Resumo: O presente artigo tem por objetivo trazer à luz do Direito motivo pelo qual a atuação do Movimento pela Reforma Psiquiátrica e dos Direitos Humanos são imprescindíveis no sentido de articular a justiça à saúde mental buscando uma linguagem comum aos vários profissionais envolvidos na questão; permitindo encontrar novas alternativas que privilegiem a autonomia do doente e a Defesa da Dignidade da Pessoa Humana.
Palavras-Chave: Reforma Psiquiátrica Direito Direitos Humanos Saúde Mental
abstract: This article aims to bring the light of the law which is why the work of the Movement for Psychiatric Reform and Human Rights are essential in order to articulate justice to mental health seeking common language to various professionals involved in the issue; allowing you to find new alternatives that favor the autonomy of the patient and the Defense of Human Dignity.
Keywords: Psychiatric Reform Law Human Rights Mental health
Sumário: Introdução. 1. A constituição federal e o meio ambiente: dos excluídos e internados em manicômios. 2. O meio ambiente desequilibrado: indigna qualidade de vida dos habitantes da casa dos mortos. 3. Manicômios jurídicos: medidas de segurança alternativas. 4. A doença mental. 5. Justiça criminal versus direitos humanos. 6. Descasos. 7. Pelo fim dos manicômios: posicionamento da psicologia sobre o tratamento dos transtornos mentais. 8. Psicologia presente. 9. Luta antimanicomial. 10. Avanços e barreiras. 11. UES em questão. 12. Reforma psiquiátrica: desafios da bioética. 13. Terapêutica antimanicomial. 14. Louco infrator e sua situação.
INTRODUÇÃO
O paciente psiquiátrico, tendo cometido injusto penal ou não, merece atenção, tratamento adequado e respeito aos seus direitos. Embora os preconceitos históricos e culturalmente arraigados na sociedade, por vezes, queiram camuflar a realidade, não podemos esquecer que os loucos infratores são, antes de tudo, seres humanos, e que os mesmos, apesar de terem cometidos um delito, podem retornar ao convívio em sociedade com a devida assistência psiquiátrica e social.
O abandono, o duplo e irreversível estigma de loucos e infratores, a falta de redes substitutivas e de apoio aos egressos do sistema, são alguns aspectos responsáveis por torná-los cada vez mais invisíveis e excluídos na sociedade.
A narração alegórica de Rollo MAY[1], denominada "O homem que foi colocado numa gaiola", mas, que também poderia se aplicar a qualquer outra pessoa ou gênero, em resumo, é a seguinte:
"[…] o rei chamou um psicólogo, falou-lhe de sua ideia e convidou-o a observar a experiência… mandou trazer uma gaiola do zoológico e o homem de classe média foi nela colocado… A princípio ficou apenas confuso… À tarde começou a perceber o que estava acontecendo e protestou veemente… Protestava direto ao monarca, mas este respondia… Estamos cuidando de você… As objeções do homem começaram a diminuir e acabaram por cessar totalmente… mas o psicólogo via que seus olhos brilhavam de ódio… O prisioneiro começou a discutir com o psicólogo se seria útil dar a alguém alimento e abrigo, a afirmar que o homem tinha que viver seu destino de qualquer maneira e que era sensato aceitá-lo. Assim, quando um grupo de professores e alunos veio um dia observá-lo na gaiola, tratou-os cordialmente, explicando que escolhera aquela maneira de viver; que havia grandes vantagens em estar protegido; que eles veriam com certeza o quanto era sensata a sua maneira de agir, etc. Que coisa estranha e patética, pensou o psicólogo. Por que insiste tanto em que aprovem sua maneira de viver? Nos dias seguintes, quando o rei passava pelo pátio, o homem inclinava-se por detrás das barras da gaiola, agradecendo-lhe o alimento e o abrigo. Mas quando o monarca não estava presente e o homem não percebia estar sendo observado pelo psicólogo, sua expressão era inteiramente diversa – impertinente e mal-humorada… Sua conversação passou a ter um único sentido: em vez de complicadas teorias filosóficas sobre as vantagens de ser bem tratado, limitava-se a frases simples como: 'é o destino', que repetia infinitamente. Ou então murmurava apenas: 'é'. Difícil dizer quando se estabeleceu a última fase, mas o psicólogo percebeu um dia que o rosto do homem não tinha expressão alguma: o sorriso deixara de ser subserviente, tornara-se vazio, sem sentido, como a careta de um bebê aflito de gases… Tinha o olhar vago e distante e, embora fitasse o psicólogo, parecia não vê-lo de verdade. Em suas raras conversas deixou de usar a palavra 'eu'. Aceitara a gaiola… Estava louco… O psicólogo… Procurando escrever o relatório final, mas achando dificuldade em encontrar os termos corretos, pois sentia um grande vazio interior. Procurava tranquilizar-se com as palavras: 'Dizem que nada se perde, que a matéria simplesmente se transforma em energia e é assim recuperada'. Contudo, não podia afastar a ideia de que algo se perdera, algo fora roubado ao universo naquela experiência. E o que restava era o vazio".
1. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O MEIO AMBIENTE: DOS EXCLUÍDOS E INTERNADOS EM MANICÔMIOS
A Constituição Federal de 1988 fixou os princípios e as especificidades da estrutura constitucional do direito ambiental no Brasil, sendo a primeira a tratar especificamente da questão ambiental. Trouxe um capítulo específico sobre o meio ambiente, inserido no título da "Ordem Social" (Capítulo VI do Título VIII)[2], criando um novo direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Prescreve o art. 225 da Carta Magna, in verbis:
"Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."
Em razão desta inovação constitucional foi criada a Lei nº 8.078/90 que definiu os direitos metaindividuais, distinguindo-os em direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Em seu art. 81, parágrafo único, trouxe o conceito legal de direitos difusos. O meio ambiente é um típico interesse de natureza difusa. Prescreve, in verbis:
"Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e de vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único: A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I.Interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, da natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato."
Analisando as normas legais existentes antes da promulgação de novo texto constitucional, encontramos o conceito de meio ambiental defendido no art. 3ºda Lei nº 6.938/81[3], como sendo o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Esta lei foi recepcionada pela Constituição e, consequentemente, a referida definição foi usada para a interpretação do conceito legal indeterminado adotado pelo art. 225.
Observa-se, portanto, que o conceito legal e doutrinário de meio ambiente é extremamente amplo, o que nos leva à conclusão de que sua defesa se estende a todas as formas de vida, bem como ao meio que as abriga ou lhes permite a subsistência. A Casa dos Mortos não poderia estar à margem desta defesa assegurada, pois há muitas vidas humanas que merecem e dependem de proteção.
Segundo JOSÉ AFONSO DA SILVA[4]:
"O conceito de meio ambiente há de ser, pois, globalizante, abrangente de toda a natureza original e artificial, bom como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arquitetônico. O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas."[5]
Prosseguindo na análise, nos deparamos com a expressão “ecologicamente equilibrado”. Este conceito se refere necessariamente ao local onde a pessoa vive. Conforme ensina CELSO ANTÔNIO PACHECO FIORILLO[6], o direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado necessariamente articula a vida relacionada com o meio, com o recinto, com o espaço em que se vive. [7]
A dignidade da pessoa humana é o princípio constitucional também em outras Cartas Magnas. O art. 1º da Constituição Portuguesa coloca todo o ordenamento jurídico sob sua égide, ao prescrever, in verbis:
"Art. 1º Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana […]”.
Uma vida digna requer uma série de bens que são fundamentais, os quais estão descritos no art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil[8] e definidos por Celso Antônio Pacheco Fiorillo como sendo integrantes de um piso vital mínimo: direito a educação, lazer, segurança, etc., sem os quais a pessoa humana não pode ter uma vida digna. São valores básicos para a existência da pessoa humana.
