Respeitar direitos não é favor! (A necessidade da efetiva implantação de condições de trabalho aos portadores de deficiência no serviço público)

Sumário: 1. Exortação inicial – 2. Introdução – 3. O direito ao trabalho como direito fundamental do homem – 4. O direito ao trabalho das pessoas portadoras de necessidades especiais – 5. Do concurso público como requisito para acesso a cargos, empregos e funções públicas – 6. Da gritante violação do direito fundamental ao trabalho das pessoas portadoras de necessidades especiais no concurso público para preenchimento de cargo de Auxiliar Administrativo do Banco Nossa Caixa S.A. – 7. Conclusão.


1. Exortação inicial


É mediante o trabalho que o homem deve procurar-se o pão quotidiano e contribuir para o progresso contínuo das ciências e da técnica, e sobretudo para a incessante elevação cultural e moral da sociedade, na qual vive em comunidade com os próprios irmãos. E com a palavra trabalho é indicada toda a atividade realizada pelo mesmo homem, tanto manual como intelectual, independentemente das suas características e das circunstâncias, quer dizer toda a atividade humana que se pode e deve reconhecer como trabalho, no meio de toda aquela riqueza de atividades para as quais o homem tem capacidade e está predisposto pela própria natureza, em virtude da sua humanidade. Feito à imagem e semelhança do mesmo Deus no universo visível e nele estabelecido para que dominasse a terra, o homem, por isso mesmo, desde o princípio é chamado ao trabalho. O trabalho é uma das características que distinguem o homem do resto das criaturas, cuja atividade, relacionada com a manutenção da própria vida, não se pode chamar trabalho; somente o homem tem capacidade para o trabalho e somente o homem o realiza preenchendo ao mesmo tempo com ele a sua existência sobre a terra. Assim, o trabalho comporta em si uma marca particular do homem e da humanidade, a marca de uma pessoa que opera numa comunidade de pessoas; e uma tal marca determina a qualificação interior do mesmo trabalho e, em certo sentido, constitui a sua própria natureza. (João Paulo II, Encíclica Laborem Exercens, 1981)


2. Introdução


Desde há muito tempo vem-se consolidando na sociedade brasileira, para restringirmos a questão em estudo à realidade de nosso País, a percepção da necessidade de repelirmos nossos preconceitos e adotarmos medidas efetivas e eficazes para a integração dos portadores de necessidades especiais em nosso meio, sem exclusão de qualquer campo ou qualquer atividade, com a adoção de instrumentos minimizadores das diferenças e do reconhecimento de eventuais limites que devem ser respeitados.


Tal conscientização é refletida em diversos comportamentos sociais, dentre os quais podemos destacar a legislação elaborada nos últimos anos, inegavelmente preocupada com a aplicação, na mais ampla acepção do vocábulo “igualdade”, do ideal de que todos somos iguais, se não formalmente, ao menos materialmente, conforme nos ensina Roberto Mendes Mandelli Júnior e Rodrigo Prado Targa (2003: 309).


Como é cediço aos operadores do Direito, a lei deve ser considerada como a expressão da vontade popular, representando, de maneira objetiva, quais são as aspirações e os ideais do grupo social que habita um determinado Estado. Tanto assim o é que o preâmbulo de nossa Magna Carta, promulgada no ano de 1988, expressamente identifica os Deputados Federais e Senadores da República constituintes como os “representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte”.


Neste diapasão, podemos estabelecer as duas ordens normativas que abarcam a questão dos portadores de necessidades especiais, sendo uma constitucional e outra infraconstitucional.


Ocorre que, a despeito da evidente e salutar mutação social no que tange à aceitação e ao desejo de integração com todas as pessoas, sejam elas portadoras de necessidades especiais ou não, sejam elas de determinada raça ou professem um específico credo, ainda temos que conviver com indivíduos ou grupos que, lamentavelmente, acreditam que a observância das regras morais e jurídicas constitui-se num favor e que, como tal, podem ser deixadas ao livre arbítrio de realizá-las ou não.


Ao que consta, é esta a hipótese contemplada no recente concurso público para o ingresso à carreira de servidor público estadual, especificamente para ingresso nos quadros de funcionários da Instituição Pública Financeira cuja razão social, desde 2001, é Banco Nossa Caixa S.A.


Referida Instituição Financeira, por força do que dispõe o artigo 37, II da Constituição Federal, deve preencher os cargos disponíveis por meio de concurso público de provas e títulos, de maneira tal a se evitar a prática nefasta e injusta do apadrinhamento político e da ineficiência do serviço público, ao ser prestado por pessoas desqualificadas e despreparadas para o labor para as quais foram indicadas.


Ainda como decorrência deste artigo, agora, todavia, em seu primeiro inciso, tem-se que “os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei.” Tal dispositivo somente veio complementar o que já havia previsto o texto constitucional no rol dos direitos sociais, que determinou como regra cogente, que o trabalho é um direito social.


Sendo assim, qualquer brasileiro, sendo ele portador de necessidades especiais ou não, tem o direito fundamental, com esteio constitucional, de ter um emprego e de buscá-lo, se público, pela via democrática e justa do concurso público, desde que preencha os requisitos previstos em lei.


Ocorre que a Instituição Financeira, em decisão de extrema infelicidade e de manifesto preconceito, ao oferecer vagas para o preenchimento, por concurso público, de cargo de Auxiliar Administrativo, “generosamente” possibilitou a concorrência por portadores de necessidades especiais, desde que, entretanto, que eles se adequassem aos equipamentos e instalações da empresa de direito público.


