Gabriel Prado Souza de Oliveira: Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Pós-graduando em Direito na Escola Paulista de Direito (EPD). Advogado em São Paulo. gabriel.pso97@gmail.com.
Resumo: Este trabalho analisa a regra do artigo 166 do Código Tributário Nacional no que tange à legitimidade de, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, o chamado contribuinte de direito, que tenha repercutido o valor de um tributo ao contribuinte de fato, ter direito à restituição do respectivo valor que não atingiu sua esfera patrimonial. É feita também uma análise da situação do contribuinte de fato relativamente a tal cenário. Para tanto, é necessário verificar se a disposição legal é coerente com o ordenamento jurídico, através de pesquisas legislativa, doutrinária e jurisprudencial. Verifica-se que a regra extraída do referido dispositivo legal está em dissonância com normas, de variadas naturezas, integrantes do ordenamento jurídico.
Palavras-chave: Processo tributário. Repetição do indébito. Código Tributário Nacional. Ordenamento jurídico brasileiro.
Abstract: This paper analyzes the rule of article 166 of the Brazilian Taxation Code with respect to the legitimacy of, in the light of the Brazilian legal system, the so-called “taxpayer by law”, who has passed on the value of a tax to the “taxpayer in fact” to be entitled to restitution of the tax, respective value that did not reach its equity sphere. An analysis is also made of the “taxpayer in fact’s” situation in relation to such a scenario. Therefore, it is necessary to verify whether the legal provision is consistent with the legal system, through legislative, doctrinal and jurisprudential research. It appears that the rule extracted from said legal provision is in dissonance with rules, of varying natures, which are part of the legal system.
Keywords: Tax procedure. Claim for refund. Brazilian Taxation Code. Brazilian legal order.
Sumário: Introdução. 1. Breves considerações sobre o conceito de tributo indireto e de contribuinte de fato. 2. Doutrina e jurisprudência sobre a legitimidade ativa prevista no artigo 166 do Código Tributário Nacional. 3. A legitimidade para pleitear a restituição do tributo objeto de repercussão permite o enriquecimento sem causa. 4. A repetição de tributo indireto objeto de repercussão e as condições da ação (artigo 17 do Código de Processo Civil). 5. Violação de normas constitucionais. Conclusão. Referências.
Introdução
O sistema tributário delineado na Constituição da República de 1988 é marcado pela sua riqueza de detalhes, notadamente pelo fato de a vigente Carta Política brasileira ser caracterizada, quanto à sua extensão, como analítica.
Referida riqueza de detalhes se dá principalmente no que tange aos princípios e às regras basilares do Direito Tributário.
Dentre os princípios elencados no Capítulo I do Título VI da Constituição Federal de 1988, ganha destaque para fins do presente estudo o princípio da legalidade. Segundo esse princípio, não é possível exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça (artigo 150, inciso I, da Constituição da República de 1988). Nesse sentido, em regra, os elementos fundamentais dos tributos em geral (fato gerador, sujeito passivo, alíquota e base de cálculo) devem estar bem delineados em lei stricto sensu, e em consonância aos comandos constitucionais (como, por óbvio, toda lei deve estar).
Ocorre que, por vezes, determinada exação é instituída pelo Estado sem observância dos requisitos constitucionais e nem mesmo dos requisitos legais (v.g., lei complementar nacional que define normas gerais e que não é observada por determinado Município), o que a torna indevida. Por outro lado, embora devido o tributo, por vezes o contribuinte o paga a maior ou até mesmo quando não é o sujeito passivo de determinada obrigação tributária.
Para tais casos, prevê o artigo 165 da Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional) que o sujeito passivo tem direito à restituição total ou parcial do tributo, nos casos em que especifica.
Especialmente para os chamados “tributos indiretos”, que serão abordados mais à frente, dispõe o artigo 166 do Código Tributário Nacional que a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.
Conforme será demonstrado ao longo do presente trabalho, embora sem maiores aprofundamentos do tema, dado o caráter mais objetivo do presente artigo, a supracitada previsão legal gera discussão nos âmbitos doutrinário e principalmente jurisprudencial, uma vez que permite àquele que de fato não tenha suportado o encargo financeiro do tributo, pleitear sua restituição perante o Fisco.
