Responsabilidade civil do Estado: histórico das Constituições brasileiras

Sumário: 1. INTRODUÇÃO 2. FASE SUBJETIVISTA (CIVILISTA) 2.1 Constituição Imperial de 1824 2.2 Constituição Republicana de 1891 2.3 Constituições de 1934 e 1937 3. FASE OBJETIVISTA (PUBLICISTA) 3.1 Constituição de 1946 3.2 Constituição de 1967 e Emenda Constitucional nº 1 de 1969 3.3 Constituição de 1988 4. CONCLUSÃO 5. NOTAS 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Resumo: A responsabilidade civil do Estado evoluiu desde nossa primeira Constituição, em 1824, quando apenas o funcionário causador do dano deveria indenizar a vítima, até a Constituição de 1988, que adotou a teoria do risco administrativo inclusive para pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviço público.

Palavras-chave: Responsabilidade civil, responsabilidade do Estado, indenização.

Abstract: The liability of the state has evolved since our first Constitution in 1824, when only the official cause of the damage should indemnify the victim, until the Constitution of 1988, which adopted the theory of administrative risk even for legal persons of private law providing public service.

Keywords: Civil liability, liability of the state, compensation.

1. INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil do Estado, também conhecida como responsabilidade patrimonial do Estado ou responsabilidade extracontratual do Estado, consiste na obrigação a este imposta em reparar danos causados a terceiros, em conseqüência de suas atividades ou omissões, apresentando características peculiares em cada um dos regimes constitucionais brasileiros, desde nossa primeira Constituição em 1824, ainda durante o Império, até a chamada “Constituição Cidadã”, nas palavras de Ulysses Guimarães ao se referir à Constituição de 1988, e que em 05 de outubro do corrente ano completará 20 anos de sua promulgação.

Importante salientar que o estudo de seu processo evolutivo é primordial para o entendimento das transformações que ocorreram até chegarmos ao estágio atual, e até mesmo a evolução que porventura possa ocorrer em anos vindouros, afinal nenhuma sociedade é estática, estando sempre em constantes mutações.

2. FASE SUBJETIVISTA (CIVILISTA)

2.1 Constituição Imperial de 1824

Nossa primeira Constituição surgiu menos de dois anos após a Independência, trazendo grande influência da Revolução Francesa e elevando os brasileiros da condição de colonizados para a de cidadãos.

A Constituição Imperial previa, nos artigos 156 e 179, a responsabilização pessoal dos empregados públicos pelos abusos e omissões praticados no exercício da função:

“Art. 156. Todos os Juizes de Direito, e os Officiaes de Justiça são responsaveis pelos abusos de poder, e prevaricações, que commetterem no exercicio de seus Empregos; esta responsabilidade se fará effectiva por Lei regulamentar.

[…]

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

[…]

XXIX. Os Empregados Publicos são strictamente responsaveis pelos abusos, e omissões praticadas no exercicio das suas funcções, e por não fazerem effectivamente responsaveis aos seus subalternos.”

Alguns doutrinadores que a responsabilização única do empregado público significaria haver uma irresponsabilidade por parte do Estado; entretanto, para outros, vale a teoria de que o agente público nada mais é que o sujeito que serve ao Poder Público como instrumento expressivo de sua vontade ou ação (Bandeira de Mello, p. 235), e com isso a Constituição Imperial estaria indiretamente reconhecendo a responsabilidade da Administração Pública.

Nesta Constituição havia uma ressalva: o Imperador não poderia ser responsabilizado por danos causados a terceiros. Ele era detentor de um poder à parte, o Poder Moderador, que trabalhava ao lado do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, com a finalidade de controlar a organização política do Império. Esse poder era de titularidade exclusiva do Imperador e liberava-o de ser responsabilizado por qualquer ato praticado, conforme artigo 99:

“Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma.”

Assim, por esta e outras prerrogativas, o Imperador detinha um Poder forte, centralizador e autoritário, o que desagradou parte da sociedade e gerou muitos protestos durante o período monárquico.

