A legalidade e a juridicidade da atuação da administração pública na função de polícia judiciária e na realização da investigação criminal. Irrelevância jurídico-sistemática do veto ao § 3.º, do art. 2.º, da Lei 12.830/2013

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Resumo: O artigo que ora nos propomos a discorrer tem por objetivo esclarecer o alcance dos contornos jurídicos dos princípios da legalidade e da juridicidade, regentes da atuação administrativa no seu mister de realizar investigações criminais, apresentando como problema a possibilidade de complementação das questões jurídicas que envolvem a autonomia e a imparcialidade do agente público responsável pela condução do procedimento investigativo criminal, com amparo na atuação administrativa conforme a lei e o Direito. Desta feita, a norma irradiada desse princípio apresenta o dever de a autoridade policial responsável pena investigação criminal a conduzir-se na persecução pré-processual de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, malgrado o veto ao § 3.º, do art. 2.º, da Lei 12.830/2013, cujo texto do Projeto de Lei do Senado n.º 132/2009 prescrevia que “o delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade”. Não obstante, esse dever é obtido de forma direta pelo princípio da juridicidade, estampado no art. 2.º, Parágrafo Único, da Lei 9.784/99.

Palavras-chave: direito processual penal, investigação criminal, polícia judiciária, Administração Pública, princípios jurídicos, princípio da legalidade, princípio da juridicidade, autonomia técnico-jurídica.

Abstract: The article now propose to discuss aims to clarify the scope of the legal contours of the principles of legality and the legality, Regents of administrative action in its occupation of performing criminal investigations, presenting problem as the possibility of complementing the legal issues involving independence and impartiality of the public official responsible for conducting the criminal investigative procedure, based on the terms administrative action according to the law and the law. This time, the standard radiated this principle has the duty of the police authority responsible for conducting criminal penalty in the prosecution pre-trial according to their technical legal free conviction, despite the veto to § 3., Article. 2., Of Law 12.830/2013, the text of Senate Bill no. º 132/2009 prescribed that "the police chief will conduct a criminal investigation according to its free conviction technical legal with neutrality and impartiality". However, this duty is obtained directly by the principle of legality, stamped on art. 2., Paragraph One of Law 9.784/99.

Sumário: 1. A lei como instrumento da administração pública; 2. Os princípios de direito como instrumentos normativos da administração pública; 3. Contorno normativo do princípio da legalidade administrativa; 4. Legalidade e juridicidade administrativa na investigação criminal; 5. Conclusão sobre os efeitos dos princípios da legalidade e da juridicidade na atuação da administração pública na investigação criminal; referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

O estudo ora desenvolvido abordar a investigação criminal sob o prisma dos princípios da legalidade e da juridicidade na atuação da Administração Pública, declinando os efeitos jurídicos propiciados ao sistema da autonomia técnico-jurídica na condução de investigações criminais a partir da adoção da atuação investigativa não somente em conformidade com a lei, mas também sob a óptica da submissão ao Direito, este como ciência dogmática, identificando o vínculo, ou plexo de complementariedade normativa, formado entre ambos os valores, a dar os contornos jurídicos dos atos investigativos e da investigação pela polícia judiciária. Desta forma, pelo método indutivo, concluir-se-á ser a função de investigação criminal realizada pela polícia judiciária atividade eminentemente jurídica e, assim, detentora de autonomia técnico-jurídica, para a tomada de decisões imparciais, em consonância com o disposto no sistema normativo à luz das regras comuns de hermenêutica. 

2. A LEI COMO INSTRUMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A lei representa o texto normativo que dispõe sobre os direitos, os deveres e as proibições atinentes aos indivíduos jungidos à proteção territorial do Estado, todavia, envolvendo sob sua imperatividade, inclusive, esse próprio Estado em sua estrutura jurídica e orgânica. Regula, sob uma concepção de Estado Democrático de Direito, as normas de conduta entre os representados e o Estado soberano.

Inconcebível a classificação de qualquer Estado como Democrático de Direito sem a sua submissão à lei, esta vertida em texto normativo orientador dos limites da atuação estatal. Os poderes de governo não mais são absolutos, outrora plasmados na figura do rei, do imperador, do ditador, despótico e centralizador de funções e de assuntos das mais diversas ordens de interesses, hoje tendo na expressão do interesse público e da finalidade pública a representação dos verdadeiros deveres-poderes instrumentais de direcionamento dos rumos da nação. Assim se constatou paulatinamente com as transformações ocorridas nas evoluções dos Estados absoluto, Liberal e Social.

No Estado Democrático de Direito tem-se a lei como instrumento de persecução do interesse público e, não obstante, como veículo limitador dos deveres-poderes administrativos frente às liberdades individuais.

É primordialmente com fundamento nesse instituto que se constituem e se expressam os regimes jurídicos, dentre os quais o jurídico-administrativo da investigação criminal (em franca transformação, ex vi, e.g., das disposições da novel Lei 12.830/2013, que “dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia”), definindo os contornos do permitido, do proibido e do obrigatório para a Administração Pública, no exercício de sua função constitucional de investigar delitos.

A investigação criminal, como atribuição da polícia judiciária, em que pese esta ser inserida dentro de um contexto de direito penal e processual penal – e, assim, criminal, portanto – vincula-se a um plano híbrido de Direito, sujeitando-se, a par das suas referências de direito criminal – penal e processual penal -, ao sistema de direito administrativo e a seus regimes jurídicos.