Cremos que resida, nesta condição, a suprema inconstitucionalidade do edital do concurso, que fere mortalmente, por vício material, inúmeros princípios e regras jurídicas, notadamente o princípio da dignidade humana e o princípio da isonomia.


Discorreremos no presente estudo, sobre esta específica questão, expondo nossos argumentos e dando nossa pequena contribuição para a incansável e necessária busca por um País mais justo e solidário, que é justamente uma de nossas aspirações coletivas, vez que contemplado como objetivo fundamental de nossa República[1].


3. O direito ao trabalho como direito fundamental do homem


Nossa Constituição Federal elencou, em seu Título II, os direitos e garantias fundamentais conferidos a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País, estabelecendo, como premissa primeira, que todos devem ser considerados iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Tal rol, fixado em 12 artigos, não impede a inserção de outros direitos, conforme alerta o inciso 2º. do artigo 5º., tratando-se, pois, de agrupamento exemplificativo.


Por direitos fundamentais, podemos entendê-los com esteio na lição de Pérez Luño, citado por Alexandre de Moraes, cujas palavras são estas:


“…um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional…” (1998: 40)


Referidos direitos fundamentais podem ser classificados, quanto às suas características, de diversas formas, uma vez que diversas são as maneiras de olharmos para eles. Dentre as varias características possíveis de serem destacadas, apresenta-se como mais relevante, neste estudo, a denominada universalidade, que, segundo Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (1998: 60), está relacionada ao fato de serem os direitos fundamentais destinados a todos os seres humanos, não havendo qualquer espécie de exclusão ou limitação destes direitos a um grupo social. Estão, portanto, disponíveis a todos os indivíduos, independentemente de nacionalidade, sexo, raça, credo ou convicção política ou religiosa.


Ocorre que, antes da preocupação com a previsão positivista dos direitos fundamentais, possuem eles sustentáculo no Direito Natural, constituído este num conjunto de princípios diretores da conduta humana, derivados da razão e que forneceram a base para a construção da normatividade positivista, marcada pela preocupação com o registro escrito e formal das normas de cumprimento obrigatório e garantidas pela sanção jurídica.


Esta noção da existência de uma ordem de regras anteriores à formalidade positivista é descrita, com muita propriedade, por Edgar Bodenheimer (2000: 129), nestas palavras:


“Desde tiempos muy antiguos, filósofos y pensadores políticos  han sustentado la creencia de que tiene que haber un Derecho basado en lo más íntimo de la naturaleza del hombre como ser individual o colectivo. Han estado convencidos de que existía un Derecho natural permanente y enteramente válido, y que era independiente de la legislación, la convención o cualquier otro expediente imaginado por el hombre. Tras la inacabable variedad de los Derechos positivos y las costumbres, trataban de descubrir aquellas ideas generales y eternas de justicia y Derecho, que los seres razonables estaban dispuestos a reconocer en todas partes y que habían de servir como justificación de toda forma de Derecho positivo.”


Assim, quer seja pela Lei Natural[2] ou pela Lei dos Homens, temos que o indivíduo, em face de sua condição de partícipe de um grupo social, importante enquanto pessoa e enquanto parte de uma engrenagem social, é detentor de uma gama de direitos assecuratórios desta sua relevância e garantidores de sua participação como ator de destaque nesta obra coletiva.


Dentre os direitos acima referidos, destaca-se o direito ao trabalho, corolário maior da condição do indivíduo ser útil a si e aos outros, através do desenvolvimento de atividades laborais que gerarão dividendos pessoais e à coletividade.


Tal direito, por força de sua relevância, mereceu atenção especial, inclusive, da Igreja Católica, que estabeleceu, durante o papado de João XXIII, a Encíclica Pacem in Terris, cuja redação do item 18 é a seguinte:


18. No que diz respeito às atividades econômicas, é claro que, por exigência natural, cabe à pessoa não só a liberdade da iniciativa, senão também o direito ao trabalho.


Outras Encíclicas foram elaboradas, voltando-se ao tema em afeto, destacando-se, como já feito nas palavras da exortação inicial, a Laborem Exercens.


No campo da proteção constitucional pátria ao direito ao trabalho, temos diversos dispositivos voltados para o exercício do labor como direito do indivíduo, notadamente no artigo 1º., que estabelece os valores sociais do trabalho como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, o artigo 5º., inciso XIII, cuja previsão é de ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, sem deslembrarmos dos direitos sociais insculpidos nos artigos 6º. e 7º., além de outras regras específicas da Administração Pública, por exemplo.


No caso específico do artigo 6º da Constituição Federal, voltado para os direitos sociais, sempre convém invocarmos os pensamentos doutrinários exarados por José Afonso da Silva (2005, p.183), conceituando o que vêm a ser esses direito positivados pelo Estado. Assim:


“[…] possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos; direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direito que se ligam com o direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais, na medida em que criam condições materiais mais propicias ao auferimento de igualdade real […]”


Pelas características apresentadas nesse artigo, tem-se que os direitos sociais são destinados a repelir a desigualdade social, afastando as diferenças entre indivíduos na sociedade.


Cabe salientar que o citado autor, ao tocar o direito social ao trabalho, estabelece que este é um direito utilizável por todos os indivíduos, porque este é o meio mais expressivo de se obter uma existência digna (2005, p. 186). Em unidade de pensamento, temos a posição doutrinária apresentada por Luiz Alberto David Araujo, já aposta em parágrafos anteriores.