2.2 Constituição Republicana de 1891

Em 1891 uma nova Constituição entrou em vigor. Promulgada por Prudente de Moraes, então Senador por São Paulo e Presidente do Congresso, surgiu em uma época marcada pelo recente início da República e aversão a qualquer coisa que lembrasse a extinta Monarquia. Não mais existia o 4º Poder – Poder Moderador – e buscava-se a liberdade e a democracia, conforme o preâmbulo da Constituição:

“Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL.”

Entretanto, no que diz respeito à responsabilidade civil do Estado, pouco ou nada mudou em relação à Constituição anterior. Pode-se verificar a enorme semelhança entre o art. 179, XXIX da Constituição de 1824 com o art. 82 da Constituição de 1891:

“CONSTITUIÇÃO DE 1824:

Art. 179. […]

XXIX. Os Empregados Publicos são strictamente responsaveis pelos abusos, e omissões praticadas no exercicio das suas funcções, e por não fazerem effectivamente responsaveis aos seus subalternos.”

“CONSTITUIÇÃO DE 1891:

Art 82 – Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos.”

Percebe-se que, assim como na Monarquia, para o particular conseguir a reparação por dano causado pela Administração, deveria provar que houve abuso ou omissão de algum funcionário público, seja na forma culposa ou dolosa. Sem a comprovação de abuso ou omissão, ou seja, estando o ato que gerou o dano estritamente dentro da legalidade, executado da forma correta, sem excessos, o particular não tinha respaldo legal para reclamar a reparação do prejuízo sofrido.

A única diferença visível entre esta e a Constituição anterior, no quesito responsabilidade civil do Estado, é que o Imperador estava livre de qualquer responsabilidade por seus atos, enquanto que o Presidente da República não tinha tal prerrogativa.

2.3 Constituições de 1934 e 1937

A Constituição de 1934 inovou no que se refere à responsabilidade civil por danos causados pela Administração – nesta Carta surgiu a responsabilização solidária entre o funcionário que causou o dano e a Administração:

“Art 171 – Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos.”

§ 1º – Na ação proposta contra a Fazenda pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte.

§ 2º – Executada a sentença contra a Fazenda, esta promoverá execução contra o funcionário culpado.”

Antes desta Constituição não se poderia falar em solidariedade, pois esta tem apenas duas fontes: a lei e a vontade das partes, conforme o art. 896 do Código Civil de 1916 (que continua com a mesma redação no Código Civil de 2002, art. 265): “A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.

A responsabilidade solidária gerava, neste caso, o litisconsórcio passivo, que é quando há mais de uma pessoa figurando no pólo passivo, como demandado na ação. A diferença entre o litisconsórcio e a responsabilidade solidária é que este é um instituto do Direito Civil, enquanto aquele tem natureza processual.

Como regra geral, o instituto da responsabilidade solidária não obriga o credor a acionar todos os devedores; ele poderia, se quisesse, propor ação apenas contra um deles, e se não tivesse sucesso na cobrança continuaria com o direito de acionar os demais devedores solidários (litisconsórcio facultativo). Entretanto, por determinação da própria Constituição, era obrigatória a citação do funcionário que causou a lesão (art. 171, § 1º). Era uma responsabilidade solidária que ensejava sempre um litisconsórcio necessário.

A Constituição de 1937 surgiu com o Estado Novo, quando Getúlio Vargas, após dar um golpe de Estado com o apoio de grande parte da população e dos militares, fechou o Congresso e impôs uma nova Constituição, apelidada de “polaca”, por ter sido inspirada na Constituição da Polônia. No que se refere à responsabilidade civil do Estado, não houve nenhuma alteração significativa, apenas suprimindo os dois parágrafos do texto constitucional anterior, que determinava a citação do funcionário como litisconsorte e a execução regressiva contra o funcionário causador do dano:

“Art 158 – Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos.”

A prescrição para acionar o Estado ocorria em cinco anos, por determinação do Código Civil de 1916 (art. 178, §10, VI). Esta foi a última Constituição da fase subjetivista, também chamada de fase civilística.

3. FASE OBJETIVISTA (PUBLICISTA)

3.1 Constituição de 1946

A Constituição de 1946 foi o marco inicial da fase objetivista no Brasil.[01] A responsabilidade civil objetiva surgiu porque a sociedade estava se modernizando, e a prova de culpa tornou-se insuficiente para solucionar os conflitos advindos de danos causados pelo Estado.