Logo, o objeto deste trabalho é analisar a regra do artigo 166 do Código Tributário Nacional (somente) no que tange à legitimidade de, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, o chamado contribuinte de direito, que tenha repercutido o valor de um tributo ao contribuinte de fato, ter direito à restituição do tributo que, em verdade, não invadiu sua esfera patrimonial.
É feita também uma análise da situação do contribuinte de fato relativamente a tal cenário. Não se analisa neste breve estudo o caso em que o contribuinte de direito prove ter assumido o encargo do tributo indireto, pois assim é patente o seu direito a reclamar a restituição em juízo ou diretamente perante o Fisco.
Para tanto, faz-se a abordagem do presente trabalho através de estudo doutrinário, das normas vigentes no ordenamento jurídico brasileiro e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, sendo assim uma pesquisa bibliográfica e documental.
O presente trabalho está dividido em sete pequenos itens. No primeiro item (o presente) é feita uma brevíssima introdução e contextualização do tema. Nos demais itens, são apresentados conceitos pertinentes ao presente trabalho (como o de tributo indireto), posições doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema, bem como considerações que envolvem a aplicação do direito material e do direito processual (princípios e regras), inclusive sob a égide da Constituição da República de 1988.
Assim, busca-se fazer uma análise do tema adotando-se uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, pois, para os fins do presente estudo, referido método de interpretação se mostra mais apto e pertinente, na medida em que tem por propósito a resolução de conflitos de normas jurídicas (FRIEDE, 2011, p. 167).
Ao final, é apresentada a conclusão do presente artigo.
1 Breves considerações sobre o conceito de tributo indireto e de contribuinte de fato
Para os fins do presente artigo, necessário explorar, ainda que de forma sucinta, a noção do conceito de tributo indireto e de contribuinte de fato. Isso porque o vigente Código Tributário Nacional dispõe em seu artigo 166 que a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.
Há certos tributos, como, por exemplo, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), cuja repercussão tributária (ou seja, a transferência do respectivo encargo a terceiro) é de mais fácil visualização na prática (principalmente quando da análise de notas fiscais). Para melhor elucidação do que é um tributo indireto, oportuna é a colação da lição do professor e magistrado Sergio Pinto Martins (2018, p. 119), que diferencia tributo indireto de tributo direto, bem como contribuinte de direito e contribuinte de fato, da seguinte forma: “Nos tributos diretos, quem paga e suporta o ônus é o contribuinte de direito, não repassando nada a terceiro (exemplo: imposto de renda). Nos tributos indiretos, quem realmente suporta o tributo é o contribuinte de fato, que, ao comprar a mercadoria, tem repassado pelo contribuinte de direito o tributo para o preço dela (exemplo: ICMS).”
O repasse do valor do tributo é comumente chamado pela doutrina e pela jurisprudência de repercussão tributária ou repercussão econômica do tributo, em que “o ônus tributacional repercute sobre o ocupante da fase posterior numa operação plurifásica, não sendo de responsabilidade daquele que deu ensejo à circulação originária” (SABBAG, 2018, p. 493).
O professor Hugo de Brito Machado Segundo (2018, p. 447) critica a referida classificação, pois todo tributo (seja ele classificado como direto ou indireto), em verdade, comporta transferência do encargo financeiro.
Diz o citado autor: “A rigor, de um ponto de vista econômico, todo tributo comporta transferência do encargo financeiro. Aliás, não apenas todo tributo, mas todo e qualquer ônus sofrido, por quem quer que seja, comporta, em tese, transferência do encargo financeiro a terceiros. No âmbito de uma sociedade comercial, o preço das mercadorias pode – aliás, deve, para que a empresa seja lucrativa e não vá à falência – servir para que aquele que as vende recupere o que gastou com aluguel de máquinas e imóveis, salários, energia elétrica, água, telefone, frete etc. Tudo isso é “repercutido” nos preços dos bens ou serviços vendidos, sob pena de a atividade não se mostrar lucrativa. Note-se que, mesmo entre os tributos, não há uma “espécie” cujo ônus possa ser repassado a terceiros, e outra em que isso não seja possível. Impostos considerados “indiretos”, como o ICMS e o IPI, podem eventualmente ser economicamente suportados apenas pelo vendedor, e não pelo comprador da mercadoria correspondente. Por outro lado, impostos como o IPTU, ou o Imposto de Renda, usualmente considerados “diretos”, são não raro repercutidos, a exemplo do que ocorre entre o médico autônomo e o seu paciente (o médico “embute” o IRPF em seus honorários), e o locador e o locatário de um imóvel (o locador “transfere” o ônus do IPTU ao locatário). Muitos outros exemplos poderiam ser citados, com quaisquer tributos.”