A polícia judiciária, encarregada da investigação criminal, fase pré-processual, não compreende órgão do Poder Judiciário, mas sim do Poder Executivo, submetida, com isso, às regras e princípios básicos da Administração Pública como um todo e que, de forma pré-concebida e com conotação a priori dos preceitos de direito penal e processual penal, ditam os contornos normativos do agir administrativo nessa senda da atribuição estatal.

Com efeito, as normas de direito administrativo aplicadas à persecução criminal são de imprescindível relevância para a delimitação dos vieses de uma investigação criminal abalizada com os direitos e garantias constitucionais fundamentais dos indivíduos e com a ordem constitucional vigente, primando pela segurança jurídica de uma investigação realizada sob o manto da legalidade, em todos os seus aspectos intrínsecos e extrínsecos, por meio de regras e princípios jurídicos.

À vista desses argumentos, há de se considerar que a normatividade abstrata não flui somente da lei, mas também, dos princípios jurídicos do Direito, complementando o plexo de valores maiores responsáveis pela condução do Estado. Submete-se a polícia judiciária, no exercício da investigação criminal, às leis e aos princípios componentes do ordenamento jurídico, dentre os quais, os de direito processual penal e de direito administrativo.

3. OS PRINCÍPIOS DE DIREITO COMO INSTRUMENTOS NORMATIVOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Em que pese toda a importância deferida à lei positivada, a normatividade reitora do atuar estatal pode também ser aferida de preceitos mais abstratos inferidos, quando não diretamente por ele representado, do próprio texto legal. Desta feita, a norma, veiculada pelas regras e princípios constantes ou hauridos dos textos normativos, são essenciais às balizas do Estado Democrático de Direito.

Do latim principium, o termo exprime a noção de início, começo, ou de primeiro enfrentamento sobre qualquer assunto, obstáculo, tarefa ou projeto. Os princípios jurídicos podem ser compreendidos como normas basilares, fundamentais, obtidas do direito posto, constitucional e infraconstitucional, ou mesmo de valores implícitos do ordenamento jurídico como um todo e representativos da sua essência normativa, deôntica, que dão suporte, no caso do Direito Administrativo, sob o amparo da lei e de todo o ordenamento jurídico, às ações dos órgãos e entes estatais, ditando, com efeito, os rumos hermenêuticos e exegéticos, interpretativos e de aplicação, para a produção da norma de máxima concretude (ato administrativo) pela Administração Pública.

A importância do estudo dos princípios de Direito funda-se na sua característica de servir como fonte normativa, na medida em que exaurem efeitos jurídicos nos mesmos moldes de lei geral e abstrata, regulando, ainda que implícitos no ordenamento jurídico, a aplicação do Direito ao caso concreto.

Também se presta como fonte interpretativa, amparando a interpretação da lei positivada, para que essa se dê dentro do seu âmbito de normatividade razoável, jurídica e socialmente aceitável, ou seja, dentro do plexo conceitual do princípio informativo que a rege. Assim, havendo uma ou mais interpretações da lei igualmente válidas, deve-se optar pela interpretação que reconheça maior sustentação ao princípio e à sua gama de valores.

Como fonte integrativa, os princípios do Direito se aplicam, conforme estatuído no art. 4.º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Antiga Lei de Introdução ao Código Civil), Decreto-lei n.º 4.657/42, nos casos de omissões legislativas não eloquentes, em que o Parlamento se omite de forma não intencional no seu dever de legislar, permitindo-se, com efeito, chegar-se à concretude normativa e aplicação jurídica de forma harmônica com o sistema normativo como um todo.

Os princípios do Direito estão plasmados na Constituição Federal de 1988, como fundamentais da pessoa humana e básicos ou informativos dos ramos do Direito, e, também, nos ordenamentos postos para regulações jurídicas específicas.

Como dito, seus conceitos e normatividade podem também ser obtidos da noção de valores, tais como o valor de justiça e certeza do Direito, consonante os propósitos do Estado Democrático de Direito constituído e informando os diversos ramos das ciências jurídicas, ou a determinados ramos, aplicando-se de forma específica e peculiar.

Essas espécies de norma capitaneada pelos princípios são de extrema importância para a funcionalidade do Direito enquanto ciência dogmática e, todavia, enquanto texto normativo, importando deferir-lhes posição de destaque nos diversos ramos das disciplinas jurídicas, a exemplo do direito constitucional, do direito penal, do direito tributário, do direito do trabalho, do direito processual, entre outros, e também do direito administrativo instrumental do direito processual penal. Como bem observa Eduardo García de Enterría, “han sido los principios descubiertos y funcionalizados por los juristas los que han cambiado, no solo la ciencia del Derecho administrativo, sino la vida misma de este como ordenamiento aplicable[1], posto que, diante de seu papel normativo, interpretativo  e integrador, compõem a identidade e a individualidade do sistema, do regime jurídico e da disciplina estudada e assim o é também para a disciplina da investigação criminal realizada pela Administração Público na qualidade de polícia judiciária.

Afere-se íntima relação entre princípios, normas e regime jurídico, pois este é composto por aqueles (normas e princípios), ordenados de modo coerente e lógico, com vista a dar normatividade aos postulados e unidade à disciplina estudada.