A responsabilidade objetiva tem por fundamento, segundo Bandeira de Mello (p. 971), os princípios da legalidade e da igualdade. No caso de comportamentos ilícitos, o princípio da legalidade; no caso de comportamentos lícitos, como o Estado deve repartir o ônus proveniente de atos lesivos para evitar que alguns suportem o ônus por causa de atividades no interesse de todos, o fundamento é o princípio da igualdade. Esta Constituição tratava da responsabilidade civil do Estado no art. 194:

“Art 194 – As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.

Parágrafo único – Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes.”

O caput do artigo já não fala mais em culpa; a culpa a que o parágrafo único se refere, apenas possibilitava a ação de regresso da Administração Pública contra o funcionário, mas não interferia na obrigação da Administração reparar o dano causado ao administrado. Portanto, para a responsabilização do Estado era necessário, em primeiro lugar, que o dano fosse causado por funcionário público,[02] ainda que ilegalmente investido,[03] de pessoa jurídica de direito público interno. Além disso, o funcionário que causou o dano deveria tê-lo praticado na qualidade de funcionário público. Por fim, deveria haver nexo causal entre o ato ou omissão, conforme Cretella Júnior (p. 190): “Havendo dano e imputabilidade à pessoa jurídica de direito público (nexo causal), a indenização é devida. O Estado paga”.

Para o particular prejudicado não importava se a atividade causadora do dano era lícita ou ilícita, e se o funcionário agiu com culpa (em sentido amplo) ou não; este último detalhe só era importante para a Administração, pois em caso positivo poderia ser ajuizada ação regressiva pedindo ressarcimento da indenização paga. Ricardo Fiúza (p. 54) explica que a responsabilidade entre o Estado e o administrado é objetiva, mas a responsabilidade entre o Estado e o agente causador do dano é subjetiva, por depender da apuração de culpa. Segundo Cretella Júnior (p. 190):

“O princípio adotado pela Constituição de 1946 foi o princípio da responsabilidade em ação regressiva. Move-se ação direta contra a pessoa jurídica de direito público interno, perante uma das justiças (federal, estadual, municipal); não contra o funcionário público, diretamente, embora causador do dano. O Estado, réu na ação, pode requerer a citação do funcionário, visto haver conexão de causas (CPC, art. 88).”

“Os interesses do Estado passaram”, elucida Pontes de Miranda, “a segundo plano; não há litisconsórcio necessário, nem solidariedade, nem extensão subjetiva da eficácia executiva da sentença contra a Fazenda Nacional, Estadual ou Municipal, ou contra a pessoa jurídica de direito público interno. Há, apenas, o direito de regresso” (Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, 2ª Ed., 1953, vol. 5, PP. 520-524).

Estas são características da teoria do risco administrativo, onde o dever de indenizar do Estado surge pelo risco criado pela própria atividade estatal – risco este que, por justiça, deveria ser suportado por todos, conforme explica Hely Lopes Meirelles (p. 611):

“[…] Tal teoria, como o nome está a indicar, baseia-se no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de acarretar danos a certos membros da comunidade, impondo-lhes um ônus não suportado pelos demais. Para compensar essa desigualdade individual, criada pela própria Administração, todos os outros componentes da coletividade devem concorrer para a reparação do dano, através do erário, representado pela Fazenda Pública. O risco e a solidariedade social são, pois, os suportes desta doutrina […]”

Entretanto, o risco administrativo não significa que em qualquer caso de dano o Estado deve indenizar, senão seria o caso de risco integral. [04] O que ocorre é que o administrado não precisa mais provar a culpa da Administração, mas caso esta prove que o administrado teve culpa parcial ou total no evento danoso, a Fazenda Pública se exime total ou parcialmente do dever de indenizar.

3.2 Constituição de 1967 e Emenda Constitucional nº 1 de 1969

A sexta Constituição brasileira, outorgada em 24 de janeiro de 1967 e posta em vigor menos de dois meses depois, em 15 de março, diferia muito pouco da anterior. Em seu art. 105 dizia que:

“Art. 105 – As pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.

Parágrafo único – Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo.”