A qualidade do meio ambiente em que o ser humano vive, trabalha e reside influi consideravelmente em sua própria qualidade de vida. Como afirma José Afonso da Silva:
"A qualidade do meio ambiente transforma-se, assim, num bem ou patrimônio, cuja preservação, recuperação ou revitalização se tornam um imperativo do Poder público, para assegurar uma boa qualidade de vida, que implica boas condições de trabalho, lazer, educação, segurança, enfim, boas condições de bem-estar do homem e de seu desenvolvimento”. [9]
Portanto, conforme determinação constitucional, bens ambientais são todos aqueles considerados essenciais à sadia qualidade de vida. Como afirma Celso Antônio Pacheco Fiorillo:
"O bem ambiental é, portanto, um bem que tem como característica constitucional mais relevante se essencial à sadia qualidade de vida, sendo ontologicamente de uso comum do povo, podendo ser desfrutado por toda e qualquer pessoa dentro dos limites constitucionais'. [10]
2. O MEIO AMBIENTE DESEQUILIBRADO: INDIGNA QUALIDADE DE VIDA DOS HABITANTES DA CASA DOS MORTOS
No tocante à qualidade de vida, dignidade da pessoa humana como preceito básico para garantias fundamentais são aviltados por parte do Poder Judiciário em se tratando de indivíduos que cumprem medida de segurança nas instituições de tratamento psiquiátrico. Um poeta com 12 (doze) internações em manicômios judiciários, narrador de sua própria vida e também de seu destino de morte. Esse é BUBU[11], um homem que desafia o sentido dos hospitais-presídios, instituições híbridas que sentenciam a loucura à prisão perpétua. Quantas e quantas vidas são desperdiçadas nesse insalubre local, verdadeiro depósito de lixos humanos esquecidos pela sociedade, abandonados à própria sorte, aguardando apenas a morte. Dignidade da pessoa humana é algo inexistente na Casa dos Mortos. Aliás, não dá sequer para assegurar que lá haja vida humana, pois quando pensamos em vida imaginamos movimento corpóreo, diálogos, trocas, amizades, amores, enfim, o que é humano e inerente ao ser humano. Este não nasceu para ser tratado como bicho indomável, trancafiado como animal feroz, não temos filhos em nossa pátria que tenham nascido para viver na sujeira, na doença, no descaso. Mas a Casa dos Mortos o destino de todos é o mesmo: a segregação em condições desumanas até que a morte os livre da tortura da vida naquele meio ambiente deprimente.
O poema A Casa dos Mortos foi escrito durante as filmagens do documentário[12] no ano de 2009, no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador[13] – HCT. Revela três histórias em três atos de morte. Jaime, Antônio e Almeirindo são homens anônimos, retirados da sociedade por serem considerados perigosos para a sua vida em sociedade. São seres humanos, homens como nós, pessoas que nasceram, cresceram, tiveram ou deveriam ter uma vida digna e feliz. E essa vida, que deveria ao menos ser sadia, ainda que com restrições típicas da segregação de quem cumpre medida de segurança em internação, é reveladora das maiores atrocidades que já tive conhecimento, ou, que me fora apresentado.
Paredes imundas e descascadas, chão com buracos enormes, poças e poças d'água, marcas espalhadas pelos corredores, a maioria nem lençol possui. Homens dormindo jogados pelos corredores, muitos no chão de pedra. Grades os enjaulam. A parte externa, um pátio sombrio e abandonado. Como são tratados esses indivíduos? A medida de segurança de internação na Casa dos Mortos está distante da qualidade necessária de um meio ambiente sadio, apto a tratar, não digo nem curar, mas ao menos abrigar um ser humano. No Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador há homens mortos fisicamente pelas condições desumanas existentes. Os internados são defuntos sociais quando sobrevivem, pois perdem completamente o vínculo com o mundo exterior. Todos completamente abandonados pela sociedade e pela própria família.
No Brasil, a prisão perpétua é vedada pela Carta Magna consoante disposto no art. 5º, XLVII, b.[14] Na Casa dos Mortos, ela existe. Quem entra raramente sai com vida. Não há tratamento adequado. Os internados tomam apenas medicamentos, as citadas overdoses usuais e ditas legais no poema de BUBU. Não há terapia alguma ou medida alternativa. Não há atividade alguma de cunho social. O destino de quem está na Casa dos Mortos internado, quando não é suicídio, é a internação ad eternum, a forma velada que as autoridades públicas competentes, e incompetentes por consciência, absolutamente inertes diante desta atrocidade, encontram para afastar da sociedade seres humanos infratores doentes, que necessitam de tratamento curativo. Isso não significa tratamento cruel, degradante, aviltante a qualquer ser humano. Nenhum ser humano jamais desejou nascer, crescer, ficar doente mental, ou ainda, gerar um filho nestas condições para sobreviver nestas circunstâncias.
Homens descalços, perambulando desatinados. Não tem o que fazer. Condições higiênicas não existem. Homens barbados que parecem bárbaros, como unhas cumpridas e sujas como animais ferozes. Roupas penduradas em varais improvisados dentro das próprias celas. Isto é a Casa dos Mortos.
Almeirindo Nogueira de Jesus. Um dos habitantes da Casa dos Mortos. Internado no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador desde o dia 02 de novembro de 1981. Crime praticado[15]: lesão corporal de natureza leve. Como infringiu a lei penal?
Atirou uma pedra para roubar uma bicicleta, que foi reavida pela vítima. Tempo de internação fixado pelo magistrado na sentença: dois anos. Almeirindo é o retrato do abandono. Poucos dentes na boca, olhar disperso, nem seu nome soube informar. Quando indagado sobre sua identidade, apresentou-se como o governador dos Estados Unidos. Diz não ter casa, não ter família. Afirma, quando lhe perguntam, se deseja ir embora: "Almeirindo já morreu".
Esse é o meio ambiente que abriga os doentes mentais infratores e internados em Salvador: um meio ambiente ecologicamente desequilibrado, sem qualidade de vida e utópico piso vital mínimo.
O Brasil conta com aproximadamente 4.500 (quatro mil e quinhentos) seres humanos, entre homens e mulheres, internados em cumprimento de medidas de segurança em total desarmonia com as regras mandamentais comentadas. Quantos e quantos Almeirindos estão por aí cumprindo a inconstitucional prisão perpétua, apenas à espera da morte…
3. MANICÔMIOS JURÍDICOS: MEDIDAS DE SEGURANÇA ALTERNATIVAS
A internação de inimputáveis em manicômio judiciário quando cometeram fatos definidos como crimes não é como se poderia reputar, prática universalmente difundida por SEELING (1956).[16] Aliás, FONTAN BALESTRA (1970)[17] observa que três sistemas foram sugeridos para tratamento destes doentes mentais: assistência em manicômios, a submissão ao regime dos alienados comuns ou internamento em sanções especiais de manicômios comuns. A primeira solução foi a acolhida pelo legislador de 1940, tendo sido igualmente recepcionada pelos Anteprojetos do CÓDIGO PENAL e de EXECUÇÃO PENAL (1981). A sua conceituação doutrinária vem bem posta em ANIBAL BRUNO[18]: "o manicômio judiciário é, na realidade um hospital especializado, dirigido por médico alienista e onde a execução da medida se cumpre debaixo de processos terapêuticos". E mais, "toda a sua organização visa atender ao fim do tratamento, sob condição de segurança, mas evitando-se tudo o que possa sugerir o caráter de prisão". Viu-se, assim, transferido para o ideário do tempo a submissão do louco criminoso a um processo pretensamente curativo e humanitário, sob a estrita orientação de médicos.
A fórmula filantrópica, contudo, veio prenhe de um conteúdo que a estranha de si mesmo, como a série de depoimentos científicos transcritos neste item estão a sugerir. A loucura insere-se, juntamente com a mendicância, a vadiagem e a prostituição, na larga faixa de desordem inconveniente que deve ser controlada pela ordem. Daí que serão "objeto de uma estratégia de disciplinarização, primeiro no grande enclausuramento" e, "cada uma por sua vez, objeto de estratégias específicas, sanitárias, psiquiátricas, beneficentes e assim por diante. Em cada caso, a especificidade da estratégia depende da produção de uma estratégia específica e de uma doutrina apropriada". GUILHON ALBUQUERQUE (1978[19]).
FOUCAULT (1978)[20] diz que, já no século XVIII, a "exclusão dos loucos assumirá um outro sentido: não mais marcará a grande censura entre razão e desatino, nos limites últimos da sociedade, mas, do próprio interior do grupo, traçará uma espécie de linha de compromisso, entre sentimentos e deveres, entre piedade e horror, entre assistência e segurança. Nunca mais terá esse valor de limite absoluto que havia herdado das velhas obsessões, e que havia confirmado, nos temores abafados dos homens, ao retomar de uma maneira quase geográfica o lugar da lepra. Agora, essa exclusão deve ser antes medida do que limite, e é a evidência dessa nova significação que torna tão criticadas os 'asilos franceses, inspirados nas leis romanas'; como efeito eles só aliviam o temor público e não podem satisfazer a piedade, que exige não apenas a segurança, mas ainda cuidados e tratamentos que muitas vezes são negligenciados e à falta dos quais a demência de uns é eterna, quando se poderia curá-la, e a de outros se vê aumentada quando poderia diminuí-la". Veja-se SZAZS(1978)[21] "Como meio de controle social e de afirmação situalizada da ética social dominante, a Psiquiatria Institucional mostrou ser uma sucessora digna da Inquisição".