Quanto aos princípios constitucionais, expressos ou implícitos, de direito administrativo, anote-se que a Constituição Federal, com seus preceitos gerais e abertos, receptivos de uma evolução da noção de justiça pelo corpo social, eles têm a função de servir de ápice do ordenamento jurídico-normativo, sistematizando diretrizes do Estado nas suas diversas linhas de atuação e, com efeito, apresentando princípios informativos dos mais variados ramos do Direito, aplicando-se isso também ao direito administrativo e à sua utilidade instrumental penal, sob esse ponto, não somente de cunho formal, mas, sobretudo, de contornos nitidamente materiais, aprimorando o conteúdo e significado dos textos legais de direito administrativo, podendo-se, inclusive, classificá-los, por força de transposição constitucional validativa da migração de normas axiológicas abertas e gerais, como verdadeiros princípios de direito administrativo penal.

Nas palavras de Patrícia Baptista,

“efetivamente, a grande contribuição do constitucionalismo ao direito administrativo foi a agregação das preocupações materiais e não meramente organizatórias dos novos textos constitucionais. Neste processo — que a doutrina tem chamado de filtragem constitucional —, é fundamental a influência da nova principiologia constitucional, que realça, dentre outros, valores como a democracia, a moralidade e a dignidade da pessoa humana, forçando o direito administrativo a se voltar para os problemas da existência, individual e coletiva, dos cidadãos. O constitucionalismo impôs a substantivação do direito administrativo, através dos princípios”[2].

Com fundamento nessa função sistêmica e da substantivação operada pela Constituição Federal, por meio de prescrições de direitos e garantias fundamentais, as quais preponderantemente apresentam o escopo de restrição do jus persequendi e do jus puniendi estatal e o reconhecimento de condição especial à pessoa humana, diante das não raras forças de ação desarrazoadas ou desabalizadas que tendam a infirmar o status dignitatis, são, deveras, aplicáveis à investigação criminal os princípios constitucionais e legais de direito administrativo que com ela tenham relação por vias comuns de um direito persecutório geral, sem a ressalva de pertencerem a este ou àquele ramo específico do Direito.

Quanto aos princípios legais, expressos ou implícitos, de direito administrativo, ressalte-se que o ordenamento infraconstitucional deve refletir, como um todo, a noção de justiça posta pelo Estado e plasmada na Constituição, orientando-se pelas normas e princípios constitucionais. Assim, os princípios legais e os princípios implicitamente decorrentes do texto normativo têm a função de concretizar, em última aproximação, os vértices inicialmente postos pelos princípios constitucionais, em uma verdadeira espécie de regulamentação já iniciada por aqueles. Declina-se, nos escólio da Professora Patrícia Baptista que

“Mesmo os princípios desenvolvidos interna e autonomamente no sistema do direito administrativo, uma vez atraídos pelo constitucionalismo contemporâneo, ganharam um novo vigor. Ao lado da aquisição de um conteúdo mais consentâneo com as ideias reitoras das novas ordens constitucionais, passaram a gozar de maior estabilidade e de uma imperatividade reforçada”[3].

Destarte, sem embargo da normatividade dos princípios explícitos identificados na Constituição e nas leis, justifica-se o fundamento de validade dos princípios legais nos princípios constitucionais, a exemplo da irradiação de efeitos jurídicos produzida pelo princípio constitucional do devido processo legal, que em seu aspecto substantivo, firma baliza para, e.g., a aplicação de normas gerais de direito sancionador ao estatuto da investigação criminal.

A par dos princípios constitucionais, dos princípios de direito processual penal e dos princípios de direito administrativo, ainda se deve dar deferência aos princípios gerais de direito, os quais veiculam prescrições gerais e demasiadamente abertas, de natureza jurídica, social e ético-moral, oriundas da análise do sistema, com força normativa secundária, para o auxílio, assim com a analogia e os costumes, na interpretação e na integração da norma legal posta como fonte imediata, servindo de vertente de aplicação normativa e ao sistema jurídico como um todo.

Os princípios gerais do Direito formam a primeira base de um ordenamento jurídico e do sistema logicamente posto como um todo, oferecendo, como visto acima, vértice normativo, integrativo e interpretativo, para suprir lacunas, ou mesmo para normatizar institutos. Apresentam-se como meios de interpretação, integração e normatização.

 Consoante lição de Marcello Caetano, “é, em regra, produto de elaboração doutrinária: trata-se de uma ideia superiormente informadora de todo o sistema jurídico ou de certa parte dele, de que decorrem, portanto, as regras e soluções consagradas na legislação” [4].

No direito administrativo geral, é empregado para a orientação interpretativa, integrativa e normativa em espaços reservados por lei como discricionários, operando nesse sentido com importante funcionalidade, de modo a garantir a observância do princípio da juridicidade da Administração Pública – atuação conforme a lei e o Direito – e servindo, assim, como garantia ao administrado.

Não por outra razão, juristas estrangeiros, de longa data, já reconheciam a sua importância para as atividades da Administração Pública, consoante se afere da lição de Eduardo García de Enterría, ao afirma que “em términos absolutos puede decirse que la única posibilidad de una garantia individual y social efectiva frente a los formidables poderes de esta natureza [discrecionalidad] de la Administración de hoy está en la técnica de los principios generales del Derecho[5].  

