Resumo:[1] Este artigo procura analisar os motivos oficiais e econômicos da desjudicialização ocorrida em Portugal em função da Reforma da Execução em 2003, assim como alguns resultados até o ano de 2006. Trata da polêmica e recém-criada figura do solicitador de execução, que passou a exercer algumas das funções dos juízes e dos oficiais de justiça na execução processual. Demonstra alguns conflitos existentes entre juízes e solicitadores de execução e entre estes e seus clientes. A transformação dos cargos de notários em profissionais liberais, ocorrida na mesma época é analisada de forma comparativa. Procura, por fim, analisar se o que houve foi realmente uma privatização de algumas atividades judiciais.
1. A nova figura do solicitador de execução e sua dupla função
A Reforma da Ação Executiva de 2003[2] teve como ponto central reduzir a atuação do juiz e da administração pública da Justiça (em especial a atuação do oficial de justiça), criando a figura do solicitador de execução. Trata-se de aplicar em Portugal um sistema semelhante ao da França, onde o huissier de justice é o agente de execução[3].
Conforme estudo produzido no Observatório Permanente da Justiça por João Pedroso e Cristina Cruz (2001), o huissier de justice francês é um profissional liberal independente. Ele é licenciado em Direito com uma especialização em Direito Executivo, nomeado pelo Ministério da Justiça e sob sua tutela. O número de agentes é limitado e o território de sua atuação é controlado. O Estado vigia a sua atividade a fim de evitar execuções que fujam aos direitos do devedor. Sua remuneração é paga pela parte e o valor segue uma tabela. A conclusão do estudo foi favorável à implantação em Portugal do referido agente[4].
O Decreto-lei da Reforma, n. 38/2003, criou a figura do agente de execução, preferencialmente recrutado entre os solicitadores de execução. Estes, por sua vez, eram os antigos solicitadores, que tinham sua profissão regulamentada há tempos, quase juntamente com a dos advogados. Um outro Decreto-lei, o de n. 88/2003, de 26 de abril, aprovou então um novo Estatuto dos Solicitadores, revogando o antigo (Decreto-lei 8/1999, de 8 de janeiro). O prazo para que entrasse em vigência foi de apenas 30 dias (art. 5º)[5].
Por esse novo estatuto foram disciplinadas as funções do solicitador e as do solicitador de execução. Pelo art. 3º, 1, do novo Estatuto, os antigos solicitadores passaram automaticamente à condição de solicitadores de execução, independentemente de possuírem ou não todos os requisitos exigidos. Já para os futuros solicitadores de execução exige-se, entre coisas, ter exercido a função de solicitador por três anos nos últimos cinco anos (art. 117º, 1, a). O Estatuto revogado (Lei 8/99, de 8 de janeiro) já estipulava para a inscrição na Câmara dos Solicitadores a conclusão do curso de licenciatura em Direito ou bacharelado em Solicitador (art. 71), além do cumprimento de um estágio de solicitadoria.
É comum “legalizar” os profissionais práticos (os provisionados) durante a regulamentação de uma nova profissão. A justificativa é a de não se criar um vácuo na oferta de profissionais, o que é contornado quando a lei estabelece um prazo longo para sua própria entrada em vigor. Isso também havia acontecido com os advogados e mesmo com os solicitadores na década de 1920.
Mas, na Reforma portuguesa de 2003, houve um elemento inédito. Esse novo profissional, o solicitador de execução, assumiu funções públicas, algumas privativas de juízes, o que, sem dúvida, exige um preparo adequado. A Câmara dos Solicitadores promoveu, em âmbito nacional, dois cursos de especialização, cada um em um fim-de-semana, conforme registro em órgão oficial da Câmara (Sollicitare, setembro de 2003). A freqüência a esses cursos, no entanto, não era uma condição para o exercício da nova profissão, refletindo apenas uma preocupação da entidade para com uma melhor qualificação de seus pares.