O citado autor (o professor Hugo de Brito) prossegue fazendo uma diferenciação entre repercussão jurídica e repercussão meramente econômica do ônus do tributo. Segundo o referido professor, a primeira modalidade de repercussão do tributo ocorre quando normas jurídicas elegem como sujeito passivo pessoa distinta daquela que realiza o fato gerador (como, por exemplo, a retenção, pela fonte pagadora, do imposto sobre a renda auferida por terceiro). Já a repercussão econômica se dá quando o fato gerador é realizado pelo próprio sujeito passivo da obrigação tributária, inexistindo norma que lhe obrigue de exigir de terceiro o tributo pago (2018, p. 448).
Nesse sentido, o citado doutrinador conclui que: “Como todo tributo pode, do ponto de vista econômico, ser repassado, não é a este repasse econômico que o art. 166 do CTN se está referindo. O dispositivo em comento faz alusão aos “tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro”, deixando claro que existem aqueles que não comportam essa transferência. É à transferência jurídica do encargo, portanto, que o artigo se reporta. Exemplo de tributo repassado juridicamente é o Imposto de Renda Retido na Fonte, a CPMF, a contribuição previdenciária (parcela do empregado) e todos aqueles exigidos no âmbito de sistemáticas de “substituição tributária”, nos termos do art. 128 do CTN […].” (2018, p. 449).
As duas Turmas de Direito Público do Superior Tribunal de Justiça (Primeira e Segunda Turmas da Primeira Seção), por sua vez, entendem que há repercussão jurídica quando a lei institua a substituição tributária (artigo 128 do Código Tributário Nacional), e quando o tributo tenha como fato gerador uma operação, na qual duas pessoas participem, onerando o primeiro sujeito desta operação e possibilitando que esse primeiro sujeito, no âmbito do negócio firmado, acrescente o ônus do tributo, repercutindo-o de modo direto e imediato no preço ao segundo sujeito da operação.
Portanto, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça é mais abrangente do que, por exemplo, o do professor Hugo de Brito Machado Segundo, sendo mais próximo ao de Eduardo Sabbag (conforme citado acima).
Pode-se entender que aquilo que é chamado por alguns de “mera repercussão econômica do tributo”, por ter previsão no artigo 166 do Código Tributário Nacional (previsão em lei, portanto) é, em verdade, uma classificação tornada jurídica por vontade do legislador.
Adotando os ensinamentos acima demonstrados, temos que o tributo indireto é aquele passível de repercussão, por parte do sujeito passivo da obrigação tributária (contribuinte de direito) a um terceiro, chamado de contribuinte de fato. Referida repercussão do encargo do tributo se dá por determinação legal ou quando há o seu acréscimo ao preço de um bem objeto de operação plurifásica.
Pelo visto acima, percebe-se que no caso dos tributos indiretos, passíveis de repercussão do respectivo encargo, de fato não há diminuição ou invasão no patrimônio do chamado contribuinte de direito, não obstante seja ele quem tenha a obrigação de repassar os valores ao Fisco, pois titular da relação tributária, ao contrário do chamado contribuinte de fato, que é terceiro no que tange a tal relação.
2 Doutrina e jurisprudência sobre a legitimidade ativa prevista no artigo 166 do Código Tributário Nacional
Foi demonstrado que na sistemática dos tributos indiretos não há verdadeira agressão ao patrimônio do contribuinte de direito, não obstante seja ele quem tenha a obrigação de repassar os valores ao Fisco, ao contrário do que ocorre com o chamado contribuinte de fato, terceiro no que tange à obrigação tributária.