Na investigação criminal, conquanto princípios gerais – como exemplo, os princípios da certeza do Direito e justiça do Direito -, estes exercem força normativa indireta, razão pela qual a eles se atribui a classificação de fontes mediatas do estatuto investigativo, operando-se do mesmo modo e com as mesmas utilidades nos ramos do Direito como um todo, ou seja, para integrar, normatizar indiretamente e auxiliar a atividade interpretativa dos operadores do direito da persecução penal, mormente diante de lacunas ou discricionariedades normativas.

Não se pode olvidar que os princípios gerais do Direito apresentam um vértice específico, qual seja, o aplicável de forma geral à disciplina da investigação criminal, que, após o emprego dos princípios constitucionais e processuais penais específicos, “tratando-se de casos omissos numa lei administrativa há [o intérprete e aplicador da norma] que buscar, primeiro, os princípios gerais do direito administrativo, visto ser esta disciplina um complexo orgânico, dotado de relativa autonomia na ordem jurídica (…) e, enfim, recorrer aos princípios gerais do direito, comuns ao direito público e privado, embora geralmente formulados nas Constituições doutrinárias e nos Códigos civis, por serem estes Códigos os monumentos legislativos modernos que primeiro surgiram”.[6]

Com efeito, sob o amparo desse entendimento, imprescindível reconhecer a precedência interpretativa e integrativa na seguinte ordem: princípios constitucionais afetos à investigação criminal, princípios legais afetos à investigação criminal, princípios gerais de direito administrativo e, por fim, princípios gerais de direito, sem óbices, porém, a aplicações simultâneas ou sucessivas de tais institutos quando o caso concreto permitir. 

4. CONTORNO NORMATIVO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ADMINISTRATIVA

O dever de observância da lei, expresso pela concepção dogmática de existência de uma ampla normatividade dos textos regulatórios produzidos pelo Estado – outrora outorgados pelo detentor absoluto do poder, hoje, nas formas federativas de Estado, votados e aprovados pelo Poder Legislativo, cidadãos representantes eleitos do povo e dos Estados Federados, e sancionado pelo representante maior do Poder Executivo -, concebe-se o denominado princípio da legalidade. Representa a essência do Estado Democrático de Direito e infere o governo do povo pelo povo, por meio de normas gerais e abstratas, regentes de fatos futuros, com nítido caráter impessoal-prospectivo.

Assim, o princípio da legalidade materializa na ordem jurídica a obrigatoriedade de deferência ao sistema de normas, tendo sido paulatinamente concebido para fazer frente ao poder absoluto do monarca, limitando e tolhendo a essência do Estado absolutista, que deveria, assim, como todos os indivíduos e sob o invólucro de reconhecimento de liberdades públicas, submeter-se às leis por ele próprio criadas. Traçaram-se as linhas iniciais do Estado Liberal, externando marco da primeira geração ou dimensão de direitos fundamentais, representada pelos direitos civis e políticos.

A legalidade experimentou sensível aprimoramento a partir das revoluções americana, de 1779, e francesa, de 1789, com a doutrina da separação dos poderes de Montesquieu, em que a função legislativa e, por conseguinte, as leis passaram a ser fruto, apesar de indireto, da soberania do povo, até então sem qualquer participação nas diretrizes do Estado. Impôs-se, pela vontade do povo, a submissão do Estado ao ordenamento jurídico, inaugurando o denominado Estado Democrático de Direito.

Assenta origem histórica na Inglaterra, na Charta Magna Libertatum do rei João Sem Terra, de 1215, reafirmado pela Petition of Rigth inglesa de 1628, e, com sua primeira positivação para o direito penal, no Código Penal Francês de 1810, seguido pelo código bávaro de 1913, como fruto do movimento iluminista[7].

Embora originariamente posto de forma estrita para regulação das normas de direito penal, nada obstou (partindo-se das premissas contidas na referencial obra “Direito Constitucional Alemão”, de Otto Mayer, ao esclarecer que “el derecho y sus normas siguen a la administración por todas partes donde Ella manifeste su actividad”[8])  a sua aplicação também em sede de direito administrativo, abarcando, com isso, todas as searas de atuação da Administração Pública e, também, das funções administrativas, afetas aos demais Poderes da República. Envolve, assim, a atuação de investigação criminal pela Administração Pública.

No Brasil, assim como na maioria dos países ocidentais, seguindo as vertentes do constitucionalismo moderno e a fixação de direitos fundamentais no ato inaugural do Estado, o princípio da legalidade possui assento constitucional positivado. Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, prescreve o inciso II, do art. 5.º da Constituição Federal de 1988, declinando que os indivíduos sujeitos à soberania e, por consequência, ao ordenamento jurídico nacional, somente serão compelidos a agir ou a se omitir se houver lei que assim disponha.

A essência ordinária principiológica posta sob análise gira em torno do conceito de “lei”, que, em seu sentido estrito, consiste na prescrição normativa genérica e abstrata votada e aprovada pelo congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, com posterior publicação (conforme o estabelecido no processo legislativo – artigos 59 e seguintes da Constituição Federal), para assim, ter eficácia jurídica e social. Em sentido lato, a lei pode ser entendida como qualquer ato da Administração Pública, editado pela autoridade competente e em harmonia com as teorias de existência, validade e eficácia (jurídica e social) dos atos administrativos, e com o fim de genérica e abstratamente regular condutas.