A falta de preparo dos novos solicitadores, como não poderia deixar de ser, foi ressaltada por alguns estudiosos, ao lado da precariedade geral de infra-estrutura para a implementação do novo projeto. Pimenta (2004, p.84) faz um balanço negativo da implementação da nova lei, afirmando que se deveria ter esperado mais tempo para que entrasse em vigor. Relata ainda que, dada a urgência, a opção foi recrutar agentes na classe profissional dos solicitadores, que receberam uma formação apressada. Teixeira (2004, p.29) alerta para a escassa formação dos solicitadores e a sua natural inexperiência. Freitas (2004, p.8) se refere ao parco número e à insipiente preparação dos solicitadores de execução, embora afirma ter havido enorme esforço, nesse sentido, da Câmara dos Solicitadores. Campos (2004, p.59) diz que a reforma foi apresentada como solução “mágica”, redundando em fracasso sob muitos aspectos, dentre os quais o fato de que o diploma entrou em vigor sem estarem criados os meios e as estruturas que o pressupunham.
Mas essa função pública que o solicitador de execução passou a ter não o transformou em funcionário público, manteve-o como profissional liberal. Isso causa uma dupla função polêmica. Com exceção dos notários[6], cuja função de fato foi privatizada, o que houve foi a transferência de atribuições e/ou de competências tipicamente de agentes públicos para um profissional privado.
O solicitador de execução tem, pois, “dupla qualidade”, já que é um profissional liberal encarregado de uma missão de interesse público e que carrega consigo poderes de autoridade (Gouveia, 2004, p.17), num “misto de profissional liberal e funcionário público” (Freitas, 2004). É este agente que, após ter sido contratado pelo credor, dirige o processo, praticando os principais atos, como a citação, a penhora e a alienação. Na acepção de Teixeira (2004, p.5), “os exeqüentes descobriram também, surpreendidos, que teriam que encontrar uma figura híbrida, qual a cabeça de Janus, com corpo público e coração privado (ou vice-versa), permanecendo todos os custos e disfunções do sistema anterior”.
Para além de reduzir a atividade pública esta foi, na verdade, repassada em grande parte para os profissionais liberais. Não se tratou de desregulamentar as tarefas que eram executadas pelos funcionários e pelo juiz, mas de entregá-las ao setor privado, com custos adicionais ao cidadão.
Além das questões meramente jurídicas processuais tem-se a questão da ética profissional, não menos polêmica, já que o solicitador de execução se vê diante de uma duplicidade de regulamentos: os da administração pública e os de sua profissão. Para a questão sobre até que ponto é possível conciliar os dois regulamentos ainda não há resposta definitiva. Podemos, no entanto, demonstrar dificuldades. É o caso, por exemplo, da obrigação de o solicitador manter o sigilo profissional de seus clientes. Pode ele prestar informações ao juiz sem quebrar esta regra?
O sigilo de informações, a princípio, é estranho a quem exerce função pública, pois choca-se com as normas administrativas de transparência e publicidade de informações[7]. Se a função de um oficial de justiça é justamente atestar a verdade e o que ocorre numa diligência ou ato judicial, o que dizer sobre o sigilo em tais circunstâncias? Por outro lado, há obrigação de o funcionário comunicar os órgãos competentes quando toma conhecimento de algum crime ou contravenção.
Não se trata aqui apenas de incompatibilidade entre a função pública e o sigilo profissional num sentido amplo, mas num sentido restrito. O médico, ao trabalhar como funcionário público em um hospital público, por exemplo, mantém o sigilo profissional e ético sem incompatibilidade. Neste caso, não se trata de um litígio, pois inexiste uma outra parte agindo em sentido contrário ao do paciente. Diferentemente do solicitador de execução, o médico não está concomitantemente sendo um prestador de serviços e um servidor público, embora possa paralelamente manter as duas funções (ter uma matrícula e um consultório). Por fim, o médico não está sendo pago por uma das partes para contrariar uma outra. Se já é difícil a compatibilidade da função pública com a privada inerente ao solicitador de execução, muito mais é ter a imparcialidade de um juiz. Este tem proibições rígidas de exercer outras atividades profissionais, salvo a de professor, o que preventivamente evita a parcialidade, contrariamente ao que ocorre com o caso do solicitador de execução.
