Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discutir a possibilidade de relativização da coisa julgada material no âmbito do direito tributário, discutindo os institutos jurídicos envolvidos, apresentando as posições doutrinárias e jurisprudenciais sobre o caso, para, alfinal, chegar a uma conclusão, não unânime, mas fundamentada sobre o tema.
Palavras-chave: Coisa Julgada Material. Relativização. Desconsideração. Possibilidade. Precedentes do STF e do STJ.
I – Introdução.
O princípio da segurança jurídica é um dos princípios mais caros ao Estado Democrático de Direito. Nele, em apertada síntese, se depositam as expectativas e a confiança de que as situações decididas pelo Poder Judiciário são definitivas. De nada adiantaria falar-se em direito de acesso à justiça, conforme preconiza o inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal, se as decisões judiciais fossem soluções provisórias.
Nesse trabalho examinamos, em especial, os efeitos da declaração superveniente de (in) constitucionalidade de lei que fundamentou decisão judicial transitada em julgado no âmbito do direito tributário. Noutros dizeres, busca-se discutir, nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni, se a “sentença, transitada em julgado, deve sobreviver quando a lei que a fundou é, mais tarde, declarada inconstitucional pela Corte Suprema”[1].
Para tanto, esboçaremos uma definição de coisa julgada e aludiremos às suas espécies, trazendo a visão da doutrina, imiscuindo-se, em seguida, sobre a temática da relativização, colhendo-se precedentes jurisprudenciais e opiniões doutrinárias, para, alfinal, adentrar ao ponto específico que ora se propõe examinar, apresentando, por derradeiro, a opinião do autor.
II – Da breve noção de coisa julgada: conceito e espécies.
De início, parece ser bastante oportuna e didática a transcrição do §3º do art. 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Confira-se:
“Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”. (Grifos não originais).
Note-se que, embora singelo, o conceito apresentado acima preenche, nesse início, a sua finalidade. Tem-se por coisa julgada, a meu ver, justamente a impossibilidade de se alterar decisões judicias que transitaram em julgado, isto é, que não se sujeitam mais a qualquer recurso[2].
Nesse sentido, Marinoni, ao citar Liebman, afirma que a “coisa julgada é a imutabilidade que qualifica a sentença de mérito não mais sujeita a recurso que impede sua discussão posterior”[3].
Alexandre Freitas Câmara, perfilando as mesmas ideias, sustenta que a “coisa julgada é a situação jurídica consistente na imutabilidade e indiscutibilidade da sentença (coisa julgada formal) e de seu conteúdo (coisa julgada substancial), quando tal provimento jurisdicional não está mais sujeito a qualquer recurso”[4].
Desse último conceito, aliás, extrai-se a ideia do que parcela considerável da doutrina chama de coisa julgada formal e coisa julgada material, entendendo-se por aquela a imutabilidade da sentença, isto é, o impedimento de modificação da decisão por qualquer meio processual dentro do processo em que foi proferida. A coisa julgada material, por sua vez, consiste na imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo da sentença de mérito, e produz efeitos para fora do processo. Uma vez formada, não poderá a mesma matéria ser rediscutida em outro processo[5].
Como dito acima, esta classificação da coisa julgada não é entendimento unânime na doutrina. Só para registrar, eis que tal polêmica não é o objeto deste estudo, Marinoni destaca que a coisa julgada formal “em verdade, não se confunde com a verdadeira coisa julgada (ou seja, com a coisa julgada material). É, isto sim, uma modalidade de preclusão, a última do processo de conhecimento, que torna insubsistente a faculdade processual de rediscutir a sentença nele proferida”.[6]
Firmada tais premissas, passa-se ao estudo da denominada relativização da coisa julgada.
III – Da relativização da coisa julgada.
Um esclarecimento, de início, mostra-se oportuno. A doutrina, de um modo geral, ao se referir a este tema, utiliza-se da expressão “relativização da coisa julgada”. Penso, porém, não ser disso que se cuida. A coisa julgada, nessas situações, não é relativizada ou desconstituída[7], mas, sim, desconsiderada, simplesmente deixada de lado. Alexandre Freitas Câmara, em rasas linhas, explica que se trata, tão-somente, “de desconsiderar, em um dado caso concreto, a existência daquela sentença transitada em julgado, julgando-se a nova causa como se aquela decisão não existisse”[8].
