Resumo: O tema proposto para a discussão, qual seja o princípio da irrenunciabilidade dos direitos do trabalhador e suas decorrências imediatas (renúncia e transação), nada obstante já tenha sido objeto dos mais variados estudos, inclusive em nível mundial, ainda pode ser explorado por outra vertente metodológica. Isso se dá pela necessidade de adequação dos princípios próprios do universo justrabalhista às novas teorias, ditas de último, entre nós sobretudo, “pós-positivista”, como a dos princípios normativos e interpretação constitucional, eis que constitui o Direito do Trabalho um tronco especial e próprio do Direito, mas vinculado à árvore da ciência jurídica globalmente analisada. O que pretendemos demonstrar é que pode haver plena compatibilidade entre o caráter tutelar do Direito do Trabalho e a necessidade de ponderação de princípios quando em colisão, não se resolvendo a antinomia pela prevalência “a priori” dos direitos do trabalhador.
Palavras chaves: Interpretação Constitucional – Teoria dos princípios – Princípios trabalhistas típicos – Ponderação – Proporcionalidade
Sumário. 1. Introdução. 2. Evolução histórica do princípio da irrenunciabilidade. 3. O direito positivo e a posição da doutrina nacional. 4. Panorama do direito comparado. 5. Modelo pós-positivista e a força normativa dos princípios. 6. Adequação do princípio da irrenunciabilidade. 7. Conclusões.
1. INTRODUÇÃO
Logo, com o objetivo estabelecido, dividiremos o trabalho em várias etapas para melhor exposição de nossas posições. De início, demonstraremos a evolução histórica do princípio da irrenunciabilidade e os seus fundamentos de sustentação. Ato contínuo, faremos exposição das doutrinas nacionais e dispositivos legais em que se apóia o citado princípio em nosso sistema positivo. Cuidaremos de situá-lo em relação ao direito comparado, numa visão panorâmica, meramente descritiva, a fim de mostrar sua manipulação nos mais diversos sistemas. Na seqüência, traremos a nova visão da ciência do direito sobre a força normativa dos princípios, em que se destaca o princípio da proporcionalidade. Por fim, procuramos dar-lhe adequação atual frente à moderna doutrina constitucional, concluindo nosso trabalho com a proposição de novas idéias para reflexão e debate no campo do Direito do Trabalho.
Tais idéias radicam, mais especificamente, na necessidade de compatibilizar o moderno conceito de princípio, ínsito na idéia de ponderação (rectius: flexibilidade[1]) quando em caso de conflito com outros princípios, importando em retração e renúncia, bem ao contrário do que sempre pregou a doutrina e jurisprudência especializadas.
Na conclusão de ROBERT ALEXY: “É fácil argumentar contra a existência de princípios absolutos em um ordenamento jurídico que inclua direitos fundamentais.”[2], como é o caso do nosso sistema, plasmado na Constituição Federal de 1988.
Não se pretende apregoar ideais liberalistas, muito ao contrário, o que se pretende é dar um tratamento rigoroso ao tema, sem os casuísmo e utilização de topoi argumentativos quase inexplicáveis, muito ao gosto da doutrina trabalhista.
Pretendemos dar o viés científico que a principiologia especializada reclama, mas mantendo, por evidente, sua característica especial de direito tutelar.
Observaremos a diretriz de PAULO DE BARROS CARVALHO, para quem “Já foi o tempo em que se nominava, acriticamente, de ciência a singela coleção de proposições afirmativas sobre um direito positivo historicamente situado, passível de dissolver-se sob o impacto dos primeiros questionamentos.” [3]
Essa compatibilização entre o caráter tutelar do Direito do Trabalho e a nova idéia de ponderação de princípios, com concessões recíprocas, não é das mais fáceis de propor e, principalmente, sistematizar com rigor científico. A enorme dificuldade está na fixação dos limites da flexibilidade dos direitos constitucionais fundamentais do trabalhador, consignados em princípios. É dizer, tem-se que admitir a plasticidade dos princípios até para justificar a sua própria conceituação como tal (característica interna), mas não se pode, a pretexto de se ponderar, admitir a corrosão dos diversos direitos conquistados durante toda uma evolução, muitos deles com status constitucional.
A chave, a nosso ver, está em estabelecer o “limite dos limites”, como diz a doutrina de nomeada, pelo princípio da proporcionalidade, conjugado com um ônus pesado de argumentação para aqueles que ponderam princípios trabalhistas.
É certo: não se quer um retorno à Revolução Industrial ou ao Liberalismo de ADAM SMITH, contudo também não se admite que o Direito do Trabalho fique de fora da evolução que a ciência jurídica vem experimentando desde o segundo pós-guerra.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA IRRENUNCIABILIDADE
Assim como o Direito do Trabalho, o princípio da irrenunciabilidade também é fruto do panorama histórico da Revolução Industrial. Praticamente todas as teorias filosóficas tiveram o objetivo de buscar uma ordem social mais justa, de modo que no século XIX, vivendo todos os agouros da primeira revolução industrial inglesa, na qual se verificou a ampliação do fosso entre ricos e pobres, ou proprietários dos meios de produção e proletariado, ganhou corpo o debate acerca da chamada “questão social”.
Inclusive, naquela época, as tentativas operárias de congregação para busca de melhores condições de trabalho foram sufocadas pela interveniência estatal. Foi fato comum entre os países em processo de industrialização a criminalização das condutas operárias de reunião para reivindicações.
Em 1848, por meio do Manifesto Comunista de MARX e ENGELS, surgiu a doutrina da mais-valia, defendendo que é o trabalhador quem produz os lucros do industrial, contudo apenas parte desse incremento é repassado ao proletário em forma de remuneração, na medida em que a diferença entre os valores que foram agregados ao produto e aquele pago ao trabalhador é que gera o lucro do capitalista, o qual apropriava-se indevidamente do trabalho alheio. A teoria socialista de MARX[4] contribuiu para a difusão da idéia de injustiça social, pois aquele que produzia efetivamente o bem de consumo era quem ficava com a menor parte dos rendimentos, institucionalizando a exploração.
Paralelamente à doutrina marxista, LÉON DUGUIT[5] também passou a pregar a necessidade de uma revisão do sistema capitalista da época, que era centrado no ideário da propriedade privada, com viés individualista[6], fruto do Código de Napoleão e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, para que se alcançasse uma função social do sistema jurídico, voltado à promoção do cidadão como ser em desenvolvimento. Difundiu-se a idéia de um conflito entre o Direito Civil (individualista) e o Direito do Trabalho (socialista), este último que deveria ainda ser criado.
O terceiro fator, que incidiu concomitantemente, foi a intervenção da Igreja Católica, com a divulgação da encíclica papal de Leão XIII, Rerum Novarum, de 1891, a qual difundia a idéia de que se deveria dar solução aos problemas da sociedade por meio de uma ordem social justa, focada no ideal cristão. Nessa manifestação, a Igreja conclamou o Estado a intervir com urgência nas relações de exploração dos operários.
Complementando o impacto causado pela encíclica eclesiástica, em 1897 os professores BRENTANO, da Universidade de Leipzig, na Alemanha, e MAHAIM, de Liège, na Bélgica, realizaram o Congresso Internacional de Legislação do Trabalho em Bruxelas, em cujo evento foram congregados professores, juristas, administradores, entre outros estudiosos envolvidos na questão trabalhista e de todas as vertentes ideológicas, com o objetivo de criação de uma associação privada. Na reunião seguinte, em Paris, 1900, foi criada a Associação Internacional para a Proteção Legal dos Trabalhadores. Pode-se dizer que a entidade foi o germe para o surgimento da Organização Internacional do Trabalho em 1919, na medida em que por intermédio daquela entidade França e Itália celebraram o primeiro tratado de natureza bilateral para regular as questões trabalhistas (Basiléia, Suíça, 1909).
A junção dos quatro fatores expostos acima é que levou à confirmação das primeiras leis de proteção aos operários, surgidas anos antes, e firmou a necessidade de expansão da legislação, empolgados pela idéia de que o proprietário era quem massacrava o operário e não lhe repassava o total daquilo que era seu por direito, colocando-o em situação de inferioridade e carente de proteção oficial.
O surgimento do princípio da irrenunciabilidade de direitos, como se vê, nasceu coincidentemente com o próprio Direito do Trabalho, vincados, ambos, na idéia de inferioridade operária e na necessidade de interveniência dos poderes constituídos.
O acatado AMÉRICO PLÁ RODRIGUEZ conceitua a irrenunciabilidade como “impossibilidade jurídica de privar-se voluntariamente de uma ou mais vantagens concedidas pelo direito trabalhista em benefício próprio”[7].