A Emenda Constitucional nº 1 de 1969 foi elaborada pelo Poder Executivo, que havia decretado recesso do Congresso Nacional e, nos termos do Ato Institucional nº 5, estava autorizado a legislar sobre todas as matérias. Esta primeira emenda serviu para compatibilizar a Constituição com os Atos Complementares e Atos Institucionais em vigor, e algumas matérias foram profundamente modificadas. Entretanto, no que se refere à responsabilidade civil do Estado, nada mudou, sendo praticamente repetido o texto anterior com pequenas modificações sem qualquer significado prático (art. 107):

“Art. 107. As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros.

Parágrafo único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo.”

O legislador, tanto na redação de 1967 quanto na Emenda de 1969, continuou adotando a teoria objetiva, sendo que a diferença para o dispositivo de 1946 é que, teoricamente, houve um alargamento da possibilidade de responsabilização estatal, pois enquanto em 1946 o agente era “pessoa jurídica de direito público interno”, a partir da Carta de 1967 passou a ser “pessoa jurídica de direito público”, o que dava a entender que englobaria as pessoas de direito interno e externo. [05] Esta diferença existia apenas no campo teórico, porque na prática nada significava, visto que nossa Constituição não tem aplicabilidade contra Estado estrangeiro.

Outra alteração também sem conseqüências práticas foi a supressão do termo “civilmente”, o que poderia até deixar dúvida se a responsabilidade seria apenas civil ou também criminal. Esta dúvida não tinha importância prática porque somente a pessoa física poderia ser responsabilizada criminalmente. [06]

3.3 Constituição de 1988

A atual Constituição brasileira, promulgada em 05 de outubro de 1988 e que até o momento já conta com 56 emendas, manteve a responsabilidade objetiva pelo risco administrativo, assim como sua antecessora. [07] A ação regressiva do Estado também continua presente, conforme Hely Lopes Meirelles (p. 618):

“A reparação do dano causado pela Administração a terceiros obtém-se amigavelmente ou por meio da ação de indenização, e, uma vez indenizada a lesão da vítima, fica a entidade pública com o direito de voltar-se contra o servidor culpado para haver dele o despendido, através da ação regressiva autorizada pelo § 6º do art. 37 da CF.”

A grande novidade desta Constituição é a responsabilização de forma objetiva das pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos (art. 37, §6º):

“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

Assim, os concessionários, as empresas públicas e quaisquer outras pessoas jurídicas de direito privado que executem serviços públicos, respondem objetivamente pelos danos que causem a terceiros. A jurisprudência é vasta, citando-se como exemplo a apelação nº 70019965029, do TJRS, julgada em 12/03/2008:

“APELAÇÃO CÍVEL. RGE. CONCESSIONÁRIA DE ENERGIA ELÉTRICA. REPARAÇÃO DE DANOS. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. CDC. QUEDA DE POSTES DE SUSTENTAÇÃO DE FIOS ELÉTRICOS. DANOS MATERIAIS VERIFICADOS. A pessoa jurídica de direito privado, concessionária de serviço público, enquadra-se nas normas disciplinadas na Constituição Federal de 1988, aplicabilidade do art. 37, §6º, do que resulta sua responsabilidade objetiva pelos danos causados aos usuários. […]”

Outro exemplo no Tribunal gaúcho é o julgamento da apelação nº 70018902239, ocorrido em 18/07/2007:

“APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MATERIAIS DECORRENTES DE SUSPENSÃO NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. PERDA DA QUALIDADE DE FUMO POSTO PARA SECAGEM. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. CONCESSIONÁRIA DE ENERGIA ELÉTRICA.1. A ré AES SUL, na condição de pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público de fornecimento de energia elétrica, tem os limites de sua responsabilidade civil estabelecidos no artigo 37, § 6°, da Constituição Federal. Trata-se, pois, de responsabilidade objetiva, cujos elementos a serem examinados são a efetiva ocorrência dos fatos, o nexo de causalidade e o dano. […]”

A Constituição, no art. 37 §6º, fala em “agentes” causadores de danos, mas a doutrina e a jurisprudência têm entendido que o legislador constituinte não estava se referindo aos parlamentares e magistrados, que são agentes políticos. O argumento é a independência dos Poderes (Sílvio Rodrigues, p. 88): “Se o executivo não pode interferir na órbita do Judiciário, é óbvio que não pode responder pelos atos por este praticado”. [08]