Superada a questão, o art. 485 do CPC, aí sim, traz as hipóteses de cabimento de ação rescisória, instrumento processual que visa a impugnar decisões judiciais transitadas em julgado, que não mais se sujeitam à interposição de recursos, rescindindo-as. Confira-se:
“Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I – se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II – proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;
III – resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
IV – ofender a coisa julgada;
V – violar literal disposição de lei;
Vl – se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;
Vll – depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de Ihe assegurar pronunciamento favorável;
VIII – houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;
IX – fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa”.
A questão que exsurge, portanto, está associada às hipóteses de relativização da coisa julgada fora dos limites traçados pelo citado dispositivo, que, segundo a maioria da doutrina, traz um elenco taxativo de cabimento da ação rescisória.
Oportunas, nesse sentido, as lições de Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha. Confira-se:
“Não se admite ação rescisória, sem que se alegue ou se demonstre a ocorrência de uma das hipóteses capituladas no art. 485 do CPC. O elenco de hipóteses do referido art. 485 do CPC é taxativo. Em outras palavras, as hipóteses que ensejam a rescisão da sentença estão arroladas em numerus clausus na norma ora comentada. Este rol taxativo não admite ampliação por interpretação analógica ou extensiva”.[9]
Sucede, porém, que o mesmo Código de Processo Civil, por outro lado, estabelece regra processual que, aparentemente, se contrapõe à norma extraída do art. 485, de modo a permitir, numa leitura apressada, o afastamento da coisa julgada decorrente da manifestação superveniente do Supremo Tribunal Federal – STF. Observe-se:
“Art. 475-L. A impugnação somente poderá versar sobre:
(…)
II – inexigibilidade do título;
(…)
§ 1º Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”. (g.n.).
“Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre:
(…)
II – inexigibilidade do título;
(…)
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”. (g.n).
Com efeito, a interpretação literal de tais dispositivos permite concluir que os títulos judiciais executivos, entre eles a sentença transitada em julgado (admitindo-se aqui a possibilidade de execução provisória), fundados em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal são, em ambas as situações, considerados inexigíveis. Ou seja, mesmo tais títulos ostentando o timbre da definitividade ou da coisa julgada estes serão considerados imprestáveis para o fim executório.
Em palavras talvez mais didáticas, é dizer que o direito que, in thesi, estava estabilizado, garantido pelo manto da coisa julgada, consubstanciado num título judicial, deixará de ser efetivado em virtude da declaração de inconstitucionalidade da norma que o fundamentou.
No entanto, não se pode deixar de mencionar que o art. 741 do CPC é alvo da ADI 2.418/DF, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, cujo julgamento encontra-se pendente.
No bojo dessa ação, o presidente do Conselho Federal da OAB, ao comentar o dispositivo legal mencionado, adverte que se trata de “dissimulada hipótese de rescindibilidade da sentença transitada em julgado. (…) O preceito, a toda evidência, investe contra a segurança de que se revestem as decisões judiciais finais, colidindo com as determinações do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal: “a lei não prejudicará o direito adquirido, ato jurídico perfeito e a coisa julgada””.[10]
O Advogado-Geral da União à época, ministro Gilmar Ferreira Mendes, instado a se manifestar no processo, defende a constitucionalidade do dispositivo, esclarecendo que:
“Não se cuida, destarte, de nova hipótese de rescisão do julgado, mas tão-somente de impedimento de que atos inconstitucionais produzam efeitos igual e necessariamente contrários à Constituição Federal. Trata-se, destarte, de evitar a consolidação de efeitos inconstitucionais de atos jurídicos viciados. (…) Em verdade, a previsão da inexigibilidade do título executivo judicial constava já na redação anterior do Código de Processo Civil. Se a isso se acrescenta a circunstância de que vigora entre nós o dogma da nulidade da lei inconstitucional (somente excepcionado por outro princípio de hierarquia igualmente constitucional) e a eficácia geral e o efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas, parece claro que a norma impugnada possui conteúdo tão-somente declaratório naquilo em que se explicita ser inexigível – dada a retroatividade dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade título judicial fundado “em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal”. Uma tal orientação preserva os princípios da supremacia da Constituição, de sua força normativa (CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 6ª ed., 1993, p. 229) e da máxima efetividade de suas normas (CANOTILHO, ob. cit. p. 228) bem como a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal em especial aquelas dotadas de eficácia geral e efeito vinculante. Dado o status constitucional de tais imperativos, o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em interpretação ou aplicação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal constituem, à luz de nosso direito constitucional, títulos inexigíveis por excelência”[11].