No esteio desta concepção, temos, assim, de forma extremamente sucinta, a previsão, decorrente do Direito Natural e do Direito Positivado, do direito do indivíduo exercer seu labor, desde que não viole qualquer determinação lícita prevista em lei.


4. O direito ao trabalho das pessoas portadoras de necessidades especiais


Conforme exposto em linhas anteriores, deve-se ter como linha mestra da convivência social e do ordenamento jurídico o respeito à igualdade entre as pessoas, de tal forma que não se submeta qualquer indivíduo ao preconceito e à discriminação.


Este pensamento, como não poderia ser diferente, aplica-se às pessoas portadoras de necessidades especiais, em qualquer área da vida social, abarcando, pois, o direito ao trabalho.


Do excerto doutrinário e legislativo colacionado, é obtenível o transpasse do vale social da discriminação e do preconceito, pois a “pessoa deficiente é uma de nós e participa plenamente da mesma humanidade que nós. Seria algo radicalmente indigno do homem e seria uma negação da humanidade comum admitir a vida em sociedade e, portanto, ao trabalho, só os membros na plena posse das funções do seu ser, porque, precedendo desse modo, recair-se-ia numa forma grave de discriminação, a dos fortes e sãos contra os fracos e doentes[3]”.


Conforme apontado por David Araujo (2003: 48), o direito ao trabalho é mecanismo real de inclusão social.


A pessoa portadora de deficiência, quer mental (quando possível), quer física, tem direito ao trabalho, como qualquer indivíduo. Nesse direito está compreendido o direito à própria subsistência, forma de afirmação social e pessoal do exercício da dignidade humana.


Nossa Constituição não fugiu às suas responsabilidades, tendo sido por isso denominada pelo saudoso Ulisses Guimarães, Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, como sendo a Constituição Cidadã.


Esta constatação deriva da observância, no texto constitucional, de diversos dispositivos preocupados com a integração social, tanto genericamente quanto especifica aos portadores de necessidades especiais.


Destaca-se, neste contexto, o artigo 7º, já mencionado, porém com ênfase ao inciso XXXI, que expressa a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência. Este dispositivo, marcado pela justiça social, busca expurgar de nossa sociedade a delegação, aos portadores de necessidades especiais, de serviços humilhantes ou a menor remuneração por idêntica atividade, como se empregar uma pessoa nestas condições, por si só já se se constitui em benemerência.


Com muito mais impacto deve ser considerada a contratação de pessoas portadoras de necessidades especiais pelo Poder Público, através de suas diversas ramificações, uma vez que o Estado, tratando-se amplamente, é a parte visível da organização social, é a representação dos anseios de cada um de seus integrantes, devendo ser imparcial e, acima de tudo, não discriminatório.


Por esta razão, trouxe a Constituição Federal a regra do inciso VIII do artigo 37, que estabelece a reserva de vagas, em percentual fixado por lei, para o preenchimento de cargos e empregos públicos por pessoas portadoras de necessidades especiais. Tal reserva, como já é pacífico na doutrina, na jurisprudência e, também, felizmente, na sociedade, não se configura em privilégio mas, simplesmente, em concessão de condições de igualdade na competição pelas oportunidades de trabalho geradas pelo Poder Público.


Tal questão insere-se na proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana, que, como muito bem lembrado por Machado Paupério (1980:303), estabeleceu que:


“Entre os valores supremos que são a inspiração do direito, não podemos esquecer a dignidade da pessoa humana, ou seja, o princípio de que cada ser humano é um microcosmo, um universo em miniatura, com destino individuado e distinto do destino da sociedade que é embora componente. Por ser pessoa, o homem, detentor de uma alma imortal, é portador de dignidade moral e de direitos inatos, inalienáveis e imprescritíveis, que o próprio Estado deve respeitar, por serem meios naturais para o cumprimento de seu próprio fim.”


Conforme apontado por Conrado Rodrigues Segalla e José Roberto Martins Segalla (2003:179), “…não há no mundo valor que supere o da pessoa humana. A primazia pelo valor coletivo não pode, nunca, sacrificar ou ferir o da pessoa humana, que jamais deverá ser suplantado por qualquer outro, ainda que vinculado ao Estado.


Além da previsão constitucional, a matéria também é regida por normas infraconstitucionais, dentre as quais indicamos, meramente a título exemplificativo, pois não temos a pretensão nem o objetivo de levantarmos todas as regras vigentes sobre o tema, as Leis 7853/89 e 10.098/00, esta última a ser invocada em linhas posteriores, para análise com um pouco mais de profundidade.


Por ora, indicamos o Decreto 3298, de 20 de dezembro de 1999, que, visando reverter este quadro e objetivando a inclusão profissional dos portadores de deficiência, instituiu, no âmbito federal, em seu artigo 1º, que:


“A Política Nacional para a integração da Pessoa Portadora de Deficiência compreende o cojunto de orientação normativa que objetivam assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência.”


Já o artigo 2º assim expressou:


“Cabe aos órgãos e às entidades do Poder Público assegurar à pessoa portadora de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, a saúde, ao trabalho […]”


Tem-se, desta forma, que o portador de necessidades especiais deve ter as mesmas condições de competição com os demais indivíduos formadores da sociedade, sendo-lhe garantido o direito de almejar a aprovação em concurso público para o exercício de emprego ou cargo.


5. Do concurso público como requisito para acesso a cargos, empregos e funções públicas


Apenas a título de registro para questionamentos futuros deste breve, estudo, temos a fixação, por preceito constitucional, da exigência de concursos de provas ou de provas e títulos para o preenchimento, por parte do Poder Público, de cargos, empregos ou funções públicas.