No STF encontram-se diversos casos de imputação de responsabilidade objetiva, citando como exemplo o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 209354/PR, julgado em 02/03/1999 e tendo como relator o Min. Carlos Velloso:

“EMENTA: – CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO. TABELIÃO. TITULARES DE OFÍCIO DE JUSTIÇA: RESPONSABILIDADE CIVIL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. C.F. , art. 37, § 6º. I. – Natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais, exercidas em caráter privado, por delegação do Poder Público. Responsabilidade objetiva do Estado pelos danos praticados a terceiros por esses servidores no exercício de tais funções, assegurado o direito de regresso contra o notário, nos casos de dolo ou culpa (C.F., art. 37, § 6º). II. – Negativa de trânsito ao RE. Agravo não provido.”

Os cargos notariais são criados por lei, providos mediante concurso público e os atos de seus agentes são dotados de fé pública – portanto, tem-se a idéia de poder delegado pelo Estado, o que enseja a responsabilidade objetiva.

Nos casos em que, a princípio, não cabe indenização – caso fortuito, fato da natureza ou ato de terceiro – o Estado pode ser responsabilizado de forma subjetiva. Para tanto deve haver prova de que havia obrigação do Estado prever determinada situação, e que podendo evitar que ocorresse, não o fez.

Como exemplo, uma enchente que danifica os móveis de uma casa: a princípio, chuva excessiva é fato da natureza, e eximiria o Estado do dever de indenizar; entretanto, se os bueiros das ruas que dariam vazão às águas pluviais estivessem entupidos com excesso de lixo, sendo motivo determinante para que ocorresse a enchente, haveria (desde que acompanhada de provas) uma responsabilização subjetiva do Estado – no caso, do Município, que é quem deveria providenciar a limpeza pública urbana.

A indenização, no entendimento de Alexandre de Moraes (p. 337), deve ressarcir não apenas o que a vítima efetivamente perdeu, mas todos os prejuízos: “[…] deverá ser indenizada nos danos emergentes e nos lucros cessantes, bem como honorários advocatícios, correção monetária e juros de mora, se houver atraso no pagamento. Além disso, nos termos do art. 5º, V, da Constituição Federal, será possível a indenização por danos morais”. [09]

O prazo prescricional, que na vigência do Código de 1916 era de cinco anos, passou a ser de apenas três anos (art. 37 §5º, CF/88 combinado com art. 206, §3º, V, Código Civil/2002), valendo tanto para a pretensão de a vítima cobrar o Estado como para o Estado cobrar o causador do dano através do direito de regresso. O ônus da prova de que o agente responsável agiu com dolo ou culpa, obviamente, é do Estado.

A Constituição também determina que os danos nucleares ensejam responsabilidade independente de culpa (art. 21, XXIII, c). A redação deste inciso é um tanto quanto confusa, permitindo interpretação dúbia. Felizmente não temos jurisprudência sobre danos nucleares.

4. CONCLUSÃO

Cada Constituição reflete o momento histórico da sociedade em questão. Na época em que o poder dos soberanos era atribuído à vontade divina, não se cogitava em responsabilidade civil do Estado e menos ainda responsabilidade de seu governante; Estado e religião eram cúmplices. A responsabilidade civil, em sua forma mais primitiva, é deveras antiga, havendo inclusive registros na Bíblia (Êxodo 21:22: “Se alguns homens brigarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, não resultando, porém, outro dano, este certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher”), mas somente quando houve separação entre Estado e religião é que se cogitou em responsabilidade do Estado.

As Constituições brasileiras também passaram por fases distintas, demorando quase duzentos anos para ocorrer a evolução de uma responsabilidade tênue, restrita, para a atual, onde a regra geral é nem mesmo discutir a culpa, bastando comprovar o nexo de causalidade que liga a Administração ao efeito danoso, o que tem se mostrado mais justo para a época que vivemos.

