Reality shows sob a perspectiva da teoria das subculturas criminais

Resumo: Análise da criminalidade praticada por participantes de reality shows sob a perspectiva da teoria das subculturas criminais.


Mal começou a décima segunda edição de um famoso programa televisivo do gênero reality show, exibido anualmente por uma grande emissora do setor, e já ocorreu um caso que gerou grande clamor público, especialmente nas chamadas “redes sociais”. Dois participantes deste reality show, durante a primeira “festa da casa” promovida pelo programa protagonizaram cenas lascivas, encobertos por um edredom, ao deitarem em uma cama, onde já se encontrava deitado um terceiro participante.


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Passados alguns minutos um quarto participante adentrou ao quarto onde se encontravam, e deitou em outra cama. Logo depois, imagens mostram o participante protagonista da polêmica, que ainda estava encoberto pelo edredom, se movimentando, enquanto que a participante com quem estava deitado não esboçava nenhuma reação, como se aparentemente estivesse sob o estado de sono profundo, fruto de uma embriaguez por ingestão excessiva de álcool.


Estas imagens provocaram um forte clamor, e conforme divulgado na imprensa, após entrevistas informais com os envolvidos, o participante foi eliminado da competição, sob o argumento de que teria demonstrado “grave comportamento inadequado”, segundo o apresentador deste programa de reality show.


As imagens amplamente divulgadas pelos meios midiáticos a princípio não são conclusivas com relação à materialidade deste suposto estupro. O fato é que se estivermos diante do crime de estupro (artigo 213, do Código Penal), e assim desejar a participante, esta oferecerá representação para que o Estado possa legitimamente iniciar a persecução criminal do suposto autor.


Por outro lado, caso se entenda que ocorreu o crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A, do Código Penal), devido à alegada embriaguez da participante, a ação penal pública não sofrerá qualquer condicionamento, e o Estado desde logo poderá (ou deverá) promover atos para apuração da autoria e materialidade delitiva.


E, ao que tudo indica, foi o caso. A Autoridade Policial, com atribuição para apuração do fato, prontamente promoveu diligências no sentido da apuração de um suposto crime de estupro de vulnerável. Portanto, seria precipitado tomar qualquer tipo de conclusão sobre os fatos. Até onde se sabe, não há uma posição oficial do Estado acusador acerca do cometimento de crime ou não, muito menos de qual crime se estaria tratando.


Neste ensaio não pretendo adentrar na arenosa questão acerca da culpabilidade do participante que teria protagonizado um suposto crime de estupro, que, se for o caso, deverá ser submetido a um devido processo legal (e não a um indevido “processo” inquisitório), que lhe garanta os direitos ao contraditório e a ampla defesa.


Saindo do campo da especulação jornalística, e adentrando no da Ciência Criminológica, importa analisar as condicionantes que poderiam levar os participantes a adotarem comportamentos desviantes, como este que supostamente teria ocorrido na madrugada de 15 de janeiro de 2012.


E para começar esta tarefa, colho as conclusões de Antonio Scarance Fernades e Oswaldo Henrique Duek Marques, apresentadas em interessante trabalho apresentado no Seminário Preparatório ao 7º Simpósio Internacional de Vitimologia no Instituto dos Advogados Brasileiros:


“As estatísticas demonstram que, nos históricos de famílias de muitos delinquentes sexuais, há ausência de qualquer desajustamento sexual e muitos deles ocupam posições de responsabilidade e vêm de famílias altamente educadas e respeitadas. São normais sob muitos aspectos, mas incapazes de controlar certos impulsos irresistíveis” (FERNANDES, Antonio Scarance; MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. (1991). Estupro: enfoque vitimológico. Justitia. 53 (154), p. 93).


Diante desta importante conclusão, indago então, quais condições levariam indivíduos a praticarem comportamentos desviantes, como este suposto estupro? Uma análise, ainda que sumária, da “teoria das subculturas criminais” pode trazer “novos” elementos a discussão, que se contextualizada com os reality shows, talvez possa explicar de maneira minimamente satisfatória formas de crimes como esta.


A “teoria das subculturas criminais” restou completa a partir da “teoria das associações diferenciais”, desenvolvida por Edwin H. Sutherland, que analisou os modos de aprendizado do comportamento desviante, e ainda, da conexão deste aprendizado das diversas “associações diferenciais” que uma dada pessoa possui com outras pessoas ou grupos sociais.


Sutherland criticou ainda as conhecidas teorias que propuseram generalizações no trato do comportamento desviante, que invariavelmente buscavam fundamentações nas condições: (i) sócio econômicas; (ii) psicopatológicas; e (iii) sociopatológicas. As teorias gerais sobre o comportamento criminoso, na visão do autor, são totalmente equivocadas.


Estas teorias buscam fundamentação em “falsas amostras de criminalidade”, diante da expressiva existência de um número de comportamentos criminosos desconhecidos oficialmente (“cifra negra”, “dark number” ou “ciffre noir”), ou ainda, face às criminalidades praticadas pelos estratos superiores (“cifra dourada”).


