Resumo: Análise da teoria de Hans Kelsen, bem como do conflito entre ela e a teoria de Rudolf Smend.
Palavras-chave: Hans Kelsen. Rudolf Smend. Conflito Metodológico.
Abstract: Analysis of Hans Kelsen’s theory, as well as the conflict between it and the theory of Rudolf Smend.
Key-words: Hans Kelsen. Rudolf Smend. Conflict between Methods.
Sumário: 1. Intróito, 2. Desenvolvimento, 2.1.Teoria pura do direito, 2.2 Teoria da integração, 2.3 Kelsen contra-ataca, 2.3.1 Preâmbulo, 2.3.2 Resultados teóricos da resposta Kelseniana, 3.Conclusão, Bibliografia.
Summary: 1. Introduction, 2. Development, 2.1 Pure Theory of Law, 2.2 Theory of the Integration, 2.3 Kelsen strikes back, , 2.3.1 Preamble, 2.3.2 Theoretical results of the Kelsen’s reply, 3. Conclusion, Bibliography.
1. INTRÓITO.
O ponto original da celeuma remonta o advento da “Teoria Pura do Direito” (Reine Rechtslehre) de Hans Kelsen. Desde então, os filósofos passaram a elaborar novos modelos de interpretação da norma constitucional buscando uma maior efetividade das mesmas. Eis o background dos métodos da nova hermenêutica[1], os quais surgiram também como uma crítica aos métodos positivistas, típicos do Estado Liberal.
Dentro desse quadro, travaram-se verdadeiros embates ideológicos a respeito de qual método seria o mais escorreito. O exemplo mais categórico dessa batalha entre os métodos da nova e velha hermenêutica se sucedeu entre Hans Kelsen, criador da Teoria Pura do Direito, e Rudolf Smend, precursor do Método Integrativo ou Científico-Espiritual.
Em outras palavras, Kelsen engendrou uma obra visando organizar uma Teoria do Estado com a pureza metodológica das ciências, recebendo críticas e elogios, a princípio, por parte da comunidade jurídica alemã e, a posteriori, do mundo. Logo após, Rudolf Smend produziu sua teoria intitulada “Teoria da Integração” na qual fazia críticas ao método de Hans Kelsen por achá-lo excessivamente normativo. Nessa perspectiva é que deve ser entendida a obra de Kelsen intitulada “O Estado como Integração: um confronto de princípios”, exclusivamente voltada a responder às críticas feitas por Smend à “Teoria Pura do Direito”.
2. DESENVOLVIMENTO.
2.1.TEORIA PURA DO DIREITO.
Da lavra do jurista austríaco naturalizado norte-americano Hans Kelsen, da Escola de Direito de Viena, tido por muitos (inclusive por mim) como o mais exponencial jurista do século XX, a Teoria Pura do Direito encontra-se inserida dentro da corrente do pensamento juspositivista ou “normativo-formalista”.
Tem esta teoria o fito principal de estabelecer o Direito como uma ciência autônoma, independente de outras áreas do conhecimento mediante a definição de seu objeto de estudo – a norma jurídica – independentemente da consideração de seu conteúdo ou fulcro.
Por que “pura”? Porque não pretende realizar quaisquer considerações que não sejam estritamente jurídicas, nem tomar nada como objeto de estudo a não ser as normas jurídicas. Destarte, Kelsen pretendia construir uma ciência jurídica objetiva e clara, que se abstivesse de julgar as normas que queria descrever e explanar de acordo com quaisquer critérios de justiça. Portanto, a ciência jurídica não deveria proferir qualquer juízo de valor acerca das normas válidas. Com isso, Kelsen almejava separar o Direito da Moral, da Justiça e das demais ciências, v.g. Sociologia do Direito.
Quer dizer, para Kelsen não há necessariamente uma relação entre Direito, Moral e Justiça, pois as noções de Justiça e Moral são dinâmicas e não universais, competindo ao Estado, dentro dos parâmetros materiais e formais, na qualidade de detentor legítimo do uso da força, ditar as normas de conduta válidas.
Essa teoria vê o Direito como atividade do Estado (atividade de produção de normas e coerção do Estado), exteriorizada num sistema de normas puramente formais, organizadas consoante uma hierarquia específica: as normas inferiores só podem ter valor se estiverem de acordo com as normas superiores ou se forem expressamente reconhecidas por elas como válidas e assim, sucessivamente até alcançar a norma mais elevada.
Na Teoria Pura do Direito não se discute a legitimidade e nem a justiça da norma mais alta. Kelsen parte do princípio que ela existe e consegue se impor, bastando isso. Para explicar a origem da validade da lei de maior hierarquia, Kelsen se socorre da hipótese teórica de uma “norma fundamental” (Grundnorm), a qual seria “pressuposta” e que não extrairia sua validade ou legitimidade senão exclusivamente da força e do poder de império do Estado.
Kelsen assevera que “o Estado e o direito são um só e mesmo sistema de coação” e deduz a impossibilidade de se legitimar o Estado pelo Direito, definindo o Estado como fonte última e única do Direito, nada podendo-lhe dizer o que deve proibir ou permitir, exceto sua própria definição normativa. Assim, o Estado se identifica como sendo o próprio ordenamento jurídico, não passando a pessoa de um sujeito de “imputação” de normas, fazendo com que a liberdade das pessoas acabe ficando à mercê de quem exerça o poder.