Ocorre que, à luz do artigo 166 do Código Tributário Nacional, a partir de uma interpretação literal do seu enunciado, tem-se que, mesmo tendo repassado o encargo financeiro do tributo a um terceiro, o contribuinte titular da relação jurídico-tributária pode pleitear a restituição do tributo indevidamente recolhido aos cofres públicos.
Nesse diapasão, o referido dispositivo legal não autoriza o contribuinte de fato pleitear a restituição do tributo indevidamente pago.
Oportuno citar o referido dispositivo legal na íntegra: Art. 166. “A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.”
E a interpretação mencionada acima é a que vem sendo dada pela jurisprudência e por parte da doutrina, conforme será demonstrado a seguir.
Analisando o artigo 166 do Código Tributário Nacional, o magistrado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Leandro Paulsen (2014, p. 206), entende que: “Aquele que paga tributo em nome de outrem não tem legitimidade para pleitear a sua repetição. Isso porque não há relação jurídica que o vincule ao sujeito ativo da relação tributária. O pagamento, por si só, seja efetuado por liberalidade do pagador ou em cumprimento a compromisso assumido, não legitima o pagador. […] O locatário que paga o IPTU em nome do locador, e o vendedor de imóvel que efetua o pagamento do ITBI em nome do adquirente […] não se legitimam à repetição, cabendo referir, nesses casos, ainda, que os contratos não são oponíveis ao fisco, conforme o art. 123 do CTN.”
No mesmo sentido, para Eduardo Sabbag (2016, p. 1859): “[…] cabe ao contribuinte de direito pleitear a repetição do indébito, desde que fique comprovada a não transferência do encargo financeiro […] relativo ao tributo, ou esteja ele autorizado expressamente pelo terceiro que suportou o referido encargo a receber a restituição […].”
O Supremo Tribunal Federal, entendia que “[e]mbora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indireto”, conforme enunciado de número 71 da Súmula do referido Tribunal, aprovada em sessão plenária de 13.12.1963.
Ocorre que, com o advento do Código Tributário Nacional em 1966, a restituição de tributo indireto passou a ser permitida expressamente (artigo 166).
Assim, o Supremo Tribunal Federal, atualizando sua jurisprudência, passou a entender que “[c]abe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo” (enunciado 546 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, aprovada em sessão plenária de 03.12.1969).
Ou seja, o entendimento do Supremo Tribunal Federal coincide com a literalidade do enunciado do artigo 166 do Código Tributário Nacional.
O Superior Tribunal de Justiça, que vem enfrentando mais vezes a matéria, entende que a exigência legal de que o contribuinte de direito tenha suportado o ônus tributário ou esteja autorizado pelo contribuinte de fato a pleitear a restituição, não legitima este reclamar a restituição em face do Fisco.
Nesse sentido, são os seguintes julgados para conferência: AgRg no REsp 1.228.837/PE, AgRg no REsp 1.233.729/SC e, principalmente, REsp 903.394/AL (cujo julgamento foi realizado sob o rito do artigo 543-C do Código de Processo Civil de 1973, ou seja, recurso repetitivo).
A partir da análise do mencionado REsp 903.394/AL, Sabbag (2016, p. 1468-1469) sintetiza bem o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, da seguinte forma: “(I) o contribuinte de fato não integra a relação jurídico-tributária, a qual se mantém adstrita apenas ao contribuinte de direito, o verdadeiro sujeito passivo da obrigação tributária; (II) o art. 165 do CTN assegura a restituição apenas ao sujeito passivo da obrigação tributária, o que deve ser considerado, pela via da interpretação sistemática, quando se aplica o art. 166 do CTN. (III) o fato de existir um condicionamento para que o contribuinte de direito possa predicar a devolução – o de que não tenha ocorrido a transferência do ônus para o contribuinte de fato – não transfere a este a legitimidade para exercer a mesma pretensão.”
Sobre o fundamento do Superior Tribunal de Justiça, de que o contribuinte de fato não pode reclamar o indébito por não integrar a relação jurídico-tributária, a doutrina faz severas críticas, pois em verdade trata-se de argumento incoerente, muitas vezes levantado pela Fazenda Pública simplesmente para impossibilitar a restituição do tributo indevidamente pago.