Com fundamento nesse princípio, fixa-se a máxima de que a Administração Pública tem o dever de atuar somente conforme a lei, nos seus limites, não lhe sendo permitido agir extra, ultra, citra ou contra legem, conquanto limitar-se à manifestação prévia da lei, determinando (para as condutas vinculadas) ou facultando (para as condutas discricionárias) o seu proceder.

Assim, distingue-se da faculdade de agir do particular, que não encontra limites no silêncio da norma, sendo-lhe possibilitada qualquer atuação se a lei, ativamente não lhe proibir. A regulação jurídica difere para um e para outro caso – interesse particular e interesse público -, na medida em que, para o particular, considera-o livre para se conduzir no silêncio legal e, para a Administração, fá-la depender, para a gestão da coisa pública, de manifestação normativa, ao menos em forma de silêncio eloquente.   

Para Hartmut Maurer, professor emérito da Universidade de Konstanz, Alemanha, o princípio da legalidade pode ser dividido em dois outros distintos, quais sejam o da primazia da lei, que prescreve que à Administração Pública e a seus agentes é proibido agir ou se omitir em condutas ofensivas a lei (proibição de condutas contra legem), dando um efeito ativo à norma, que se impõe como marco normativo proibitivo do proceder estatal, e o princípio da reserva da lei, que prescreve que a Administração Pública somente pode manifestar a sua vontade se houver previsão ou imposição legal para isso e nos limites de sua normatividade, apresentando um efeito negativo ao diploma jurídico, que se apresenta como marco legitimador da gestão administrativa (proibição de condutas ultra, citra e extra legem). Nesse último caso, a omissão legislativa representa, de fato, uma proibição de conduta para a Administração.

Assim, Maurer ensina que

“segundo o princípio da reserva legal, a administração somente se pode tornar ativa se ela foi, para isso, autorizada em lei. Esse princípio, portanto, pede mais do que o princípio da primazia. Enquanto este apenas (negativamente) proíbe a infração contra leis existentes, aquele carece de (positivamente) um fundamento legal para a atividade administrativa”.[9]

Hely Lopes Meirelles, em passagem muito conhecida, aborda o aspecto “reserva da lei”, tratado por Maurer e ensina que “na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto que na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza.” [10] Afere-se daí uma relação de subordinação da Administração Pública à lei, distinta da relação legal de coordenação regente dos assuntos particulares. Essa é a concepção que se tem no Brasil acerca do princípio da legalidade, qual seja, a de subordinador e limitador do agir administrativo nas searas da aplicação do Direito ao caso concreto.

5. LEGALIDADE E JURIDICIDADE ADMINISTRATIVA NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

À vista dessa acepção do princípio da legalidade, de legitimador, conquanto subordinador e limitador do mover-se da Administração Pública, há a necessidade de conciliá-lo com o recentemente incluído em nosso ordenamento jurídico, pelo art. 2.º, Parágrafo Único, Inciso I, da Lei n.º 9.784/99, princípio da juridicidade, na medida em que ambos visam a delimitar os contornos jurídicos das condutas administrativas, um, sob o aspecto substantivo, material, outro, sob o aspecto formal, processual ou procedimental.

Preceitua o referido dispositivo legal acima mencionado, in verbis:

“Art. 2o . A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

 Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

 I – atuação conforme a lei e o Direito”; (sem grifos no original)

Eis o princípio da juridicidade, regente das atuações da administração estatal, operando-se conjuntamente com o princípio da legalidade. Impõe o dever de a Administração Pública orientar-se pela lei e pelo Direito em toda e qualquer atuação procedimental e, aqui, atentemos para o fato de a expressão “processo”, prevista na norma possui sentido lato, amplo, para abarcar o processo em sentido estrito e o procedimento.

Com efeito, vincula o Estado-administração não somente nas suas relações públicas em contraditório, mas também nas formalizações, desenvolvimentos e conclusões de procedimentos, quaisquer que sejam eles, propriamente administrativo ou administrativo-processual penal, a exemplo di inquérito policial ou da investigação preliminar pré-processual.

Discorrendo sobre o princípio da juridicidade, acentua J. J. Gomes Canotilho que

“O direito compreende-se como um meio de ordenação racional e vinculativa de uma comunidade organizada e, para cumprir essa função ordenadora, o direito estabelece regras e medidas, prescreve forma e procedimentos, o direito é, simultaneamente, medida material e formal da vida coletiva (K. Hesse).”[11] (grifos do original).

 À vista dessas inferências, para quaisquer cadernos procedimentais aplicados ao interesse público, partindo-se da premissa de que cabe à Administração Pública, a par da precípua função atinente ao Poder Judiciário, o dever de interpretar e aplicar o Direito ao caso concreto posto à sua decisão, o princípio da legalidade, em harmonia com o princípio da juridicidade, delimita o agir do Estado concretizador e executor, consoante os preceitos legais em sentido lato e, assim, em harmonia com o Direito, englobando seus princípios, regras e valores.

Amplia-se, destarte, o alcance do princípio da legalidade, para incluir em seu bojo o plexo de valores que caminha em consonância com o texto da lei interpretada, consubstanciando campo de incidência e especial força normativa ao novel princípio da juridicidade ou da atuação conforme a lei e o Direito.

