Reconhecimento da união homoafetiva: STF, sociedade decente e justiça compassiva


Sem a menor sombra de dúvida, a recente decisão do STF sobre o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar rompeu com uma política estabelecida que sempre legitimou, para a desgraça de muitos, o rígido e espúrio “projeto sexual do Criador” (para usar as palavras ditas em 1986 pelo então Cardeal Ratzinger) no que que refere à orientação sexual. Venceu a dignidade humana, uma moral sem Deus e a “iuris prudentia”.


Com essa decisão, o STF restituiu aos homossexuais sua condição completa de ser humano,  reconhecendo direitos e garantias que até agora lhes haviam sido negados, direitos que asseguram (de forma inviolável, autônoma e digna) a capacidade a esse coletivo humano concreto de plena e livre realização pessoal e familiar, isto é,  de pôr , no que se refere aos seus legítimos interesses, os  direitos humanos e fundamentais ao efetivo serviço da não discriminação, da liberdade como não interferência arbitrária e da igualdade material, como princípios básicos que asseguram o respeito da dignidade humana.


No que é considerado  “o maior país do mundo em número de católicos nominais”, essa histórica decisão do STF erradica a humilhação e reafirma a evidência de que o princípio da dignidade da pessoa humana “requer a possibilidade de concretização de metas e projetos” em uma sociedade fraterna e decente, isto é, em uma sociedade cujas instituições não humilham às pessoas sujeitas a sua autoridade e cujos cidadãos não se humilham uns aos outros; uma sociedade que permite viver juntos sem humilhações e com dignidade (Margalit, 2010).


Na mesma medida, também deixa claro que o conceito da dignidade humana vai mais além da mera funcionalidade normativa, isto é, de que sua efetividade transcende os limites de um mero desenho político-legislativo. De que um sistema axiológico-normativo fundado na dignidade humana exige que as normas sejam interpretadas e aplicadas de um modo que não choquem com os demais valores e princípios superiores; que a prática jurídica há de servir para promover sua efetiva realização, quer dizer, de que esse é o papel que cabe ao operador do direito a partir de uma práxis social e hermenêutica comprometida com uma concepção robusta e sana da natureza humana. E, sobretudo, deixa manifesto o reconhecimento de que quando a injustiça não é oportunamente eliminada pelo legislador, corresponde ao magistrado o dever (ético e jurídico)  e a virtuosa coragem de corrigi-la – isto é, porque a justiça não é um valor abstrato senão um valor cujo alcance, precisão e sentido dependem de sua realização na unidade da vida humana, o injusto descreve, delimita, condiciona e realiza a práxis da justiça.


De fato, a percepção da injustiça plasmada nos argumentos favoráveis ao mencionado reconhecimento, somada à atitude compassiva e a capacidade dos Ministros do STF de indignar-se ante uma situação de aberrante desigualdade  e de comover-se ante o sofrimento dos afetados, parece haver sido o principal fator motivador de uma decisão que nos força a contemplar a todo e qualquer indivíduo, independentemente de suas preferências sexuais, como um ser humano com plena aptidão para sentir, reagir, amar, eleger, cooperar, dialogar…, enfim, como titular do incondicional direito de dispor de oportunidades reais para se autodeterminar como entidade livre, separada e autônoma (como cidadão), por meio de vínculos sociais relacionais igualitários e fraternos e no contexto de uma sociedade justa e decente.


 Sem essa ética de justiça compassiva continuaríamos a tapar a união estável entre pessoas do mesmo sexo com o manto perverso da mais atroz e injustificada indiferença e intolerância. A razão é simples. Sem esse sentimento de compaixão não seríamos capazes de perceber a emoção desagradável que sentimos quando nos colocamos imaginativamente no lugar de outro que padece, e padecemos com ele, o compadecemos. Quem carece de compaixão – dirá com todo acerto Nancy Shermian (1999)- não pode captar o sofrimento dos outros; quem não tem capacidade de indignar-se  não pode perceber as injustiças.


Os pensadores da Ilustração, desde Adam Smith até Jeremy Bentham, situaram a compaixão no centro de suas preocupações. David Hume pensava que a compaixão é a emoção moral fundamental (junto ao amor por si mesmo). Charles Darwin considerava a compaixão a mais nobre de nossas virtudes. Oposto a todo tipo de discriminação, introduziu sua idéia do círculo em expansão  da compaixão  para explicar o progresso moral da humanidade. Os homens mais primitivos somente se compadeciam de seus amigos e parentes; logo este sentimento se iria estendendo a outros grupos, nações, raças e espécies. Darwin pensava que o círculo da compaixão seguirá estendendo-se até que chegue a sua lógica conclusão, quer dizer, até que abarque a todas as criaturas capazes de sofrer.