Na mesma linha, CASTEL (1978): [22] "esta crítica da ideologia e da 'democracia terapêutica' toma todo o seu sentido quando permite alcançar a representação da função global assumida pela instituição: 'construir um outro mundo, estanque, onde seria confinada a loucura'. Aliás, no mundo normal, nada senão a razão, senão o bom senso – no asilo, nada de sensato. As grades do asilo separam, demarcam: fora, o normal; dentro, o patológico".
As censuras à psiquiatria ortodoxa e repressiva surgem com LAING (1972)[23] e COOPER (1967)[24], destacando este que "se quer falar de violência em psiquiatria, a violência que brada, que se proclama em tão alta voz que raramente é ouvida, é a sutil, tortuosa violência perpetrada pelos outros, pelos 'sadios', contra os rotulados de loucos. Na medida em que a psiquiatria representa os interesses ou pretensos interesses dos sadios, podemos descobrir que, de fato, a violência em psiquiatria é preeminentemente a violência da psiquiatria".
A crítica à instituição total veio formulada por GOFFMAN (1974), [25] a evidenciar que a equipe dirigente volta-se, basicamente, para o controle social. Na demonstração, cita um estudo comunitário realizado em um hospital psiquiátrico: "o objetivo principal dessa cultura auxiliar é conseguir o controle dos pacientes – um controle que deve ser mantido, independentemente do bem estar do paciente. Este objetivo fica claro com relação aos desejos ou pedidos apresentados pelos pacientes. todos esses desejos e pedidos, por mais razoáveis que sejam, por mais calmamente que sejam apresentados, ou por mais educadamente que sejam formulados são considerados como prova de doença mental. A normalidade nunca é reconhecida pelo auxiliar que trabalha num ambiente em que a anormalidade é a expectativa normal. embora quase todas essas manifestações comportamentais sejam descritas aos médicos, estes na maioria dos casos confirmam os julgamentos dos auxiliares. Dessa forma, os médicos tendem a perpetuar a noção de que o aspecto fundamental do tratamento dos doentes mentais é seu controle".
A psiquiatria manicomial ou psiquiatria adaptativA – repressiva tem sido negada por vários autores, como MOFFATT (1980)[26]: "Tudo está organizado para uma melhor vigilância por parte do enfermeiro que cumpre funções policiais, em vez de terapêuticas" e "os psicofármacos são atualmente o principal instrumento psicoterapêutico nos hospitais (e também na clínicas privadas). Ao serem utilizados em doses maiores que as recomendadas servem, fundamentalmente, como 'camisas-de-força química' para o paciente. É uma técnica pulcra, sem a imagem da violência física contida na camisa-de-força, na ducha fria, ou nas convulsões provocadas pelo choque elétrico. A violência vem depois de ser corpo, é que desesperante violência, que é exercida desde o interior de sua pessoa". Cons. DJALMA BARRETO (1978).[27]
Com esses parâmetros, natural que o tratamento institucional não chegasse a bom termo quando à cura. De fato, "essa ciência cujo resultado paradoxal foi o de inventar um doente através do uso de parâmetros inventados para curá-los (BASAGLIA) só secundariamente chega a reabilitar os sujeitos que lhe são confiados, mas é completamente bem sucedida na tarefa de neutralizá-los, justificando, através de racionalizações científicas a necessidade dessa vigilância, consequência de uma exclusão social da qual se torna instrumento". Castel, 1978. Da mesma forma BOSSEUR 1976[28]: "encurralados nos pavilhões dos hospitais psiquiátricos, eram praticamente abandonados, com exceção dos cuidados corporais. Levavam aí uma vida vegetativa, confundidos com paredes do manicômio, encerrados em celas acolchoadas quando se agitavam. O outro infortúnio, para eles, era a barreira levantada entre eles e os outros; nenhuma referência teórica, ou muito poucas que permite chegar-se a uma terapia eficaz. FREUD[29] condenara-se ao narcisismo e à regressão; KRAEPELIN[30], à demência evolutiva".
BASAGLIA 1978[31] – é contundente em sua conclusão: "o manicômio não faz mais que pegar essas pessoas indesejáveis, e comprimi-las nas instituições, numa espécie de morte civil. Essa ainda é a terapia dos manicômios".
ARTAUD[32], na sua genialidade, antes de tudo e de todos, sintetizou que: "o hospício de alienados, sob o amparo da ciência e da justiça é comparável à prisão", e observou com precedência vivida sobre a antipsiquiatria, aos diretores de asilos que "as leis, os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição, soberana e terrível, vocês a exercem com o raciocínio". Para concluir: "a credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes atribui à psiquiatria estranhos poderes sobrenaturais. Antes de ser julgada, a sua profissão já tem ganho de causa".
Em resumo, e como decorre desta coleção de depoimentos, mesmo sem que se tenha que tomar posição quanto a uma antipsiquiatria, o tratamento institucional não mais pode ser aceito, a não ser como exceção.
Repressão, controle e sofrimento parecem ser as suas marcas mais características. Ou, em outros termos, apresenta as metas informais dos presídios como prioritárias em detrimento de cura, o que invalida definições como as de Anibal Bruno.
Reeditou-se a perda da paz como a expulsão do grupo na metáfora com o imputável: "o condenado é maldito (saceresto), e, sofrendo a pena, é objeto da máxima reprovação da coletividade, que o despoja de toda proteção do ordenamento jurídico que ousou violar". FRAGOSO, 1980.[33]
O mais grave, por isso, em relação aos manicômios judiciários, é que se converteram na negação definitiva dos direitos dos internados.
A medida de segurança afastou-se de seus desígnios meramente doutrinários, finalisticamente curativos. Converteu-se, na prática, em prisão, sem as suas garantias, e em pena indeterminada.
Tornou-se, na sua execução, o ponto mais crítico do sistema penal, como os manicômios postos à margem de qualquer pensamento, transformados em ilhas para contenção dos desterrados, dos banidos e dos proscritos.
Ao quadro dantesco de doença mental somou-se a incúria, o descaso, o desatendimento aos princípios hospitalares e de tratamento. E a isso, numa aritmética de conveniência, adicionou-se a postergação, mais do que nos presídios, dos direitos humanos, numa sistemática onde apenas à administração tudo é permitido.
Hoje pugna-se por uma definição dos direitos do preso, sem que igual luta se distenda até aos internados nos manicômios judiciários. Esquecidos estão como se a loucura fosse o equivalente à perda da cidadania de homem.
Foram na realidade, arremessados ao limbo jurídico, onde o fato substitui o Direito que, enevoado, se esvai em formas indefinidas.
Os inimputáveis e perigosos assim declarados por sentença condenatória (SÉRGIO PITOMBO, 1981[34]), não são automaticamente, interditos curatelados, a não ser que se sobreponham ao devido processo civil (CLOVIS BEVILACQUA, 1933[35]; WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, 1958[36]).
Em consequência, estão internados por considerarem loucos e perigosos, mas retendo quase sempre a plena capacidade para a vida civil, mergulhados no estatuto da insegurança.
A psiquiatria, atualmente, começa a invadir o país jurídico (ZAFFARONI, 1979[37]; MANTOVANI, 1979[38]), inserindo a dúvida quanto à conveniência integral dos manicômios judiciários, noticiando FRAGOSO, 1977[39] que: "sustenta-se hoje a necessidade de abolir a hospitalização involuntária".
Os Antiprojetos de Código Penal e de Lei de Execução Penal – 1981, contudo, mantiveram a velha e duvidosa tônica, resumindo a medida de segurança para inimputáveis no internamento compulsório em manicômio judiciário.
O equívoco consiste em que, na maioria dos casos, esta internação não será, certamente, recomendável, apenas servindo para agravar a situação do doente.