Este importante instrumento de realização do interesse público, o princípio da juridicidade, é afeto não ao campo das realizações materiais diretamente, mas sim ao da funcionalização procedimental-processual administrativa e impõe a atuação da Administração não somente conforme a lei, mas também conforme o Direito, como um todo. Para o Estado, no ambiente jurídico-administrativo-procedimental-processual, a lei é o seu ponto de partida e o Direito, como ciência dogmática, a sua fronteira intransponível.

5.1. Irrelevância jurídico-sistemática do veto ao §3.º do art. 2.º da Lei 12.830/2013

Nesse sentido, para fazermos menção à concreta positivação, consideramos irrelevante, por exemplo, o veto do §3.º da Lei n.º 12.830/2013, que não permitiu o ingresso normativo no regime jurídico das investigações criminais de norma que determinasse a condução de investigação criminal por agente público (no caso, do delegado de polícia) de acordo com seu “livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade”[12].

O preceito vetado apresentava a seguinte redação:

“§ 3º O delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade.”

A razão do veto, de caráter político, fundamentado na contrariedade do dispositivo ao interesse público, está assim redigida, in verbis:

“Da forma como o dispositivo foi redigido, a referência ao convencimento técnico-jurídico poderia sugerir um conflito com as atribuições investigativas de outras instituições, previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Desta forma, é preciso buscar uma solução redacional que assegure as prerrogativas funcionais dos delegados de polícias e a convivência harmoniosa entre as instituições responsáveis pela persecução penal”

Dessa redação, acaso não tivesse sido vetado, constata-se uma possibilidade de interpretação conforme da Constituição Federal, para se evitar os possíveis conflitos com as atribuições investigativas de outras instituições, posto que o “livre convencimento técnico-jurídico” somente pode ser entendido como aquele dentro da lei, em harmonia com o ordenamento jurídico e com as regras de Direito.

Ora, ocorre que se a condução não for pelo livre convencimento técnico-jurídico, será por qual forma? Pela íntima convicção? A resposta é uma só: pela atuação conforme a lei e o Direito, que nada mais é que o “livre convencimento técnico-jurídico, isento e imparcial”, porém dito com outra redação e em outra norma, qual seja a Lei n.º 9.784/99. Eis o princípio da juridicidade aplicado também às investigações criminais.

5.2. O exemplo § 6.º do art. 2.º da Lei 12.830/2013

O preceito em comento trata do ato de indiciamento a ser confeccionado pelo delegado de polícia. Esse ato tem o condão de identificar o indivíduo investigado, declinando, à vista dos elementos de prova produzidos nos autos, ser ele o provável autor da latente materialidade constatada. Deve ser ato devidamente fundamentado, declinado os móveis fáticos e jurídicos que o levaram à edição. Para tanto, imprescindível a análise jurídicas das elementares e das circunstâncias da conduta ilícita, assim como dos elementos subjetivos afetos ao investigado.

O § 6.º, do art. 2.º, da Lei 12.830/2013, está assim redigido, in verbis:

“Art. 2o  As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado. (…)

 § 6o  O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.”

No dispositivo legal verifica-se a perfeita aplicação da essência normativa do princípio da juridicidade, na medida em que o referido § 6.º faz menção à necessidade de o ato administrativo de indiciamento ser produzido a partir de uma “análise técnico-jurídica”, e esta exprime o dever já estampado no art. 2.º, Parágrafo Único, I, da Lei 9.784/99, qual seja o dever de exercício de suas funções sob a luz da atuação conforme a lei e o Direito.

Desta forma a autoridade policial deve proceder não somente no indiciamento, mas em todo e qualquer ato por ele confeccionado no bojo da investigação criminal, primando por sua atuação sob o prisma da juridicidade, exempli gratia, nas decisões de oitiva ou de dispensa de oitiva, nas requisições de perícias e de documentos, nas representações por medidas cautelares, tais quais as prisões temporárias e preventivas e as buscas e apreensões, e, assim, em todos os demais atos da instrução pré-processual. Isso vale também para os atos anteriores à instauração, que,assim, devem ser regidos pelo princípio em comento, a exemplo das decisões de instauração ou de não instauração de apuratórios.

Com efeito, firma-se o princípio da juridicidade para todo e qualquer ato administrativo da investigação criminal.

Não devemos nos esquecer de que na função de interpretação e aplicação da lei ao caso concreto, há como balizas para o Estado o “direito” haurido da estrutura literal do texto legal e o “direito” proveniente dos valores oriundos das possibilidades (i) de interpretação dessa mesma lei, com fundamento em aberturas normativas plurissignificativas e (ii) de suas construção e mutação interpretativas; tese essa já esposada por Eduardo García de Enterría, na obra “Reflexiones sobre la Ley y los principios generales del Derecho”, ao comentar preceito da Constituição espanhola, assentando que “el artículo 103.1 precisa, en efecto, que la Administración ‘atua… con sometimento pleno a la Ley y al Derecho…’.Examinado en sí mismo, este precepto es realmente notable, puesto que pressupone de manera inequívoca que existe un Derecho que tiene otro origen distinto del de la Ley[13]

Assegura, portanto, que toda a atividade do Estado no exercício da função administrativa não se prescinde pautar em regras de comportamento, as quais devem previamente autorizar sua ação ou omissão (legalidade estrita), sem embargo de, imprimindo um viés ampliativo, utilizá-las, as leis, sistemas jurídicos e suas teorias, incluindo os princípios e valores implícitos decorrentes das leis e do ordenamento jurídico como um todo, para fundamentar qualquer decisão, quer seja ela favorável ou desfavorável ao particular, administrado.