Em sentido contrário, porém, foi o entendimento do Procurador-Geral da República à época, que, a nosso ver de forma bem didática (não exercendo aqui nenhum juízo de mérito sobre a questão examinada), sustentou a inconstitucionalidade do art. 741 do CPC afirmando que:
“39. O problema da coisa julgada com fulcro em norma inconstitucional possui, em seu âmago, uma colisão de princípios: de um lado, o princípio da supremacia da Constituição e da soberania das decisões do Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas; de outro, a coisa julgada e a segurança jurídica.
40. Quando princípios constitucionais entram em colisão, um dos princípios tem de ceder ante o outro, não significando isso que se tenha que declarar inválido ao princípio inaplicado. Diferentemente dos conflitos entre regras jurídicas, que se dão em uma dimensão de validez, a colisão de princípios tem lugar em uma dimensão de peso.
Uma colisão de princípios, como a que ocorre diante do problema da coisa julgada inconstitucional, será solucionada tendo em conta as circunstâncias específicas do caso concreto, onde se pode estabelecer entre os princípios opostos uma relação de precedência condicionada, na acepção de ALEXI. A determinação da relação de precedência condicionada consiste em que, tomando em conta o caso concreto, se indicam em que as condições um princípio precede ao outro.
Afere-se, com isso, que uma ponderação de bens constitucionais somente se faz diante do caso concreto. Não há possibilidade de uma norma estipular que todos os casos, ou somente em alguns, serão resolvidos tendo em conta um princípio, em detrimento de outro.
(…) Assim, não caberá a uma norma, de forma prévia, geral e abstrata, regular os casos em que um princípio constitucional deverá prevalecer sobre outro. O parágrafo único, acrescido pela medida provisória impugnada, ao art. 741 do Código de Processo Civil, comporta uma tal norma, estabelecendo que todos os títulos judiciais baseados em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais, em qualquer caso, serão inexigíveis. Por isso, afronta a ordem constitucional, formada por valores e princípios que devem ser interpretados harmonicamente, de forma que todos possam ter máxima eficácia diante do caso concreto”[12].
Na doutrina, de igual forma, a questão não é pacífica. Marinoni, ferrenho opositor a ideia da relativização da coisa julgada, por exemplo, afiança que:
“As normas dos artigos 475-L, §1º, e 741, parágrafo único, do CPC, quando interpretadas de modo a permitir a revisão da declaração passada em julgado, são inconstitucionais, por afrontarem a autoridade da coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CRFB), uma das expressões inequívocas do Estado Constitucional”[13]. (grifos não presentes no texto original).
Nessa mesma toada, Leonardo Greco leciona que:
“(…) parece-me claro que a decisão de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade em controle concentrado de normas pelo Supremo Tribunal Federal não deve ter nenhuma influência sobre anteriores sentenças transitadas em julgado que tenham fundamento em entendimento contrário ao do STF sobre a questão constitucional. A segurança jurídica, como direito fundamental, é limite que não permite a anulação do julgado com fundamento na decisão do STF. O único instrumento processual cabível para essa anulação, quanto aos efeitos já produzidos pela sentença já transitada em julgado, é a ação rescisória, se ainda subsistir prazo para a sua propositura”[14].
Por fim, reponta oportunas as lições de Nelson Nery Jr., para quem o “risco político de haver sentença injusta ou inconstitucional no caso concreto parece ser menos grave que o risco político de instaurar-se a insegurança geral com a relativização (rectius: desconsideração) da coisa julgada”[15].
De outra banda, a favor da relativização da coisa julgada, Marcelo Novelino, jovem constitucionalista, apresenta a seguinte ideia:
“A relativização da coisa julgada tem como um de seus fundamentos o princípio da relatividade (ou da convivência das liberdades públicas), segundo o qual nenhum direito, por mais importante que seja, pode ser considerado absoluto, por encontrar limites decorrentes de outros direitos constitucionais consagrados. Se nem mesmo a inviolabilidade o direito à vida é absoluto, o que dizer da coisa julgada que, assim como as demais garantias, não é um objetivo em si mesmo, mas um meio para proteger determinados direitos e alcançar determinados valores.
A coisa julgada, enquanto garantia constitucional-processual, deve ser harmonizada com outros valores constitucionalmente protegidos (“coisa julgada inconstitucional”).