Como se nota, tal teoria se divide em dois grandes ramos: a) A Estática Jurídica que estuda os conceitos e normas jurídicas em seu significado específico, analisando institutos e a estrutura das normas buscando definir conceitos como direito, dever, pessoa física e jurídica, obrigação, etc; b) A Dinâmica Jurídica que se ocupa das relações hierárquicas entre as normas (pirâmide normativa) e a decorrente elaboração de novas normas, compatíveis com as precedentes.
À luz do exposto, pode-se sintetizar as conclusões da Teoria Pura do Direito da seguinte forma: a) Grundnorm; b) a identidade entre Estado e Direito; c) a redução da pessoa física à pessoa jurídica; d) a redução do direito subjetivo a direito objetivo e da autorização ao dever; e) a negação da qualidade de Direito Internacional ao Direito Internacional Privado; f) a Constituição é a consciência jurídica do Estado.
2.2 TEORIA DA INTEGRAÇÃO.
Apesar da Teoria Pura do Direito ter revolucionado o estudo do Direito, ela foi e continua sendo alvo de contundentes críticas sobre o seu formalismo excessivo e tentativa de separar o estudo do Direito da Sociologia e da Moral.
Um dos críticos mais contumazes da Teoria de Kelsen foi Gustav Radbruch, professor da Universidade de Heidelberg, o qual teceu suas críticas a partir do seguinte questionamento: “é o Estado anterior ao Direito ou o Direito antecede ao Estado?”
Para Radbruch, a Teoria Pura do Direito conduz o direito positivo a se tornar mera expressão da vontade do poder da força social dominante.
Assim, segundo Radbruch, no sistema de Kelsen não é possível criticar a (in) justiça de uma lei, sentença e/ou ato administrativo, desde que esteja(m) de acordo com os princípios de legalidade vigentes, pois suas legitimidades se restringem ao formalismo, ou seja, a saber se suas promulgações respeitaram o processo legislativo estabelecido, se quem as editou tinha competência para tal e se hierarquicamente estão em conformidade com outra superior.
Ademais, Radbruch sustenta que foi justamente a visão exclusivamente positivo-formalista do Direito que permitiu a ascensão do nazismo na Alemanha e suas nefastas conseqüências para a humanidade. É o que dispõe o texto de “Minutos de Filosofia do Direito”, publicado após a Segunda Guerra Mundial como circular dirigida aos estudantes da Universidade de Heidelberg:
“Esta concepção da lei e sua validade, que chamamos Positivismo, foi a que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitárias, mais cruéis e mais criminosas. Torna equivalentes, em última análise, o direito e a força, levando a crer que só onde estiver a segunda estará o primeiro”[2].
Em síntese, Radbruch defende que “há leis que não são direitos e há um direito acima das leis”[3].
Não obstante, ningém se notabilizou mais por criticar a aludida teoria de Kelsen do que Rudolf Smend.
Dessa forma, o Método Integrativo ou Científico-Espiritual de Rudolf Smend, nitidamente influenciado por Theodor Litt e seu Método Sociológico, exsurge na vanguarda da então denominada “Nova Hermenêutica do século XX” buscando atenuar tendências excessivamente positivistas no direito público, ressaltando a relevância do espírito e da cultura com o escopo de comprovar as conexões existentes entre os valores da sociedade e a Ciência do Direito, lançando um método que integrasse a realidade social e o orbe jurídico.
Marianna Alves Ferreira Silva em seu excelente Trabalho jurídico-científico intitulado “Hermenêutica Constitucional – Análise do conflito metodológico entre Kelsen e Smend” aduz que:
“A moderna interpretação da Constituição seguiu na perseguição do significado mais profundo das Constituições, buscando, da mesma forma, a adequação harmoniosa entre Direito e Sociedade; entre o Estado, o fundamento da legitimidade e entre a ordem positiva e os valores sociais, visto que as urgências do meio social, meio em que essa ordem atua, são previsíveis em um sistema político com base no equilíbrio entre governantes e governados230. É nesse contexto que surge o método integrativo de Rudolf Smend, inteiramente distinto daquele de teor exegético próprio dos positivistas do Estado liberal, ou mesmo do método escalonado de Hans Kelsen231”[4].
A teoria de Smend define a Constituição como “um conjunto de distintos fatores integrativos com distintos graus de legitimidade. Esses fatores são a parte fundamental do sistema, tanto quanto o território é a sua parte mais concreta”[5].
Para Javier Garcia Roca há que se entender nessa concepção a Constituição como ordem jurídica da integração política[6].
Segundo Roca, a característica mais importante da Teoria da Integração é que esta concebe o Estado e a Constituição como realidades espirituais em transformação incessante, repelindo qualquer reducionismo metodológico, admitindo-se, que a realidade estatal do Direito é arraigada na sua positivação, emanando daí o Estado como ser espiritual dinâmico[7].
Percebe-se, pois que Smend se separou das tendências então reinantes, mormente da teoria positivista de Laband e da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, para a elaboração dos pressupostos metodológicos da Teoria da Integração ou Científico-Espiritual.
Além disso, Smend se opôs ao positivismo jurídico do período entre guerras, pelo fato desse período dar origem a uma Constituição indecisa, uma democracia relativista e, precipuamente, a negação da existência de valores superiores nos ordenamentos jurídicos.
Nesse norte é que Roca prega que para a teoria de Smend a interpretação da Constituição deve fugir ao método labadiano em virtude de suas lacunas, de seus equívocos sobre os princípios do direito, da crença no formalismo jurídico e “de um complementar ceticismo agnóstico em relação a cada conteúdo normativo e de realidade que transcenda a particularidade entendida em sentido positivista”. Obviamente Smend reconhece a sofisticação metodológica positivista, apesar de o acusar de despolitizar o Estado uma vez que separa a política do sistema jurídico e da interpretação das normas constitucionais[8].