A dupla função do solicitador de execução implica, pelo menos, duas relações novas e conflitantes. Uma entre o solicitador e o juiz; outra entre ele e o cliente. A questão ética profissional e processual é central nestes conflitos.
Pimenta (2004, p.85) levanta a possibilidade de o solicitador, ao acumular processos de um mesmo cliente, criar uma certa proximidade, certa afinidade, passível de lhe retirar a dose necessária de independência e autonomia. “Não ignoremos que os solicitadores de execução são essencialmente remunerados em função dos resultados e não ignoremos que o negócio dessas entidades exeqüentes (bancos e financeiras) é dinheiro mesmo.” O autor chega a apontar o risco de, inadvertidamente, “o solicitador poder converter-se numa espécie de porta-estandarte de certos exeqüentes” (idem).
O pagamento pelos serviços do solicitador pode ser penoso para um setor pobre, mas pode ser uma vantagem para os grandes grupos econômicos, que passam quase a subcontratar tais profissionais, o que atinge frontalmente o aspecto moral e ético da função do agente[8]. O solicitador pode até ser empregado do cliente, e o solicitador de execução pode ser ex-empregado do cliente[9]. A diferença é que já não existe mais a subordinação jurídica.
O outro ponto de conflito, como dissemos, situa-se entre o solicitador de execução e o juiz[10]. Neste caso, já existem discussões sobre casos concretos e pode-se observar que os estudiosos não vêm encarando estes conflitos de forma uniforme. Há divergências sobre as fronteiras entre os poderes e os deveres do juiz e os do solicitador. Se o oficial de justiça era subordinado ao juiz, com o solicitador isso já não é claro.
Não é uniforme também o modo de avaliar fatos ocorridos, como os casos que vêm ocorrendo do juiz multar o solicitador de execução sob o fundamento deste não prestar as informações devidas. Antes da Reforma/2003, os solicitadores não eram punidos pelo juiz, já que não existia hierarquia ou subordinação funcional entre eles, como ocorre com o advogado. Verificando irregularidade ética do solicitador o juiz comunicava o fato ao órgão profissional, no caso a Câmara dos Solicitadores. As multas normalmente são aplicadas às partes e a terceiros, que têm o dever de colaborar com a Justiça e agir de boa-fé. Aos funcionários, o mais apropriado é a instauração de sindicâncias e inquéritos. A questão que se coloca com a nova função do solicitador de execução é em que situação ele se enquadra.
O experiente teórico português Lebre de Freitas (2004, p.8) afirma que os magistrados, “em vez de verem no agente de execução um auxiliar imprescindível, parecem encará-lo como um intruso perante o qual há que se manter distância”.
Gouveia (2004) afirma que existem as seguintes opiniões: os que continuam vendo o juiz com poder de avocar o processo em qualquer momento; os que entendem que a lei teve o objetivo de liberar o juiz de tarefas meramente instrumentais ou burocráticas; os que acreditam que o juiz só deve intervir quando há litígio na execução; e os mais radicais, que acham que ao juiz cabe apenas anular os atos ilegais dos agentes de execução, não podendo interferir no trabalho do solicitador, mesmo que este seja provocado por uma das partes. Esta última é a opinião da autora, que relata incidentes entre juízes e solicitadores (p.11). A professora da Universidade Nova Lisboa afirma também que a previsão da multa[11] ao solicitador de execução aplicada pelo juiz, no caso, seria uma condenação instrumental à descoberta da verdade, o que é uma sanção grave, sem garantias específicas de defesa e, em regra, irrecorrível (dado o valor da sucumbência).
Gouveia (2004, p.29) entende que a dependência funcional do solicitador ao juiz só ocorre em casos específicos, basicamente em duas circunstâncias: se o agente violar direitos das partes ou normas legais ou se, mesmo não violando, as partes pedirem intervenção do juiz para analisar à luz dos critérios gerais de oportunidade, proporcionalidade, adequação. Para Gouveia, a atuação de ofício do juiz só deve ser procedida em caso de violação da lei – no máximo, o juiz poderia consultar os autos, mas não impulsionar o processo. O juiz nunca pode substituir o agente de execução.