A leitura clássica da coisa julgada como algo absoluto, fruto de uma preocupação apenas com a segurança jurídica em detrimento de outros valores igualmente consagrados pela Lei Suprema, revela-se inconstitucional (“coisa julgada inconstitucional”) ”.[16] (grifos lançados).
Nesse sentido, Helenilson Cunha Pontes menciona as importantes conclusões a que chegou sobre o tema o eminente ministro do Superior Tribunal de Justiça – STJ, José Delgado:
“a) o princípio da coisa julgada é de natureza relativa; b) a coisa julgada não pode sobrepor-se aos princípios da moralidade e da legalidade; c) o Poder Judiciário ter por missão aplicar as estruturas que sustentam o regime democrático; d) a sentença judicial transitada em julgado não pode ser veículo de injustiças; e) a decisão judicial não pode conduzir a resultados além ou aquém dos garantidos pela Constituição Federal; f) a coisa julgada pode ser revista, em qualquer tempo, quando eivada de vícios graves e produza consequências que alterem o estado natural das coisas, que estipule obrigações para o Estado ou para o cidadão ou para as pessoas jurídicas que não sejam amparadas pelo Direito; g) a segurança jurídica produzida pela coisa julgada não se sobrepõe a outros valores que dignificam a cidadania e o Estado Democrático; h) a garantia da coisa julgada não pode ser alterada pela lei para prejudicar; i) em nome do princípio da não-retroatividade, os fatos apurados pela sentença nunca transitam em julgado; j) a coisa julgada não deve ser via para o cometimento de injustiças, de apropriações indébitas de valores contra o particular ou contra o Estado, de provocação de desigualdades nas relações do contribuinte com o Fisco, nas dos servidores com órgão que os acolhe, porque a Constituição Federal não permite que a tanto ela alcance; k) em tema de desapropriação, o princípio da justa indenização reina acima do garantidor da coisa julgada; l) a sentença transitada em julgado pode ser revista, além do prazo para a rescisória, quando a injustiça nela contida for de alcance que afronte a estrutura do regime democrático por ofender à moralidade, à legalidade, à Constituição Federal e às regras da natureza; e finalmente m) a segurança jurídica imposta pela coisa julgada está vinculada aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade de que devem seguir todo ato judicial”[17].
Discussões doutrinárias à parte, o fato é que os artigos 475-L, §1º, e 741, parágrafo único, do CPC, estão vigentes e, nessa condição, enquanto não sobrevier decisão definitiva do STF declarando sua inconstitucionalidade, produzem os seus efeitos legais. Nesse cenário, não se pode diminuir o potencial de tais dispositivos em afastar a coisa julgada, sendo constitucionais, ou não.
Na verdade, não há de se falar, como dito alhures, em relativização ou desconstituição da coisa julgada, pois isso, de fato, não acontece, salvo nas hipóteses inseridas taxativamente no art. 485 do CPC. A coisa julgada em si não é relativizada ou desconstituída, sua higidez permanece inalterada, o que ocorre é que, em alguns casos, ela é simplesmente desconsiderada.
Em abono ao que se sustenta, cita-se como exemplo os casos em que, no bojo de uma ação de investigação de paternidade (quando não existiam técnicas científicas suficientes para apontar, com certeza, a paternidade biológica), se descobre, depois de sentença transitada em julgado, que o resultado apontado no decisum não corresponde à realidade dos fatos, pois a parte apresenta exame de DNA em sentido contrário.
Vê-se, aí, claramente um conflito de princípios; de um lado a segurança jurídica, consubstanciado na imutabilidade da coisa julgada e, de outro, o princípio da dignidade humana, que garante ao indivíduo o direito de conhecer sua ascendência genética. A meu ver, não restam dúvidas de que a coisa julgada deve ceder espaço para a dignidade humana.
Nesse sentido, aliás, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 363.889/DF, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, reconheceu a repercussão geral da questão e, no mérito, consolidou o entendimento de que "deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo"[18].
Não se pretende com isso, entretanto, banalizar o instituto da coisa julgada, pois se reconhece tratar-se de um instrumento do Estado de Direito, já que é um dos corolários da segurança jurídica, que, por sua vez, é estabelecida no sentido de restringir a atuação do Estado, de modo a promover-se a estabilidade e a paz social. Na verdade, o que se verifica é que, em alguns casos, a segurança jurídica pode ceder espaço para outros princípios também de índole constitucional.
IV – Da relativização da coisa julgada no âmbito do direito tributário.