Em “Constitución y Derecho Constitucional”, Smend sustenta que para uma Constituição permanecer viva, tem que promover a unidade do solo do torrão, igualmente, as decisões tomadas com base em suas normas hão de ter um componente que aglutine a maioria dos cidadãos. Perseguindo tal fito, a Constituição é dotada de alto potencial de modificação, em face do seu caráter de norma jurídica integradora do sistema jurídico constitucional ao tempo e às circunstâncias. Desse modo, o objetivo prático da Constituição é resguardar a realidade[9].
Para arrematar o assunto, Marianna Alves Ferreira Silva conclui que:
“O que importa ressaltar nessa teoria é que Rudolf Smend foi o primeiro filósofo a reconhecer que as normas constitucionais têm caráter político e, por isso, são passíveis de mudanças ao longo do processo histórico. Isso certamente causou uma reviravolta no próprio modo de entender a teoria do Estado. Tanto que Kelsen critica duramente a proposição de Smend de um Estado como ciência do espírito. Enquanto aquele concebe o Estado como ‘ente espiritual’ desprovido de existência psicofísica, sendo, assim, uma realidade normativa constituída em ser e dever ser, Smend, por outro lado, acredita que o caráter espiritual do Estado decorre da necessidade de um sentir constitucional como modo de integração política”.[10]
2.3 KELSEN CONTRA-ATACA.
Visando responder aos ferinos ataques feitos por Smend à sua Teoria Pura do Direito, Kelsen – que mais tarde veio a qualificar Smend como um teólogo do Estado – redigiu um livro intitulado “O Estado como Integração: Um Confronto de Princípios”.
Em linhas gerais, Kelsen procura demonstrar que a Teoria Pura do Direito e a Teoria da Integração apresentam vários pontos de similitudes e que Rudolf Smend se equivocou ao elencar a Teoria Pura do Direito no rol das teorias clássicas do Estado, ponderando que Smend jamais teria chegado às conclusões alcançadas por sua teoria sem primeiro ter perpassado pela teoria kelseniana.
Nesse sentido, Kelsen dispõe, entre outras coisas, que a viabilidade da Teoria da Integração se deve ao fato de ela se basear numa existência ao simultaneamente real e ideal do Estado (Estado como Super-Homem), sendo que para isso, faz-se mister conceber esse Estado como uma integração de homens a ele juridicamente pertencentes, compartilhando os mesmos valores sociais (Estado como Círculo Fechado).
Todavia, nesse ponto, deparei-me numa encruzilhada.
Não tenho como escrever com minhas próprias palavras tudo o que depreendi de meus estudos ao me debruçar sobre as respostas de Kelsen sem sofrer o risco latente de incorrer em algum tipo de plágio, porque, na verdade, apenas faria minhas as palavras do mestre.
Meditabundo, recordei-me de uma antiga fraseologia que afirma: “Ninguém pode ser mártir de sua própria vaidade”.
Assim, diante da “presença da ausência”[11] de uma melhor opção, encontrei um viés alternativo: Limitar-me-ei a transcrever in verbis determinados trechos extraídos do livro “O Estado como Integração: um confronto de princípios” de Hans Kelsen e do Trabalho Científico “Hermenêutica Constitucional – Análise do conflito metodológico entre Kelsen e Smend” de Marianna Alves Ferreira Silva.
Dessa forma, deixo claro que as citações abaixo concernentes aos tópicos “Preâmbulo” e “Resultados Teóricos da Resposta Kelseniana” não são de minha autoria e propriedade intelectual, mas sim dos autores supracitados.
Como dizem que “quem muito escreve não quer ser lido”, peço vênia ao Ilustre Leitor para citar apenas o que considero mais significativo em relação ao assunto.
2.3.1 Preâmbulo.
Hans Kelsen principia a obra em tela afirmando que as críticas dirigidas a um autor devem ser diretamente proporcionais ao quilate e envergadura do mesmo:
“Um autor da categoria de Smend tem o direito de ser avaliado de acordo com as suas próprias medidas. Por isso, a crítica aqui apresentada pretende ser imanente.
(…) a peculiaridade da exposição de Smend: uma total falta de uniformidade sistemática, uma certa insegurança da concepção, que se desvia das posições claras e unívocas e permanece em insinuações vagas sobrecarregando qualquer posição inteligível com prudentes limitações; daí um estilo de linguagem obscuro, difícil, inçado de palavras estrangeiras. É com dificuldade que, desse casulo, se consegue arrancar o pensamento a ser analisado. Além disso, as colocações de Smend baseiam-se, em grande parte, em teorias estrangeiras.
(…) E, assim, este trabalho vai além dos limites da crítica de um livro, rumo a um confronto de princípios entre a teoria normativa do Estado e a teoria da integração”.[12]
Passando aos fundamentos metodológicos, Kelsen aduz que o trabalho de Rudolf Smend se resume a uma crítica à teoria dominante baseada na obra de Georg Jellinek e sustentada por Savigny. Entretanto, ao realizar essa crítica, Smend acabou por atingir a teoria normativa do Estado da Escola de Viena, a qual, por seu turno, igualmente surgiu para censurar aquela teoria dominante:
“O trabalho de Smend é, em grande parte, apenas uma crítica da assim chamada teoria dominante, isto é, a teoria do estado do século XIX, classicamente resumida na obra Teoria geral do Estado de Georg Jellinek. Mas Smend nega também a teoria normativa do Estado da Escola de Viena, que, por sua vez, surgiu de uma crítica àquela teoria dominante. A teoria da integração deve ser entendida, portanto, como um antídoto à Escola de Viena”[13].