Gomes (2004, p.31/32), por sua vez, entende que o juiz continuou com o controle jurisdicional, porém feito a posteriori. Em alguns casos, o controle do juiz ainda se dá de forma antecipada, quando, por exemplo, a execução ainda exige o despacho liminar do juiz (controle prévio).
Em nosso entender, não se pode mais equiparar o solicitador de execução ao advogado, já que este não tem função pública, nem ao solicitador tradicional e tampouco ao funcionário público. No Estatuto do Solicitador está prevista, na definição do solicitador de execução, a sua dependência funcional ao juiz, diferentemente do mero solicitador[12]. O significado desta dependência funcional ao juiz é algo novo no âmbito do Judiciário, e ainda por ser melhor definida.
Resumindo, afirmamos que o juiz continuou a ter controle do processo (art. 809 do CPC), mas não a direção geral. É evidente que a distinção entre uma coisa e outra suscita debates acalorados. Mas o certo é que muito do que o juiz ou mesmo do que o aparato judicial fazia passou a ser atribuição de um profissional liberal. O Código de Processo Civil, por sua vez, permite que um juiz destitua o solicitador de execução, a requerimento da parte ou de ofício, quando ele viola grave dever estatutário ou de procedimento doloso ou negligente (inciso 4 do art. 808º). A destituição é, no entanto, uma medida extrema que naturalmente não abarca falhas menores do solicitador e/ou exigência maior do juiz.
Se, até certo ponto, os juízes e a administração da Justiça foram acusados de serem morosos, agora eles encontram novos obstáculos para agir. Talvez a falta de iniciativa tenha se transformado em falta de autoridade. O solicitador de execução passou a ser um novo responsável, no bom ou mau sentido, sem que houvesse mudanças gerais do aparelho jurídico, à exceção do incentivo ao ganho de honorários.
2. Os motivos da Reforma/2003 e os consumidores de justiça
Os motivos oficialmente apresentados para a Reforma da Execução foram basicamente três: adequar o país às diretrizes da União Européia, tornar o processo menos custoso e combater a morosidade processual. O caminho utilizado para se atingir estes objetivos foi a promulgação de leis para alterar o Código de Processo Civil e o Estatuto dos Solicitadores, criando-se a nova profissão de solicitador de execução, como vimos. Porém, para além destes motivos oficiais apresentados, a Reforma/2003 beneficiou o “grande consumidor” (o investidor) – que visualiza a Justiça como artigo de consumo – e passou a ameaçar o “pequeno consumidor” (de artigos de uso próprio), que não deixa de ser potencial devedor.
A adesão de Portugal à União Européia gerou a obrigação de uma adequação à política globalizante e neoliberal que vigora na Europa. Os paradigmas são os da Suécia, França, Bélgica, Luxemburgo, Holanda e Grécia. Portugal, até então, se aproximava dos modelos de execução da Espanha e da Itália (Freitas, 2001).
A União Européia propaga a necessidade de circulação de prestação de serviços, mas de nada adianta essa bandeira se tais serviços não são pagos corretamente e com agilidade. A “prestação de serviços” ganhou tanto relevo como solução para qualquer problema econômico e de eficiência que começou a ser vista também como salvação do Judiciário. E, diga-se, uma prestação de serviços onde o tipo ideal é mais privado do que público, onde o mercado funciona livremente, no máximo sendo regulado por agências semi-estatais.
A desjudicialização portuguesa que atingiu a execução passou a exigir a contratação do trabalho do solicitador de execução exatamente da mesma forma como se paga por um serviço prestado por um profissional liberal, embora com tabela de preços[13]. A execução passou a ser, definitivamente, mais uma prestação de serviços cuja eficiência depende de acerto de honorários. Para as grandes empresas, essa nova despesa significa tão-somente um investimento com repasse dos custos ao pequeno consumidor, o mesmo não se dando, no entanto, quando este mesmo pequeno consumidor precisa dos serviços de um solicitador. Além da necessidade de se adequar às normas correntes na União Européia, a Reforma/2003 atendeu também à atual política do governo de reduzir substancialmente o quadro de funcionários públicos[14].