Para conceituarmos concurso público, socorremo-nos das pesquisas feitas por Rafael Siqueira de Pretto (2003: 59), que apresenta a seguinte definição:


“Pode-se, destarte, definir o concurso público como o procedimento administrativo, de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego público, cuja prévia aprovação é obrigatória para a investidura em cargos ou empregos públicos da Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ressalvadas as hipóteses insertas na Constituição Federal.”


A razão de ser desta exigência foi a necessidade da formulação de um mecanismo que afastasse, ao máximo, as possibilidades de preenchimento dos cargos públicos por via de apadrinhamento político (ou, conforme nominado por Pinto Ferreira, filhotismo político (1998: 288)) ou acordos eleitorais, dentre outros, com evidente prejuízo para o funcionamento da máquina administrativa.


Por esta razão é que encontramos, no âmbito da Administração Pública, a prevalência do princípio da eficiência, a quem Celso Antonio Bandeira de Mello esclarece ser algo mais do que desejável. Contudo, é juridicamente tão fluido e de tão difícil controle ao lume do Direito, que mais parece um simples adorno agregado ao art. 37 ou o extravasamento de uma aspiração dos que buliram no texto. De toda sorte, o fato é que tal princípio não pode ser concebido (entre nós nunca é demais fazer ressalvas óbvias) senão na intimidade do princípio da legalidade, pois jamais uma suposta busca de eficiência justificaria postergação daquele que é o dever administrativo por excelência. (2003: 111).


Voltando à lição de Siqueira de Pretto (2003: 60), podemos notar que o objetivo desta opção constitucional é o de permitir a livre concorrência, sendo premiado o indivíduo mais bem preparado para o exercício público, pois depende a aprovação ou reprovação de cada concorrente de seu mérito e preparo individual, a acirrada disputa que os envolve tem o nobre desiderato de aquilatar, objetivamente, suas aptidões pessoais e selecionar, dentre todos eles, os melhores para a assunção do cargo e emprego público almejado (princípio do ingresso pelo mérito).


Não por outra razão nossa Corte Suprema, em reiteradas decisões, reconheceu o concurso público como o meio mais democrático de acesso ao emprego, cargo ou função pública, tanto na Administração direta como na indireta, como podemos ver, a título meramente exemplificativo, o Mandado de Segurança 21322/DF, cuja ementa transcrevemos:


EMENTA: CARGOS e EMPREGOS PUBLICOS. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA, INDIRETA e FUNDACIONAL. ACESSIBILIDADE. CONCURSO PÚBLICO. A acessibilidade aos cargos públicos a todos os brasileiros, nos termos da Lei e mediante concurso público e princípio constitucional explicito, desde 1934, art. 168. Embora cronicamente sofismado, mercê de expedientes destinados a iludir a regra, não só foi reafirmado pela Constituição, como ampliado, para alcançar os empregos públicos, art. 37, I e II. Pela vigente ordem constitucional, em regra, o acesso aos empregos públicos opera-se mediante concurso público, que pode não ser de igual conteúdo, mas há de ser público. As autarquias, empresas publicas ou sociedades de economia mista estão sujeitas a regra, que envolve a administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Sociedade de economia mista destinada a explorar atividade econômica esta igualmente sujeita a esse princípio, que não colide com o expresso no art. 173, PAR. 1.. Exceções ao princípio, se existem, estão na própria Constituição.


Esta é a brevíssima exposição do tema, importante para a compreensão da problemática que se discutirá na seqüência.


6. Da gritante violação do direito fundamental ao trabalho das pessoas portadoras de necessidades especiais no concurso público para preenchimento de cargo de Auxiliar Administrativo do Banco Nossa Caixa S.A.


Após este breve resgate das principais regras concernentes ao direito dos portadores de necessidades especiais ao trabalho, centremos nosso foco na questão específica do concurso público realizado pelo Banco Nossa Caixa S.A., para o preenchimento de cargo de Auxiliar Administrativo, realizado no corrente ano.


Referido cargo foi apresentado no edital de concurso, no item 1, com a seguinte descrição:


“1.DAS ATRIBUIÇÕES DO CARGO DE AUXILIAR ADMINISTRATIVO. Este cargo é basicamente responsável por fornecer apoio administrativo, executando atividades de preparação, conferência, digitação e arquivo de documentos diversos, recepcionando e atendendo clientes e público em geral, efetuando operações diversas, prestando informações, orientações e/ou esclarecimentos referentes a serviços e produtos vinculados a sua área de atuação, visando contribuir com a fluidez dos processos e com a venda de produtos, conquistando clientes e incentivando a utilização de serviços oferecidos pelo Banco Nossa Caixa.”


Como se pode perceber, referido cargo implica na realização de atividades que não exigem condições especialíssimas para a sua realização, sendo o funcionário basicamente responsável por fornecer apoio administrativo. Não bastassem as diretrizes legais do princípio da igualdade, que exigem a concessão do direito dos portadores de necessidades especiais terem as mesmas condições de acesso aos cargos públicos, nota-se que nada obsta que o candidato aprovado para a específica função de auxiliar administrativo seja pessoa com algum tipo de deficiência, podendo-se ressalvar, quando muito, as hipóteses de deficiência mental acentuada.


Tal afirmação vem ao encontro do apresentado por Lafayette Pozzoli e Olney Queiroz Assis (2005: 345), para quem:


“É importante fixar a seguinte premissa: ‘para qualquer função sempre haverá um portador de deficiência apto a realizá-la’. Em outras palavras, talvez com exceção apenas dos deficientes mentais, a deficiência no âmbito do Direito do Trabalho apresenta-se como falsa questão; a deficiência não constitui um impedimento para o exercício de funções, trata-se mais de um problema de preconceito ou indiferença do que propriamente de incapacidade.”