O professor uruguaio foi quem tratou dos princípios do Direito do Trabalho de forma mais cuidadosa e devido à tradução de sua obra para o português, influenciou quase a totalidade dos juristas nacionais, tanto é que as pesquisas nesse remetem a ele de forma inevitável.
Fundamentando em diversas razões o mestre diz: “É um princípio em que há um acordo unânime dos autores quanto a sua vigência e importância, se bem que possa haver diferenças quanto ao seu alcance, sua fundamentação e significado”[8].
3. O DIREITO POSITIVO E A POSIÇÃO DA DOUTRINA NACIONAL
O Direito nacional experimentou grande influência da corrente socialista de padrão marxista, notadamente nos princípios que norteavam essa posição, daí porque a legislação trabalhista foi construída a partir dos pressupostos já comentados no tópico anterior. O momento político na época de criação da maior parte das leis trabalhistas foi o do Estado Novo de Getúlio Vargas. A vertente ideológica era, desenganadamente, a positivista (AUGUSTO COMTE), afeta à plena intervenção do Estado nas relações de trabalho, com a criação de um arcabouço amplo de proteção aos operários.
Fertilizada em solo intervencionista, a semente que deu vida à Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 não poderia gerar outros frutos, se não a existência de regras legais que vedam qualquer forma de transação ou renúncia, encampando aquela idéia de irrenunciabilidade ampla dos direitos, como os artigos 9º, 444 e 468 da CLT.
As regras trabalhistas vigentes desde 1943 incorporaram os princípios da irrenunciabilidade, intangibilidade contratual e vedação da alteração contratual lesiva.
SÉRGIO PINTO MARTINS comenta o artigo 9º: “Na vigência do contrato de trabalho, os direitos trabalhistas são irrenunciáveis. Em juízo, poderá haver a transação, pois as partes estarão diante do juiz, que poderá verificar os casos de fraude.”[9]
Com a devida vênia ao professor de São Paulo, verificamos claramente em parte de sua argumentação a invocação do dogma da irrenunciabilidade, sem qualquer explicação acerca de sua existência, validade e aplicação. É dizer: apenas invoca-se o princípio para justificar que a transação somente pode ser feita perante o juiz, pois este teria, a seu juízo, condições de evitar a fraude. Nessa linha, por coerência lógica, dever-se-ía admitir como válidas aquelas transações e renúncias, nada obstante celebradas em palco extrajudicial, mas que não demonstram ocorrência de fraude. Ou uma coisa ou outra. Ou se admite que as renúncias e transações sejam válidas desde que não haja fraude (traço esse decisivo na visão do autor), a partir de que seriam renunciáveis os direitos, ou se defende, mesmo que sem argumentação firme, a irrenunciabilidade e não se admite a transação sequer em sede judicial. Não é o palco em que é celebrado o negócio jurídico transação que vai mudar a sua natureza jurídica; não é por isso que os direitos de irrenunciáveis transmudar-se-ão para renunciáveis plenamente.
A posição acima, a nosso juízo, contém uma contradição interna, provocada justamente pela absolutização do axioma da irrenunciabilidade.
A doutrina e jurisprudência nacional seguem na mesma trilha, tanto é que em 2007, centenas de magistrados, de todas as hierarquias, e estudiosos do Direito do Trabalho, reuniram-se na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, promovida pela ANAMATRA e pelo TST, tendo produzido diversos verbetes.
Entre eles, o de nº 9 é bastante elucidativo quanto ao tema aqui tratado[10].
O Ministro do TST MAURÍCIO GODINHO DELGADO:
“A indisponibilidade inata aos direitos trabalhistas constitui-se talvez no veículo principal utilizado pelo Direito do Trabalho para tentar igualizar, no plano jurídico, a assincronia clássica existente entre os sujeitos da relação socioeconômica de emprego. O aparente contingenciamento da liberdade obreira que resultaria da observância desse princípio desponta, na verdade, como o instrumento hábil a assegurar efetiva liberdade no contexto da relação empregatícia: é que aquele contingenciamento atenua ao sujeito individual obreiro a inevitável restrição da vontade que naturalmente tem perante o sujeito coletivo empresarial.”
“É comum a doutrina valer-se da expressão irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas para enunciar o presente princípio. Seu conteúdo é o mesmo já exposto, apenas adotando-se diferente epíteto. Contudo, a expressão irrenunciabilidade não parece adequada a revelar a amplitude do princípio enfocado. Renúncia é ato unilateral, como se sabe. Entretanto, o princípio examinado vai além do simples ato unilateral, interferindo também nos atos bilaterais de disposição de direitos (transação, portanto). Para a ordem justrabalhista, não serão válidas quer a renúncia, quer a transação que importe objetivamente em prejuízo ao trabalhador.”[11]
Observamos que para o ilustre autor o conceito de despojamento de direitos é mais amplo que o da maioria da doutrina. Considera ele, aí já como faz quase a unanimidade, a existência do dogma da irrenunciabilidade absoluta, mas não justifica com argumentação analítica a sua existência. Estende seu alcance de modo a alcançar também a transação (concessões mútuas de objeto controvertido).
Em complemento, arremata MAURÍCIO GODINHO DELGADO:
“O requisito da manifestação de vontade recebe tratamento singular no Direito do Trabalho, em contraponto ao Direito Comum. A ordem justrabalhista atenua o papel da vontade obreira como elemento determinante das cláusulas e alterações contratuais, antepondo a ela os princípios da imperatividade das normas laborais e da indisponibilidade de direitos. No caso da transação, a lei acrescenta ainda o parâmetro saneador da inexistência de prejuízo em função do ato transacional. Nesse contexto, pouco espaço resta à pertinência (ou utilidade) de uma pesquisa sobre a higidez da vontade lançada em uma transação trabalhista. A análise concernente a vícios de vontade (erro, dolo ou coação, fundamentalmente), desse modo, apenas ganhará sentido em raras situações da dinâmica trabalhista concernente à figura da transação.”[12]
Nesse trecho, com coerência metodológica, defende que a manifestação de vontade e a existência de fraude de quase nada influencia na solução do cabimento da transação. De lege lata há vedação ao despojamento de direitos, conscientemente ou não. O único ponto que merece alguma censura é aquele em que afirma que só se admite transação quando não houver prejuízo ao trabalhador. Para nós, dessa forma, de transação não se trata em verdade e sim de concessão graciosa de benefícios aos operários, vez que sem as concessões recíprocas das partes não há, a rigor, transação alguma (artigo 840 do CC/2002).
Nesse mesmo sentido é a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho:
“RECURSO DE REVISTA – HORAS EXTRAS EXCEDENTES DA SEXTA – EMPREGADO BANCÁRIO – PLANO DE CARGOS E SALÁRIOS – OPÇÃO PELA JORNADA DE 8 (OITO) HORAS – AUSÊNCIA DE FIDÚCIA ESPECIAL – A opção pela jornada de 8 (oito) horas revela-se nula de pleno direito, visto que, ao empregado bancário que não exerça cargo de confiança é assegurada, por norma cogente, o direito indisponível à jornada de trabalho de 6 (horas), uma vez que o princípio da irrenunciabilidade, que norteia o Direito do Trabalho, impede o afastamento, pela ação da vontade das partes, das normas protetivas, inclusive às relacionadas à jornada de trabalho. Destarte, em face das disposições dos artigos 9º, 444 e 468 da CLT, a opção do reclamante pela jornada de 8 horas, ainda que se mostrasse livre de coação, não seria apta a impedir a incidência da jornada insculpida no caput do art. 224 da CLT. Recurso de revista conhecido e não provido.” (TST – RR 345/2006-012-18-00.9 – 6ª T. – Relª Min. Rosa Maria Weber Candiota da Rosa – DJU 09.11.2007).
O aclamado AMAURI MASCARO NASCIMENTO, com amparo em doutrina lusa, desafia interpretação mais moderna ao advertir que:
“Observe-se, também, que para Maria do Rosário o princípio da norma mais favorável ao trabalhador, que cumpre importante finalidade, não é absoluto: tem exceções, uma vez que o direito do trabalho de alguns países admite derrogação in pejus de normas legais pelas convenções coletivas como mecanismo de valorização das negociações coletivas e da autonomia coletiva dos particulares no sistema de direito do trabalho. É o que acontece no Brasil com a exceção aberta pela Constituição Federal de 1988 (art. 7º, VI), que admite acordos coletivos de redução salarial; o que também se verifica, por força da legislação infraconstitucional, na desinvestidura de exercentes de cargos de confiança, no poder disciplinar do empregador e no jus variandi, perspectiva segundo a qual o princípio protetor, central no direito do trabalho, não é mais importante que o da razoabilidade, de modo que este é o princípio básico a não aquele. Não é viável proteger o trabalhador quando a proteção não se mostra razoável.”[13]
GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO, por seu turno, conclui ótimo artigo acerca dos princípios com a seguinte passagem:
“Seguindo a natureza cambiante de tudo quanto existe no Universo (mundo das coisas, dos valores e das idéias), o Direito do Trabalho evolui ao longo das décadas. Admitir essa evolução é se render às evidências dos tempos; negá-la, tencionando reproduzir “ad eternum” um determinado modelo histórico, é render-se à cegueira ideológica.