Com as prisões, e mais do que elas, os manicômios estão em crise, embora nem sempre o assunto seja abordado, por inconveniente, já que, entre outros motivos, se teme o tratamento não institucional, por incompatível com o controle social.
À evidência, estipulam-se prazos legais mínimos para a internação, a partir dos quais, como a prática comprovou, ela se converte em indeterminada ao alvedrio de fugitiva perícia médica. Serve apenas para manter o doente de forma cômoda para todos, longe do convívio reputado normal.
Tais prazos são, na realidade, meras presunções de periculosidade, evidenciando, também, que a medida de segurança não se desvinculou senão nominalmente da pena. Permanece ligada à ideia de proporcionalidade com bem jurídico lesado e ao castigo, desatenta ao seu sentido médico.
O internado, afinal, não é um criminoso, mas sim um doente mental, tendo o Estado o dever de lhe propiciar a cura sem a incidência de qualquer carga repressiva ou aflitiva.
A medida de segurança para inimputáveis não pode se reduzir ao tratamento manicomial. Alternativas, como em relação à pena privativa de liberdade, devem ser examinadas, pois, de outra forma estar-se-á confessando o seu sentido único de clausura e de confinamento.
O objetivo de cura para ser reinstaurado, deve cobrir, ao menos, as possibilidades alternativas das comunidades terapêuticas e do tratamento ambulatorial.
Não se contesta que a internação em manicômio judiciário, atentando-se à periculosidade do agente para ele e para terceiros, possa ser necessária e conveniente em certos casos. O que não se aceita, porém, é a estipulação abrangente, que a ninguém excepciona, numa ausência integral de individualização de tratamento.
A internação desnecessária ou por tempo desnecessário apenas piorará o estado do recolhido, evidenciando que se preferiu um jogo que beneficia aparentemente, a segurança social com olvido de que esta só existe quando se tutela cada um.
O Antiprojeto de Lei de Execução Penal 1981 guardou um Capítulo para os direitos do internado, numa inovação com a qual procurou suprir a imensa lacuna, anotando no artigo 137 que ele conserva os inerentes a sua condição humana e jurídica, observadas as restrições decorrentes da sentença e da lei.
Entendo, agora, que o dispositivo deve ser melhorado, como a inscrição de que o inimputável conserva todos os direitos não atingidos pelo tratamento, a rigor única restrição que se lhe pode impor se não tiver sido interditado. E mais, que possui o direito ao tratamento médico correto e ajustado ao seu caso.
Fragoso (1977), aliás, consigna a tendência de dar-se: "aos pacientes dos hospitais psiquiátricos os mesmos direitos e privilégios que possuem os internos nas demais instituições hospitalares" sendo que "na França, algumas organizações tem-se destacado na luta pelos direitos dos internos e pela transformação do sistema".
Tudo isso ainda não retira o internado da situação de abandono em que se encontra. Desamparado o é, mas não apenas por parte do Estado: "nossa cultura, com seu horror ao desvio do que ela chama de 'normalidade' realmente 'enterra' psicologicamente os doentes mentais. PICHÓN REVIÈRE[40] comprovou a imediata reorganização da família depois que o depositário de loucura familiar (que ele chama de 'bode expiatório') é segregado num hospício: vendem sua cama, alugam seu quarto, 'apagam-no' como se faz com morto". Moffat, 1980.
Essas são sugestões, das muitas possíveis, para que a medida de segurança aplicada aos inimputáveis não seja tão só a simulação da pena.
4. A DOENÇA MENTAL
Impende destacar o histórico da doença mental, no qual Djalma Barreto (1978) aponta como marco inicial os estudos de Michel Foucault sobre a loucura em que se dimensionou o lado psicológico e o social da doença mental. Nas palavras de Foucault 2005, "o louco é reconhecido, pela sociedade como estranho, a sua própria pátria; ele não é libertado de sua responsabilidade; atribui-se a ele, ao menos sob as formas do parentesco e da vizinhas cúmplices, uma culpabilidade moral; é designado como sendo o Outro, o Estrangeiro, o Excluído". Logo, entende-se na obra de Foucault, que na Idade Clássica, a postura adotada com os doentes mentais e delinquentes era a internação, não cabendo outra medida.
Não obstante, Djalma Barreto prossegue ressaltando que no século dezenove muitos foram os estudos sobre anatomia e fisiologia do cérebro, mas não se chegou a uma resposta em concreto, predominando a discordância, in verbis:
[…] na área da terapia do espírito, lavrados entre os adeptos do tratamento psicológico e fisiológico, converteram-se em guerra declarada como o advento das Escolas de Salpétrière e Nancy[41], atingindo seu clímax após as descobertas de Brown-Séquard[42] no setor da endocrinologia, HughlingsJackson[43] na neurologia, Wilhelm Griesinger[44], Emil Kraepelin e Wagner-Jauregg na psiquiatria, Freud, Jung, Adles e Melaine Klein na psicanálise.
Por sua vez, MOREIRA, NOVO e ANDRADE (2004)[45] tecem uma análise contemporânea sobre a loucura, corroborando as falas de Focault, in verbis:
"Pode-se observar que as formas de lidar com os loucos migraram de um procedimento visivelmente agressivo e coercivo para um tratamento moral, não menos punitivo. Se os procedimentos de lobotomia, ducha fria, sangrias, etc representam certo avanço tecnológico, o tratamento moral esteve presente, de forma silenciosa, na evolução tecnológica psiquiátrica, com base na sintomatologia da doença mental. Os locais privilegiados da atenção e tratamento foram os hospitais psiquiátricos que serviram à exclusão e afastamento. Este dispositivo asilar manteve a sociedade afastada e estrategicamente protegida, e de certa forma, indiferença a ideia de outras alternativas para questões que envolviam o louco e a loucura".
Diante disso, quando se debate a doença mental se abre inúmeros questionamentos, na área penal, o recorte é feito segundo GAUBER (2006), deste modo:
O termo "doença mental", no campo penal engloba todas as alterações mórbidas da saúde mental, independentemente da causa, referindo-se tanto as psicoses endógenas ou congênitas (esquizofrenia, paranoia, psicose maníaco-depressiva) ou exógenas (demência senil, paralisia geral progressiva, epilepsia), como também às neuroses e os transtornos psicossomáticos.
A doença mental na senda criminal é ligada a imputação jurídica do indivíduo, ou o estado psicológico no momento da conduta, razão e o livre-arbítrio, que são afastados quando o agente apresenta transtorno mental. O país adota o critério biopsicológico, e que a inimputabilidade leva em consideração o seu desenvolvimento mental (aspecto biológico) e, em razão deste, a noção do caráter ilícito do fato ao tempo da ação ou omissão (aspecto psicológico). O sistema punitivo brasileiro ao atribuir a responsabilidade penal, trabalha com conceitos de imputabilidade, inimputabilidade e imputabilidade diminuída. Sublinhe-se que imputar a um indivíduo a loucura e em atribuir a sanidade é tarefa do Estado legislador.
Por esta forma, imperiosa a lição do FERNANDO CAPEZ (2004), [46] em que a imputabilidade é a capacidade de entendimento acerca da ilicitude do fato e em razão disto, se determinar de forma divergente, não havendo previsão legal. Destarte, para aplicação da inimputabilidade, a imputabilidade somente se exclui se, ao tempo da ação ou omissão, o agente, em razão de enfermidade ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, aos moldes do artigo 26 do código Penal[47]:
“Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Parágrafo único – A pena pode ser reduzida de um a dois terços se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.”
Ad argumentandum, Djalma Barretos (1978), sustenta que a maior parte dos psiquiatras não conhece o conceito de periculosidade, que ao ser questionado pelo juiz, acerca da condição de saúde mental do réu, se este apresentar perigo à sociedade, o médico responde afirmativamente, por receio de ser responsabilizado por qualquer desatino que o sujeito em análise pudesse cometer longe de um tratamento interventivo hospitalar, deixando evidente que a função dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico é contraproducente.
Insta esclarecer, que essa situação caótica se dá por conta de fatores históricos, segundo GAUBER (2006), no Brasil o primeiro hospício foi inaugurado no Rio de Janeiro em 1841, lastreado nos ideais de ESQUIROL[48] que separava o louco da sociedade e da família, agindo em consonância com o Código Penal de 1830, ao qual aplicava aos loucos infratores o destino de serem entregues às famílias ou casas com esse fim, mas não havia no país ainda a noção de encarceramento, surgida em 1903, com a Lei do Alienado, que estabeleceu o hospital como o único local a ser destinado ao louco, desde que houvesse um parecer médico.