A esse respeito, v.g.: “Não é lícito, nem moral, nem mesmo coerente, a conduta muitas vezes adotada pela Fazenda Pública, que, depois de negar a legitimidade ao contribuinte de direito por conta da suposta repercussão, nega essa legitimidade também ao contribuinte de fato, sob o argumento de que este ‘não integra a relação jurídica com a Fazenda’.” (MACHADO SEGUNDO, 2018, p. 452-453).
Ou seja, sobre o artigo 166 do Código Tributário Nacional, vem sendo aplicada uma interpretação literal pelo principal intérprete da legislação federal (Superior Tribunal de Justiça).
Portanto, segundo a jurisprudência e ao menos parte da doutrina, entende-se que, mesmo tendo repercutido o encargo do tributo, estando autorizado pelo contribuinte de fato, somente o contribuinte de jure pode reclamar a restituição em face do próprio Fisco (requerimento administrativo) e em juízo.
Sobre a autorização exigida pelo dispositivo objeto de análise, válido também apontar o entendimento de Luciano Amaro (2006, p. 425): “A “autorização” dada pelo terceiro opera em sentido análogo: se o terceiro, sabendo do recolhimento indevido, opta por permitir o pedido de restituição sem que, previamente, o contribuinte de direito o tenha ressarcido, não haveria por que violentar a vontade das partes, exigindo o prévio ressarcimento ao terceiro para legitimar a restituição.”
Por fim, apenas para registrar, convém apontar que a única hipótese vislumbrada pelo Superior Tribunal de Justiça para o contribuinte de fato pleitear a repetição do indébito tributário, é aquela na qual o contribuinte de fato é consumidor de serviços prestados por concessionárias, pois, nesse caso, a legislação especial prevê de forma expressa o repasse do ônus tributário. O mesmo ocorre no serviço essencial prestado em regime de monopólio, em que qualquer exação tende a ser repassada ao consumidor, conforme REsp 1.278.688/RS (PAULSEN, 2014, p. 206).
Entretanto, trata-se de hipótese que não ocorre tanto na prática se comparada àquelas em que os tributos são recolhidos por particulares atuantes no ramo privado e repassados a comerciantes e consumidores, razão pela qual não será explorada no presente trabalho.
3 A legitimidade para pleitear a restituição do tributo objeto de repercussão permite o enriquecimento sem causa
Conforme visto, a interpretação que se vem dando ao artigo 166 do Código Tributário Nacional é no sentido de que mesmo tendo repercutido o encargo do tributo, estando autorizado pelo contribuinte de fato, o contribuinte de jure pode reclamar a restituição perante o Fisco.
Ocorre que, sem mais delongas, a interpretação literal que vem sendo dada à referida norma, conforme demonstrado acima, permite o enriquecimento sem causa, o que é vedado pelo ordenamento jurídico.
O advogado português Luís Pedro Moitinho de Almeida (1996, p. 25), conceitua o enriquecimento sem causa da seguinte forma: “O enriquecimento sem causa é um evento, um fato que se verifica quando o patrimônio de alguém é aumentado, sem causa, pelo correlativo empobrecimento do patrimônio de outrem, embora não deixe de ser um conceito jurídico, um fato jurídico sintético com complexos formados à custa de fatos materiais concretos.”
A vedação ao enriquecimento ilícito, ou sem causa, é na verdade um princípio que por vezes é invocado pela doutrina e pela jurisprudência, calcado na moral, na boa-fé e nos princípios gerais do Direito, conforme previsto no artigo 4º do Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, que é a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Conforme ensinado pela doutrina, os princípios jurídicos possuem três funções que lhes são inerentes: função orientadora (orientam o legislador na produção das normas jurídicas), função interpretativa (são um norte para a interpretação das normas) e função normativa (são dotados de força normativa). (BALTAR NETO; TORRES, 2020, p. 50).