A letra da lei jamais será porto seguro para a investigação dos princípios. Mesmo que não sofra variações evidentes, pode ser imantada com novos princípios, hauridos de uma nova Lei Fundamental (caso brasileiro) ou da própria experiência com a aplicação da lei (autopoiese do sistema jurídico). Há que buscar o seu espírito.
A evolução do Direito do Trabalho ― de suas regras, institutos e jurisprudências ― reflete as transformações que a sua malha principiológica experimenta paulatinamente.
Numa leitura atualizada, o princípio da proteção deixa de ser um borralho paternalista, afirmando-se como “ratio” axiológica que deita raízes na primazia da dignidade humana e se rivaliza com o princípio da salvaguarda dos interesses de gestão (conquanto esse se subordine àquele nos quadros mais agudos de colisão). Somente a existência desse último explica a possibilidade de dispensa de empregados estáveis por motivos técnicos ou econômico-financeiros (artigo 165, caput, da CLT), o exercício do “jus variandi” e a plácida constitucionalidade das sucessivas reformas trabalhistas que precarizam circunstancialmente os contratos de trabalho (p. ex., os contratos por prazo determinado, a tempo parcial, o trabalho temporário e ― fora do Brasil ― a comissão de serviços e o “job sharing”). Obtém-se, com isso, um edifício dogmático mais coerente e democrático, sem perder de vista a dignidade da pessoa trabalhadora e as suas concreções nos planos da interpretação, da hierarquia de fontes (dinâmica) e da estabilidade do patrimônio jurídico-laboral (condição mais benéfica).”[14]
A lição acima já desafia uma visão muito mais moderna, consentânea com a nova sistemática constitucional inaugurada em 1988 no Brasil. Deixa para trás aquele viés paternalista do Governo Vargas[15], para abraçar tese mais flexível. Ressalvamos a nossa discordância com a posição do professor e magistrado paulista quando defende que a colisão entre a dignidade humana e os interesses de gestão sempre vai se resolver a favor do primeiro princípio. Existirão casos, e a possibilidade de dispensa por justa causa de um trabalhador recém acidentado (e no período da garantia provisória no emprego) é um deles, em que a própria dignidade do trabalhador, em última ratio, vai ser sopesada e sacrificada, em alguma medida (não a ponto de ofender seu núcleo vital), em prol dos direitos do empregador, como a livre iniciativa, o poder diretivo, etc.
Mais um exemplo pode demonstrar essa conclusão. A própria CLT admite a possibilidade de despojamento de direitos trabalhistas de forma expressa, como o que ocorre com a renúncia pelo empregado ao cargo de dirigente sindical e, por corolário, à garantia provisória no emprego, conforme § 1º do artigo 543.
Do mesmo modo, aqueles direitos do trabalhador reconhecidos em ação de conhecimento na Justiça do Trabalho poderão ser renunciados durante a fase executiva sem nenhuma oposição pelos juízes do trabalho, ressalvando os casos de fraude e de vícios de consentimento, conforme inciso III do artigo 794 do CPC. É bastante comum a verificação de celebração de transações (rectius: renúncia) em execução para receber menos que 50% dos direitos já reconhecidos, quando, de outro lado e sem explicação plausível alguma, não se admite a transação extrajudicial (aí sim objeto controvertido) para o pagamento de, digamos, 90% do que o trabalhador lhe entende devido.
O termo de conciliação em Comissões de Conciliação Prévia teve o escopo de validar essas transações extrajudiciais, mas a jurisprudência trabalhista cuidou logo de arruinar o instituto, transformando o termo de transação em mero recibo de quitação, como se verifica, v g., da Súmula nº 2 do TRT da 23ª Região: “Comissão de Conciliação Prévia. Acordo. Eficácia. O acordo firmado perante a Comissão de Conciliação Prévia tem eficácia liberatória parcial, restrita às verbas e valores nele discriminados.”
A renúncia a um cargo de gerência, com diminuição do salário e do tempo à disposição da empresa, também entendemos plenamente possível, notadamente, por exemplo, naquele caso de trabalhador que está se dedicando aos estudos e quer mais tempo e menor responsabilidade para se concentrar em seu intento.
Em última razão o próprio pedido de demissão é uma renúncia ao emprego, bem maior que o trabalhador pode ter em sua vida profissional. Admite-se renúncia ao emprego, mas não se admite transação de alguns direitos controvertidos, como quer MAURÍCIO GODINHO DELGADO, por exemplo, já citado alhures, em clara contradição entre as duas condutas admitidas pela jurisprudência trabalhista.
4. PANORAMA DO DIREITO COMPARADO
Artigo 3º da Lei do Trabalho da Venezuela:
“Em nenhum caso serão renunciáveis as normas e disposições que favoreçam os trabalhadores.
Parágrafo único. A irrenunciabilidade não exclui a possibilidade de conciliação ou transação sempre que se realize por escrito e contenha uma relação circunstanciada dos fatos que a motivem e os direitos nela compreendidos.”
A lei venezuelana é mais flexível que a nacional, na medida em que veda a renúncia, mas admite amplamente a transação, desde que cumpra com as formalidades e haja exposição do direito controvertido objeto do negócio jurídico.
Artigo 8º do Código Civil do Uruguai:
“A renúncia geral das leis não surtirá efeito. Também não surtirá efeito a renúncia especial de leis proibitivas: o ato contra elas será nulo, se nelas não se dispuser em contrário.”
Artigo 17 da Lei sobre Emprego Privado da Itália, de 1924:
“As disposições do presente decreto serão observadas apesar de qualquer pacto em contrário, salvo no caso de acordos especiais ou de usos mais favoráveis ao empregado, e salvo no caso em que o presente decreto autorize expressamente sua derrogação consensual.”
Constituição do Panamá de 1946:
“Art. 70. São nulas e, portanto, não obrigam os contratantes, mesmo que se expressem numa convenção de trabalho ou em outro pacto qualquer, cláusulas que impliquem renúncia, diminuição, adulteração ou desistência de algum direito reconhecido ao trabalhador. A lei regulará o que se refere ao contrato de trabalho.”
Extremamente protetiva e intervencionista, a Carta Maior panamenha proíbe inclusive a celebração coletiva sindical de qualquer renúncia, diferentemente do modelo constitucional brasileiro que admite a diminuição salarial, inclusive (artigo 7º, VI, da CF).
Em importante Seminário Internacional, que contou com juristas da área trabalhista de toda a latino-américa, a partir de cujo evento se tentou sistematizar um Código-Tipo para toda a América Latina, o professor colombiano AUGUSTO CONTI PARRA, responsável pelo tema dos princípios, advertiu que:
“Um Código-Tipo tem, por conseguinte, o primordial objetivo de neutralizar a ideologia mediante uma proposta de centro que reduza a busca frenética da panacéia única e excludente que tem semeado o ódio e a destruição entre nossas gentes. Nessa medida, o legislador comunitário tem o grande desafio de conceber fórmulas de harmonia que permitam o uso comum de princípios protetores sem desprezar o axioma irrefutável da liberdade.”[16]
Na França, por exemplo, a renúncia não é admitida durante o curso do pacto de emprego, mas após a sua cessação pode ser feita livremente e extrajudicialmente. Isso porque se presume o vício de consentimento (temor reverencial, inclusive) durante o contrato de emprego, mas a presunção é invertida após a cessação do contrato.
5. MODELO PÓS-POSITIVISTA E A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS
Quando do surgimento do moderno Direito Constitucional e do movimento do constitucionalismo, inspirados nos ideários da Revolução Francesa, tinha-se em mente entre os cidadãos que o direito nascia não de uma criação do próprio homem, mas de uma força superior e divina: era o jusnaturalismo. Referida corrente, quando já em vias de secularizar-se, apregoava que os direitos mais caros ao homem, como a vida, a liberdade etc., eram todos provenientes de um direito natural, inerentes à própria espécie humana, por dotada de racionalidade. Ocorre que, lastreados nessa premissa, e valendo-se dela de forma enviesada, também os soberanos fundamentavam a sua força e poder com base no direito natural, defendendo que todos deveriam à eles se subjugar, pois era a vontade divina e o mais racional, como se defendia em obras influentes, a exemplo das de THOMAS HOBBES, precursoras do positivismo jurídico.