No tocante ao exposto, pertinente citar o relatório de 2005 da Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental do Ministério da Saúde (2005), o qual sustenta sobre a Reforma Psiquiátrica:
“[…] é processo político e social complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos governos federal, estadual e municipal, nas universidades, no mercado dos serviços de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoas com transtornos mentais e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário social e da opinião pública. Compreendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, é cotidiano da vida das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios”.
Obviamente, é nítida a luta pela afirmação dos direitos dos que padecem de doença mental, não se permitindo afastar os direitos humanos, sociais e a cidadania deste grupo. Dessa feita, é de suma importância o debate desta temática de uma forma multidisciplinar pela natureza complexa que os casos demandam, devendo haver um trabalho em redes dos seus atores, no campo penal e indiscutivelmente na área da saúde.
Nessa oportunidade, cabe citar a legislação que disciplinou de forma enfática os direitos e a proteção as pessoas acometidas de transtorno mental, in verbis:
“Art. 1º. Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.” (grifo nosso).
O artigo supracitado evidencia a preocupação constitucional moderna, qual seja a construção de uma sociedade fraterna, solidária e pluralista, neste sentido leciona JOSÉ AFONSO (2009),[49] "A Constituição opta, pois, pela sociedade pluralista, que respeita a pessoa humana e sua liberdade". Em síntese, as demandas atuais pedem uma solução de conflito equilibrada, respeitando os direitos fundamentais das partes envolvidas nas tensões advindas das relações sociais, preocupando o legislador com o tratamento do transtorno mental diante da inércia social a respeito.
Nesta senda, PAULO DELGADO (2010), [50] ressalta:
“A sociedade recria normas para definir o que rejeita e consagra. Faz-se progressista na área da saúde por atitudes, mais do que por atos. Assim, inscrever o doente mental na história da saúde pública, aumentando sua aceitação social, diminuindo o estigma da periculosidade e incapacidade civil absoluta, contribui para elevar o padrão de civilidade da vida quotidiana. A doença mental não é contagiosa, dispensa isolamento. Não pode ser compreendida orgânica apaziguada só pela quimioterapia e os remédios. Claro, é o avanço da medicina e da farmacologia que permite a reinserção social, convivência, restituindo o indivíduo, sua alma e desejos, ao mundo dos vivos. A medicina não deve adotar uma padrão de encarceramento, para ampliar a solidão moral do paciente como se sua doença criasse para ele um mundo de não direito”. (grifo nosso).
Delgado (2005) obtempera: "não há sucesso médico-terapêutico sem afeto, cultura, história da doença, escuta do sofrimento, subjetividade". O que não acontece na prática, pois o que ocorre é uma forma de assepsia social, desrespeitando as conquistas históricas no campo dos direitos humanos. Imperando um sistema de justiça criminal meramente simbólico, que por seu turno visa enclausurar o louco infrator, submetendo-o a um "tratamento" desumano, afastando-o da família, da sociedade, e ao invés de fornecer um modelo terapêutico, aplica uma forma de "pena", tanto ou mais severa do que regime prisional, por meio da medida de segurança, não tendo a menor acuidade com as especificidades que a doença mental exige do judiciário.
5. JUSTIÇA CRIMINAL VERSUS DIREITOS HUMANOS
No que se refere ao sistema de justiça criminal e direitos humanos, a primeira cizânia é quanto ao término da medida de segurança, que em alguns casos fere a Constituição Federal e no que tange à execução de penas privativas de liberdade, o Código Penal Brasileiro, preceitua:
“Art.75, § 1º.Quando o agente for condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superior a 30 (trinta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo”. [51]
Portanto, ainda que seja condenado a uma soma de 100 (cem) anos, o agente cumprirá no máximo 30 destes. Em esclarecimento ao referido artigo, o Supremo Tribunal Federal apresenta o seu posicionamento:
O Código Penal não proíbe que a pena privativa de liberdade a ser imposta possa ser superior a trinta anos, mas, sim, que o seu cumprimento não pode exceder a esse limite, ou seja, pode haver condenação a mais de trinta anos, mas a duração da execução da pena não pode ser superior a trinta anos, sendo para esse fim a unificação das penas a que alude o §1º do artigo 75 do referido Código. Habeas corpus indeferido.[52]
A Suprema Corte advoga a tese da inadmissibilidade do cumprimento de pena superior a (30) trinta anos, logo, no tocante à medida de segurança, ressalta-se que o agente cumpre sua execução em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, sujeitando-se a um laudo médico de avaliação do desenvolvimento de suas capacidades mentais durante a medida. Cuida da matéria o Código Penal, in verbis:
“Art. 97, §1º. A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser 1 (um) a 3 (três”.[53]
Mas há uma lacuna quando ao período máximo de duração destas medidas.
Ora, é notório que o Estado se constitui no respeito à pessoa humana, logo, é inconcebível aplicar ao paciente um tratamento pior ao que estava submetido, isso não resolve o problema. O sistema público no que concernem as doenças mentais é eminentemente teórico e utópico o raciocínio que leva a crer na efetividade da cura do paciente com a aplicação da medida de segurança, pois esta não é um meio eficaz. É incontestável que o regime de internação piora a condição do doente, o que justificou a edição de novo diploma legal que proíbe a criação de novos manicômios públicos, a Lei 10.2016/01[54], mas que infelizmente fez e ainda faz vista grossa aos loucos infratores.
Viceja grande discussão o modelo médico e a hospitalização psiquiátrica, nessa esteira pontua Ervin Goffman (2007):
“Os doentes mentais podem descobrir-se numa "atadura" muito especial. Para sair do hospital, ou melhorar sua vida dentro dele, precisam demonstrar que aceitam o lugar que lhes foi atribuído, e o lugar que lhes foi atribuído consiste em apoiar o papel profissional dos que parecem impor essa condição. Essa servidão moral auto alienadora, que talvez ajude a explicar porque alguns internados se tornam mentalmente confusos, é obtida em nome da grande tradição da relação de serviço especializado, principalmente em sua versão médica. Os doentes mentais podem ser esmagados pelo peso de um ideal de serviço que torna a vida mais fácil para todos nós.”
Em outra obra o autor relata sobre a estigmatização que sofrem certos grupos, dentre eles os criminosos:
Deve-se haver um campo de investigação chamado de "comportamento desviante" são os desviantes sociais, conforme aqui definidos, que deveriam, presumivelmente, construir o seu cerne. As prostitutas, os viciados em drogas, os delinquentes, os criminosos, os músicos de jazz, os boêmios, os ciganos, os parasitas, os vagabundos, os gigolôs, os artistas de show, os jogadores, malandros das praias, os homossexuais, e o mendigo impenitente da cidade seriam incluídos. São essas as pessoas consideradas engajadas numa espécie de negação da ordem social.
Em suma, o autor afirma que a sociedade forma um grupo, e, este é segregado, nesse sentido o tratamento dado ao louco infrator não funciona, na verdade o sistema de justiça criminal é ineficaz, tendo total razão à professora VERA REGINA DE ANDRADE (2007)[55]:
“[…] o SJC caracteriza-se por uma eficácia simbólica (legitimadora) confere sustentação, ou seja, enquanto suas funções declaradas ou promessas apresentam uma eficácia meramente simbólica (reprodução ideológica do sistema), porque não são e não podem ser cumpridas, ele cumpre, lentamente, outras funções reais, não apenas diversas, mas inversas às socialmente úteis declaradas por seu discurso oficial, que incidem negativamente na existência dos sujeitos e da sociedade.”
O Sistema de Justiça Criminal (SJC) não resolve os problemas expostos, ao contrário, legitima a estigmatização apontada por Goffman, mantendo os doentes mentais atados, tal qual, alegou em citação apresentada o autor em comento. ANTÔNIO DE PÁDUA E DANIEL MARTINS (2010) levantam a seguinte elucubração: "no Brasil e no mundo está comprovado que a mera redução dos leitos psiquiátricos acaba por criminalizar os pacientes, que, sem estrutura hospitalar adequada, terminam sendo presos por aparelhos policiais". Observa-se o descuidado com o louco infrator, que não é tratado com humanidade, sendo excluído do paciente o convívio social confinando-o em hospitais psiquiátricos e manicômios.