Embora não estivesse previsto inicialmente na Reforma, nos anos seguintes ela atingiu os tribunais do trabalho[15]. E com distorção, já que se passou a exigir que o trabalhador pague honorários. Houve, neste caso, uma extensão das medidas reformistas implantadas sem o mesmo estudo havido para os demais tribunais. Restou aos tribunais trabalhistas atenuar os efeitos danosos com uma jurisprudência a favor do trabalhador, procurando estender-lhe os benefícios da Justiça gratuita. A cobrança de pagamento de honorários aos pequenos exeqüentes, que, por vezes, reclamam créditos alimentares, vai contra a proposta do próprio Observatório da Justiça de Portugal, que, na época, advertiu que “a reforma não deve, por isso, agravar os custos de litigância, sobretudo para os cidadãos” (Capítulo VIII, Conclusões Gerais e proposta de reforma, p.47)[16].
O outro argumento para a Reforma/2003, que se refere mais diretamente ao processo judicial, foi o antigo e habitual: combater a morosidade da Justiça. As tentativas dos governos de resolver crises ou problemas relativos à morosidade processual não são novas. Talvez existam desde que existe o moderno poder Judiciário. O difícil é encontrar um paradigma cujo funcionamento seja realmente fruto de uma boa estrutura judiciária e não apenas conseqüência das condições econômicas do país. Seria interessante encontrar uma Justiça que funcionasse bem em um país da África e não apenas na Suécia.
Os principais motivos da morosidade residem no próprio direito de defesa de uma das partes, geralmente o réu, o que não deixa de ser uma conquista dos direitos de cidadania. A celeridade típica da época do despotismo não é mais bem-vinda. Assim, a morosidade começou como uma conquista do acusado ou devedor, que são, historicamente, a parte fraca. O direito não estava tão dividido entre penal e civil, público e privado. A lentidão profissional, sem sombra de dúvida, beneficia “alguém”, que pode ser o cidadão detentor de seu direito de defesa ou um mero beneficiário que já conta com a morosidade processual para obter vantagens ilícitas, ou pelo menos imorais. O maior problema reside, pois, em identificar quem tira proveito da lentidão da Justiça, ou seja, quem conta com a impunidade ao agir ilegalmente. Mas poucos estudos seguem nesse sentido, que levaria a um diagnóstico sobre os verdadeiros “beneficiários” da morosidade. O que temos, geralmente, são estatísticas impessoais de ajuizamentos de ações e “soluções”.
Só em segundo plano as soluções para a morosidade processual poderiam, de fato, serem atribuídas às regras de processo, à falta de eficiência da máquina administrativa da Justiça e aos profissionais envolvidos (advogados, juízes, oficiais e funcionários de modo geral). Se o problema fosse de reforma legal seria de fácil resolução. Bastaria copiar as leis dos países paradigmas. Quanto aos profissionais, estes seguem tradições, rituais e valores que só lentamente podem modificar.
No estudo do Observatório Permanente da Justiça de Portugal são tecidas críticas às reformas anteriores[17] que também buscaram eficiência e celeridade processual. Segundo o Relatório do Observatório, “ao lermos as exposições de motivos das leis e os preâmbulos dos decretos-leis que estiveram na base das sucessivas reformas, torna-se evidente a disjunção entre o processo de intenções que a eles presidiu e o que é efetivamente legislado (item 11, p.14)”. Seria o caso de perguntarmos se esta nova Reforma, de 2003, também não segue o mesmo caminho, o que nos parece que sim.
No final da década de 1980 e início da de 1990, muito se defendeu o “acesso à Justiça”, sob o argumento de que “Justiça tardia não é Justiça” [18]. Junto a essa demanda, aumentaram-se os direitos do consumidor, o que gerou mais demanda. A própria ação judicial não ficou muito distante de uma prestação de serviços típica do mercado de consumo. Essas duas campanhas, a de “acesso à Justiça” e a do “direito do consumidor”, contribuíram fortemente para o aumento de demandas judiciais. Começou-se então, nos anos 90, a se propor “meios alternativos”, muitos com mecanismos extrajudiciais e até participação de leigos. Embora tais foros não fossem novos, foram ampliados e incentivados. A rapidez, muitas vezes, também significava perda de direito, como acordos forçados e com desvantagens significativas para a parte mais fraca. Aqui a “Justiça rápida também não era justiça”.