Tentando ultrapassar esta página da nossa história, surgiu a crítica ao direito natural com o objetivo principal de limitar os poderes do Rei, consagrando direitos da burguesia que detinha poder econômico e não o político. Nasceu o positivismo político, como decorrência do iluminismo defendido por ROSSEAU e outros, para ensinar que os direitos dos cidadãos deveriam ser batizados em normas positivadas e sacramentadas no ordenamento. A positivação das normas traria maiores garantias à burguesia. O auge do positivismo foi caricaturado com a idéia de MONTESQUIEU de que o juiz é a mera boca da lei, a este não podendo dar liberdade de interpretação, sob pena de usurpação e desvirtuamento da atribuição. A lei tudo podia; presumia-se a sua justiça.
Modernamente, alguns estudiosos passaram a criticar também o positivismo exacerbado, que já não dava conta de resolver com justiça as vicissitudes do mundo moderno, do mesmo modo que também passou a servir como meio de manutenção do status quo. Barbaridades e a desconsideração dos direitos humanos, aos montes e em diversos locais, sempre calcadas no direito posto, foram a pedra de toque para a queda do positivismo[17], como ocorreu com os estados alemão e italiano, fundados no nazismo e fascismo, ambos previstos nas leis vigentes.
Na feliz síntese de LUÍS ROBERTO BARROSO:
“Surgem os mitos. A lei passa a ser vista como expressão superior da razão. A ciência do Direito – ou, também, teoria geral do Direito, dogmática jurídica – é o domínio asséptico da segurança e da justiça. O Estado é a fonte única do poder e do Direito. O sistema jurídico é completo e auto-suficiente: lacunas eventuais são resolvidas internamente, pelo costume, pela analogia, pelos princípios gerais. Separado da filosofia do direito por incisão profunda, a dogmática jurídica volta seu conhecimento apenas para a lei e o ordenamento positivo, sem qualquer reflexão sobre seu próprio saber e seus fundamentos de legitimidade.
Na aplicação desse direito puro e idealizado, pontifica o Estado como arbítrio imparcial. A interpretação jurídica é um processo silogístico de subsunção dos fatos à norma. O juiz – la bouche qui prononce les paroles de la loi – é um revelador de verdades abrigadas no comando geral e abstrato da lei. Refém da separação de Poderes, não lhe cabe qualquer papel criativo. Em síntese simplificadora, estas algumas das principais características do Direito na perspectiva clássica: a) caráter científico; b) emprego da lógica formal; c) pretensão de completude; d) pureza científica; e) racionalidade da lei e neutralidade do intérprete. Tudo regido por um ritual solene, que abandonou a peruca, mas conservou a tradição e o formalismo. Têmis, vendada, balança na mão, é o símbolo maior, musa de muitas gerações: o Direito produz ordem e justiça, com equilíbrio e igualdade.
Ou talvez não seja bem assim.”[18]
Em dias atuais, a partir da constatação de que o direito natural, com seus alargamentos e possibilidades infinitas de interpretação, e o positivismo exacerbado, com a submissão acrítica à lei, que no mais das vezes não representa a vontade do povo, mas favores da classe dominante, surgiu o movimento, por uns denominado de neo-constitucionalista, e que preferimos designar de pós-positivismo, podendo ser resumido como a tendência que revisita institutos do jusnaturalismo, com exacerbação da justiça das decisões e proteção dos direitos fundamentais, mas também colhe a necessidade da positivação de regras de conduta e interpretação, culminando com o axioma de que a lei deve ser o referencial primário, mas o interprete deve ter uma margem de trânsito para que, em cada caso concreto e com os olhos nos princípios e nos direitos fundamentais, possam escolher a solução, dentro das possibilidades dadas, que melhor se amolda ao caso concreto e aos ditames da Constituição.
O avanço do pós-positivismo foi reconhecer a força normativa dos princípios, dando-lhes um conceito também diverso daquele tradicional, de princípios gerais de direito, de origem jusracionalista, na medida em que no modelo positivista estes eram utilizados apenas para colmatar as lacunas, ainda assim depois da tentativa de se utilizar da analogia e dos costumes. Seu campo de aplicação era restritíssimo; agora, no novo modelo, tem força vinculante igual à das regras positivadas, e abrangência incomensuravelmente maior.
Os princípios constitucionais nunca obtiveram grande gosto da comunidade jurídica, eis que o positivismo indicava na direção de que as regras postas na lei é que deveriam ser obedecidas cegamente e os princípios constituir-se-iam apenas em nortes interpretativos, meros indicativos programáticos e enunciativos, que muitos entendiam como disfarces ideológicos com força meramente simbólica – e negativa.
Foram principalmente autores contemporâneos como o ianque RONALD DWORKIN e, na esteira dele, o alemão ROBERT ALEXY, em parte antecedidos pelos também alemães JOSEF ESSER e FRIEDRICH MÜLLER, quem, com mais detalhe, estudaram a força normativa dos princípios e a distinção desses das regras. Esses juristas-filósofos (como diria nosso CLOVIS) concluíram que as normas jurídicas (gênero) se subdividem em duas espécies normativas: regras e princípios.
O primeiro deles, professor das Universidades de New York e Oxford, criou sua teoria acerca dos princípios quando chegou à conclusão que o positivismo, calcado apenas nas regras de conduta para disciplinar a vida em sociedade, não albergava as devidas soluções para os casos difíceis (hard cases), quando os magistrados não encontravam nenhuma regra no ordenamento capaz de disciplinar o conflito de maneira moralmente satisfatória. Nesse caso, só poderia o juiz valer-se de sua liberdade para dar a solução ao caso concreto, já que não estava autorizado a pronunciar o non liquet, extrapolando com mais força o objetivo do positivismo, que é não dar qualquer margem de interpretação ao julgador.
DWORKIN justifica, então, a força normativa dos princípios, estacionados no mesmo grau de hierarquia das regras, em se tratando, tanto as regras como os princípios, de normas constitucionais, por exemplo. Em relação às regras, ou estas valem ou não (tudo ou nada); já os princípios quando entram em colisão, um ou alguns deles podem prevalecer casuisticamente sobre outros, sem que sejam extirpados do ordenamento, é dizer que apenas naquele caso não tiveram aplicação total, por se lhe atribuir menor peso. Não referia, portanto, a ponderação entre princípios e sim a prevalência pontual de algum sobre outro(s).
ROBERT ALEXY, aprimorando a distinção de DWORKIN, sistematizou sua teoria dos direitos fundamentais partindo do mesmo pressuposto de que a diferença entre as regras e os princípios não é uma questão de hierarquia, mas sim de qualidade.
ALEXY defende que os princípios são mandamentos de otimização, que devem ser aplicados nos casos concretos em sua maior eficácia, em busca da solução ótima. No entanto, não raro, dois ou mais princípios colidentes devem ser aplicados no mesmo caso concreto. Nestas situações (colisão), deve-se fazer um sopesamento de cada um dos princípios colidentes, de modo a, dependendo das circunstâncias do caso concreto, harmonizá-los de forma a buscar a solução ideal. Assim, um princípio não é superior ou mais importante que outro, apenas em determinadas situações concretas um pode prevalecer mais que outro, no entanto, em situação fática diversa, a prevalência pode se inverter, desde que justificada pelas circunstâncias de cada caso concreto.
As regras, ao contrário dos princípios, devem se realizar em todo seu grau de abstração em todos os casos em que o fato jurídico se adequar com o mandamento legal (subsunção). As regras não podem ser sopesadas ou ponderadas, pois as regras, ao contrário dos princípios, expressam deveres e direitos definitivos, ou seja, se uma regra é válida no ordenamento, deve se realizar exatamente aquilo que ela determina.
No Brasil, recentemente, difundiu-se a idéia de que os princípios são os mandamentos nucleares e fundamentais de todo o sistema, sendo as regras apenas a concretização deles no plano fático e normativo. Daí porque muitos autores têm a idéia, equivocada, de que os princípios encontram-se em um grau de hierarquia superior ao das regras, devendo prevalecer em caso de colisão.
Por todos, vejamos a lição do afamado CELSO A. BANDEIRA DE MELLO:
“Violar um princípio é muito mais grave que violar uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.”[19]
Partindo de premissa equivocada, que desafiaremos mais a frente, a doutrina nacional mais conservadora não admite qualquer discussão entre eventual confronto entre uma regra e um princípio, pois nessa situação o princípio sempre prevaleceria.
