Resumo: Desde a Constituição Federal de 1988 a democracia brasileira aprimora-se quanto à participação política e formas de representação. A questão em pauta é a Reforma Política. Embora a discussão não alcance a sociedade, nos ciclos acadêmicos e políticos, muitos são os aspectos e linhas de abordagem que, pela variedade e divergência, tornam a discussão complexa. Mas, de forma consensual, apregoa-se que a reforma deve ampliar a democracia no País. Neste artigo, adotando como metodologia a revisão bibliográfica, se discute a Cláusula de Barreira, suas implicações no sistema político, na representatividade e no fundamento constitucional do pluripartidarismo. A conclusão é que a medida como proposta é rígida com impacto no sistema representativo: afetará a vida dos partidos políticos os quais teriam de optar por manter a sua identidade ideológica e histórica e perder seu funcionamento parlamentar, ou se fundirem a outros, como faculta a lei, com riscos de perder sua identidade.
Redemocratização e reforma: à guisa de introdução
O Brasil é hoje uma democracia consolidada, exemplo para o continente latino-americano. Transcorridas mais de duas décadas do processo de redemocratização do país, não se verifica temor algum quanto a um possível retrocesso autoritário.
A redemocratização do país, que remonta a Carta Constitucional de 1988, promoveu a ruptura com o passado ditatorial dando vida a consideráveis avanços no âmbito da participação política. Entre outros, destacam-se o voto para pessoas analfabetas; voto opcional para maiores de 16 e menores de 18 anos; a autonomia dos partidos políticos para definirem sua estrutura, organização e funcionamento, além da criação de instrumentos de democracia direta: plebiscito, referendo e iniciativa popular de lei.
Embora o atual texto constitucional tenha representado um marco rumo à democracia no Brasil, a idéia que o país carece de uma profunda reforma política remonta ao ano de 1993 (AVRITZER; ANASTASIA, 2006, p.11), cinco anos após a promulgação do dispositivo constitucional.
Vale ressaltar que neste caso o constituinte tinha a missão de restaurar a democracia, após anos de autoritarismo político. Os debates posteriores tentam responder a problemas que emergiram depois e alteram o cenário mundial. [1]
Muito se tem discutido no Congresso Nacional e nas academias a necessidade e as conseqüências de uma reforma, todavia, a discussão não se expandiu para os “cidadãos comuns”, que na sua grande maioria desconhece o que reformar, como e para quê fazê-la.
A reforma em marcha
A reforma política pode ser entendida, no dizer de Leonardo Avritzer (2006, p.56), de forma mais restrita, como reorganização de regras para competições eleitorais periódicas, tal como tem ocorrido no Brasil pós-democratização, ou pode ser entendida, também, como uma reorganização mais ampla do sistema político brasileiro.
As recentes modificações na legislação eleitoral, aprovadas na mini-reforma eleitoral pela Lei nº 11.300, de 10 de maio de 2006, com aplicabilidade já em 2006, por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), contrariando o art.16 da Constituição Federal[2], se justificam como uma tentativa de responder a sociedade brasileira após a publicidade da crise de governo desencadeada em meados de 2005.[3]
Como dito, a reforma é assunto recorrente na agenda política nacional. Um levantamento tendo por base dados de 1993 a 2003[4], revela que 21 tópicos, em sete áreas diferentes têm sido alvo de projetos legislativos.
Para que se compreenda a amplitude da matéria basta observar do que tratam os dois projetos de lei elaborados pela Comissão Especial de Reforma Política, em funcionamento na Câmara dos Deputados: filiação partidária, domicílio eleitoral, pesquisas eleitorais, voto em listas partidárias, coligações partidárias, instituições de federações partidárias, financiamento público de campanha e propaganda eleitoral. O texto propõe alterações para a Lei nº 4.737/65 – Código Eleitoral; a Lei nº9.096/95 – Lei dos Partidos Políticos e a Lei nº 9.504/97 – Lei das Eleições.
No âmbito do Código Eleitoral não há maiores polêmicas, já que as mudanças se resumem a meras adaptações às inovações nas leis eleitorais e partidárias.
A adoção da lista fechada, com a pré-ordenação partidária, figura dentre as mudanças mais radicais desta proposta, porque o mandato passa a ser do partido e não mais do parlamentar. Medida já validada para as eleições gerais 2006, foi à proibição de “showmícios”, a qual é considerada medida pedagógica.
As mudanças são amplas, como se pode observar no curso dessa breve elucidação,[5] e de maneira unânime pensam os estudiosos que elas devem ser direcionadas para a ampliação da democracia. Todavia, a nós importa uma proposta em especial: a cláusula de barreira.