Marianna Silva, falando sobre as realidades psicofísica e espiritual do Estado, anota que:
“Aos olhos de Kelsen, Smend estabelece como base de sua teoria, a necessidade de uma reflexão gnosiológico-metodológica, todavia, a primeira a exigir esse tipo de consideração para a teoria do Estado foi a Escola de Viena, fato que o próprio Smend admite dada a necessidade desse tipo de pensamento”[14].
Sentindo-se estupefato ao ver um jurista do porte de Smend definir um trabalho teórico do qual extrai toda a sua bagagem crítica, como um “beco sem saída, sem finalidade nem objetivo”, Kelsen afirma:
“Todavia, Smend não apenas seguiu a Escola de Viena no seu beco sem saída da crítica à teoria dominante, mas também ficou, em grande parte, preso nele com o seu programa positivo. Se a teoria normativa do Estado da teoria pura do direito reconhece como inadequada a relação de causa e efeito e a de meio e fim para determinar a natureza do Estado ou dos atos do Estado nas suas relações, ela une essa negação da causalidade e da teologia ao postulado positivo de indicar a ‘normatividade específica’ da esfera na qual existem o Estado e o direito.
(…) A Escola de Viena tende a deixar coincidir a contraposição entre natureza e espírito, posta como fundamento do conhecimento do Estado e do direito, com o contraste entre realidade e valor, entre lei causal (mecânica) e norma (lei de valor).
(…) Smend, ao invés – pretendendo ligar a legalidade normológica do espírito, em geral, e do Estado, em particular, com a refutação, por ele proclamada, da teoria normativa da Escola de Viena – entre esta última e a filosofia da cultura de Litt, ficou, por assim dizer, sentado entre duas cadeiras”[15].
Faz-se mister mencionar que a filosofia da cultura de Theodor Litt encontra-se insculpida na sua obra intitulada “Indivíduo e sociedade”.
Em sua obra “Der Staats als Übermensch”, 1926, p. 11, dirigida contra o ataque de Hold-Ferneck à teoria normativa do Estado, Kelsen refuta o mal-entendido (na opinião de Kelsen) consoante o qual nega qualquer “realidade” ao Estado, remetendo à passagem do seu outro livro “Der Soziologische und der Juristische Staatsbegriff”, queixando-se que Smend crê desnecessário tomar conhecimento disso. Nessa direção, Kelsen continua:
“No máximo, Smend poderia objetar que o meu método das ciências do espírito não é correto e talvez pudesse mesmo atribuir-me uma exaltação excessiva desse método das ciências do espírito! E isto ele faz, não obstante ter-me mencionado como exemplo repugnante do contrário.
(…) Smend não ultrapassou a Escola de Viena com os seus esforços em relação ao mesmo problema. Com esta, ele parte do contraste entre natureza e espírito.
(…) ‘Essa contraposição entre ‘ser’ e ‘dever-ser’ é um elemento fundamental do método das ciências do espírito em geral e do conhecimento científico do Estado e do Direito em particular’. Assim parece ‘o que Smend sustenta ser a refutação explícita de todo o pensamento das ciências do espírito’ da Escola de Viena!(sic)”[16].
Para arrematar esse item, pode-se sintetizar as palavras de Marianna Silva desse modo:
“Kelsen também refuta uma segunda afirmação de Smend, e esta diz respeito à asserção de que a teoria pura defende que ‘o Estado não pode ser considerado como parte da realidade265’. Nesse ponto, ressalta o filósofo que o contexto no qual foi utilizado o termo negação da realidade do Estado, não tem outro senão o de que o Estado não é uma criação da natureza ou corpórea (sic!), como já destacado. A existência do Estado é, portanto, ideal266.
(…) Assim sendo, é correto afirmar que existe uma ‘relação de tensão’ entre a esfera do dever-ser, consistente na teoria normativa do Estado e do Direito (esfera do valor), e a esfera do ser, campo dos atos humanos. Essa relação, portanto, traduz-se pela confirmação do ordenamento ideal na realidade natural, isto quer dizer que a correspondência entre as duas esferas se dá por meio de uma interpretação válida das normas, conferindo sentido aos atos humanos269.
Smend, nesse ponto, não ultrapassa a Escola de Viena, uma vez que ele parte da contraposição entre ‘realidade da vida e ordem do sentido’, contudo, ele pretende que uma ciência do espírito não se dirija ao único que pode ser considerado espírito, ou seja, o ordenamento jurídico, mas também que abranja a realidade da vida270. Ao fim e ao cabo, Smend chega à teoria dualista do Estado, para o qual o ordenamento em sentido ideal e a realidade dos homens são ângulos de um mesmo objeto, o Estado…
(…) A conciliação desses dois aspectos completamente antagônicos dar-se-ia por meio da ‘oscilação’ ”[17].
2.3.2 Resultados Teóricos da Resposta Kelseniana.
Os resultados teóricos da reflexão Kelseniana apontados no livro “O Estado como integração: um confronto de princípios” são: a) o Estado como super – homem (Übermensch); b) o Estado como “círculo fechado”; c) o Estado como integração; c.1) O conceito de integração; c.2) Os tipos de integração; d) Estado e direito; e) Legislação, governo, ditadura; f) As formas de Estado; g) A Constituição de Weimar.
