1. Introdução
Na noite de 13 de abril de 2005, durante espetáculo futebolístico televisionado, teve-se a impressão da ocorrência de ilícito penal testemunhado por milhares de espectadores.
Segundo foi possível notar, um dos jogadores de futebol, de nacionalidade argentina, dirigiu-se a outro, de nacionalidade brasileira; adversário no certame, chamando-o de “negro”. Conforme declarações prestadas à imprensa televisiva logo após os fatos, por um dos advogados do clube de futebol a que pertence o ofendido, este teria informado à autoridade policial solicitada, em depoimento formal, que fora chamado de: “negro” e “negro de merda”.
Foi o suficiente para a exploração televisiva, em parte justificável pela conduta do ofensor, de outro condenável pela forma e conteúdo das matérias veiculadas sem qualquer preocupação técnica.
2. A real tipicidade da conduta
A Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
A Lei n. 9.459, de 13 de maio de 1997, alterou o art. 140 do Código Penal, que trata do crime de injúria.
Conforme leciona Damásio de Jesus: “O art. 2º da Lei n. 9.459, de 13 de maio de 1997, acrescentou um tipo qualificado ao delito de injúria, impondo penas de reclusão, de um a três anos, e multa, se cometida mediante ‘utilização de elementos referentes a raça, cor, religião ou origem’. A alteração legislativa foi motivada pelo fato de que réus acusados da prática de crimes descritos na Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (preconceito de raça ou de cor), geralmente alegavam ter praticado somente injúria, de menor gravidade, sendo beneficiados pela desclassificação. Por isso o legislador resolveu criar uma forma típica qualificada envolvendo valores concernentes a raça, cor, etc., agravando a pena. Andou mal mais uma vez. De acordo com a intenção da lei nova, chamar alguém de ‘negro’, ‘preto’, ‘pretão’, ‘negrão’, ‘turco’, ‘africano’, ‘judeu’, ‘baiano’, ‘japa’ etc., desde que com vontade de lhe ofender a honra subjetiva relacionada com cor, religião, raça ou etnia, sujeita o autor a uma pena mínima de um ano de reclusão, além de multa” (Código Penal anotado, 8ª ed., São Paulo, Saraiva, p. 437).
Nessa mesma linha argumentativa salienta Celso Delmanto que “comete o crime do art. 140, § 3º, do CP, e não o delito do art. 20 da Lei nº 7.716/89, o agente que utiliza palavras depreciativas referentes a raça, cor, religião ou origem, com o intuito de ofender a honra subjetiva da vítima” (Celso Delmanto e outros. Código Penal comentado, 6ª ed., Renovar, p. 305).
Não se desconhece, ainda, a posição daqueles que defendem que é impossível falar em crime de preconceito de raça quando na essência todos os homens (e mulheres) são componentes de uma única raça: a raça humana. Segundo os defensores de tal doutrina, tal fato impediria a distinção que se faz na lei a respeito de raças, e não havendo raças (no plural), a unidade racial seria óbice intransponível à pretensa distinção e conseqüente discriminação ensejadora da tipificação penal.
A verdade, porém, é que para a legislação penal brasileira, conforme consagrado na jurisprudência e na doutrina a conduta de dirigir-se a outrem o chamando de “negro”, ou mesmo “negro de merda” como na hipótese aventada, não restará configurado o crime de racismo.
3. Necessidade de cautela na divulgação dos fatos
A imprensa em sentido amplo, tantas vezes apontada, não sem justo motivo, como quarto Poder, tem imediata e profunda penetração em milhares de lares e ambientes os mais variados, atingindo inimaginável número de pessoas.
Suas notícias muitas vezes enfatizadas influenciam na formação da opinião popular a respeito de determinados temas, e bem por isso devem ser cuidadosas, cautelosas, pautadas pela prudência e pelo equilíbrio. É preciso ter em mente que: mais do que noticiar, é preciso noticiar com responsabilidade e consciência a respeito da importância da matéria veiculada. É preciso estar atendo à forma e ao conteúdo daquilo que se noticia.
Infelizmente nem sempre é assim, pois tantas vezes notamos a priorização do efeito impactante; não raras vezes evidencia-se que a vocação do órgão noticioso é apenas causar indignação; é chocar; despertar sentimentos os mais variados sem qualquer preocupação com os resultados que deles decorrem.
E foi assim, infelizmente, com relação ao episódio acima narrado, haja vista que, sem qualquer cautela, a grande maioria dos canais televisivos que trataram do assunto passou a propalar ter ocorrido crime de racismo, quando na verdade tal não ocorreu.
E nem se diga que os veiculadores da notícia não dispunham de conhecimentos específicos a respeito do tema, e que por isso estaria justificado o equívoco.
Com todo respeito, a tese não convence.
Se não estão preparados para a informação que tem cunho jurídico, que não se atrevam a campear o desconhecido; que respeitem os destinatários da notícia e não transmitam inverdades criando expectativa de resultado judicial-repressivo que não será alcançado.
Não se trata simplesmente de descompromisso com a verdade.
A questão é mais profunda.
Com efeito, ao noticiar o ocorrido e apresentar posição jurídica a respeito, cria-se expectativa de medidas policiais e judiciais que logo se verificarão incabíveis à espécie, e então não faltarão críticas injustificadas e maldosas à Polícia, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário.
A população destinatária da notícia não compreenderá o descompasso entre o que foi veiculado e as conseqüências jurídicas efetivamente constatadas, e no mais das vezes a mesma imprensa não cuidará de esclarecer os incautos, deixando sempre a névoa sobre fatos que nem comportavam tanta dificuldade de compreensão.
4. Conclusão
O episódio verificado durante a partida de futebol foi lamentável; deplorável, e está por merecer justa reprovação penal.
Ao que se pode verificar ocorreu, em tese, crime de injúria racial (art. 140, § 3º, do CP) e não crime de racismo regulado na Lei 7.716/97.
Por outro vértice, não menos lamentável e deplorável foi o sensacionalismo distorcido a que se prestou parte da imprensa em relação ao episódio; e quanto a esta conduta a certeza absoluta é a de que nenhuma punição virá.
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
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