 

Notas:
[01] Antes mesmo da Constituição de 1946, considerada marco inicial da fase objetivista, já havia norma infraconstitucional apontando para este caminho. O Código de Processo Penal (Decreto-Lei editado em 1941) trata no art. 630 da indenização pelos prejuízos sofridos com o erro judiciário, sem se cogitar em culpa ou dolo.
[02] A partir da Lei 4.619/65 o termo “funcionário público tornou-se mais abrangente, conforme art. 1º parágrafo único: “Considera-se funcionário, para os efeitos desta lei, qualquer pessoa investida em função pública na esfera administrativa, seja qual for a forma de investidura ou a natureza da função”.
[03] Segundo Cretella Júnior (p. 190): “Pela disposição de 1946 não se indaga a respeito da legalidade ou ilegalidade da investidura. Se o chefe da repartição, na falta de um funcionário público, aceita no serviço pessoa não-funcionária, nem regularmente contratada, e a pessoa causa danos ao administrado no exercício do cargo que lhe foi confiado em caráter excepcional, o Estado responde pelos prejuízos, com base no art. 194”.
[04] Para Hely Lopes Meirelles (p. 612) e Rui Stoco (p. 959), a teoria do risco integral foi abandonada na prática, por conduzir ao abuso e à iniqüidade social. Hely Lopes Meirelles (p. 612) diz ainda: “Por essa fórmula radical, a Administração ficaria obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resultante de culpa ou dolo da vítima”.
[05] Pessoas jurídicas de direito público externo são os Estados estrangeiros e as pessoas regidas pelo Direito Internacional Público. Esta é a definição legal, mas que deixa dúvidas sobre quais seriam essas pessoas regidas pelo Direito Internacional Público.
[06] Atualmente já se admite a responsabilidade criminal de pessoa jurídica no caso de crimes ambientais, conforme art. 3º da Lei 9.605/98: “As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei […]” Como é impossível aplicar pena privativa de liberdade à pessoa jurídica, as penas serão sempre de caráter pecuniário.
[07] Em geral, os doutrinadores entendem que nenhuma das Constituições brasileiras adotou a teoria do risco integral (um dos que pensa em sentido contrário é Cretella Júnior, p. 192), pois caso contrário poderia haver abusos e aumento injustificado das despesas do Estado. Sawen Filho (p. 55), discorrendo sobre os abusos que poderiam ocorrer pela ação dolosa ou culposa da vítima, diz que “[…] A ação da vítima agiria nestes casos como uma causa concomitante que seria absorvida pela ação da Administração, resultando uma responsabilidade para o Estado, que não encontraria suporte na lógica ou mesmo na Justiça”.
[08] No caso de dano causado por ato legislativo típico (lei), a jurisprudência tem reconhecido a responsabilidade do Estado caso a referida lei seja inconstitucional. No dano causado por ato judicial típico (sentença), a responsabilidade civil ocorre em duas situações, com base no art. 5º, LXXV da CF/88: “O Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”. O art. 630 do CPP, que data de 1941, também trata do erro judiciário, “sem definição e esclarecimento necessário”, segundo Rui Stoco (p. 1008), dizendo ainda que não mais se justifica esta regra específica já que a Constituição ditou uma regra geral.
[09] A indenização por dano moral também é devida às vítimas do Estado. Um exemplo na jurisprudência, entre tantos, está na decisão da 3ª Turma do TRF da 3ª Região (apelação cível 704807, julgada em 05/04/2006), que fixou valor de indenização por danos morais em R$500.000,00 para a família de uma criança que faleceu após ser vacinada contra sarampo.
Referências bibliográficas
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. Malheiros Editores, 2007.
CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar. Ed. Forense, 2002.
FILHO, João Francisco Sawen. Curso de Direito Militar: a responsabilidade civil do Estado e o controle da administração pública. Fundação Trompowsky, 2008.
FIÚZA, Ricardo. Novo Código Civil Comentado. Ed. Saraiva, 2003.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Malheiros Editores, 2001.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Ed. Atlas, 2001.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – vol. 4. Ed. Saraiva, 2002.
STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil: com comentários ao Código Civil de 2002. Ed. Revista dos Tribunais, 2004.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Julio César Gaberel de Moraes Filho

 

Militar, bacharel em Direito, pós-graduado em Gestão da Administração Pública e pós-graduado em Direito Militar

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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