O problema identificado no concurso em questão repousa na imposição, pela Instituição Financeira de natureza pública, ao candidato com necessidades especiais, que, em sendo aprovado, dever-se-á sujeitar a desempenhar sua função dentro dos padrões arquitetônicos e de instalações disponibilizados pela instituição bancária em suas unidades.


Tal absurdo, aos nossos olhos, constou no edital, mais especificamente no subitem 6.2, do item 6 – Dos Participantes, que estabeleceu a seguinte determinação:


“6.2. O candidato portador de deficiência poderá participar do concurso, desde que o grau de incapacidade não prejudique o pleno desempenho das atribuições elencadas no item 1 e seja compatível com as instalações e equipamentos das Unidades.” (nosso destaque)


Tal edital, nestes termos redigidos, apresenta flagrante inconstitucionalidade, por ferir mortalmente o princípio da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, não buscar construir uma sociedade justa e solidária e por não ter como objetivo reduzir as desigualdades sociais, por não promover o bem de todos, agindo com evidente preconceito e discriminação para com os portadores de necessidades especiais.


Pior!


Desprezou solenemente a determinação constitucional, inserida no texto maior em seu artigo 227 e reforçada pelo artigo 244, que estabelecem a obrigação da adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes a fim de garantir o acesso adequado às pessoas portadoras de necessidades especiais.


O Supremo Tribunal Federal já decidiu que as restrições da lei à admissão ao concurso não podem impedir o direito ao acesso de quem quer que seja. Vejamos a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1040 MC/DF, cujo relator foi o Ministro Néri da Silveira, julgada ainda em 1994:


AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. 2. ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 187 DA LEI COMPLEMENTAR N. 75, DE 20/5/1993 (LEI ORGÂNICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO), ALEGANDO-SE INCOMPATIBILIDADE DA NORMA COM OS INCISOS I, XIII E LIV DOART. 5., E COM O ART. 37, I, TODOS DA CONSTITUIÇÃO. 3. EM LINHA DE PRINCÍPIO, IMPENDE ENTENDER QUE A CONSTITUIÇÃO RESERVA A LEI ESTIPULARREQUISITOS E CONDIÇÕES AO PROVIMENTO DE CARGOS PUBLICOS, POR VIA DE CONCURSO, TAMBÉM NO QUE CONCERNE A QUALIFICAÇÕES PROFISSIONAIS E INCLUSIVE IDADE. AS RESTRIÇÕES DA LEI A ADMISSAO AO CONCURSO PARA PROVIMENTO DE CARGOS OU AO EXERCÍCIO DE OFICIO, DECERTO, NÃO PODEM CONSTITUIR OBSTACULO DESARRAZOADO A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ACESSIBILIDADE DE TODOS AOS CARGOS PUBLICOS OU DA LIBERDADE PARA O EXERCÍCIO DE OFICIO OU PROFISSAO. […}


Para a Instituição Financeira, é problema do portador de necessidades especiais a adaptação de suas restrições às condições estruturais da empresa, em cabal e irretorquível desprezo pela determinação legal da Carta Cidadã brasileira, que determina justamente o contrário, ou seja, a criação de ambiente permissível ao desenvolvimento de atividades de qualquer natureza, inclusive laborais, pelos portadores de deficiência.


Dessa feita, o desempenho de atividade laboral – desde que mantida a isonomia entre deficiência e atividade – pode e deve ser realizada por portador de deficiência, demonstrando que esta pessoa é produtiva e capaz de desempenhar atividades com a mesma competência e qualidade que as demais pessoas não portadoras de alguma deficiência. Assim, indubitavelmente, possibilitar o acesso ao trabalho representa um direito à libertação da clausura à qual é submetido o portador de necessidades especiais na sociedade.


Avançando-se na questão da imposição ao candidato aprovado em concurso público para o cargo de Auxiliar Administrativo em desempenhar sua função em conformidade com os meios oferecidos pela empregadora, deixa o Estado de São Paulo, através da Instituição Financeira sob seu jugo, transparecer nessa imposição via edital o seu desinteresse em se adequar às necessidades de seus funcionários e de praticar políticas sociais inclusivas.


No tocante a esta descabida imposição, destaca-se que a Constituição Federal de 1988 veda, conforme já abordado, a discriminação ao trabalhador com deficiência quanto à sua admissibilidade. Como assevera ASSIS e POZZOLI (2005: 342) isto é reflexo do estigma da deficiência, desenvolvido durante largo tempo na sociedade, impondo que o portador de necessidades especiais é pessoa incapaz e que todos possuem simetricamente a mesma incapacidade.


Em seu artigo 6º, incisos I, III e VI, o Decreto 3298/99, já anteriormente citado, determina que:


Art. 6º – São diretrizes da Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência:


I – estabelecer mecanismos que acelerem e favoreçam a inclusão social da pessoa portadora de deficiência;



III – incluir a pessoa portadora de deficiência, respeitadas as suas peculiaridades, em todas as iniciativas governamentais relacionadas à educação, à saúde, ao trabalho, […]



VI – garantir o efetivo atendimento das necessidade da pessoa portadora de deficiência sem o cunho assistencialista.