Então poderia haver conflito entre regras diversas e entre princípios diversos, mas não uma espécie normativa com outra. Em relação às regras, a colisão indicaria para um entre três modos de resolução. Os critérios seriam os da norma superior prevalece em relação à inferior (hierarquia), a norma mais moderna prevalece sobre a mais antiga (temporalidade) e a específica prevalece sobre a geral (especialidade).
As regras se aplicam no modelo do tudo ou nada. É o que prevê a Lei de Introdução ao Código Civil em seu artigo 2º.
Em relação aos princípios, estes quando entrarem em rota de colisão, em determinado caso concreto, devem ser ponderados, de modo a apresentar aplicação conjunta, buscando a solução ideal que possa homenageá-los. A prevalência de um princípio em determinado caso concreto não revoga o outro que teve menor incidência, e é bom que se repita, menor incidência e não total esvaziamento.
Esta é a posição atual da doutrina e jurisprudência constitucional.
A partir dessas idéias muitas conclusões podem ser formuladas.
A primeira delas é que não há hierarquia, nem formal, nem material, entre regras e princípios; ambos encontram-se no mesmo grau abstrato de hierarquia, enquanto normas jurídicas. Se há, pois, um confronto entre regra e princípio de mesma hierarquia em determinado caso concreto, deve a regra sempre prevalecer, pois esta expressa a pré-ponderação do legislador constituinte, o qual observando a regra geral (princípio) criou uma exceção para alguns casos específicos (positivando regras), as quais devem ser seguidas. Em palavras outras, somente há espaço para ponderação do intérprete quando o legislador já não o fez de forma expressa, positivando uma regra de exceção.
Um exemplo pode aclarar a conclusão. No texto da Constituição Federal, em diversas passagens, se verificam os princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, II), solução pacífica dos conflitos (artigo 4º, VII), entre tantos outros na mesma diretriz. Contudo, parecendo conflitante, a alínea “a” do inciso XLVI admite a pena de morte em caso de guerra declarada.
Esse é um exemplo de que os princípios a serem seguidos, abstratamente e em toda medida, são o da proteção da dignidade da pessoa humana, solução pacífica dos conflitos, etc., entretanto em caso de guerra declarada formalmente admite-se uma exceção àqueles princípios, qual seja a pena de morte. O constituinte originário previu essa colisão em determinados casos concretos, já os pré-ponderou e deu a solução a priori. Raciocinar em sentido inverso levaria à inusitada conclusão de que a regra posta da pena de morte, norma constitucional originária, é inconstitucional, por conflitar com os princípios. E esse é um dos infinitos exemplos que demonstram que as regras devem prevalecer quando em conflito com um princípio de mesma hierarquia.
Em igual sentido já lecionou ANDRÉ RAMOS TAVARES[20].
Uma segunda conclusão é que como os princípios são plásticos, com seu conteúdo aberto, não há como aplicá-los pelo método da subsunção. Deverão, então, ser aplicados quando em caso de colisão mediante a técnica da ponderação.
A balança utilizada para ponderar os valores imanentes dos princípios é o “super-princípio” da proporcionalidade que representa uma diretriz meio-fim, isto é, uma conduta é proporcional quando a vantagem que proporciona supera as desvantagens que provoca. Quando há vários meios para se realizar um direito, deve-se observar aquele que menor restrição possível cause a direitos e alcance as maiores vantagens, aí este meio é proporcional e o conflito se resolve em favor dele.
Para verificação da proporcionalidade, deve o interprete fazer três testes diferentes: 1) verificar se o meio escolhido é adequado para realização do fim buscado; 2) se a restrição causada pelo meio é absolutamente necessária para a realização do fim e 3) se houve um ganho grande com o objetivo alcançado que seja proporcional às desvantagens que causou, isto é, proporcionalidade em sentido estrito.
Um dos co-autores, introdutor no país da máxima de proporcionalidade[21], concluiu há vinte anos os estudos constitucionais acerca dos direitos fundamentais com a idéia de que a proporcionalidade é o princípio dos princípios, fazendo às vezes da norma hipotética fundamental de Kelsen.
“É esse equilíbrio a própria idéia do Direito, manifestado inclusive na simbologia da balança, e é a ele que se pretende chegar, com Estado de direito e Democracia. A proporcionalidade na aplicação é o que permite a co-existência de princípios divergentes, podendo mesmo dizer-se que entre esses e ela, proporcionalidade, há uma relação de mútua implicação, já que os princípios fornecem os valores para serem sopesados, e sem isso eles não podem ser aplicados.
Aquela máxima de proporcionalidade, contudo, não é puramente formal e abstrata, já que se pode determinar com bastante precisão o seu, não acatamento, o que deve ter como conseqüência uma anulação de pleno direito – já se chegou mesmo a falar que ela é passível de subsunções, – o que a torna um misto de regra e princípio. (!) Nela se pode vislumbrar a norma fundamental que procurávamos, que não se situa somente no ápice de uma “pirâmide” normativa, estática, sendo passível de emprego também na “base” do ordenamento jurídico, em decisões de autoridades judiciais, ou administrativas, instaurando encadeamentos novos e válidos de normas, para atender às necessidades de transformações e adaptações do sistema normativo.”[22]
Expliquemos melhor esta posição, almejando assim esclarecer aspectos controvertidos do princípio da proporcionalidade. Para tanto, traça-se um paralelo entre o referido princípio e aquele, familiar aos que estudam e militam na área trabalhista, dito protetor, de estreita conexão com o que ora nos ocupa, a irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas.
No Brasil, o princípio da proporcionalidade passou a ser referido, inicialmente – tal como, de resto, também ocorreu em seu “país de origem”, a Alemanha -, no Direito Administrativo, migrando para o Direito Constitucional, e como uma lufada de ar puro em ambientes fechados, vem alcançando todos os ramos do Direito, inclusive o Direito do Trabalho, como atestam decisões de alguns Tribunais Regionais do Trabalho, como o da 22ª Região no julgamento de agravo de petição em que estavam em jogo dois direitos fundamentais, reconhecendo-se o direito do reclamante em promover penhora em proventos de aposentadoria do reclamado[23], e também na 23ª Região[24].
Entretanto, o sopro rejuvenescedor esvaiu-se. Aqueles Tribunais do Trabalho mais avançados retrocederam. Argumentam, hoje, que o legislador processual civil teve a oportunidade de positivar essa possibilidade de penhora parcial de rendimentos, mas preferiu manter a impenhorabilidade, privilegiando o devedor-executado. Uma decisão atualíssima do Tribunal Regional do Mato Grosso invocou a técnica da interpretação conforme à Constituição para manter a posição de outrora, da impenhorabilidade, não importando quais eram as variantes do caso concreto sob apreciação[25]. Aquela idéia de justiça e equilíbrio entre os interesses em conflito parece ter sido de pronto esquecida.
No primeiro grau de jurisdição, o Juiz PAULO ROBERTO BRESCOVICI, da 3ª Vara do Trabalho de Cuiabá-MT, proferiu belíssima decisão onde ponderou o direito de greve dos empregados de um lado e o direito de propriedade de outro utilizando do princípio da proporcionalidade[26].
Uma manifestação recente deste movimento renovador, situada no campo juslaboral, é representada por ANA VIRGÍNIA MOREIRA GOMES[27]. Remetemos o leitor à própria obra, para informar-se sobre o sentido novo que adquire a temática, enfocada sob o prisma principiológico, a culminar com a aplicação do “princípio dos princípios”, aquele que disciplina o acomodamento entre os demais princípios, que é o princípio da proporcionalidade.
No trabalho por último referido, a autora (p. 45), na esteira de Américo Plá Rodriguez, destaca três regras que consubstanciariam as dimensões fundamentais do princípio protetor dos trabalhadores, a saber, a regra da norma mais favorável, a regra da condição mais benéfica e a regra in dubio pro operario.
Examinando o conteúdo do princípio de último referido, com suas três facetas, temos que na máxima in dubio pro operario, assim como naquela da proporcionalidade, não podemos visualizar um conjunto de regras jurídicas, muito menos de interpretação, pois se assim o fora serviriam apenas para orientar a intelecção do Direito e não, como toda norma jurídica, condutas de observância deste Direito. Em verdade, é de se notar a semelhança entre este sub-princípio do princípio protetor e os demais, que se referem à primazia de uma condição mais benéfica e de norma mais favorável ao trabalhador, com aquele sub-princípio da proporcionalidade, expresso na máxima da exigibilidade (ou necessidade), do qual seria uma manifestação no âmbito justrabalhista. E nesse sentido, explica-se a “dúvida” referida pela máxima in dubio pro operario, que não macularia a certeza jurídica (segurança) das relações jurídicas trabalhistas, pois em situações de colisão de princípios essa dúvida é sempre justificada, prestando-se a máxima em apreço a fornecer indicação sobre como saná-la, com respeito ao princípio da proporcionalidade, levando em conta, ainda, quando for o caso, outras circunstâncias, que beneficiam a parte hipossuficiente, a fim de restaurar um equilíbrio entre as partes, preservando a proverbial proporcionalidade, sobre a qual passamos a expender alguns esclarecimentos.