E ainda, as teorias gerais que buscam explicar o comportamento desviante, além de não explicarem satisfatoriamente a criminalidade praticada pelos estratos inferiores, não explicam com a necessária clareza científica a criminalidade praticada por indivíduos integrantes das classes sociais detentoras de maior poder econômico, que não é senão a realidade da maioria dos participantes de reality shows.


A “teoria das subculturas criminais”, antes de buscar generalizações, busca a identificação de elementos que concorram para todas as formas de crime. A teoria em relevo, ao ser desenvolvida por Albert Cohen, analisou a “subcultura dos bandos juvenis”. Este autor compreendeu que o processo de interação entre os jovens integrantes destes bandos levou a criações de sistemas de crenças e valores destes grupos. E concluiu que estes sistemas (que denominou de subculturas), representaram para seus integrantes (os jovens) uma solução com relação aos problemas por estes enfrentados para se adaptarem a cultura tradicional ou dominante.


Obviamente, os grupos participantes de reality shows não devem ser confundidos com bandos juvenis, porém o que importa assinalar é o sentido geral destas teorias, perfeitamente aplicável ao problema proposto. Não são outras as conclusões de Alessandro Baratta:


“O conceito de subcultura criminal, portanto, não funda somente um grupo autônomo de teoria, mas encontra aplicação, combinado com outros elementos, no interior de um quadro de teorias complexas” (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Critica do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 71).


A “teoria das subculturas criminais” se contrapõe ao “princípio da ideologia da defesa social” ou “princípio da culpabilidade”, uma vez que não concebe o comportamento desviante como retrato de um ato que afronte os valores de toda a sociedade, ou ainda, normas sociais gerais e abstratas. Esta teoria reconhece que, em cada um dos mais variados grupos sociais, coexistem valores ou normas próprios e específicos.


Os indivíduos, no âmbito dos diversos grupos que integram, pelo processo de interação social passam a interiorizar os valores próprios destes grupos, que não raramente podem colidir com os valores sociais tradicionalmente aceitos ou com as normas de condutas institucionalizadas.


Sob esta perspectiva criminológica, inexiste um único sistema de valores, pois na verdade coexiste uma infinita gama de sistemas próprios de valores e normas. A partir desta noção, se torna possível superar a conhecida concepção antropológica da culpabilidade, que propõe, numa breve síntese, que todo indivíduo é livre para determinar-se pelo sistema de valores (oficial), sendo considerado culpável aquele que sendo possível não se deixa determinar por este mesmo sistema de valores.


Assim sendo, diante do colorido que representa o pluralismo destes incontáveis grupos sociais, parece claro que cada qual adota sistemas de valores e normas institucionais bem típicas e próprias, que como dito, não raramente são alternativos ao dito sistema de valores e normas oficialmente institucionalizados.


Ainda que de modo transitório, os participantes de programas de reality shows, diante das condições próprias que lhes são impostas por seus produtores, convivendo em sob regime de confinamento em uma mesma casa, acabam por formar um grupo social próprio e único.


E como grupos sociais que são, devido ao processo de interação entre seus integrantes (participantes), passam a serem dotados de um sistema de valores e normas próprias, que pode ou não se harmonizar com os sistemas de valores dos inúmeros telespectadores destes programas.


Estas interações entre os participantes criam subculturas, e assim se torna possível melhor compreender possíveis comportamentos desviantes praticados pelos integrantes destes grupos sociais. Partindo-se das balizas da “teoria das subculturas criminais”, se torna mais esclarecedora a forma pela qual surgem comportamentos desviantes próprios, mas não exclusivos, destes grupos sociais.


Em que pese estas espécies de programas se autodenominarem reality shows, não transmitem a realidade de seus telespectadores, uma vez que estes grupos sociais compostos pelos participantes passam a ter um sistema de valores próprios. Em verdade, estes programas transmitem nada mais do que a realidade dos seus participantes e do grupo social que transitoriamente integram, mas nunca a realidade dos telespectadores que possuem valores próprios.


Destarte, sob a perspectiva de uma “teoria das subculturas criminais”, a criminalidade oriunda de participantes de reality shows deve ser compreendida, desde seus sistemas de valores e normas peculiares, sendo que  se deve buscar deixar de lado sempre que possível esta análise em confronto com o sistema de valores ou o único sistema de valores.


 


Bibliografia

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Critica do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da Libertação – Col. Pensamento Criminológico. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

COSTA, Alvaro Mayrink da. Criminologia 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia – O Homem Delinqüente e a Sociedade Criminógena. Coimbra: Revista dos Tribunais, 1997.

FERNANDES, Antonio Scarance; MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. (1991). Estupro: enfoque vitimológico. Justitia. 53 (154), 79-94.

FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

HASSEMER, Winfred; CONDE, Francisco Muñoz. Introdução à Criminologia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

MOLINA, Antonio G Pablos de; GOMES, Luiz Flavio. Criminologia – Introdução a Seus Fundamentos Teóricos. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 2ª ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006.

SHECAIRA, Sergio Salomão. Criminologia. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

WACQUANT, Loic. Punir os Pobres: A Nova Gestão da Miséria nos Estados Unidos – Col. Pensamento Criminológico. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

Informações Sobre o Autor

David Pimentel Barbosa de Siena


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Equipe Âmbito Jurídico

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