Na ausência desse sentimento de compaixão nos perdemos na indiferença, na apatia com relação ao outro, cuja essência reside precisamente no fato de que carrega consigo a completa perda de interesse no que sucede com nossos congêneres. Nada nos preocupa nem nos importa. E uma consequência natural disso é que nossa disposição a estar atentos se debilita e nossa vitalidade ou sensibilidade moral se atenua. Em suas manifestações mais habituais e características, o conformismo apático implica uma redução da agudeza e constância de atenção ao que realmente importa. Nossa consciência moral perde a capacidade de perceber injustiças, convertendo-se em algo cada vez mais homogêneo. E à medida que se expande e se apodera de nós, a indiferença faz com que nossa consciência ou compromisso ético experimente uma diminuição progressiva de sua capacidade de perceber os fatos importantes. Dito de modo mais simples: ter interesse por alguém, por seu sofrimento ou desgraça, significa tomar em consideração  seus interesses como razões prioritárias para atuar ao serviço dos mesmos.


Daí que a história recente indica bem que a condição humana, e seus atributos ligados à possessão de valores, deve ser definida em termos antropológicos e não meramente políticos nem religiosos. O processo de expansão do “círculo moral” (Singer, 1981) passa por devolver a todos os seres humanos sua condição de plena cidadania. Escravos primeiro, pobres sem terras mais tarde, mulheres juridicamente incapazes em seguida e homossexuais por último começam a ganhar carta de natureza e dignidade humana. É este sentimento de compaixão expandido o que, de uma forma ampla, recebe o nome de “sentimento de humanidade”.


O conhecimento, sem dúvida, facilita a empatia (cognitiva, emocional e compassiva). Como dizia Francis Crick, os únicos autores que duvidam da dor dos cachorros são os que não têm cachorro. E em que pese o fato de que os defensores do “projeto sexual do Criador” sempre repetem os mesmos argumentos a favor da discriminação  e da intolerância (que, tomados com a devida seriedade e dimensão argumentativa, justificam em última instância a desgraça e o sofrimento de determinados seres humanos), muitos brasileiros não duvidam da dor dos cachorros nem da injustiça que durante muito tempo padeceram os homossexuais – a quem, diga-se de passagem, os mais devotos amam odiar.


Ao estabelecer que a união estável entre pessoas do mesmo sexo deve formar parte da comunidade político-institucional, que se deve reconhecer aos homossexuais direitos legais, análogos aos direitos dos “demais cidadãos”, que têm valor intrínseco, a decisão do STF reafirma a crença de que o princípio da dignidade humana dispõe de um caráter de verdade evidente e material. Dito de outro modo, de que não  somente a intolerância é indefensável, senão que os bons argumentos articulados pelos Ministros do STF (e todos os bons argumentos apontam ao triunfo de um sentimento de justiça compassiva) põe fim a tentativa de impor a determinados cidadãos as proibições opressivas que dimanam dos valores alheios, ferinamente coloridos com a idéia de que determinadas condutas constituem crime “carnis contra naturam” (como diria Kant) e/ou com a promessa, moralmente repugnante, de resignada aceitação da miséria humana e salvação eterna.


Um tipo de decisão tecida a partir da necessidade de (a) reconhecimento recíproco daqueles que se sabem e se sentem dignos e ao mesmo tempo vulneráveis, conjuntamente construtores de um mundo que também deve estar a seu serviço, e, em igual medida, de (b) recordar que as normas da moral a que chamamos civilizada proíbem discriminar todo e qualquer tipo de sana orientação sexual em detrimento de outras, de promover a tolerância e assegurar a plena legitimidade de valores e crenças diferentes.


 Ignorar essa realidade nos deixa a mercê dos parasitas exploradores travestidos das mais diversas pelagens teológicas, dedicados a alimentar a incompreensão, o fanatismo, a indiferença e a intromissão arbitrária (e tirânica) na autonomia e liberdade individual.


 


 


 



Informações Sobre o Autor

Atahualpa Fernandez

Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular Cesupa/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.


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