Tal como o princípio protetor, também o princípio da proporcionalidade tem um conteúdo que se reparte em três “princípios parciais” (Teilgrundsätze): “princípio da proporcionalidade em sentido estrito” ou “máxima do sopesamento” (Abwägungsgebot), “princípio da adequação” e “princípio da exigibilidade” ou “mandamento do meio mais suave” (Gebot des mildesten Mittels) – a propósito, v., por todos, PAULO BONAVIDES[28] O “princípio da proporcionalidade em sentido estrito” determina que se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição normativa e o meio empregado, que seja juridicamente a melhor possível. Isso significa, acima de tudo, que não se fira o “conteúdo essencial” (Wesensgehalt) de direito fundamental, com o desrespeito intolerável da dignidade humana, bem como que, mesmo em havendo desvantagens para, digamos, o interesse de pessoas, individual ou coletivamente consideradas, acarretadas pela disposição normativa em apreço, as vantagens que traz para interesses de outra ordem superam aquelas desvantagens.
Os subprincípios da adequação e da exigibilidade, por seu turno, determinam que, dentro do faticamente possível, o meio escolhido se preste para atingir o fim estabelecido, mostrando-se, assim, “adequado”. Além disso, esse meio deve se mostrar “exigível”, o que significa não haver outro, igualmente eficaz, e menos danoso a direitos fundamentais. Sobre a distinção, vale referir a formulação do Tribunal Constitucional alemão:
“O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível, para que seja atingido o fim almejado. O meio é adequado, quando com seu auxílio se pode promover o resultado desejado; ele é exigível, quando o legislador não poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, mas que seria um meio não-prejudicial ou portador de uma limitação menos perceptível a direito fundamental.”[29]
As demais manifestações do princípio da proporcionalidade (em sentido amplo), por sua vez, já apresentam um grau bem maior de concreção, especialmente aquele referente à “adequação” (Geeignetheit), sendo isso o que possibilita subsumir a eles fatos diretamente, a exemplo do que se verifica com as normas que são regras, o que não ocorre com nenhum outro princípio. Essa peculiaridade o torna isento à critica que se faz ao uso de princípios no raciocínio jurídico, de que assim o Direito é visto de uma perspectiva deformante, “de cima para baixo”, quando as leis é que fornecem o ponto de vista adequado e normal, “de baixo para cima”: o “mandamento” ou “máxima da proporcionalidade”, ao mesmo tempo em que ocupa o posto mais alto na escala dos princípios, por ser o mais abstrato deles, por resolver seus problemas de colisões, contempla igualmente a possibilidade de “descer” à base da pirâmide normativa, informando a produção daquelas normas individuais que são as sentenças e as medidas administrativas. Por tudo isso, bem como pela intima relação que guarda com a “essência” ou “idéia do direito” (Rechtsidee) – como já acentuou, entre outros, KARL LARENZ[30] -, é que se vê no princípio da proporcionalidade a expressão mais própria da norma fundamental (Grundnorm), a qual Kelsen nunca conseguiu definir de uma forma satisfatória, por só vislumbrá-la no topo de sua pirâmide normativa, quando o lugar mais acertado para um fundamento é mesmo na base de tal pirâmide.
É assim que, mesmo no caso das normas que compõem o princípio da proporcionalidade (em sentido amplo), não a concebemos como dotadas da natureza de regras, até porque não se acham explicitadas em todo e qualquer ordenamento jurídico, tal como verificamos entre nós, onde o princípio como um todo haverá de ser deduzido do regime constitucional de direitos fundamentais por nós adotado, com base no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal – o mesmo se aplicando, aliás, ao princípio protetor e àquele da irrenunciabilidade dos direitos do trabalhador, com ele intimamente relacionado.
Com esta nova posição, o Poder Judiciário está autorizado pela Constituição a fazer os testes de proporcionalidade dos atos praticados pelos outros dois Poderes, taxando-os de desproporcionais e, por isso, inconstitucionais, quando for o caso, sem que esteja ferindo a separação dos poderes ou o pacto federativo. No mesmo sentido os atos praticados pelos particulares podem e devem ser testados (eficácia horizontal dos direitos fundamentais ou, como dizem os alemães, aplicabilidade frente a terceiros).
Um traço característico importante da teoria dos princípios é a necessidade de rigorosa exposição analítica das razões que levaram o intérprete à tomada de uma decisão; expor, com aprofundamento, quais foram os critérios que o levou a adotar uma entre várias soluções possíveis, taxando as não adotadas de desproporcionais. Com a fundamentação rigorosa proporcionará o controle pelos demais atores sociais e afasta-se a crítica merecida de que a aplicação de princípios importa em casuísmos e ataque ao ideal de segurança jurídica (um dos fins do Direito).
Em linguagem metafórica, tal qual o engenheiro, que quando constrói a base de sustentação de um edifício, deve o jurista adequar sua fundamentação. Com efeito, quando se edifica um uma rocha, o sustentáculo natural é mais firme e rigoroso, mas quando se constrói sobre solo arenoso ou pantanoso, o engenheiro deve adaptar seu projeto para buscar uma sustentação artificial do projeto mais profunda, de igual modo o jurista ao lidar com os princípios deve construir seus alicerces com fundamentação analítica e profunda, aprimorando seu projeto construtivo.
Vejamos, nesse particular, a lição de DANIEL SARMENTO, que bem retrata a forma descuidada que a maioria trata os princípios constitucionais:
“(…) muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça -, passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com os seus jargões grandiloqüentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras “varinhas de condão”: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser.”[31]
6. ADEQUAÇÃO CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA IRRENUNCIABILIDADE
É de se perceber que a Constituição não adotou explicitamente qualquer princípio específico do Direito do Trabalho, na medida em que no rol do artigo 7º não fez referência à irrenunciabilidade ou qualquer outro, diferentemente do que fez em relação a outros temas como ordem econômica (artigo 170) e previdência social (artigo 194). Entretanto, não se pode olvidar que em tantos outros dispositivos deixou bastante claro que a valorização do trabalho (artigo 170), a busca do pleno emprego (inciso VIII do artigo 170), a função social da propriedade (inciso XXIII do artigo 5º), demonstra a vocação constitucional para o desenvolvimento social e solidário dos cidadãos.
Alguns mais desavisados, ou ideologicamente comprometidos, poderiam objetar a existência do inciso VI do artigo 7º, onde o constituinte originário deixou clara a possibilidade de renúncia/sacrifício de direitos do trabalhador, com o despojamento, com a interveniência sindical, do mais sagrado de seus direitos trabalhistas que é o salário. Logo, por conseqüência, todos os outros direitos também o seriam, rompendo com o mito da irrenunciabilidade. (sofisma de que “quem pode o mais pode o menos).
A premissa não é verdadeira, rogata venia. Atualmente, qualquer interprete sério da Constituição sabe que as regras que positivam restrições de direitos, antes de serem sinal da adoção de um princípio restritivo, são a confirmação do inverso[32]. Em palavras outras, admitir a existência de princípio geral a partir de uma regra específica importaria, sem dúvida, no reconhecimento da imprestabilidade (ou inutilidade da regra do inciso VI do artigo 7º, v.g.), na medida em que se o princípio geral fosse o da renunciabilidade porque então prescrever a possibilidade de renúncia nesse caso específico? Pelo contrário. A positivação de regras de restrição indica que o princípio é o da irrenunciabilidade, sendo que a exceção deve ser de logo prevista e autorizada em casos excepcionais, como o fez o constituinte no inciso VI.
Da mesma forma que a colisão de princípios na resolução de caso concreto invoca o que atualmente se chama de técnica da ponderação, podem existir situações em que foi o próprio constituinte quem já fez a ponderação (rectius: pré-ponderação) e positivou o resultado como regra de exceção, como já visto. Existindo em determinados casos concretos conflito entre a valorização social do trabalho (e, por conseqüência, a irrenunciabilidade de direitos) e de outro lado os valores da livre iniciativa, ambos de alçada constitucional e sem hierarquia prima facie que possa resolver o imbróglio, o constituinte já pré-ponderou e deu a solução: excepcionalmente a livre iniciativa deve prevalecer, naquelas hipóteses estritas do inciso VI do artigo 7º da CF, por exemplo.