Apesar de todos esses esforços e sacrifícios, persistia o engarrafamento na fase de execução. E nem os acordos nem a ajuda de leigos a facilitavam, visto que os problemas aí encontrados são delicados e não dependem apenas de “agilidade”, mas também de o devedor poder pagar. Ou seja, a fase de execução envolve questões em grande parte sociais, que extrapolam as regras processuais.
A maioria das execuções em Portugal, conforme informações de um estudo do Observatório Permanente da Justiça, realizado por Pedroso e Cruz (2001), referiam-se a cobranças de dívidas, sobretudo provenientes de pessoas coletivas (89,29% em 1989 e 90,67% em 1999), sendo que o principal credor era o próprio Estado (70,44% em 1989 e 66,34% em 1999). Nas Conclusões do Relatório do Observatório, encomendado pelo Ministério da Justiça, afirma-se que, nos últimos anos, o que se tem registrado é, tão-somente, a emergência de novos litigantes freqüentes, como, por exemplo, operadoras de telemóveis e de TV a cabo. O que significa que os tribunais estão sendo intensamente mobilizados por pessoas coletivas com capacidade econômica para poder gerir, de forma racional, a sua litigância (p.22, item 23).
Quando o beneficiário da morosidade do Judiciário é o indivíduo pobre e sem influência, não há repercussão no cenário político. Mas quando grandes credores, como bancos, vêem seus títulos serem lentamente executados, a pressão sobre o Judiciário cresce. Cobra-se eficiência do tribunal como se este fosse uma empresa produtiva que gerasse resultados estatísticos em termos de produção: a justiça fordista. As críticas neoliberais apresentam as empresas privadas como mais eficientes, por isso as propostas de privatização acabam surgindo naturalmente.
O incentivo ao consumismo, fundamentado na liberdade de mercado, fez com que a lei viesse a regular de forma mais detalhada os direitos do consumidor. O alargamento do crédito foi uma necessidade do capital de ampliar o mercado para atingir setores mais pobres que não tinham liquidez. O aumento do consumo gerou aumento de crédito e, como conseqüência, das dívidas, nem sempre pagas. O não pagamento é habitualmente absorvido pelas empresas em sua projeção de inadimplementos, mas quando este se torna sistemático ameaça o próprio empreendimento.
Embora todo o discurso adotado pelos adeptos das privatizações siga no sentido de defender o pequeno consumidor privado, oferecendo-lhe melhores serviços, a Reforma da Execução apresentou um visível efeito inverso, já que o “prejudicado”, no caso, muitas vezes acaba sendo justamente o pequeno devedor. Essa agilização da Justiça que vai contra o pequeno devedor possibilita aos bancos emprestar mais e mais para um segmento antes pouco explorado. Gomes (2004, p.27) vê na Reforma uma resposta à “crise do mundo empresarial”. A Revisão do CPC de Portugal de 1995/96 (Decretos-lei n. 329-A/95, de 12 de dezembro, e n. 180/96, de 25 de setembro) procedeu a “um alargamento significativo do âmbito da exeqüibilidade de documentos particulares assinados pelo devedor”, suprimindo o requisito do reconhecimento notarial, entre outras coisas. A intenção já era dar celeridade ao processo, evitando-se burocracia. Mas a agilização na confecção do título do crédito só aumentou a exigência na execução. Instaurada numa fase do processo e não na outra, a celeridade cria, inevitavelmente, entupimento. E este chegou na linha final do processo, na execução, que já não depende apenas dos operadores do Direito e sim de o devedor possuir recursos. O que independe da eficiência do solicitador da execução.