A título de esclarecimento PAULO MICHELO (2010), complementa o argumento supracitado:
“[…] a nossa luta é para que os gestores públicos das três esferas de governo (municipal, estadual e federal) assegurem os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, mediante efetiva implementação dos serviços substitutivos em todo o País, dando-se, assim, cumprimento ao princípio da dignidade da pessoa humana.”
Contempla-se uma grande luta pelo fim dos manicômios, mas a situação é ainda mais complicada, quando o assunto se refere ao louco infrator. CARMEM SILVIA (2010) relata que: "não sem razão o Movimento Antimanicomial, ter chamado o manicômio judiciário de 'o pior do pior'. Não sem razão a Lei da Reforma psiquiátrica, ainda não se ter estendido a essas pessoas". Ou seja, a questão da doença mental é muito polêmica, nas palavras da estudiosa, em comento:
“Os loucos custodiados pelo Estado em razão da prática de crimes são seres submetidos a um mundo com signos e regras próprias, que devem desvendar e compreender e aos quais, em que pese o direito ao tratamento adequado e necessário não ser respeitado, devem se submeter, de preferência sem questionar, ainda que seja tão somente para conseguirem continuar vivos. Sem que ninguém lhes explique a situação irreal pela qual passavam. Como se, por serem loucos, não tivesse qualquer direito – estivessem jogados à própria sorte e a doses de Habdol e Fernegan (quando há).”
Nota-se que mesmo após 12 (doze) anos do Movimento de Luta Antimanicomial, os Hospitais de Custódia e Tratamento penitenciário, continuam apresentando as mesmas mazelas de outrora, tratando os internos de forma desumana.
A Comissão da Ordem dos advogados do Brasil (OAB) aponta o principal óbice a falta de fiscalização nessas unidades hospitalares e também a falta de divisão dos internos para qualificar de que transtorno mental cada um padece, afim de que sejam tratados os que padecem de problema neurológico de forma divergente dos que sofrem de doença mental.
Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), realizou multirão para apurar as irregularidades dos manicômios. O juiz auxiliar da presidência do CNJ, Dr. Mário André Kepple Fraga, argumentou que:
“[…] a solução para os problemas em instituições psiquiátricas de custódia "não é apenas jurídica", e deve incluir parcerias com as áreas de saúde e direitos humanos. "Temos que trazer para a cena esse problema que não tem visibilidade muito boa, e é um problema sério, de saúde pública, de segurança pública”. (Observatório de Saúde Mental& Direitos Humanos, 2010).
Nota-se que o tema em voga é fundamental à saúde e à segurança pública, haja vista, o funcionamento atual dos manicômios continuarem aviltante ao disposto nos direitos humanos, constituindo um óbice a cidadania.
Se a situação dos estabelecimentos prisionais no país já é vergonhosa, quando se trata de presos com doença mental é ainda mais estarrecedora.
6. DESCASOS
No livro DesCasos[56], há duas histórias que ilustram bem essa situação. O caso abaixo contado pela advogada Dra. Beatriz Rizzo – e por ela atendido com a dedicação e a competência que lhe são peculiares, é mais um exemplo surrealista do Descaso absoluto com que são tratados os doentes mentais no Brasil.
Na Casa de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté, onde estava internado, ninguém sabia o seu verdadeiro nome. Alguém o "batizou" de Pilar, provavelmente em razão de seus traços hispânico-indígenas. Também se desconhecia sua idade e origem. Sabia-se apenas que ele não era brasileiro.
Depois de três anos, a internação era renovada anualmente a requerimento do Ministério Público, que, por sua vez, baseava-se nos pareceres psiquiátricos, psicológicos e da assistência social (!!!), idênticos ano a ano. Segundo os "expert", ele não entendia nem correspondia aos tratamentos e "ficava irritado" durante as entrevistas, o que, para eles, significava a manutenção de uma suposta periculosidade. E assim se passaram nada menos que 10 (dez) anos, até que a Dra. Beatriz Rizzo o conheceu…
Havia, porém, um "pequeno detalhe", aparentemente não levado em conta ao longo dos anos pelos peritos. Ministério Público, juízes e até mesmo pela "defesa" que ele tinha até então (que, ano a ano, limitava-se uma única frase, desprovida de argumento): além de estrangeiro, Pilar era surdo-mudo!
Como poderia ele compreender e responder aos tratamentos? Que pessoa dita normal não se irritaria diante das entrevistas que insistiam em fazer, apesar do "pequeno" problema de comunicação? No entanto, via-se periculosidade loucura onde havia evidente sinal de lucidez.
Levou um ano para que finalmente o juiz competente reconhecesse a óbvia necessidade de um profissional habilitado a se comunicar com surdos-mudos como parte do tratamento. Oficiada a casa de Custódia, chegou a resposta: não dispunham desse tipo de profissional, nem tinham condição de providenciar um.
Mais de um ano passado, Pilar foi desinternado e transferido para um hospital comum, para finalmente, ser tratado como ser humano. Pilar estava livre. Quanto a seus direitos, ninguém sabe.
Coisa do passado? Infelizmente, não. O descaso com os doentes mentais continua. Recentemente, SOS Liberdade (nome do multirão do IDDD– Instituto de Defesa do Direito de Defesa) encontrou um morador de rua inimputável[57] levado ao Centro de Detenção Provisória de Pinheiros junto a presos comuns. A acusação? Prisão cautelar. No dia 12 de outubro de 2011 ele foi preso na estação República do metrô tentando cortar placas de alumínio. Como ele era reincidente (circunstância, aliás, comum em dependentes químicos, que, não raro, cometem crimes desse tipo para sustentar o vício), a prisão em flagrante foi convertida em preventiva. [58]
Os competentíssimos advogados Dr. Marcelo Fellere Dr. Michel Herscu impetraram um habeas corpus e, em magnífico acórdão relatado pelo Desembargador Figueiredo Gonçalves, devolveu-se a liberdade ao réu.
Permanece, no entanto, a questão: até quando vamos pensar que problemas sociais e de saúde pública se resolvem com o cárcere? Quando vamos evoluir?
7. PELO FIM DOS MANICÔMIOS: POSICIONAMENTO DA PSICOLOGIA SOBRE O TRATAMENTO DOS TRANSTORNOS MENTAIS
Fruto da atuação do Movimento Antimanicomial, que há trinta e três anos vem defendendo "uma sociedade sem manicômios", a Lei nº 10.216/01, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, entrou em vigor em 2001. Ela determina que as pessoas portadoras de transtorno mental tem direitos como o acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde e postula que essas pessoas devem ser tratadas com humanidade e respeito, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade. Diz, também, que as pessoas devem ser tratadas em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis, e que o tratamento deve ocorrer, perfeitamente, em serviços comunitários de saúde mental.
É tão evidente que um paciente deve ser tratado com humanidade e respeito que o texto da lei pode causar estranheza. Mas sua existência explica-se em reação às práticas até então aceitas no tratamento em saúde mental, fundamentadas na exclusão dos pacientes do convívio social e marcadas pelo confinamento em hospitais psiquiátricos e manicômios, amplamente denunciados pelas práticas de tortura, maus-tratos e esquecimento.
Foi contra a premissa de que a loucura só pode ser tratada com confinamento que o movimento antimanicomial organizou-se no Brasil e em todo o mundo, em meados do século 20. A crítica vai ao cerne do problema e, ao ousar falar sobre o fim dos manicômios, problematiza as formas de relação da sociedade com a loucura, a definição da normalidade e as regras de participação no meio social. Ela rompe com a certeza de que aos loucos caberia sempre e apenas o hospício, e coloca para a sociedade questões sobre como seriam as relações com as pessoas portadoras de doenças mentais sem os manicômios ou sobre o que se faria com os "loucos" libertados.
Com a Lei nº 10.216/01, o Movimento Antimanicomial – formado por profissionais da área de saúde, usuários dos serviços de saúde mental e familiares – conseguiu mudar a orientação da política de saúde mental no Brasil.
Entre os avanços da Reforma Psiquiátrica está o fato de o orçamento público para a saúde mental destinar, atualmente, a maior parte dos recursos a medidas substitutivas, invertendo a proporção dos anos anteriores à reforma. Há existência de Centros de Atenção psicossocial (CAPS) em todos os estados, cobrindo 57% da população, segundo dados do Ministério da Saúde. O número, no entanto, é insuficiente para a demanda dos 23 milhões de cidadãos com distúrbios mentais no Brasil.