As forças antagônicas na Assembléia Nacional Constituinte, como deveras acontece em regimes de índole democrática, adotaram ideologias conflitantes e até mesmo incompatíveis, como se percebe claramente do preâmbulo (direitos sociais X desenvolvimento), artigo 1º (os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa), artigo 3º (desenvolvimento nacional X erradicação da pobreza), artigo 5º (propriedade privada X sua função social), artigo 170 (valorização do trabalho/busca do pleno emprego X livre iniciativa/livre concorrência), entre outros.
A nosso juízo a dialética entre os socialistas e liberalistas foi compatibilizada com a fórmula constitucional do Estado Democrático de Direito (artigo 1º). Um Estado de índole democrática deve comportar linhas ideológicas as mais diversas, interesses conflitantes entre si se vistos isoladamente, mas que reclamam conformação quando vistos globalmente. Essa idéia de conformação e equilíbrio que brota do artigo 1º da CF deve bafejar democracia em relação à legislação infraconstitucional também, no que se convencionou chamar da técnica da interpretação conforme à Constituição.
Tal qual o Código Civil de 2002, que agregou ideais de viés social e coletivo, como boa-fé objetiva, função social dos contratos, suavização da cláusula do pacta sunt servanda, etc., com a superação do Código Civil de 1916, de matiz desenganadamente individualista e liberal, deve a CLT também suavizar seu caráter apenas social e colher alguns ideais de liberdade, como a maior valorização da vontade das partes, admissão de renúncias e transações justificadas, a valorização das normas coletivas, etc.
As legislações civis e trabalhistas ao invés de trilharem caminhos opostos e intocáveis, devem caminhar pela mesma via, pavimentada pelo amálgama democrático da atual Carta Política de 1988, evidentemente cada um dos ramos especializados com suas características especiais, como de resto deve se dar com toda a legislação.
Ao que parece, a esmagadora maioria dos estudiosos do Direito do Trabalho ainda não fez essa transição, essa passagem, entre a ideologia social e intervencionista da antiga legislação trabalhista para o paradigma do Estado Democrático de Direito. No mais das vezes invocam direitos fundamentais da Constituição para justificar a posição inflexível e de sempre proteger os direitos dos trabalhadores, esquecendo-se aqueles outros direitos da parte contrária (empregadores), também de alçada constitucional.
Ao intérprete, e o Poder Judiciário nessa qualidade, cabe a necessidade de ponderação e de adequação dessas duas linhas ideológicas (socialismo X liberalismo), sem que uma supere a outra prima facie, até porque quando do conflito de princípios de mesma hierarquia formal a resposta não é dada pelo sistema pela regra do tudo ou nada ou de modo antecipado. Pensamos que a se admitir que sempre os interesses do trabalhador devem prevalecer sobre aqueles do empregador estar-se-ía negando a própria natureza de princípio aos direitos fundamentais dos trabalhadores, entre eles a irrenunciabilidade, pois a característica essencial que diferencia o princípio das regras é a possibilidade de adequação e ponderação em casos concretos, ora um prevalecendo um pouco mais, ora outro, sempre com os olhos nos limites de seu núcleo essencial, qual seja a dignidade da pessoa humana.
Paradigmática a seguinte passagem de ROBERT ALEXY:
“O problema da invalidade de princípios dizia respeito a princípios extremamente fracos, isto é, princípios que em caso algum prevalecem sobre outros. No caso dos princípios absolutos trata-se de princípios extremamente fortes, isto é, de princípios que em nenhuma hipótese cedem em favor de outros. Se existem princípios absolutos, então, a definição de princípios deve ser modificada, pois se um princípio tem precedência em relação a todos os outros em casos de colisão, até mesmo em relação ao princípio que estabelece que as regras devem ser seguidas, nesse caso, isso significa que sua realização não conhece nenhum limite jurídico, apenas limites fáticos. Diante disso, o teorema da colisão não seria aplicável.
É fácil argumentar contra a existência de princípios absolutos em um ordenamento jurídico que inclua direitos fundamentais. Princípios podem se referir a interesses coletivos ou a direitos individuais. Se um princípio se refere a interesses coletivos e é absoluto, as normas de direitos fundamentais não podem estabelecer limites jurídicos a ele. Assim, até onde o princípio absoluto alcançar não pode haver direitos fundamentais. Se o princípio absoluto garante direitos individuais, a ausência de limites desse princípio leva à seguinte situação contraditória: em caso de colisão, os direitos de cada indivíduo, fundamentados pelo princípio absoluto, teriam de ceder em favor dos direitos de todos os indivíduos, também fundamentados pelo princípio absoluto. Diante disso, ou os princípios absolutos não são compatíveis com direitos individuais, ou os direitos individuais que sejam fundamentados pelos princípios absolutos não podem ser garantidos a mais de um sujeito de direito.”[33]
Na esteira da lição do afamado professor germânico é de simples verificação que em nosso sistema jurídico constitucional, também de Estado Democrático de Direito, não existem princípios absolutos. Expomos a nossa opinião alhures com a demonstração da interpretação do inciso VI do artigo 7º, bem assim poderíamos fazer em relação ao direito a vida (restrição: pena de morte em caso de guerra), por exemplo.
Preciso o escólio de VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA:
“A figura da renúncia a direitos é conhecida desde o direito romano. Sua recepção no âmbito do direito público sempre foi, contudo, problemática. No âmbito dos direitos fundamentais, por sua vez, a possibilidade de renúncia costuma ser rejeitada de pronto.
Quando se menciona as principais características dos direitos fundamentais, costuma-se falar em inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade. Se se encaram tais características como simplesmente prima facie, podem elas desempenhar alguma função, mas não é possível imaginar que o problema se esgote por aí. Casos difíceis e limítrofes – e muitos não tão limítrofes assim – não podem ser explicados de maneira tão simples e genérica e não é difícil encontrar contra-exemplos que demonstrem as limitações da aceitação absoluta dessas características. (…)
Os exemplos seriam muitos, mas esses são suficientes para ilustrar a falta de força explicativa de classificações como a mencionada acima, especialmente quando tais classificações pretendem ter aplicação absoluta a todos os direitos fundamentais, sem nenhuma exceção.”[34]
No mesmo sentido preleciona DANIEL SARMENTO:
“Já se tornou lugar-comum a afirmação de que, apesar da relevância ímpar no papel que desempenham nas ordens jurídicas democráticas, os direitos fundamentais não são absolutos. A necessidade de proteção de outros bens jurídicos diversos, também revestidos de envergadura constitucional, pode justificar restrições aos direitos fundamentais. Tem-se entendido que o caráter principiológico das normas constitucionais protetivas dos direitos fundamentais permite ao legislador que, através de uma ponderação constitucional dos interesses em jogo, estabeleça restrições àqueles direitos, sujeitas, no entanto, a uma série de limitações (são os chamados “limites dos limites”).”[35]
E a restrição a direitos fundamentais não se dá apenas quando foi de forma expressa autorizada pelo constituinte originário, também poderá ser feita a restrição pelo legislador ordinário e, em último caso, pelo intérprete quando houver necessidade de solucionar colisão entre eles sem nenhuma solução dada pela Constituição ou pelas leis. Trata-se de autorização implícita de restrição em prol da harmonização dos valores constitucionais, cuja técnica de argumentação foi vista no tópico anterior.
Em tese de doutoramento[36], JORGE REIS NOVAIS, examina a temática em foco, concluindo que as restrições não só são admissíveis, como são, em verdade, inevitáveis. Eis trecho de sua lição:
“(…) Ora, esta inevitabilidade de colisões de bens constitucionais ou de desenvolvimento de exigências de sentido contrário decorrentes das garantias constitucionais não é um problema que se coloque apenas à Administração e aos tribunais na decisão de situações ou controvérsias jurídicas concretas. Na medida em que o legislador, condicionado pela dimensão objectiva dos direitos fundamentais, está obrigado a antecipar, prevenir e regular a solução dessas situações de conflito ou de tensão, pode dizer-se que se trata de um problema que, em planos mais gerais e abstractos ou concretos e individualizados, afecta todos os poderes constituídos.