Dito isso, proceder-se-á ao exame de per si desses resultados.
O ESTADO COMO SUPER – HOMEM (ÜBERMENSCH)
Discorrendo acerca do conceito de vida em Kelsen, Marianna Silva reza que:
“Kelsen continua a rebater todos os aspectos da teoria Smendiniana ao afirmar que este tenciona conciliar o que não pode ser conciliado, associando o campo espiritual (norma) ao da vida psicofísica (mente e matéria), para então chegar ao que seria a ‘vida espiritual’. Como dito anteriormente, Smend lança mão do chamado método da ‘oscilação’ para atingir sua finalidade274.
Como Smend faz uso do conceito de vida para a comprovação de sua teoria (…) Conseqüentemente, o erro de Smend, segundo Kelsen, consiste em supor uma substância superindividual do Estado. Como se este possuísse uma vontade superindividual, ou seja, uma ‘vida’. Apesar dessa constatação, Smend declara que a vida espiritual dos seres que compõem uma sociedade é diversa da vida individual de cada ser humano280.
Assim, ‘à psicologia e à biologia resultam acessíveis apenas a vida dos seres humanos individuais, das almas individuais, mas não a vida espiritual dirigida por um ser coletivo e, em particular, pelo Estado281’. Pode-se concluir, portanto, que existem dois tipos de vida: a vida psicofísica do indivíduo e a vida espiritual do ente coletivo282.
Dessa forma, a crítica de Smend à Escola de Viena consiste em dizer que esta não captou a vida do Estado, uma vez que limitou a compreensão deste ao âmbito do sentido. Para o filósofo integracionista a vida dos seres coletivos mostra-se imprescindível para a identificação da vida como experiência, pensamento que irá fundamentar toda a hermenêutica constitucional em Smend285”.[18]
Socorrendo-me das palavras do próprio Kelsen:
“Smend afastou-se, afinal, dessa solução do problema por não querer definir o Estado – conforme o fez a Escola de Viena.
(…) Em essência, a única diferença entre a teoria do Estado da Escola de Viena e a teoria anterior consiste no fato de que uma define o Estado como uma pluralidade de homens que vivem sob um poder legalmente ordenado (isto é, sob um ordenamento jurídico) ao passo que a outra define o mesmo como ordenamento legal sob o qual vivem os homens (…) Colocando a ênfase dessa definição do conceito mais uma vez sobre o elemento natural da ‘vida’, Smend recai na velha teoria do Estado e nos seus mesmos erros e contradições.
É precisamente isto que Smend reprova na Escola de Viena: que ela não teria captado a ‘vida’ do Estado por ter-se limitado à compreensão do âmbito da estrutura puramente espiritual do sentido.
(…) O conceito smendiano de Estado parece-se, por isto, mais com uma ninharia qualquer do que com aquela ‘unidade real da vida’, de cujo valor deve ser deduzido o dever humano de ‘viver’ e, se necessário, morrer pela totalidade’. Este é o conceito organicista do Estado de Gierke.
(…) Dessa maneira, Smend crê ter adquirido o direito de poder arrogantemente desdenhar o ‘modo de trabalho acrítico e pré-crítico’ de Gierke (p.4). Evidentemente, porque conseguiu substituir a ‘ingenuidade pré-crítica’ (p. 130) da teoria orgânica do Estado, mediante uma confusão metodológica sem par, para finalmente chegar ao mesmo resultado dela: no Estado como super – homem (Übermensch).
(…) A teoria normativa do Estado da ‘teoria pura do direito’ é mal compreendida pelo lado conservador como pelo liberalismo, em particular por Carl Schmitt; Verfassungslehre, 1926, p. 55 – ou é declarada exatamente como o contrário por escritores socialistas, especificamente como fascismo por Hermann Heller, Europa und der Faschimus, 1929, pp. 16 s. Isso me parece a melhor prova de que ela não é nem um nem outro, mas que é uma teoria objetiva do Estado. E por isto deve ser combatida pela direita e pela esquerda, isto é, sob o ponto de vista do ‘formalismo’ ”[19].
Em face do exposto, no que tange ao Estado como Super – homem, percebe-se que Kelsen assevera que Smend não busca uma realidade psicofísica da vida, mas sim a idéia de um Estado Todo-Poderoso, detentor de forças tanto físicas quanto psíquicas. Saliento aqui que é justamente por rejeitar a idéia de um Estado que seja, simultaneamente, ideal e real, que Kelsen lança sua crítica mais severa a Smend, ao rotulá-lo de teólogo estatal.
O ESTADO COMO CÍRCULO FECHADO
De um modo geral, citando Marianna Silva, a questão pode ser resumida da seguinte forma:
“A teoria pura do direito aduz que a unidade do Estado só pode ser baseada na esfera normativa, que é uma unidade do ‘dever-ser’. Para tanto, a existência e a validade do Estado dependem da validade de um ordenamento jurídico, esse ordenamento, por sua vez, comprova-se pela transformação de atos humanos relevantes em normas abstratas pertencentes ao ordenamento legal, editadas pelo Estado298.
Considerando a legalidade à parte, os atos humanos só poderão ser relacionados entre si do ponto de vista da causalidade e, por se tratarem de interação psicofísica própria da realidade, essa correlação jamais pode possibilitar a unidade do Estado.