E a mudança das práticas, efetivamente, tarda em acontecer. Entre os desafios para a efetivação da Lei da Reforma Psiquiátrica estão o lento ritmo de fechamento de leitos em hospitais psiquiátricos e a necessidade de criação de política para o fim dos leitos remanescentes. Os que surgem em funcionamento tendem a ser os mais difíceis de fechar, sobretudo quando são ocupados por pacientes que moram, por vezes há décadas, nos locais de internação.
Outro grande desafio é a criação de serviços de saúde que acolham, em meio aberto, as pessoas em tratamento. Na prática, isso significa a abertura e consolidação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que fazem o atendimento substitutivo aos manicômios.
Para ser efetivo, atender às necessidades dos usuários dos serviços e de suas famílias, o atendimento sem reclusão depende de um conjunto de serviços, tais como centros de convivência, serviços residenciais terapêuticos, equipes de saúde mental na rede básica, programas de geração de renda e de reinserção dos pacientes em tratamento ao convívio social.
Sabendo do tamanho desses desafios, a Rede Internúcleos de Luta Antimanicomial, com apoio do Conselho Federal de Psicologia, realizou um esforço hercúleo de reunir 2,3 mil usuários, familiares, profissionais e estudantes em Brasília, em marcha que teve como principal reivindicação a convocação da IV Conferência Nacional de Saúde Mental, oito anos após a terceira conferência.
Este evento, além de marcar a entrada definitiva dos usuários como uma categoria social autônima, capaz de falar por si e de se mobilizar, obteve da Presidência da República o compromisso com a realização da conferência, marcada para junho (2009), e que terá caráter intersetorial.
Tal característica responde exatamente à necessidade de interação, diálogo e articulação entre diversas políticas de saúde, de trabalho, de educação, de moradia, de assistência social, de direitos humanos para o cumprimento do direito dos portadores de transtornos mentais à vida digna, e em convívio social.
Ao longo do primeiro semestres de ano de 2010, centenas de reuniões, encontros, conferências regionais, municipais e estaduais foram preparando a IV Conferência Nacional de Saúde Mental, mostrando, mais uma vez, a capacidade de articulação dessa população antes considerada incapaz e destinada à segregação.
O Conselho Federal de Psicologia, junto com o Movimento Antimanicomial, tem consciência de que a conquista de uma sociedade sem manicômios vai além do cumprimento da legislação. Ela ainda requer o convencimento da sociedade sobre a necessidade do fim dos manicômios.
É por isso que, em 2010, o dia 18 de maio – foi considerado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial – tendo como lema a frase "SOLIDARIEDADE: há em ti, há em mim".
O mote da celebração da data dialoga com a conjectura da Reforma Psiquiátrica e com os desastres que vêm ocorrendo desde o início do ano, quando um terremoto arrasou a capital do Haiti, Porto Príncipe e complicou ainda mais a vida da população do país mais pobre das Américas, ao qual se somaram os deslizamentos que aconteceram no Rio de Janeiro, os terremotos no vizinho Chile e na distante China. Todos esses eventos requerem algo que é também um dos princípios da luta antimanicomial: a solidariedade.
8. PSICOLOGIA PRESENTE
É possível que o leitor desse texto se pergunte: – Muito bem, concordamos com o fim dos manicômios, mas o que a psicologia tem a ver com isso? E mais, o que o Conselho Federal de Psicologia, órgão responsável por mediar as relações entre a sociedade e os psicólogos, tem a ver com isso?
Em 1987, o II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental reuniu profissionais que recusaram o papel de agentes de exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana e inauguraram um novo compromisso em busca de uma reforma dos modelos, das práticas e da política de atenção à saúde mental no País. A causa se tornou eixo de um amplo movimento social, o Movimento Antimanicomial.
Profissionais da psicologia foram e continuam sendo parte importante desse movimento. Consideram que a loucura pode e deve ter o seu lugar no mundo, que as subjetividades individuais contribuem na construção do todo social e que a aceitação das diferenças, quaisquer que sejam elas, faz parte do ideal de democracia da nossa sociedade.
Na perspectiva da psicologia, não há mais espaço para instituições de cuidado focadas no isolamento, pois se sabe que o convívio comunitário e a internação social são fundamentais para todos os seres humanos. Para garantir saúde mental, é preciso garantir o protagonismo social e a condição de cidadania daqueles que trazem como questão o sofrimento psíquico.
9. LUTA ANTIMANICOMIAL
A forma de dar atenção à saúde mental no Brasil sofreu mudanças ao longo da década atual. Os hospitais psiquiátricos vêm progressivamente dando lugar a uma rede extra-hospitalar composta por Unidades Básicas de Saúde (UBS), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Centros de Convivência que contam com equipes multiprofissionais. Em casos de crise, os portadores de sofrimento ou transtorno mental são atendidos em hospitais gerais e serviços residenciais terapêuticos, onde são disponibilizados para egressos de internações prolongadas. Trata-se de um progresso ainda hoje longe de ser concluído. Mas o movimento da Luta Antimanicomial, que completou 26 anos no dia 18 de maio, tem razões para se considerar vitorioso: os que sofrem com problemas mentais já podem contar, pelo menos, com uma perspectiva de tratamento mais humano, respeitosa e preocupada com a sua inclusão no meio social.
Em termos legais, o ponto de inflexão dessa virada foi a Lei Federal 10.216 de 2001, que deu início à chamada Reforma Psiquiátrica. Mas transformar essa nova proposta e realidade não foi, nem é, tão simples. Até hoje há resistências em relação a um modelo que inclui psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e outros profissionais da saúde em um território até então exclusivo da área médica. Além disso, há o desafio de montar e universalizar a rede substitutiva. A cobertura desigual e, em muitos casos, insuficiente dessa rede ainda deixa muitos pacientes sem atendimento, o que leva a questionamentos.
Dezenas de oficinas, rodas de conversa, encontros e apresentações, em total de 72 ações, aconteceram em diversos pontos da Capital e do interior do Estado de São Paulo, culminando com a participação na Feira de Pompéia, em São Paulo, foram mobilizadas mais de 3 mil pessoas entre profissionais, usuários, familiares e outros participantes. Entre outros materiais de divulgação, mais de 50 mil folhetos foram distribuídos nos eventos.
Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), um debate reunindo mais de 250 pessoas permitiu que fosse abordada a questão dos adolescentes autores de ato infracional, muitos deles com tratados com substâncias psicotrópicas. No Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), uma roda de conversa apontou as situações vividas pelos profissionais de saúde nas Casas de Custódia e no Sistema Prisional; Na Fundacentro, a saúde mental do trabalhador esteve em pauta. No Instituto de Saúde, aconteceu o "Uma tarde na rede", que aprofundou o debate sobre os serviços substitutivos presentes na proposta da Reforma Psiquiátrica.
Nesse último encontro foi abordado um aspecto de enorme importância e que pode servir de alerta para todos aqueles envolvidos na Luta Antimanicomial. Trata-se da "capcização", neologismo criado para se referir ao risco de transformação do CAPS em "pequenos manicômios". É preciso atenção para que a lógica manicomial, institucionalizante e excludente, coloca porta afora com tanto esforço e sacrifício, não retorne de forma subreptícia pela janela.
Doze anos depois, é possível dizer que este modelo está avançando de forma considerável. O número de leitos em instituições psiquiátricas caiu de mais de 60 mil em 2000 para menos de 40 mil nos dias atuais. Ao mesmo tempo, a Rede Direção Certa, precisando apertar o passo substitutiva de serviços se ampliou: o número de CAPS cresceu mais de seis vezes, passando de 177 para 1.153 unidades em todo o país. Infelizmente, ainda está longe de ser o bastante para atender à demanda da população brasileira. No seminário "Política de Saúde Mental e Adolescentes em Situação de Vulnerabilidade" (2008) – evento realizado na PUC-SP para marcar a semana da Luta Antimanicomial e parte das comemorações dos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel Delgado, reconheceu que a situação ainda é muito desigual nas diferentes regiões do país. "O sistema está funcionando bem na maior parte do Brasil, especialmente nos Estados onde houve a decisão de investir nessa proposta, como Sergipe e Paraíba. São Paulo, apesar de Estado mais rico da Federação, ainda tem uma posição muito modesta em termos de cobertura", disse.