Rememore-se que o objeto deste estudo é analisar a problemática gerada em virtude de decisão judicial que declarou a constitucionalidade de um tributo, cuja lei foi em seguida revelada como inconstitucional pelo STF. Tal questão ganha relevância na medida em que no Brasil “prevalece o sistema da nulidade da norma inconstitucional, também herança da influência do Direito Constitucional norte-americano. A pronúncia de nulidade, em princípio, opera ex tunc, atingindo todos os efeitos produzidos pela norma julgada inválida em face da Constituição”.[19]
Desse modo, a meu ver, não há como negar que a decisão que declara determinada lei como inconstitucional tenha o condão de retroagir e, eventualmente, afastar a coisa julgada.
A questão da coisa julgada inconstitucional, a meu ver, se resolve observando o disposto no art. 27 da Lei nº 9.868/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Confira-se:
“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. (grifos não presentes no texto original).
A leitura do dispositivo é clara ao dispor que o STF poderá modular os efeitos da decisão que declara a inconstitucionalidade de determinada lei. Clara, também, é a norma no sentido de que se o STF não modular tais efeitos, a decisão retroagirá para alcançar todos os efeitos da lei declarada como inválida pela Suprema Corte.
Recentemente, contudo, o STF, ao julgar o RE 730.462/SP, de relatoria do ministro Teori Zavascki, assentou o entendimento de que a eficácia executiva da decisão que afirma a inconstitucionalidade de dispositivo legal tem como marco inicial a data da publicação do acórdão do Supremo no Diário Oficial (art. 28 da Lei nº 9.868/1999). É, consequentemente, eficácia que atinge atos administrativos e decisões judiciais supervenientes a essa publicação, não os pretéritos, ainda que formados com suporte em norma posteriormente declarada inconstitucional”[20].
Essa decisão, a meu ver, atenua a discussão sobre tema. Firmada a premissa de que as decisões que declaram a inconstitucionalidade de lei não retroagirão para alcançar os efeitos pretéritos da norma, a problemática da relativização da coisa julgada perde força.
No entanto, trata-se de um julgado apenas, enquanto, por outro lado, há forte jurisprudência reconhecendo o afastamento da coisa julgada em matéria tributária. Confira-se:
“Processo Civil. Ação Rescisória. Contribuição Previdenciária dos Avulsos, Autônomos e Administradores. Lei Considerada Inconstitucional. Lei nº 7.787/89 (art. 3º, I). Súmula 343/STF. 1. O prevalecimento de obrigação tributária cuja fonte legal foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal constitui injúria à lógica jurídica, ofendendo os princípios da legalidade e da igualdade tributárias. 2. A Súmula nº 343/STF "nada mais é do que a repercussão, na esfera da ação rescisória, da Súmula nº 400 – que não se aplica a texto constitucional – no âmbito do recurso extraordinário". (RTJ 101/214). "Se a lei é conforme a constituição e o acórdão deixa de aplicá-la à guisa de inconstitucionalidade, o julgado se sujeita à ação rescisória ainda que na época os tribunais divergissem a respeito. Do mesmo modo, se o Acórdão aplica lei que o Supremo Tribunal Federal, mais tarde declare inconstitucional"[21].