Se o contribuinte de direito paga tributo que, por qualquer motivo, não é devido aos cofres públicos, e embute o seu valor no preço de um produto ou serviço, será, em verdade, “indenizado” posteriormente pelo contribuinte de fato quando este pagar o respectivo preço. Nesse caso, o contribuinte de fato sim é quem arcará com o ônus do tributo, e terá consequentemente seu patrimônio agredido por uma exação eventualmente indevida.
Nessa mesma situação, quanto ao contribuinte de direito, a ele é franqueada a possibilidade de reclamar a restituição dos valores repassados ao Fisco, desde que demonstre a autorização por parte do contribuinte de fato, em clara possibilidade de enriquecimento sem causa.
Por exemplo: determinado prestador de serviço inclui no preço do seu serviço o valor correspondente ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN). Assim, evidentemente, o tomador desse serviço arcará com a carga tributária ao pagar o preço do serviço, já que neste já terá sido incluído o valor do referido imposto. Nesse mesmo exemplo hipotético, posteriormente, é verificado que a cobrança do referido imposto sobre o serviço prestado é indevida, pois o serviço não tem qualquer previsão na lista de serviços anexa à Lei Complementar n. 116, de 31 de julho de 2003, que dispõe sobre o ISSQN. O tomador do serviço, mesmo arcando com o ônus tributacional, nada poderá reclamar, ao contrário do prestador do serviço, mesmo já tendo sido “indenizado” pelo tomador.
No caso hipotético acima, vê-se clara a possibilidade de enriquecimento sem causa do sujeito passivo da obrigação tributária, isto é, do prestador de serviços.
4 A repetição de tributo indireto objeto de repercussão e as condições da ação (artigo 17 do Código de Processo Civil)
Nos termos do artigo 17 da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), “[p]ara postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade”, sob pena de carência da ação e extinção do processo sem resolução do mérito.
Conforme definição de Alexandre Freitas Câmara (2016, p. 37), legitimidade “é a aptidão para ocupar, em um certo caso concreto, uma posição processual ativa”.
Conforme visto acima, a doutrina e a jurisprudência conferem legitimidade para o contribuinte de direito reclamar a restituição do tributo repercutido, desde que haja autorização pelo contribuinte de fato.
Ainda com base no escólio do professor Alexandre Freitas Câmara (2016, p. 38-39), interesse “pode ser definido como a utilidade da tutela jurisdicional postulada”, sendo que “aquele que vai a juízo em busca de providência inútil não tem interesse de agir e, por isso, verá o processo extinto sem resolução do mérito”.
Como dito acima, o valor do tributo dito indireto é embutido na mercadoria ou no serviço, de modo que o contribuinte de direito, nessa hipótese, é indenizado pelo contribuinte de fato quando este adquire o bem.
Portanto, ajuizar ação de repetição do indébito tributário, nesses moldes, é providência inútil ao contribuinte de direito, já que ele não teve seu patrimônio agredido pela exação fiscal (isso sem deixar de lado a tese do enriquecimento sem causa, tema de direito material).
Todavia, não é esse o entendimento aplicado na prática, conforme demonstrado acima.
Trata-se de incoerência também com as normas processuais.
5 Violação de normas constitucionais
Embora encontre limitações de ordem constitucional (BALTAR NETO; TORRES, 2020, p. 649), o direito de propriedade é consagrado como direito fundamental pela Constituição da República de 1988, que dispõe em seu artigo 5º, inciso XXII, que “é garantido o direito de propriedade”. Referido direito também é previsto no caput do mencionado artigo 5º.
Conforme demonstrado acima, no caso dos tributos indiretos, verifica-se facilmente a possibilidade de o contribuinte de fato ter seu direito de propriedade violado, na medida em que pode arcar com encargo financeiro relativo a tributo repercutido em produto ou serviço, sem poder pleitear a restituição da exação eventualmente indevida, conforme vem entendendo a jurisprudência do principal intérprete da legislação federal, o Superior Tribunal de Justiça.
Portanto, a esfera patrimonial do contribuinte de fato é ilegitimamente agredida.
Ainda, conforme se extrai do artigo 166 do Código Tributário Nacional e da jurisprudência mencionada nas linhas acima, aquele que teve direito lesado (o contribuinte de fato) se vê impedido ou não vislumbra amparo em ingressar em juízo para pleitear a restituição da exação indevida cuja carga financeira suportou.