Cláusula de Barreira
Na Lei dos Partidos Políticos já começam mudanças com maior profundidade “na vida dos partidos”, como por exemplo, a distribuição de 99% dos recursos do fundo partidário somente aos partidos que, na última eleição para a Câmara, tenham eleito em pelo menos 5 estados deputados e obtido no mínimo 2% dos votos apurados, excluídos brancos e nulos. Também na Lei das Eleições há pontos centrais da proposta de reforma, dentre elas, o financiamento de campanha exclusivamente público.
Segundo o Professor Jairo Nicolau, nos países democráticos reformas nos sistemas eleitorais estão, em geral, visando reduzir o número de partidos – aumentando a desproporcionalidade; ou tornar o sistema mais proporcional – beneficiando os partidos menores. No caso brasileiro, a opção dos projetos pela redução dos partidos é inegável. Portanto, mesmo que a aplicação da proposta seja nova à democracia brasileira, o país não foge as tendências atuais.
A cláusula é hoje, semelhante a cláusula de exclusão, adotada em alguns sistemas eleitorais, como os da Alemanha, Grécia e Argentina. Por ela, um partido é excluído da competição por cadeiras no parlamento e não elege representantes se não superar dado limiar na votação nacional. Esse sistema busca impedir a existência de partidos pequenos com representação parlamentar, os quais dificultam a formação de governos de maioria estável.
Tentou-se sem sucesso no Brasil pós-regime militar (1964-1958) a instituição do referido dispositivo por meio da Emenda Constitucional 25, que modificava o art. 152, parágrafo 1º da Constituição de 1967, a Emenda estabeleceu que não teria direito a representação no Senado e na Câmera o partido que não alcançasse apoio, expresso em votos, de 3% do eleitorado em eleição para a Câmara em pelo menos 5 estados, com o mínimo de 2% do eleitorado de cada um deles. Dispunha ainda o art. 2º que poderiam optar os partidos que não atingissem o percentual por qualquer dos partidos remanescentes.
Efeitos da cláusula de barreira nos partidos pequenos
A cláusula de 5% certamente reduzirá de maneira acentuada o número de partidos representados na Câmara. Para aqueles que resistem à cláusula, reside aqui o principal malefício do mecanismo à democracia brasileira, pois através dele, a representatividade estaria fortemente abalada, além de por em xeque a questão do papel dos partidos de/na oposição.
Nesse sentido existe jurisprudência do Supremo em que foi indeferido a inconstitucionalidade do dispositivo – ADIN nº 1.354-8 e 1.363-7 – o relator da primeira, Ministro Maurício Corrêa, diz que “a norma contida no art. 13 da Lei nº 9.096 não é atentatória ao princípio da igualdade; qualquer partido, grande ou pequeno, desde que habilitado perante a Justiça Eleitoral, pode participar da disputa eleitoral, em igualdade de condições, ressalvados o rateio dos recursos do fundo partidário e a utilização do horário gratuito de rádio e televisão – chamado “direito de antena” – ressalvas essas que o comando constitucional inscrito no art. 17, §3º, também reserva à legislação ordinária sua regulamentação”. A existência dessa decisão, publicada em 18.2.2000, e, da outra ADIN citada, torna sobremodo difícil à prevalência de que a cláusula fere princípios constitucionais.
Indispensável faz-se atentar para a crescente importância dos partidos no processo democrático atual, os quais, no dizer de Pietro Virga (citado por SILVA, 2003, p. 393): “são associações de pessoas com uma ideologia ou interesses comuns, que mediante uma organização estável, miram exercer influência sobre a determinação da orientação política do país”. Por isso, todo partido deveria estruturar-se à vista de uma ideologia comum, por ter a função fundamental de exprimir a vontade popular quando no poder.
É sabido que a função dos partidos de situação, além das que lhes são próprias de todo partido, como a representação ideológica popular, governamental, procurando exercer o poder segundo suas convicções partidárias. Enquanto isso, o partido de/na oposição, além da função de oposição que, segundo Maria E. Carrió (citado por SILVA, 2003, p. 401), consiste em “controlar a função governamental constituindo-se, além disso, numa alternativa válida para substituir o partido majoritário na condução do estado”.