Somando-se a essa norma temos o Decreto 5.296, de 02 de Dezembro de 2004, que regulamentou a Lei 10.048 de 8 de dezembro de 2000, determinando:


Art. 19 – A construção, ampliação ou reforma de edificações de uso público deve garantir, pelo menos, um dos acessos ao seu interior, com comunicação com todas as suas dependência e serviços, livre de barreiras e de obstáculos que impeçam ou dificultem a sua acessibilidade.


Na esfera normativa de nosso Estado bandeirante, encontra-se na Constituição Estadual o inciso IX, do artigo 115, que traz a seguinte redação:


Art. 115 – Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:



IX – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para os portadores de deficiência, garantindo as adaptações necessárias para a sua participação nos concursos públicos e definirá os critérios de sua admissão. (destacamos)


Pelo todo apresentado e pela característica da contida no subitem 6.2 do edital de concurso, obtempera-se que a imposição posta no edital do concurso para Auxiliar Administrativo do Banco Nossa Caixa S.A. impõe um cerceamento ao candidato com deficiência, na medida em que irá alijá-lo e desestimulá-lo diante dos obstáculos de caráter arquitetônico e de infra-estrutura, vedando, de forma implícita, o direito do portador de deficiência em participar do certame de ingresso à carreira pública.


Idêntico posicionamento é encontrado na lição de ARAUJO (2003: 52) ao estabelecer que as barreiras arquitetônicas representam grande obstáculo a integração das pessoas portadoras de deficiência. Disso resulta em inevitável indagação: como poderá o portador de necessidades especiais, aprovado em concurso público para Auxiliar Administrativo de Instituição Pública Financeira, desenvolver sua atividade de maneira eficiente se não lhe são disponibilizados os meios de acesso necessários à sua realização?


Como fica a questão do período probatório onde é avaliado o funcionário de acordo com o seu desempenho funcional?


Sobre essa questão, muito bem se posiciona Eugênia Augusta Gonzaga Fávero (2004: 136) ao lecionar que o estágio probatório deve necessariamente: conter as adaptações e instrumentos necessários (ledores, recursos de informática, adaptação arquitetônica, noções de Língua de Sinais, entre outros) para que o servidor que tem deficiência possa bem desempenhar suas funções. E conclui a autora: sua inscrição e/ou posse não podem ser impedidas por este argumento, que no presente caso se refere ao item 6.2 do edital.


Parece-nos que o desejo do Banco é possuir em seus quadros de funcionário somente indivíduos “normais ou de boa aparência”, evitando, por meios dissimulados e ilegais, a inclusão profissional de portadores de necessidades especiais em suas unidades.


Para ASSIS e POZZOLI (2005: 342) esses artifícios utilizados pelo Banco além de inibirem o candidato portador de deficiência, essas atitudes escondem a nódoa do preconceito que ainda macula o tecido social. Continuando os autores em outro trecho, afirmam que nos dias atuais o principal local de encontro da pessoa é o local de trabalho, fazendo com que sejam criadas condições para torná-lo mais agradável e, com isso, receber uma produção melhor em qualidade e quantidade.


O tema sub-examen implica em outra questão delicada, não percebida pelos administradores do órgão público e que merece cogitação, por se tratar de instrumento coercitivo de caráter moldador dos comportamentos sociais. Em artigo de Edilson Gomes da Silva (2005: 188), temos a identificação de mecanismos de ações afirmativas voltadas para a efetividade do acesso das pessoas portadoras de necessidades especiais.


Uma das normas criadas para tanto foi a Lei 7853/89, que, em respeito aos princípios penais constitucionais e de código específico, instituiu norma penal para os autores de conduta comissiva ou omissiva de impedimento de acesso dos portadores de necessidades especiais.


Referida norma, em seu artigo 8º., incisos II e III assim estabeleceu:


Art. 8º. Constitui crime punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa:


II – obstar, sem justa causa, o acesso de alguém a qualquer cargo público, por motivos derivados de sua deficiência;


III – negar, sem justa causa, a alguém, por motivos derivados de sua deficiência, emprego ou trabalho.


Entendemos que a decisão de exigir que o trabalhador portador de deficiência aprovado nas fases de conhecimento técnico em concurso público tenha que se adaptar às instalações físicas da Instituição Financeira de natureza pública, sob pena de não aprovação final, constitui-se em meio de obstaculizar o acesso de alguém a cargo público, com o que os administradores da Instituição estão sujeitos a serem denunciados pelo Ministério Público, com a agravante, cabível por hermenêutica constitucional, do inciso XLI do artigo 5º., que estabelece que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.


Não se trata de ilação, mas sim de constatação pela leitura dos termos do edital, que, em regras posteriores, assim determinou no item 7.5.5:


“O candidato portador de deficiência, quando convocado, deverá submeter-se a perícia médica para comprovação da deficiência apontada na ficha de inscrição, bem como para verificação da compatibilidade de sua deficiência com o exercício das atribuições do cargo e com as instalações / equipamentos das Agências.” (nosso destaque)


O subitem, pela sua redação imprecisa conduz a percepções expansivas, podendo ser o candidato com deficiência compelido a enfrentar previamente uma junta avaliadora a partir do ato da inscrição ou durante o período probatório.


Todavia, mas trilhando o campo da hermenêutica, pois impossível será afirmar com absoluta certeza qual terá sido a vontade do organizador do concurso, é possível encontrar no subitem 7.5.6 e 7.5.7 fragmento da real intenção quanto ao momento da realização da peritagem.