(…) Assim, o Estado como círculo fechado é representado por um conjunto de homens que se encontram em uma relação de reciprocidade com o outro. Essa reciprocidade representa uma vinculação psíquica entre esses homens, de maneira que, para Kelsen, o Estado somente poderia ser considerado uma integração entre homens, se ficasse comprovado que essa correlação existisse entre todos que se definem como pertencentes ao Estado. Em outras palavras, que todos compartilhassem dos mesmos valores sociais ou que os valores de um grupo se sobrepusessem a outros301”[20].
Todavia, sentir-me-ia um “enganador” se limitasse o explanar desse item aos trechos acima. Portanto, retorno aos escritos de Kelsen para uma abordagem mais minudente da matéria:
“Por isso Smend chega exatamente a definir o Estado como ‘círculo fechado’ (geschlossener Kreis), no sentido da análise estrutural de Litt (p. 13), coisa que o próprio Litt abstém-se até mesmo de tentar. Porém, a aplicabilidade dessa categoria ao Estado não é particularmente explicada tampouco por Smend. Ele se limita à simples afirmação. Um ‘círculo fechado’ é representado por uma multidão de homens (devem ser mais do que dois) enquanto cada um deles encontra-se em uma relação de ‘reciprocidade’ com o outro.
(…) Mas não é só inútil querer provar o Estado como ‘círculo fechado’ no sentido mais restrito e original, ou seja, na terminologia de Litt, como ‘círculo fechado de primeiro grau’ onde ‘ cada um’ deve pôr-se em relação direta com o ‘outro’; mas é igualmente impossível conceber o Estado como ‘círculo fechado de segundo grau’, que se formaria, segundo Litt, com a ‘expansão sucessiva e simultânea’ do ‘círculo fechado de primeiro grau’ por meio da, assim chamada, ‘mediação social’. O resultado dessa mediação social deve ser mostrado com as próprias palavras de Litt, para quem ‘o efeito extensivo da mediação social abrange tanto a dimensão vertical quanto a horizontal’. Segui-lo significa anular a limitação acima estabelecida do número dos que pertencem simultaneamente ao círculo. Em seu lugar deveria colocar-se, segundo o nosso modo de perceber, que isola os aspectos do problema, a exigência de que se evite toda substituição da existência pessoal.
(…) Apesar dessa objeção fundamental, e até agora não refutada, desenvolvida no meu trabalho Conceito sociológico e jurídico do Estado, Smend tenta atingir um conceito sociológico de Estado independente do jurídico, definindo o Estado como ‘círculo fechado’ no sentido de Litt. Mas o que Smend apresenta para fundamentar sua asserção é muito pouco”[21].
“Sustenta-se que é o ‘cidadão consciente ativo’ aquele que tem a possibilidade de compreender o ‘âmbito estatal’. Mas o que é este ‘âmbito estatal’? Poderia ser o estado no qual vive o cidadão e que forma – com uma imagem – ‘o âmbito estatal’ do cidadão. Mas esta seria uma petitio principii. Pois o Estado ‘real’ não pode consistir no fato de que o cidadão tenha possibilidade de compreendê-lo; portanto, ‘âmbito estatal’ deve, certamente, ser concebido como: os outros cidadãos do mesmo Estado. Isto significa: a conexão real dos homens pertencentes ao Estado deve consistir no fato de um individuo poder compreender o comportamento do outro. Mas qual comportamento? Não é possível que seja apenas o comportamento ‘estatal’, pois tratar-se-ia, mais uma vez de uma petittio principii”.[23]
Com “uma só tacada” o mestre da Escola de Viena “põe no bolso” (como diziam os antigos advogados militantes dos Fóruns) as assertivas de Smend:
“Mas para que tais considerações tão mesquinha? Como jurista experiente, de um único golpe superam-se todas as dificuldades. De fato, não tem nenhuma importância para uma reflexão voltada à ‘realidade’ se esses doentes mentais ou crianças fazem partes do Estado,ou seja, se estão em determinadas correlações espirituais conscientes. É suficiente constatar que são tratados ‘juridicamente’ (ainda que isto seja realmente duvidoso) como se dele fizessem parte.
(…) Por essa via já se deu prova do Estado como ‘união real de vontades’ ou – o que dá no mesmo – como ‘vontade total’, antes de Smend e sem a pretensão de fazer com isso uma ‘sociologia das ciências espirituais”[24].
“Na bacia das almas”- termo cunhado pelo jornalista Josias de Souza, da Folha de S. Paulo (digo isso mais como uma homenagem ao periodista) – Kelsen termina:
“É esta a teoria da ‘integração’. Ela não possui nenhuma relação com a teoria estrutural de Litt, até agora seguida por Smend, apesar de que ele na introdução sustenta ter fundado a sua teoria do Estado – isto é, a teoria da integração – sobre a análise estrutural da realidade social de Litt. O trabalho de Smend contém, ao invés, duas tentativas, totalmente diferentes e independentes entre si, que se sobrepõem de forma inorgânica e contraditória, de fundamentar a ‘realidade’ do Estado: a teoria de Litt do círculo fechado e a teoria da integração, de Smend”.[25]
O ESTADO COMO INTEGRAÇÃO: O conceito de integração
Kelsen rebate Smend em minguantes linhas:
“A tese com a qual Smend pretende liquidar toda teoria do Estado até agora dominante e inaugurar um nova época desta ciência soa como: ‘ o Estado só existe porque e na medida em que se integra constantemente, construindo-se no indivíduo e a partir deles – e nesse continuo processo consiste a sua essência como realidade socioespiritual’ (p.20). Se se substituísse essa palavra estrangeira completamente supérflua por sua tradução alemã, o mote da nova teoria do Estado resultaria: o Estado é um processo continuo de união entre homens. Na verdade, nada disso é muito original, mesmo quando Smend crê ter iniciado, com a sua teoria da integração, um longo itinerário de pensamento totalmente desconhecido tanto para a teoria alemã do Estado quanto para as teorias estrangeiras (pp. 71-74). Francamente, o mínimo que se pode dizer do Estado é que ele é uma união de homens”[26].