Essa função de que fala Maria E. Carrió
deve ser exercida fundamentalmente pelas minorias parlamentares, e, para que seja eficaz deve garantir-se o direito de crítica e o acesso a toda informação estatal, deve contar, além disso, com meios idôneos para seu exercício, do contrário ela seria reduzida a mera oposição formal (CARRIÓ, citado por SILVA, 2003, p. 401)
Ao dispor que, para ter direito ao funcionamento parlamentar nas Casas Legislativas os partidos alcancem o percentual exigido põe-se termo a atuação partidária. O partido, sem funcionamento mesmo com representantes eleitos não terá acesso aos recursos do fundo partidário, ao horário eleitoral gratuito, à participação na direção da Casa e das Comissões. Somente os partidos que atingirem a cláusula terão direito a uma bancada no Legislativo Federal, com estrutura de liderança, salas e assessores. Cabe lembrar ainda, que somente os partidos com liderança podem pedir a palavra em qualquer tempo em sessões do Congresso e escolher representantes para presidir as comissões de trabalho.
Para sobreviver à cláusula, alguns partidos desistiram de lançar candidato à presidência ou coligar-se nacionalmente para ter liberdade de alianças nos estados e, assim, conquistar os percentuais mínimos de desempenho exigidos pela cláusula de barreira. É o caso de PPS e PV.
Outros preferiram arriscar sozinhos uma chapa nacional na expectativa de fortalecer a sigla, como PSOL, PDT e PSDC. Ainda há uma terceira estratégia dos partidos que, sob o risco de não atingir a cláusula, aliaram-se a campanhas maiores, como o PRB e o PC do B que juntaram-se ao PT para apoiar a reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva.
Há diversos Projetos de Lei em tramitação que modificam as exigências da cláusula de barreira, como o que defende que o percentual de votos exigidos seja reduzido para 2 ou mesmo 1% dos votos nacionais.
Cumpre ainda, destacar que a cláusula não se destina individualmente aos parlamentares eleitos, mas sim aos partidos. Desta forma, o candidato não deixa de tomar posse pelo simples fato de que seu partido não atingiu o percentual da exigido.
Como se pode notar, esse ainda é um assunto controverso.
Considerações finais
Não há que se negar que a reforma é antes de tudo um clamor da sociedade brasileira que anseia por mudanças. É pacífico entre estudiosos, políticos e interessados que ela deva caminhar rumo ao aprimoramento da democracia nacional, compreendendo tanto a direta, quanto a indireta.
Além das manobras políticas comuns à sobrevivência partidária, há o risco do casuísmo quando da aprovação dessas mudanças, dado o anseio social por melhorias. Ante o exposto, a primeira conclusão que nos parece imperiosa que é a cláusula de barreira deva ser estudada e reformulada de maneira a não privilegiar os grandes partidos e extinguir outros partidos de menor porte, pois se há partidos pequenos que nascem e desaparecem de acordo com a oportunidade e conveniência, há outros que inegavelmente tem uma história de longa data e ideologia bem consolidada, como é o caso do PC do B e o PPS, este sucessor do antigo PCB, e o PSB que já participava da cena política desde 1964. Além, claro, de outros partidos mais novos mas de igual modo marcadamente ideológicos, como o PSOL e o PV.
De maneira sintetizada, pode-se afirmar que os partidos de esquerda seriam afetados pela medida, os quais teriam de optar por manter a sua identidade ideológica e histórica e perder seu funcionamento parlamentar, ou se fundirem a outros, como faculta a lei, e perder sua identidade. A cláusula nos parece rigorosa por demais.
É até certo ponto compreensível o fim a que se propõe o dispositivo, que seja, coibir o crescente número de partidos “de aluguel” que por vezes criam obstáculos para a formação de maiorias sólidas em votações de questões relevantes, em última instância, com reflexos na governabilidade. Todavia, o sistema representativo sofrerá grande impacto para mantê-la.
O pluralismo político como fundamento constitucional (art.1º), funda-se não apenas na convivência harmônica de diferentes ideologias, mas também no direito a debates e divergências na solução dos problemas de governo, sem olvidar que o direito da maioria pressupõe o respeito à existência da minoria.
A sensação de que existem muitos partidos no país, sobretudo em períodos eleitorais, não pode se sobrepor à necessária diversidade ideológica e partidária apregoada pela Constituição Federal.
Ao se fazer essa crítica aos efeitos da adoção da cláusula não se faz louvor ao estado atual, outrossim, chama-se atenção para a questão da representatividade. É necessário que a sociedade brasileira processe essas divergências e aproprie-se das escolhas que conduzem a escolhas conscientes e não apenas mediatistas, a fim de que se cultive a civic culture, que no dizer de Bobbio (2000, p. 396) [6], é uma cultura de participação, própria de cidadãos orientados a assumir um papel ativo ao sistema político. Somente essa “cultura cívica” criará atividades políticas vivas e moderadas, e finalmente, conduzirá ao aperfeiçoamento não apenas do sistema político, mas também, da democracia.
Acadêmica de Direito – CEULP/ULBRA/TO
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