 A doutrina tem denominado essa ampliação que vai para além das fronteiras da legalidade estrita como “bloco de legalidade”, na medida em que estende as margens dos institutos jurídicos justificantes da atuação administrativa, validando-as desde que, partindo-se da legalidade estrita, mantenham-se dentro da Ciência do Direito. Daí a identificação do conceito de “atuação conforme o Direito”, expresso na Lei Geral do Processo Administrativo. Com isso, permite-se, exempli gratia, a deferência à força normativa dos princípios explícitos e, não obstantes, implícitos do ordenamento, para a fundamentação de decisões administrativas, inclusive, por exemplo, em sede de direito administrativo disciplinar.

6. CONCLUSÃO SOBRE OS EFEITOS DOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA JURIDICIDADE NA ATUAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

A Lei n.º 9.784/99, no parágrafo único, inciso I, de seu artigo 2.º, prescreve que a Administração deverá observar na formalização e no desenvolvimento de processos administrativos[14] a atuação conforme a lei e o Direito.

Do enunciado do estatuto geral regente do processo administrativo em sede de administração federal denotam-se dois mandamentos, quais sejam o de (i) atuação conforme a lei e o de (ii) atuação conforme o Direito. Os vocábulos “lei” e “direito” não compreendem expressões sinônimas, mas sim complementares e referentes aos objetos da hermenêutica jurídica.

O primeiro decorre da necessidade de observância da estrita legalidade para fundamentar o agir procedimental administrativo, em que somente se tachará de legítima a conduta plenamente amparada na lei – princípio da legalidade estrita.

O segundo mandamento, “atuação conforme o Direito”, imprime a necessidade de a Administração somente se fundamentar, na condução de seu agir e na produção de procedimentos e processos administrativos, por regras jurídicas de interpretação e aplicação da lei, valendo-se, exempli gratia, das regras de hermenêutica e da dogmática jurídica.

 Importa, com isso, em uma Administração juridicizada, permeada pelas noções de ordenamento jurídico, sistema jurídico, normas-princípios, normas-regras, assim como valores neles contidos, decorrentes desse ordenamento regente de seu agir ou de seu omitir.

Do mesmo modo do acima declinado, na investigação criminal a juridicidade imprime a condução das atividades investigativas com imparcialidade e com e com isenção, de acordo com os móveis técnico-jurídicos representados pelo dever de atuação não somente em harmonia com a lei, mas também em consonância com o Direito, entendido como ciência jurídico-dogmática. Por essa óptica, quanto às requisições oriundas de outros órgãos, a exemplo das requisições ministeriais para a instauração de investigação criminal ou para a realização de diligências, estas devem ser cumpridas se estiverem também de acordo com a Lei e o Direto, ou seja, se forem emitidas em harmonia com o ordenamento jurídico e com os valores deles decorrentes, com a ressalva de que as requisições de instauração não são instrumentos legalmente apropriados para a indicação da capitulação a que se deve deter o delegado de polícia no ato de instaurar (ou seja, na portaria de instauração) ou a indicação de quais diligências deve proceder para a busca dos indícios de autoria e de materialidade. Essas diligências devem ser requisitadas somente após ter o delegado de polícia relatado o inquérito e, assim, encerramento da apuração em sede policial. Com isso, harmonizam-se o poder de requisição do Ministério Público e o princípio da juridicidade, para a atuação conforme a lei e o Direito, vinculativo das autoridades policiais.     

De todo o exposto, nas atividades investigativas criminais, há, com efeito, submissão à lei e, não obstante, utilização das teorias dogmáticas do Direito para a solução dos casos postos a seu cargo.

 Assim, não se constituindo em valores imanentes do sistema, não se permite utilizar de fundamentos extrajurídicos, a exemplo da equidade ou da moral não expressa ou implicitamente positivadas – plasmadas em comandos normativos, para a motivação de seus atos, sob pena de ofensa ao princípio em comento. Evita-se, assim, a atuação investigativa criminal plasmada pela íntima convicção, em homenagem ao Estado de Direito democrático.

Todavia, o princípio da atuação conforme a lei e o Direito reflete faceta do próprio princípio da legalidade, e com este se harmoniza, para o complementar em ambiente procedimental e, não obstante, em sua acepção lata, dar legitimidade interpretativa da lei à Administração, para a resolução do caso concreto. 

À vista desses argumentos, a clássica assertiva de que “enquanto que na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza” há de ser considerada à luz do princípio da juridicidade, para se aceitar, no trato de questões procedimentais e processuais, o agir da Administração não somente conforme o texto taxativo da lei, mas também à luz dos valores contidos e até mesmo de forma implícita no texto normativo, dotado de cargas principiológicas harmonizadas com o sistema jurídico.

No entanto, esse atuar livremente convencido pela sua interpretação da lei, à luz do Direito, não lhe dá poderes, mas, antes de tudo, deveres, posto regido pelo interesse público, indisponível. Há, assim, de se submeter ao inafastável controle judicial e ao controle externo da atividade policial, realizado pelo Ministério Público. Como bem observado, “do gênero à espécie, do poder público ao poder administrativo, sem necessidade de outras indagações, a Administração em nome do Estado assume poderes orgânicos, ou funções que são poderes funcionais tão amplos e determinados que, na dinâmica dos fatos de governo, subordinam à atividade legiferante e à ação judicante ou jurisdicional[15].