Ainda segundo Gomes (2004), a ineficiência da ação executiva continuava a ser considerada um dos fatores prejudiciais ao funcionamento do sistema econômico, agravada pelos fenômenos da massificação e da facilitação do crédito de consumo, com o crescente endividamento dos particulares, e pela crise do mundo empresarial. Isto a ponto de ser tida como um dos nódulos da alardeada crise da Justiça. A comprovar essa tese, segundo o autor, estava o número de pendências das ações executivas (em 1 de janeiro de 2002, cerca de 516.757), para não citar os números que sempre engordaram a estatística das execuções abortadas (p.27/28).
3. Privatização?
Parece haver consenso de que houve desjudicialização e até desjurisdicionalização[19] na Reforma da execução judicial portuguesa. Mas essa desjudicialização se processa nos moldes da privatização? Seria a mesma coisa?[20] Ou uma coisa não teria relação com outra? Certamente o tema está longe de obter uma resposta final, por ser novo. Até onde podemos chegar, a resposta depende da interpretação que se dê ao texto legal. Vamos por partes.
Inicialmente, devemos observar que não estamos falando, literalmente, de privatização dos cargos de juiz ou de oficial de justiça. A profissão de solicitador de execução, não sendo antes pública, não poderia agora ser “privatizada” (sentido literal e restrito), como no caso dos notários.
A questão reside em saber se as “atribuições funcionais” dos juízes e oficiais de justiça foram privatizadas, além de serem apenas “transferidas” para o setor privado. Em outras palavras, esta “transferência” é total, definitiva, paralela (concorrente)? Qual sua essência? Não seria a primeira vez que a lei, ou órgão público por previsão legal, delega poderes ao setor privado. Essa é uma prática comum que todos conhecem. Ocorre com os notários privatizados, quando têm que atestar com fé pública, e até mesmo com os juízes arbitrais[21]. Em suma, os agentes privados têm exercido atribuições públicas, mas geralmente de forma efêmera ou muito especial, diferentemente do solicitador de execução. Torna-se, assim, difícil uma comparação com outras experiências.
Outro aspecto que devemos levar em conta ao tratar da hipótese de privatização é que, além das regras de direito administrativo, estamos falando de “direito processual”, que é eminentemente público e possui regras próprias muito rígidas. Tratando-se basicamente de “litígios”, as regras do contraditório exigem firmeza e imparcialidade, diferentemente das jurisdições voluntárias das meras homologações de transações, que seguem trâmites meramente administrativos mais facilmente. Mesmo na execução, são infindáveis os litígios com conotação cognitiva por vezes envolvendo terceiros, e, como sabemos, alguns casos são muito mais complexos que os da tradicional fase de conhecimento. Por isso, quando se discute a liberdade e o dever do juiz de interferir na execução, sabe-se que essa liberdade e esse dever ocorrem num nível diferente, por exemplo, daquele que ocorre com os notários ou outros órgãos burocráticos, em que o juiz só deve interferir se houver provocação do suposto lesado.
Esta questão de o juiz depender de ser provocado ou não é que nos parece relevante para caracterizar uma eventual privatização ou não. Não conseguimos, no caso concreto da Reforma de Execução de 2003, levando em conta o envolvimento do direito processual, ver outro termômetro que não este. Embora as citações teóricas que expusemos neste texto não tenham sido relacionadas diretamente com o tema “privatização” e sim com a “desjudicialização”, tomamos a liberdade e assumimos o risco de concluir que os teóricos que colocam o juiz dependente de provocação para agir na execução seguem a direção conclusiva de privatização das atividades judicantes.
Já as análises que concluem que o juiz pode intervir de ofício a qualquer momento na execução vão no sentido conclusivo da não privatização. Acreditamos que, com o tempo, será difícil sustentar análises intermediárias que geram dúvidas nos conflitos entre juízes e solicitadores e entre estes e seus clientes. É certo que com a prática futura, levando-se em conta a jurisprudência e as tradições locais, estas questões processuais se definirão melhor. E ficará mais claro se Portugal precisa mesmo seguir o que vem sendo considerado paradigma para a União Européia.
Juiz Titular da 5ªVT/Niterói-RJ e professor da UFF-Universidade Federal Fluminense
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