“TRIBUTÁRIO. RESCISÓRIA. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL DOS "AUTÔNOMOS" E DOS "ADMINISTRADORES". LEI Nº 7.787/89, ART. 3º, I. 1 – O prevalecimento de obrigações tributárias cuja fonte legal foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal constitui injúria à lógica jurídica, ofendendo os princípios da legalidade e da igualdade tributárias. A Súmula nº 343/STF nada mais é do que a repercussão, na esfera da ação rescisória, da Súmula nº 400, que se aplica a texto constitucional no âmbito do recurso extraordinário (RTJ 101/214). Se a lei é conforme a Constituição e o acórdão deixa de aplicá-la à guisa de inconstitucionalidade, o julgado se sujeita à ação rescisória ainda que na época os Tribunais divergissem a respeito. Do mesmo modo, se o acórdão aplica lei que o Supremo Tribunal Federal, mais tarde, declara inconstitucional (REsp 128.239/RJ – Rel. Min. Ari Pargendler). Multiplicidade de precedentes (ementa do REsp nº 154708/DF, Rel. Min. Milton Luiz Pereira). 2 – A coisa julgada, no caso em exame, afronta o princípio da igualdade tributária e está apoiada em lei declarada inconstitucional pelo Colendo Supremo Tribunal Federal. 3 – Não há que se entender, data vênia, a existência de decisões controvertidas quando a sentença e o acórdão foram prolatados e, posteriormente, a situação jurídica examinada mereceu declaração de inconstitucionalidade da lei aplicada, com efeitos ex tunc, alcançando as relações jurídicas passadas. 4 – O princípio da segurança jurídica, inspirador dos efeitos da coisa julgada, não pode ser levado ao extremo de ofender o princípio constitucional da igualdade tributária. 5 – Considerou-se, também, que, de acordo com as regras sistematizadoras do nosso ordenamento jurídico, somente ao Colendo Supremo Tribunal Federal é que cabe, com força definitiva, declarar a inconstitucionalidade de lei e sugerir ao Congresso Nacional a sua retirada do mundo jurídico. 6 – Precedentes: REsp nº 139.865/RS, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, DJU de 15.12.97; REsp nº 122477/DF, Rel. Min. Adhemar Maciel, DJU de 02.03.98; REsp 104227/DF, Rel. Min. Hélio Mosimann, DJU de 09.03.98. 7 – Recurso provido.”[22].
“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA N. 343 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO DAS PESSOAS JURÍDICAS. CONSTITUCIONALIDADE. ARTS. 1º A 7º DA LEI N. 7.689/88. ACÓRDÃO RESCINDENDO CONTRÁRIO AO ENTENDIMENTO PACIFICADO NA EXCELSA CORTE. CABIMENTO DA AÇÃO RESCISÓRIA. Segundo reiterada jurisprudência da Corte Suprema e deste Superior Tribunal de Justiça, não se aplica a Súmula n. 343/STF quando se tratar de matéria de índole constitucional. Mais a mais, na hipótese em exame o tema discutido não era controverso à época da prolação do acórdão rescindendo, razão pela qual também deve ser afastada a incidência da mencionada súmula. No caso dos autos, é cabível a ação rescisória proposta pela recorrente, uma vez que o Supremo Tribunal Federal, diversamente do entendimento esposado no v. acórdão rescindendo, firmou orientação no sentido da constitucionalidade da Contribuição Social sobre o Lucro das Pessoas Jurídicas – artigos 1º a 7º da Lei n. 7.689/88 (Recurso Extraordinário n. 146.733/SP, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 06.11.92). Recurso especial provido.”[23].
“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO RESCISÓRIA. VIOLAÇÃO LITERAL A DISPOSITIVO DE LEI. NORMA CONSTITUCIONAL. ART. 150, § 7°. ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PARA FRENTE. FATO GERADOR PRESUMIDO. OCORRÊNCIA. DIFERENÇA A MENOR DO ASPECTO QUANTITATIVO. AUSÊNCIA DE DIREITO À RESTITUIÇÃO. 1. Trata-se de Ação Rescisória, com pedido de antecipação de tutela, proposta pelo Distrito Federal, com fundamento no art. 485, V, do CPC, visando à rescisão do acórdão proferido pela Segunda Turma do STJ, no AgRg no REsp 331.351/DF, de relatoria do Ministro Franciulli Netto, que reconheceu o direito à compensação de valores de ICMS recolhidos a maior, na substituição tributária para frente, quando a base de cálculo estimada for superior ao preço efetivo da operação. 2. Em Ação Rescisória que busca rescindir acórdão contrário à interpretação constitucional adotada pelo Supremo, não incide o óbice da Súmula 343/STF. 3. Conforme assentado na ADI 1.851-4/AL, "O fato gerador presumido, por isso mesmo, não é provisório, mas definitivo, não dando ensejo a restituição ou complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de sua não-realização final". 4. Assim, o acórdão rescindendo violou frontalmente o art. 10 da LC 87/1996, à luz do art. 150, § 7º, da CF. 5. Ação Rescisória julgada procedente para rescindir o acórdão impugnado e declarar a inexistência de direito à restituição do ICMS, na sistemática da substituição tributária para frente, quando o fato gerador ocorrido implicar aspecto quantitativo inferior ao presumido”[24].
Dessa forma, o que se vê é que a segurança jurídica, representada aqui pela coisa julgada, não deve ser vista como um valor absoluto. Há situações em que outros valores sobressaem em relação à imutabilidade das decisões judiciais.