O ESTADO COMO INTEGRAÇÃO: Os tipos de integração
Marianna Silva, de um jeito bastante perspicaz, sintetiza o tema em poucos parágrafos:
“O verdadeiro objetivo da teoria smendiana, no julgamento de Kelsen, deve ser a realidade natural e efetiva do Estado e, esse fim só pode ser alcançado ‘mediante a prova de uma relação específica que abranja a todos e, sobretudo, os cidadãos que pertencem a um Estado real309’ ”[27].
Citando “Constitución y Derecho Constitucional”, ela continua:
“Assim sendo, a tese de Smend resume-se na afirmação de que o Estado só existe na medida em que se constrói nos indivíduos a ele pertencentes, sendo que esse processo de integração entre Estado e sociedade, dá ensejo à essência do Estado como realidade sócio-espiritual 311.
E, partindo desse princípio, pode-se chegar à conclusão que a Constituição, em Smend, é um conjunto de distintos fatores integrativos com distintos graus de legitimidade, os quais são partes fundamentais do sistema. Ou seja, nessa concepção entende-se a Constituição como uma ordem jurídica de integração política, que corporifica os momentos de integração e todos os valores primários e superiores do ordenamento estatal312”. [28]
Para ao fim regressar aos considerandos de Kelsen:
“Para Kelsen, Smend faz uso de uma expressão por demais genérica, com o intuito de dar a impressão de ter descoberto uma teoria inédita. Entretanto, na opinião de Kelsen, a impressão passada por Smend cai por terra ao se colocar essa teoria da integração à prova, visto que não é possível ‘demonstrar as relações específicas através das quais os homens pertencentes ao Estado são ligados a um todo rela (sic!) efetivo e autêntico da vida existente, independentemente de um ordenamento normativo 315’ ”[29].
Agora, só me cabe reenviar o Leitor aos escólios do mestre:
“Porque mesmo aqui Smend, de fato, não pretende, absolutamente, alcançar com a ‘integração’ nenhuma noção da essência, mas simplesmente um juízo de valor.
(…) Dado que toda integração é essencialmente ‘função’, o que Smend ressalta sempre com particular ênfase (p.ex., p. 96), neste caso deveria tratar-se, então, de uma ‘função funcional’. E, da mesma forma que esse conceito-guia, todas as suas aplicações mostram-se também tautologias vazias.
(…) Smend é contra o parlamentarismo na Alemanha, mas o vê positivamente na França.
(..) O ressentimento político esguicha por todos os poros dessa teoria do Estado”[30].
Por fim, não assentindo com as exposições prolixas e confusas (nos dizeres do próprio Kelsen) da integração material, o criador da Teoria Pura do Direito põe têrmo a esse assunto:
“Só assim pode-se admitir a tese de Smend segundo a qual a bandeira do ‘Reich’ imperial, mas não a da Republica alemã, possuiria a capacidade de integração. As cores preto-vermelho-ouro do ‘Reich’ são riscadas desse livro da vida, da ‘vida espiritual do Estado’ da teoria da integração. As suas metas políticas não podem ser menosprezadas, não obstante dos percursos teóricos.
(…) Em suma, é preciso crer que esses fatores se unem em um efeito global unitário, já que tudo isso não é demonstrável. Mas o ponto é o seguinte: trabalha bem as demonstrações somente aquele que racionaliza o pensamento político, não aquele que quer compreender o conteúdo político como o conteúdo de uma crença.
(…) Isto talvez seja suficiente para descobrir a verdadeira essência dessa ‘realidade’ do Estado que Smend, quase como se se tratasse de sua missão, afirma dever salvar da teoria normativa do Estado própria da teoria pura do direito”.[31]
Assim, comparando os conceitos de integração de Hans Kelsen com os de Rudolf Smend, nota-se que enquanto para Kelsen a lei é uma ordem normativa da conduta humana, significando algo que deve ser ou acontecer[32], determinando que o homem deva conduzir de determinada forma; a lei em Smend, possui apenas a função de integrar a sociedade[33].
ESTADO E DIREITO
Estudando a tendência política inteiramente unilateral que domina a teoria da integração de Smend – a qual se mostra ainda mais marcante na aplicação a alguns problemas singulares da teoria do direito do Estado[34] – Kelsen depreende que a constatação dessas contradições fundamentais, nas quais se enreda a teoria de Smend, seria por si mesma suficiente para rechaça-la como destituída de valor cientifico. Mas a confusão conceitual da teoria da integração vai ainda muito mais longe[35].
De acordo com Hans Kelsen:
“(…) segundo Smend, a Constituição não pode ser o fundamento do direito, uma vez que ele a põe como fundamento do Estado. O dualismo infeliz leva a essas conseqüências grotescas!
(…) Smend procura esconder as flagrantes contradições da teoria da integração, falando de um ‘duplo papel’ da legislação (p.99) que, por um lado, deveriam ser ‘formas de vida do Estado’ e, por outro, apenas ‘fatores de vida jurídica’. Esta tentativa de fuga não pode, porém, nos conduzir para fora da confusão da teoria da integração”[36].
Prosseguindo na opinião do mesmo autor:
“Onde Smend vê um ‘duplo papel’ reside, na verdade, a unidade indivisível e, assim, a identidade entre Estado e direito.