São Paulo é ainda o Estado com maior número de hospitais psiquiátricos em funcionamento no país, cerca de 58 unidades, com aproximadamente 6.639 "moradores" nessas instituições e está em curso um recenseamento visando avaliar a situação de cada um deles e a possibilidade de resgate da autonomia. Um dos aspectos ressaltados é a desigualdade existente entre as 17 regiões nas quais o Estado de São Paulo é dividido pela Secretaria da Saúde. Assim, enquanto em Marília o índice de leitos é de aproximadamente 11,1 para cada 10 mil habitantes; em Sorocaba esse número aumenta para 12,9/10 mil habitantes e em São João da Boa Vista esse número ainda é maior 19,0/10 mil habitantes.
Há três grandes desafios a serem enfrentados, a consolidação da rede do CAPS, a qualificação dos trabalhadores e dos serviços, e o financiamento: no primeiro caso, é preciso ampliar a cobertura assistencial, reduzindo as desigualdades regionais, garantir o acolhimento nas situações de crise e buscar articulação com os demais recursos já existentes em cada território. No caso da qualificação dos profissionais, ampliar a interlocução com as instituições formadoras, capacitar e dar educação continuada aos que já atuam na rede. Quanto aos serviços, a proposta é realizar supervisões clínico-institucionais para garantir a qualidade do atendimento. Por último, há questão do financiamento. É preciso que haja uma sistematização de repasses fundo a fundo, a pactuação de ações e serviços nos Colegiados Regionais de Gestão e a discursão de criação de incentivos financeiros estaduais para a implantação de serviços.
11. UES EM QUESTÃO
Motivo de muitas controvérsias, a Unidade Experimental de Saúde (UES)[60], trata-se de uma unidade que entrou em operação em 2007, com o objetivo de receber jovens em cumprimento de medida socioeducativa de internação que apresentassem distúrbios psicológicos. A UES hoje se encontra sob os cuidados da Secretaria de Estado da Saúde, Secretaria de Administração Penitenciária e da Secretaria de Justiça via Fundação CASA graças a um acordo de cooperação entre as três Secretarias de Estado. Muitos se encontram na UES por decisões judiciais. Nessas ações, o argumento é que tais pessoas são incapazes de se autogovernarem para os atos da vida civil, além de serem perigosos para a sociedade. O Ministério Público, então, demanda da Justiça uma ordem de internação psiquiátrica compulsória, fundada em um suposto risco de infração futura, previsto por algum psiquiatra. A ordem de internações originadas nesses processos de interdições tem como característica a absoluta indeterminação do tempo de privação de liberdade. A custódia dessas pessoas não é legitimada pelo crime que cometeram, mas em razão de uma patologia mental. Essa patologia tornaria aceitável a sua segregação em um equipamento de saúde que garantisse ao mesmo tempo a contenção física e um suposto tratamento.
12. REFORMA PSIQUIÁTRICA: DESAFIOS DA BIOÉTICA
Apesar da Reforma Psiquiátrica e a Lei nº 10.216/01 terem consagrado inúmeros avanços na área da saúde mental, ainda há muito a ser conquistado, principalmente em relação aos manicômios judiciários. O louco infrator continua estigmatizado como mero "doente mental delinquente", fugindo completamente ao escopo idealizado pela regulamentação legal para a medida de segurança: tratamento e ressocialização.
Nesse contexto, o desafio da Bioética é a humanização nas instituições de tratamento de saúde mental, dado que se trata de Ciência conceituada como ética dos seres humanos e regida por valores e princípios morais.
Os princípios da Bioética visam à equidade, à beneficência, à não maleficência e, primordialmente, à autonomia e à justiça. No tocante ao tratamento médico dispensado aos portadores de doença mental, entretanto, nem sempre os direitos destes indivíduos são respeitados, o que avilta os princípios destacados. Quando nos referimos aos doentes com transtorno mental que incorrem em algum delito, outras questões, como a criminalização da doença, entram em discussão.
A legislação constitucional preserva os direitos dos portadores de transtornos mentais autores de injusto criminal[61], afirmando que eles são inimputáveis. Como consequência dessa condição, na hipótese de conduta delitiva esses serão encaminhados a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, e não ao cárcere.
No Brasil, os manicômios judiciários foram instituídos no século XX com a finalidade de depositar pessoas "loucas" criminosas, encerrando característica asilar e a privação do contato com o mundo exterior (sociedade) e com a família.
O tratamento ideal para estes indivíduos, ao contrário, deve voltar-se aos direitos humanos e à adequação das instituições que ainda mantém característica asilar, visando a assistência básica, a reabilitação e a reintegração do indivíduo na sociedade.
13. TERAPÊUTICA ANTIMANICOMIAL
Segundo os ensinamentos de PINEL[64], eram necessários para este tratamento: (I) isolamento para romper com o foco permanente de influências incontroladas, que é a vida social; (II) o estabelecimento da ordem asilar; (III) uma relação de autoridade entre o médico e seus auxiliares e o doente. Sob estes três princípios, foi instituído o manicômio – hospitalar.
De fato, a loucura não pode ser negada como doença, contudo, o louco é plenamente humano e deve ser destinatário de todos os direitos e garantias previstas em lei. A base para a legislação de saúde mental são os direitos humanos, incluindo a igualdade e a não discriminação, o direito à privacidade e à autonomia individual, o direito à informação e à participação.
O movimento de luta antimanicomial surgiu para dar voz a estes excluídos e levar os profissionais da saúde mental a uma reflexão acerca de novas formas de pensar, agir, perceber e de cuidar dos doentes mentais.
A Reforma Psiquiátrica teve no final da década de 70, teve a influência direta do movimento de reforma italiano[65] e teve como foco, nas palavras de ULYSSES CASTRO(2009):[66] "[…] focada nos modelos de gestão e atenção nas práticas de saúde, a defesa da saúde coletiva, a equidade na oferta dos serviços e a participação dos trabalhadores e usuários no serviço de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologia de cuidado".
Entre os grupos de luta formados, destaca-se o MOVIMENTO DE TRABALHADORES EM SAÚDE MENTAL (MTSM), que primeiro denunciou o sistema nacional de assistência psiquiátrica, apontando os casos de violência e tortura, a mercantilização da loucura, corrupções e fraudes, criticando o modelo hospitalar então vigente.
“Entende-se, portanto, de acordo com COHEN e MACOLINO (2006, p. 25) que "[…] a reclusão do paciente em hospital psiquiátrico, contra a sua vontade, passa a ser uma medida drástica, excepcional […]".
14. LOUCO INFRATOR E SUA SITUAÇÃO
O portador de transtorno mental possui "invisibilidade social": muitas vezes, além de não contar com o apoio familiar, fica relegado à própria sorte. Em situação de vulnerabilidade social ainda maior encontra-se o louco autor de injusto penal.
Os doentes mentais infratores sofrem duplo processo de exclusão social, pois são vistos como loucos pela sociedade, sendo considerados perigosos e submetidos a um sistema de tratamento que não possui condições mínimas para cura ou ressocialização.
Decerto, a Reforma Psiquiátrica trouxe avanços, mas a luta pela proteção deste grupo social vulnerável está longe do fim. Há um longo caminho até que a verdadeira reforma tenha êxito. Enquanto isso, persistem as práticas violadoras dos direitos humanos e a completa ausência de políticas públicas orquestradas, que visem implementar a possibilidade, ao louco infrator, de regresso ao convívio social.
Em detrimento do Direito Penal do fato, e à aplicação mascarada da pena de caráter perpétuo. É necessário cuidar da melhoria da qualidade de vida do doente mental, o que deve se iniciar pelo bom atendimento, pelas boas acomodações, buscando-se, precipuamente, alternativas de tratamento que visem à manutenção do paciente nem seu meio social, com o apoio e a participação da família no processo inclusivo, nos moldes da Teoria Basagliana[67].
Para esse desiderato, faltam discussões no âmbito das Cortes Criminais. Além disso, o Direito, isoladamente, não encontrou alternativa capaz de solucionar a questão do louco infrator, motivo pelo qual a atuação da Bioética, da Defesa da Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos humanos são imprescindíveis, no sentido de articular a JUSTIÇA à saúde mental e encontrar uma linguagem comum aos vários profissionais envolvidos na questão, permitindo encontrar novas alternativas que privilegiem a autonomia do doente e a defesa da dignidade da pessoa humana.
Psicóloga pela Faculdades Integradas de Guarulhos; Pós Graduanda em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela Universidade Estácio de Sá
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