Assim, parece ser plenamente possível a desconsideração da coisa julgada no âmbito tributário sem que isso venha a representar ofensa ao princípio da segurança jurídica, na medida em que o que se está a evitar é a eternização da coisa julgada inconstitucional[25].
V – Conclusão.
Ante o exposto, pode-se afirmar, ordinariamente, que a expressão “relativização da coisa julgada” adotada pela doutrina é equivocada. O art. 485 do CPC traz em seu bojo rol taxativo de hipóteses em que a coisa julgada, mediante a propositura de ação rescisória, será rescindida (desconstituída). Talvez, nesses casos, a tese de relativização da coisa julgada possa ser melhor digerida.
Com efeito, a expressão relativizar possui um significado comum no sentido de considerar algo sob um ponto de vista relativo e não absoluto, passando-se a admitir a discussão de determinada matéria que, anteriormente, era indiscutível. Assim, no momento em que uma sentença transitada em julgado é desconstituída, o seu caráter absoluto deixa de ser inatingível, passando, por que não, a ser relativizado.
Fora dessas hipóteses, no entanto, a coisa julgada é desconsiderada, simplesmente deixada de lado. Não se relativiza absolutamente nada.
Pode-se afirmar, ainda, que a desconsideração da coisa julgada em matéria tributária se compatibiliza com o princípio da segurança jurídica, na medida em que o se está a evitar é que decisões inconstitucionais sejam perpetradas ad eternum.
Ademais, a interpretação de normas constitucionais se dá pela técnica da ponderação, e não pela subsunção. Dessa forma, haverá situações em que o princípio da segurança jurídica cederá espaço para outros princípios de estatura constitucional, de modo a efetivar com mais amplitude os direitos e garantias previstas na Carta da República.
Firmada tal premissa interpretativa, não soa razoável a predominância da coisa julgada em detrimento de outros princípios quando a lei que deu suporte à decisão judicial transitada em julgado for declarada inconstitucional, pois, a norma deve ser encarada como inexistente, nula de pleno direito. Assim, admitir a coisa julgada apoiada em lei nula, inexistente, não se coaduna com o ordenamento jurídico.
Em arremate, a coisa julgada não deve ser vista como um valor absoluto, pois nos casos em que atenta contra moralidade, legalidade, e outros princípios da CF/88, deverá ser vencida.
VI – Referências bibliográficas.
a)PONTES. Helenilson Cunha. COISA JULGADA TRIBUTÁRIA E INCONSTITUCIONALIDADE. São Paulo: Dialética.
b)GRECO, Leonardo. Eficácia da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior. In: Didier JR., Fredie (coord.). Relativização da Coisa Julgada. Salvador: Juspodivm, 2004.
c)NERY JR, Nelson. A polêmica sobre a relativização (desconsideração) da coisa julgada e o estado democrático de direito. In: Didier JR., Fredie (coord.). Relativização da Coisa Julgada. Salvador: Juspodivm, 2004.
d)NOVELINO. Marcelo. MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método.
e)JR. Fredie Didier. CUNHA. Leonardo José Carneiro da. CURSO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL. Salvador: Editora JusPodivm. f)MARINONI. Luiz Guilherme. Mitidiero. Daniel. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Comentado artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais.
f)MARINONI. Luiz Guilherme. ARENHART. Sérgio Cruz. Mitidiero. Daniel. NOVO CURSO DE PROCESSO CIVIL: tutela dos direitos mediante procedimento comum. Volume 2. São Paulo: Revista dos Tribunais.
g)NEVES. Daniel Amorim Assumpção Neves. MANUAL DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL. São Paulo: Editora Método.
h)MARINONI. Luiz Guilherme. ARENHART. Sérgio Cruz. PROCESSO DE CONHECIMENTO. São Paulo: Revista dos Tribunais.
i)MARINONI. Luiz Guilherme. COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL: a retroatividade da decisão de (in) constitucionalidade do STF sobre a coisa julgada: a questão da relativização da coisa julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
j)CÂMARA. Alexandre Freitas. LIÇOES DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL. Rio de janeiro: EDITORA Lumen Juris.
Advogado. Graduado pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Aluno do curso de Pós Graduação em Direito Empresarial e Contratos oferecido pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Ex-advogado do Departamento Nacional de Trnsito – Denatran. Ex-assessor Jurídico da Secretaria de Estado de Governo do Distrito Federal. Ex-diretor Jurídico de Licitações e Contratos da Secretaria de Estado de Governo do Distrito Federal
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