A necessidade, imposta pelo princípio da unidade da Constituição e pelo princípio da igualdade, de compatibilizar os valores em conflito no sentido da sua realização optimizada pode ser acompanhada da impossibilidade objectiva de satisfação integral de cada uma das normas constitucionais que garantem os bens em conflito. Nessa altura, há uma inevitabilidade objectiva de limitação, eventualmente recíproca, dos efeitos jurídicos que emanam das disposições constitucionais e, porventura, a eventual necessidade de afetação desvantajosa do conteúdo de proteção à partida contido na norma de direito fundamental, mesmo que em alguns casos para isso não se disponha – até porque tal seria objectivamente impossível para todas as situações – de autorização constitucional expressa. A não consideração da possibilidade de restringir os direitos fundamentais sem reservas quando em colisão com outros bens constitucionais teria como contrapartida necessária a não observância ilegítima de outras normas constitucionais por parte dos poderes constituídos que se vissem colocados perante a necessidade de resolver as situações de conflito.”[37]
Será que apenas o princípio implícito da irrenunciabilidade é absoluto, como a prática trabalhista – ou, pelo menos, se não a maioria dela, aquela mais difundida – tem demonstrado?
Evidentemente que não.
Mais uma vez invocamos as conclusões de DANIEL SARMENTO:
“Mas, por outro lado, parece-nos que, afora os casos de direitos fundamentais especificamente endereçados contra particulares, será sempre necessário levar em consideração, na resolução do caso concreto, a autonomia do ator privado, mesmo quando a hipótese envolver uma relação jurídica manifestamente assimétrica. Concordamos, no particular, com Ingo Sarlet, quando, apesar de reconhecer a relevância do problema da desigualdade fática na aplicação dos direitos humanos nas relações privadas, registra que os particulares detentores de poderes sociais são também titulares de direitos fundamentais, e a sua autonomia privada não deixa de ser protegida constitucionalmente. Assim, segundo ele, nem mesmo nas relações e que esses poderes sociais sejam parte ‘(…) se poderá deixar de reconhecer a existência de um conflito de direitos fundamentais, tornando-se indispensável uma compatibilização (harmonização) à luz do caso concreto, impedindo um tratamento idêntico ao das relações particular – poder público’.”
“De outra banda, é importante frisar que a influência da desigualdade fática na incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas não comporta simplificações equivocadas e não cabe dentro de fórmulas matemáticas. Há uma enorme variedade de situações heterogêneas, que não devem e não podem ser equiparadas pelo intérprete. Têm pouco em comum relações com as que existem, por exemplo, entre pais e filhos, empregador e empregado, ordem religiosa e seus membros, sindicato e seus filiados. As peculiaridades de cada um destes vínculos, assim como o liame existente, em cada caso, entre o tipo de poder exercido pela parte mais forte da relação e a natureza do direito fundamental em jogo, têm de ser levadas em consideração para solução correta do litígio em questão.”[38]
Nesse contexto, concluímos o tópico reconhecendo que a irrenunciabilidade é um princípio constitucional implícito, mas como todo princípio admite ponderação nos casos concretos e a sua retração fundamentada pela regra contida no princípio de proporcionalidade pode e deve ser aceita. As restrições aos direitos fundamentais podem estar presentes no texto da Constituição (inciso VI do artigo 7º) ou em uma lei infraconstitucional (banco de horas, etc), nesse último caso a espécie normativa deve comportar uma restrição proporcional, justificada, senão será tida como inconstitucional, na medida em que ataca o núcleo vital de direitos fundamentais, constitucionalmente garantidos. Em sede de Direito do Trabalho também admitimos a restrição proporcional aos direitos trabalhistas feita por negociação coletiva, com as garantias acima.
Seria, a nosso ver, totalmente válida uma cláusula de norma coletiva na qual o empregador forneceria transporte gratuito aos empregados para deslocamento para o trabalho (local de difícil acesso), mas com renúncia dos trabalhadores às horas in itinere que teriam direito. Haveria admissão, diante das circunstâncias do caso concreto, de que os trabalhadores renunciassem seu direito para lograr a conquista de um benefício (transporte gratuito e acessibilidade ao local de trabalho). Neste caso, nada obstante a renúncia de direitos, não houve qualquer restrição desproporcional ao cerne dos direitos fundamentais trabalhistas, não tendo porque se falar em nulidade da cláusula.
Se assim não fosse, pelo direito posto, o empregador ou poderia cobrar pelo transporte (desnaturando o direito às horas itinerárias) ou mesmo não fornecer nenhum transporte, ficando os próprios trabalhadores responsáveis pelos meios e pelos gastos de acesso ao local de trabalho. Percebe-se que a celebração coletiva, com renúncia de ambas as partes, compatibilizou os direitos conflitantes e trouxe benefícios a todos, sem atingir o núcleo essencial dos direitos fundamentais de trabalhadores e empregadores.
Por evidente, que não se admite como proporcional as renúncias à direitos de proteção da saúde e segurança dos trabalhadores, direitos da personalidade, entre outros, por exemplo.
Fica a nossa sugestão para a reflexão e o debate.
CONCLUSÕES
1. O Direito do Trabalho surgiu comprometido ideologicamente com ideais socialistas (marxismo), incorporando matiz extremamente intervencionista.
2. No Brasil, pela influência do Governo Vargas, foram recepcionados os ideais intervencionistas e foram plasmados em diversos dispositivos legais da CLT.
3. A jurisprudência trabalhista atual é reflexo dessa carga ideológica na qual a CLT foi gerada, bem por isso aplicam-se os princípios de forma absoluta, sempre em favor dos direitos dos trabalhadores.
4. Existem no mundo ao todo três linhas ideológicas de legislação obreira, uma extremamente intervencionista, outra bastante liberal e uma terceira mediana, em que o Estado fixa patamares mínimos de proteção e as partes contratantes estipulam as demais cláusulas contratuais, como é a nossa atual sistemática trabalhista iniciada a partir da Constituição Federal de 1988.
5. O atual modelo metodológico de interpretação do direito é aquele que foi intitulado de pós-positivista, com proposta de superação dialética (ou seja, conservando-o em parte e acrescentando algo de sua antítese, o jusnaturalismo, a saber, a dimensão valorativa) do positivismo, com fundamento na existência de força normativa idêntica em regras e princípios; na idéia de que o atual conflito de princípios resolve-se pela técnica da ponderação e nos testes da proporcionalidade; existe maior necessidade de fundamentação e apresentação de argumentação analítica para justificar a adoção de uma solução entre as várias possíveis.
6. A Constituição Federal demonstra a adoção da irrenunciabilidade como um princípio implícito trabalhista, mas que não é absoluto e comporta restrição tanto por meio de exceções constitucionais (inciso VI do artigo 7º), por lei infraconstitucional, neste último caso sem que a restrição ofenda o núcleo essencial dos direitos.
7. Em sede de Direito do Trabalho, poderá haver restrição proporcional de direitos, para conquista de outro benefício, por meio de negociação coletiva. Entendemos que uma cláusula coletiva poderia reduzir algum direito previsto em lei, desde que em outra parte concedesse outro benefício, guardando correlação e proporcionalidade.
8. A plasticidade dos princípios, naturalmente aquele da irrenunciabilidade, pode levar às situações concretas em que a restrição aos direitos dos trabalhadores é permitida para agasalhar algum direito dos empregadores.
9. O modelo constitucional nacional, reflexo dos debates constituintes pré-1988, procurou abarcar posições ideológicas diversas, positivando-se direitos de matiz liberal e outros de matiz social que entrarão, certamente, em rota de colisão.
10. A colisão não é resolvida em abstrato ou apriorísticamente em favor sempre dos trabalhadores, mas haverá necessidade de sopesamento em cada caso concreto.
11. A chave para dar segurança jurídica à teoria dos princípios e justificar de modo fundamentado a ponderação é a adoção do super princípio da proporcionalidade, com as suas três sub-regras da adequação, necessidade e a proporcionalidade estrita. Da mesma forma que é um princípio, a proporcionalidade pode ser aplicada quase como um regra, ou seja, subsumindo os fatos aos seus três sub-princípios.
12. Por meios das técnicas expostas acima, admite-se a regra da irrenunciabilidade e a possibilidade, pontual e fundamentada, de renúncia e transação (extrajudicial).
Doutorando em Filosofia do Direito (PUC-SP), Mestre em Direito do Trabalho (PUC-SP), Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual Civil (UCB-RJ), Bacharel em Direito (UFMT), Professor da Escola Superior da Magistratura Trabalhista de Mato Grosso e Juiz do Trabalho Titular na 23ª Região
Livre-Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pós-Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Ciência do Direito pela Universidade de Bielefeld, Alemanha. Mestre em Direito pela PUC/SP. Professor Titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professor nos programas de Pós-graduação em sentido estrito em Direito da PUC/SP e da Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro. Professor da Pós-graduação lato sensu e da Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo.
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