Conclui-se, enfim, que a legalidade estrita, no que tange ao limite da Administração Pública ao estrito permitido ou imposto por lei refere-se somente às ações ou omissões administrativas que imponham um ônus ou gravame ao administrado em sede de direito material. Nesses casos, deve sim o Estado quedar-se adstrito aos expressos e literais termos da lei, evitando violar direitos fundamentais dos administrados. Por outro giro, nas questões procedimentais – e aqui se incluem os procedimentos de investigação criminal realizado pela polícia judiciária – há de se reconhecer a importância e a normatividade do princípio da juridicidade, para determinar à Administração Pública o seu dever de atuação imparcial e isento, de acordo com o livre convencimento técnico-jurídico da autoridade policial – princípio da juridicidade, como forma de ser ofertar à sociedade uma resultado apuratório comprometido com a verdade e a justiça do Direito e, assim, com a própria finalidade da investigação criminal, qual seja, a elucidação dos fatos a bem das partes processuais – Ministério Público e defesa.

 

Referências
Baptista, Patrícia. Os limites constitucionais à autotutela administrativa: o dever de observância do contraditório e da ampla defesa antes da anulação de um ato administrativo ilegal e seus parâmetros. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Juiz de Fora – RPGMJF, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 195-217, jan./dez. 2011.
Caetano, Marcello. Manual de direito administrativo. Coimbra: Coimbra Editora, 1951.
Canotilho, JJ. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
Enterría, Eduardo Garcia de. Reflexiones sobre la ley y los principios generales del derecho.  Madrid: Civitas, 1996.
Meirelles. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999.
Maurer, Hartmut. Direito Administrativo Geral. Tradução Luiz Afonso Heck. 14. ed. São Paulo: Manole, 2006.
Mayer, Otto. Derecho administrativo alemán. Tomo I. Parte Geral. Traducción Horacio H. Heredia y Ernesto Krotoschin.  Buenos Aires: Editorial Depalma, 1949.
Siqueira, Galdino. Tratado de direito penal. Parte Geral. Tomo I, Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1947.
Sobrinho, Manoel de Oliveira Franco. Comentários à reforma administrativa federal. São Paulo: Saraiva, 1983.
 
Notas:
 
[1] Enterría, Eduardo Garcia de. Reflexiones sobre la ley y los principios generales del derecho.  Madrid: Civitas, 1996, p. 43.

[2] Baptista, Patrícia. Os limites constitucionais à autotutela administrativa: o dever de observância do contraditório e da ampla defesa antes da anulação de um ato administrativo ilegal e seus parâmetros. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Juiz de Fora – RPGMJF, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 195-217, jan./dez. 2011, p. 199.

[3] Baptista, Patrícia. Os limites constitucionais à autotutela administrativa: o dever de observância do contraditório e da ampla defesa antes da anulação de um ato administrativo ilegal e seus parâmetros. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Juiz de Fora – RPGMJF, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 195-217, jan./dez. 2011, p. 200.

[4] Caetano, Marcello. Manual de direito administrativo. Coimbra: Coimbra Editora, 1951, p. 83.

[5] Enterría, Eduardo Garcia de. Reflexiones sobre la ley y los principios generales del derecho.  Madrid: Civitas, 1996, p. 41.

[6] Marcello Caetano, op. cit., p. 84.

[7] Siqueira, Galdino. Tratado de direito penal. Parte Geral. Tomo I, Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1947, p. 99. 

[8] Mayer, Otto. Derecho administrativo alemán. Tomo I. Parte Geral. Traducción Horacio H. Heredia y Ernesto Krotoschin.  Buenos Aires: Editorial Depalma, 1949, p. 20.

[9] Maurer, Hartmut. Direito Administrativo Geral. Tradução Luiz Afonso Heck. 14. ed. São Paulo: Manole, 2006, p. 122.

[10] Meirelles. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 82.

[11] Canotilho, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 243.

[12] Seguem as razões do veto: “Da forma como o dispositivo foi redigido, a referência ao convencimento técnico-jurídico poderia sugerir um conflito com as atribuições investigativas de outras instituições, previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Desta forma, é preciso buscar uma solução redacional que assegure as prerrogativas funcionais dos delegados de polícias e a convivência harmoniosa entre as instituições responsáveis pela persecução pena”.

[13] Enterría, Eduardo García de. Reflexiones sobre la Ley y los principios generales del Derecho. Madrid: Editorial Civitas, 1996, p. 93.

[14] Como acima já afirmado, a expressão “processo administrativo” é aqui aplicada em sentido lato, amplo, com o alcance de todo e qualquer procedimento em sede de Administração Pública, quer seja ele em contraditório quer seja unilateral, a exemplo das sindicâncias investigativas interna corporis e dos inquéritos policiais, figuras jurídicas investigativas e, assim, desprovidas de relação jurídica em contraditório.

[15] Sobrinho, Manoel de Oliveira Franco. Comentários à reforma administrativa federal. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 14.


Informações Sobre o Autor

Sandro Lucio Dezan

Mestre em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória FDV. Professor Universitário. Delegado de Polícia Federal em Brasília. Coordenador da Escola Superior de Polícia do Departamento de Polícia Federal


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