais rápida a tutela jurisdicional[39].
A busca da eficácia da prestação jurisdicional ficou ainda mais evidente com a Emenda Constitucional n° 45/04, que acrescentou o inciso LXXVIII ao texto constitucional, em seu art. 5°, CR/88, elevando a efetividade do processo e a celeridade do procedimento a patamares constitucionais.
Nesse sentido, Nery Júnior (1997) leciona:
“O devido processo legal deve ser aplicado com a devida cautela sem perder de vista o interesse público, posto que a amplitude da cláusula devido processo legal tornaria desnecessária qualquer outra dogmatização principiológica relativamente ao processo civil. Nada obstante, é importante fixarem-se os critérios de incidência do princípio em suas variadas manifestações, notadamente no que respeita aos limites dessa incidência, de sorte a não tornar os direitos absolutos, oponíveis a tudo e a todos, pois tal irrestrigibilidade não se coaduna com o estado de direito nem atende ao interesse público”[40].
Certo é que o enfoque principal da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é a obtenção da Justiça, diante de uma situação em que o direito positivado prescreva uma solução injusta.
5. CONCLUSÕES
A desconsideração da personalidade jurídica de um determinado ente constitui exceção à regra da separação patrimonial dos bens do mesmo e dos bens de seus sócios. Isso implica dizer que a personalidade jurídica será ignorada até a satisfação do direito do credor, nos casos em que ela for usada de forma incompatível com os fins para os quais foi criada.
Importante deixar claro que o afastamento da pessoa jurídica só pode ser aplicado após a análise do caso concreto, ou seja, a desconsideração não visa a anulação ou desconstituição plena da personalidade jurídica.
Sabe-se que ordenamento jurídico brasileiro, no intuito de coibir as ações fraudulentas de entes personalizados, admitiu a teoria da desconsideração em alguns de seus diplomas legais.
Um dos diplomas que recepcionou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica de forma expressa, porém não muito clara, foi o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 28.
O caput, do art. 28, do mencionado diploma, e seu parágrafo 5°, prevêem as hipóteses de cabimento da desconsideração, nas demandas em que se encontram envolvidos consumidores. Seus parágrafos dispõem as modalidades de responsabilidade existente entre os diversos tipos de associações das pessoas jurídicas.
No entanto, deve-se ter em mente que a aplicação do parágrafo 5°, do art. 28, do Código de Defesa do Consumidor, deve ser feita de forma cautelosa e em conformidade com as hipóteses previstas no caput, do artigo em questão, e não de forma indiscriminada, como pretendem alguns juristas ao justificarem a aplicação do referido dispositivo com base na teoria menor do levantamento do velo.
A desconsideração não é remédio para todos os males dos consumidores em face de possíveis devedores, ou seja, ela somente deve ser empregada quando a pessoa jurídica tenha se desviado das funções pretendidas pelo ordenamento jurídico, por meio do cometimento de fraude ou do abuso de direito, nos termos já apresentados.
Apesar do entendimento diverso de alguns teóricos, entende-se que a aplicação da desconsideração não deve exigir o ajuizamento de ação cognitiva específica para obtenção de título executivo em face de quem o patrimônio será invadido, sob o risco de se ter uma prestação jurisdicional inócua.
Lembra-se, ainda, que a desconsideração da personalidade jurídica não se confunde com sua anulação. A desconsideração pode sim ser objeto de demonstração incidental, no processo de execução já existente, quando constatados os pressupostos necessários. Por óbvio, deve-se respeitar o contraditório e a ampla defesa daquele que esteja sendo expropriado em sua esfera patrimonial.
Revela moderação o julgador que, antes de determinar a desconsideração da pessoa jurídica, procede à citação e a intimação dos sócios que serão atingidos em seus bens particulares, para que se forme a relação jurídica processual em relação a eles e lhes oportunizem a defesa.
Sabe-se que a desconsideração da personalidade jurídica busca a justiça nas relações sociais e que o Código de Defesa do Consumidor deseja a proteção da parte mais fraca na relação jurídica. A desconsideração, ainda assim, não deve ser aplicada de forma irrestrita, visto que se deve respeitar o instituto da pessoa jurídica e os princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório e da ampla defesa, de modo a se preservar a segurança nas relações jurídicas.
Pós-doutor em Direito Público e Educação pela Universidade Nova de Lisboa-Portugal. Pós-doutor em Direito Civil e Processual Civil, Doutor em Direito e Mestre em Direito Processual, pela Universidad de Deusto-Espanha. Mestre em Educação pela PUC Minas. Professor Adjunto da PUC Minas. Coordenador do NADIP da Faculdade Padre Arnaldo Janssen. Advogado Sócio do Escritório Raffaele & Federici Advocacia Associada
Egressa de Direito da PUC Minas. Advogada
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