7.5.6. A perícia será realizada por especialista indicado pela Vunesp, na área de deficiência do candidato, […]


7.5.7. Quando a perícia concluir pela inaptidão do candidato, […]


Da leitura desses subitens conclui-se que, ao utilizarem a terminologia candidato, nota-se que o momento da perícia será durante a realização do concurso e não no período probatório, ao contrário do que estabelece a norma vigente (art. 43, § 2º do Decreto 3.298/99). Se assim não fosse, poderia ter a Comissão Organizadora do concurso utilizado a palavra “funcionário”, que de maneira cristalina indicaria o momento correto para a avaliação do deficiente.


Entrementes, afastando esta ilação quanto ao momento da realização da perícia, continua a questão da ilegalidade nesses subitens repousada sobre a lápide fria da incerteza e da imprecisão quanto o momento da perícia. Assim, necessário é socorrer-se do Decreto 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que regulamentou a Lei 7.853/89 (Lei do CORDE), que estabelece no parágrafo 2º, do artigo 43:


[…]


§ 2º – A equipe multiprofissional avaliará a compatibilidade entre as atribuições do cargo e a deficiência do candidato durante o estágio probatório. (destaque nosso)


Corroborando a questão do momento da perícia para a verificação da compatibilidade da deficiência para com a atividade laboral, leciona Eugênia Augusta Gonzaga Fávero (2004: 136) que:


“Esta compatibilidade, ainda nos termos do Dec. 3.298/99, não pode ser aferida antes da posse e exercício da função. Ela deve ser analisada durante o estágio probatório, […]”


O entendimento da autora é corroborado pelos autores Luciana Niess e Pedro Henrique Niess (2003: 48), ao lecionarem que: simples exame feito por médico não poderá aquilatar se uma deficiência, que é impotente para impedir seu portador de prestar o concurso e conquistar a aprovação (por que se assim não for problema não existirá), indicar a prévia inconciabilidade da deficiência com o exercício da função.


Assim, necessário é conceder ao portador de deficiência a oportunidade de apresentar o seu potencial profissional, pois, do contrário, constituir-se-á tal impedimento em pré-julgamento com reprochável conseqüência discriminatória.


Continuando, apenas com o intuito de aclarar eventuais dúvidas quanto à formação da comissão multiprofissional, deverá a organizadora do concurso ater-se aos critérios estabelecidos no artigo 43 do Decreto 3.298 de 1999, que assim determina:


“O órgão responsável pela realização do concurso terá a assistência de equipe multiprofissional composta por três profissionais capacitados e atuantes nas áreas das deficiências em questão, sendo um deles médico, e três profissionais integrantes da carreira almejada pelo candidato.”


Fica assim, estabelecido que a comissão que realizará a perícia deverá ser composta, obrigatoriamente, por pessoas que desempenhem a mesma função que a postulada pelo portador de necessidades especiais. Isto porque, conforme destaca Eugênia Augusta Gonzaga Fávero (2004: 136), se a finalidade do acompanhamento dessa equipe for apoiar o desempenho das funções, facilitando a aprovação no estágio probatório, não será discriminatório. Todavia, contrário senso, destaca a autora que se sua finalidade for representar um órgão a mais para que o funcionário com deficiência tenha que provar a sua capacidade profissional isso será uma diferenciação que implica em discriminação.


Fossem apenas estas as irregularidades sobre o malfadado concurso público promovido pelo Banco Nossa Caixa S.A., estaríamos felizes. Porém, como o preconceito contagia e se espalha, encontramos vícios de constitucionalidade, em relação aos princípios e normas trabalhados ao longo deste estudo, no subitem 7.5.4.2 do edital de concurso de ingresso à carreira de auxiliar administrativo, assim considerados por apresentarem condições desfavoráveis ao candidato com deficiência.


O fundamento para esta nova crítica reside no fato de que, nos termos do edital, subitem 7.5.1., o candidato portador de necessidades especiais deveria requerer condições supridoras de suas deficiências no momento de sua inscrição. Todavia no subitem 7.5.4.2 encontra-se estabelecido que:


As condições especiais serão atendidas, a critério da Vunesp, somente quando sua natureza for compatível com a execução das atribuições elevadas no item 1.” (nosso destaque)


Da leitura do subitem constatam-se, de plano, a sua impertinência e efeito discriminatório, pois não compete privativamente à organizadora do concurso estabelecer quais necessidades serão ou não atendidas quando solicitadas pelo candidato.


Vale dizer, a comissão organizadora deverá atender as solicitações, desde que condizentes com o grau de deficiência do candidato, por nele encontra-se a imperatividade exclusiva da vontade da lei.


Acrescendo-se a este fator de obstáculo à efetividade do princípio da igualdade, têm-se os subitens 9.4 e 9.5, que trazem em seu bojo condições desfavoráveis ao candidato deficiente. Isto porque está previsto que:


9.4. O tempo previsto para realização das provas será de 3 (três) horas e 30 (trinta) minutos.


9.5. Não haverá prorrogação do tempo previsto para aplicação da prova em virtude de afastamento de candidato da sala de prova, por qualquer motivo.


Em mais estes excertos do edital, encontra-se outra afronta as necessidade do candidato. Pois, ao estabelecer tempo igualitário para a resolução das provas inviabiliza a sua realização por portadores de deficiência visual, como veremos na seqüência, ou pessoas com debilidade motora, bem como a sua não prorrogação do prazo “por qualquer motivo”, desnivela as condições dos candidatos, favorecendo os preteridos em detrimento dos “indesejados”. Alguém que necessite tomar medicamento ou que necessite realizar, por necessidade de saúde, higiene ou risco de infecção, por exemplo, a substituição de um aparelho ou instrumento, como bolsa de colostomia, estará sumariamente reprovado.