O supramencionado dispositivo do Código Tributário Nacional é claro ao se referir ao terceiro como alguém não abarcado pela possibilidade de pleitear a restituição do tributo (quando diz “[…] no caso de tê-lo transferido [o encargo financeiro] a terceiro […]”).
É certo que o direito de ação é abstrato, ou seja, o indivíduo o possui independentemente de ter o direito substancial que alega. Entretanto, a lei e a jurisprudência entendem que o contribuinte de fato não tem direito à restituição do tributo dito indireto recolhido pelo contribuinte de direito e repercutido no produto ou serviço. Ou seja, ainda que o contribuinte de fato ingresse com medida judicial com base no artigo 165 do Código Tributário Nacional, certamente será considerado como parte ilegítima (artigo 485, inciso VI, Código de Processo Civil), de nada adiantando ter exercido o seu direito de ação.
Nesse cenário, ao final do processo, o contribuinte de fato ainda teria que arcar com os ônus da sua sucumbência (custas, despesas processuais e honorários advocatícios). Logo, não parece que a lesão a direito do contribuinte de fato é realmente apreciada pelo juiz.
Portanto, com a devida venia de quem entende o contrário, na atual conjuntura jurisprudencial e legal, na opinião do autor do presente artigo há clara violação ao inciso XXXV do artigo 5º da Constituição da República de 1988, que determina que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, garantia essa alijada do chamado contribuinte de fato.
Por outro lado, a possibilidade de o contribuinte de direito, no caso tratado no presente artigo, enriquecer sem causa em prejuízo do contribuinte de fato e, em última análise, da própria Fazenda Pública, fere também o princípio da igualdade, estampado no caput do artigo 5º da vigente Constituição Federal.
Em suma, vê-se que a norma em análise viola preceitos fundamentais, sendo em tese passível de arguição de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal com base no artigo 1º, parágrafo único, inciso I, da Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999, já que o Código Tributário Nacional (1966) é anterior à Constituição da República (1988), e o artigo 166 permanece com a sua redação original.
Embora não possam ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, as normas anteriores à Constituição Federal de 1988 podem ser objeto de uma espécie de “controle concentrado de recepção” (MORAES, 2016, p. 774).
O Supremo Tribunal Federal ainda não se manifestou sobre o que entende por preceito fundamental, mas a doutrina traz sugestões. Nesse sentido, podem ser entendidos como preceitos fundamentais aqueles que informam o sistema constitucional, que estabelecem comandados basilares indispensáveis à defesa dos pilares da manifestação do poder constituinte originário, incluindo o mencionado artigo 5º da Constituição, conforme preleciona Uadi Lammêgo Bulos (2000, p. 901, apud LENZA, 2010, p. 300-301).
Conclusão
Conforme foi demonstrado neste breve estudo a partir de uma interpretação sistemática envolvendo algumas (porém importantes) normas do ordenamento jurídico brasileiro, permitir que o contribuinte de direito obtenha o ressarcimento de valores que repercutiu em produto ou serviço possibilita o seu enriquecimento sem causa, bem como gera incompreensível incoerência no sistema normativo, violando também, em última análise, o princípio da igualdade (artigo 5º, caput, da Constituição da República de 1988).
Quanto ao contribuinte de fato, foi demonstrado que seus direitos e garantias fundamentais, todos de ordem constitucional, como o direito de propriedade e a apreciação de sua causa pelo Poder Judiciário (artigo 5º, incisos XXII e XXXV da Constituição da República de 1988), são manifestamente violados com a aplicação que vem sendo dada pela jurisprudência ao artigo 166 do Código Tributário Nacional.
Portanto, conclui-se que a regra insculpida no artigo 166 do Código Tributário Nacional, tratada neste trabalho, é passível de ser afastada ou de sofrer nova interpretação (embora possa haver violação à própria literalidade do enunciado) pelo Supremo Tribunal Federal, através do mencionado controle concentrado de recepção, bem como de ser reformada pela via mais adequada e democrática, que possibilita a inovação no ordenamento jurídico, isto é, pelo Poder Legislativo exercendo sua função típica.
Referências
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