Quanto a esses subitens a doutrina é uníssona em afirmar que são critérios discriminatórios. Como não poderia de ser, mais uma vez se faz uso da lição de David Araujo (2003: 84) quando afirma que:


“Os critérios de concurso devem obedecer a realidade dos processos educacionais da pessoa portadora de deficiência.”


A pessoa portadora de deficiência visual, que se propõe a fazer um exame pelo método Braile tem direito ao tempo correspondente a leitura por tal método e não o tempo de leitura de um vidente.


Há que perquirir junto aos técnicos especializados no tema qual a correspondência entre a velocidade da leitura Braile e a regular. Havendo diferença de velocidade, deve ser ofertado ao portador de deficiência visual um tempo de prova maior (ou menor), de acordo com a dificuldade ou facilidade do sistema.


Escorreita é a lição do ilustre autor, pois deve ser tratado o candidato deficiente de maneira igualitária com os demais candidatos, mas respeitando a sua desigualdade.


Conclusão


Podemos concluir o presente trabalho, sem, todavia, pretendermos ser a palavra soberana sobre o tema, que apesar de todo o esforço da sociedade, em suas ações autônomas, individuais ou coletivas, e da legislação que se aperfeiçoa a cada legislatura que passa, enfrentamos, ainda, o perverso ranço da intolerância, da discriminação e do preconceito, como manifestado no recente concurso do Banco Nossa Caixa S.A.


Assim como este, muitas outras barbáries são perpetradas em nosso cotidiano, sendo que temos que estar alertas para rechaçá-las e, com esteio nas atuações dos Poderes da República, notadamente o Legislativo e o Judiciário, construirmos uma sociedade mais justa, solidária e inclusiva.


No que tange ao papel do Poder Judiciário, invoquemos o pensamento de Lênio Streck (2004: 15):


“É por demais evidente que se pode caracterizar a Constituição brasileira de 1988 como uma “Constituição social, dirigente e compromissária”, alinhando-se com as Constituições européias do pós-guerra. O problema é que, conforme alerta Guerra Filho, a simples elaboração de um texto constitucional, por melhor que seja, não é suficiente para que o ideário que o inspirou se introduza efetivamente nas estruturas sociais, passando a reger com preponderância o relacionamento político de seus integrantes. Daí que a eficácia das normas constitucionais exige um redimensionamento do papel do jurista e do Poder Judiciário (em especial da Justiça Constitucional) nesse complexo jogo de forças, na medida em que se coloca o seguinte paradoxo: uma Constituição rica em direitos (individuais, coletivos e sociais) e uma prática jurídico-judiciária que, reiteradamente, (só)nega a aplicação de tais direitos.”


No tema da justiça, temos em Derisi (1980: 49) palavras precisas, plenamente aplicáveis ao tema. São elas:


“Justo es quien observa el derecho, y es justo precisamente por observalo. No hay derecho injusto. Injusto és sólo el sujeto que no observa el derecho, perno nunca puede serlo el mismo derecho, pues dejaría de ser derecho: lo debido a otro.”


A Instituição Financeira, por seus responsáveis, foi injusta, pois não observou os princípios e regras de direito mais comezinhos e basilares de nosso ordenamento jurídico, tratando de forma discriminatória os portadores de necessidades especiais em favor do desejo de manutenção de barreiras arquitetônicas e sociais. Para Cláudio José Amaral Bahia (2003: 43), […] atualmente temos que todos aqueles que se debruçam sobre o Direito não podem mais nortear seus pensamentos e caminhos sem antes analisar se a proposição em questão está de acordo com o postulado da dignidade da pessoa humana […] não podendo, assim, ser desrespeitado por quem quer que seja, mormente pelo Poder Público que tem a obrigação precípua de zelar e fazer cumprir os ditames da Constituição Federal em vigência.


Referido edital, absolutamente imprestável no que tange ao respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da promoção do trabalho deveria ter sido alterado, uma vez que é pacífica a posição de que este documento deve respeito às normas maiores, pela verificação vertical de compatibilidade normativa.


Para encerrarmos, fiquemos com uma frase de Machado Paupério (1980: 302), emblemática ao caso:


“Se os homens não sabem amar, é preciso obrigá-los e sujeita-los às sanções do direito.”


 


Referências bibliográficas

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STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004.


Notas:

[1] Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

[2] Quem deu importante contribuição ao entendimento do direito natural foi Cícero, em famosa definição da lei natural, assim sintetizada em sua obra Da República: há uma lei verdadeira, norma racional, conforme a natureza, inscrita em todos os corações, constante e eterna, a mesma em Roma e em Atenas; tem Deus por autor; não pode, por isso, ser revogada nem pelo Senado nem pelo povo; o homem não a pode violar sem negar a si mesmo e à sua natureza e receber o maior castigo.

[3] Encíclica Laborem Exercens

Informações Sobre os Autores

Conrado Rodrigues Segalla

Professor de Direito Constitucional e Direito Administrativo da OAPEC – Santa Cruz do Rio Pardo. Professor Palestrante da UNESP/Bauru. Mestre em Direito pela ITE/Bauru. Doutorando em Direito do Estado pela PUC/SP. Advogado. Procurado Jurídico da Câmara Municipal de Piratininga

Carlos Augusto Gobbi

Professor de Instituições de Direito da Faculdade de Ciências Econômicas de Bauru e Membro do Núcleo de Pesquisa e Integração da Instituição Toledo de Ensino. Mestre em Direito pela ITE/Bauru. Advogado. Assessor Jurídico da Câmara Municipal de Bauru


Equipe Âmbito Jurídico

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