A argumentação de Smend gira continuamente ao redor do mesmo ponto, o mesmo círculo vicioso de sua contradição de fundo: o Estado não é direito já que o Estado é integração, logo o direito não é integração. Mas, uma vez que o direito também é integração, logo o direito é Estado (…) a justiça não serve ao valor de integração, mas deve integrar. E, ainda mais grave do que esta contradição, é a tentativa de escondê-la (…) Será que Smend não se dá conta de que com isso ele não faz mais que reforçar a contradição?”.[37]
Ao ponderar que ainda não está fechada a cadeia na qual cada elo sucessivo nega o seu precedente, Kelsen faz uma engraçada metáfora dizendo que a teoria da integração de Smend jogou fora a criança junto com a água da bacia, pois separou a administração do âmbito estatal, entendido aqui como âmbito da integração e, portanto, valor da integração[38].
Nesse diapasão, o método da oscilação dialética postulado por Smend, o qual na opinião de Kelsen defende sempre o contrário daquilo que proclama, distingue o direito administrativo como “direito técnico” do direito do Estado como o “verdadeiro direito da integração”, chegando a conclusão de que é difícil meter na cabeça esse emaranhado serpenteante de conceitos e sacar deles todos os seus significados ambíguos[39].
LEGISLAÇÃO, GOVERNO, DITADURA
Afirmando que a visão parcial dessa ideologia deixa Smend cego frente à possibilidade de suas conseqüências, Kelsen pondera:
“Smend acredita dever advertir que ‘as dúvidas sobre a possibilidade de a administração produzir um direito verdadeiro e próprio’ ‘não são levadas suficientemente a serio’ (p. 101). E pensar que ele é também professor de direito administrativo! (sic) Trata-se certamente de ‘direito’ mas não de um direito ‘verdadeiro e próprio’, mas apenas de um direito impróprio.
(…) A vida jurídica depende do valor da ‘justiça’ (p. 101). Direito significa, portanto, ‘em sentido próprio’, justiça. Mas aqui este desdenhador do liberalismo incorre, sem se dar conta, em um preconceito genuinamente liberal!
(..) A tripartição smendiana da integração em Estado-administração-direito que, como demonstrado, o próprio Smend não consegue respeitar, tem, sobretudo, o objetivo de valorizar aquela atividade do Estado que, na teoria tradicional- mas apenas do ponto de vista da valoração de uma função política – parece ter sido desvalorizada: o governo.
(…) Essa representação encontra-se também na exposição smendiana ou é por ela pressuposta. Mas está, por assim dizer, oculta por um monte de arabescos inúteis.
(…) Smend utiliza demais e com excessiva freqüência o conceito de integração como expressão de um juízo de valor político, para ter o direito de distinguir um mal entendido a respeito de sua teoria objetiva, caso esta fosse interpretada como apologia da ditadura”[40].
AS FORMAS DE ESTADO.
Democracia x Parlamentarismo.
Eis o cerne desse tópico, no qual Kelsen apregoa que:
“(…) no seu ensaio, publicado em 1923, Die politische Gewalt im Verfassungsstaat um das problem der Staatsform (oferecido à Wilhelm Kahl pela Faculdade Jurídica de Berlim), Smend tenta uma teoria completamente diferente das formas de Estado: distingue entre uma integração estática e uma integração dinâmica e contrapõe ao ‘parlamentarismo’ como integração dinâmica ‘todas as formas remanescentes de Estado’ (p.23) como integração estática. Em sua nova obra, Smend claramente abandonou esta teoria. O contraste fundamental entre integração estática e dinâmica desapareceu, enquanto incompatível com a nova tese, uma vez que na integração como processo essencial do Estado manifesta-se justamente essa dinâmica. Uma ‘integração estática” é – do ponto de vista de uma teoria smendiana da integração – uma contradição nos termos. Se o que é determinante é a dinâmica, então todas as outras formas de Estado que se fundam sobre a integração estática não são verdadeiramente ‘formas’ de Estado; portanto, apenas o parlamentarismo, com a sua integração ‘dinâmica’, é uma forma verdadeira de Estado! O próprio Smend em seu ensaio de 1923 o trata absolutamente como ‘forma de Estado’. Mas, em seu ensaio de 1928 o parlamentarismo – que antes era integração ‘dinâmica’ – perde o caráter de forma de Estado.
(…) Ainda mais estranho do que todo esse exagero paradoxal é um outro recurso, do qual Smend se serve em sua luta contra o parlamentarismo.
(…) Por isso a luta contra o parlamentarismo é, na verdade, uma luta contra a democracia. No fundo, é apenas uma questão de honestidade conduzir essa batalha abertamente como luta contra a democracia.
(…) É seguro que Smend, com essa concepção da essência da democracia, refere-se a Kant, para quem o conceito de república compreende o de democracia. Mas o conceito de república, segundo Kant, abrange, não encerra, o de monarquia, porque para ele seria – como Smend afirma – ‘não uma negação formal’, mas ‘a expressão de uma plenitude conteudística’ . E (p. 113) mais determinado sob o aspecto conteudístico é o conceito de república, tanto que este deveria abranger o de monarquia, mas pela razão segundo a qual o termo republica em Kant guarda o significado ordinário de ‘res publica’, que é o significado geral de ‘Estado” e não aquele de uma forma particular de Estado.”[41].
A CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR.
Para finalizar, convém somente ponderar sobre as aplicações da Teoria da Integração ao Direito Constitucional positivo, mormente à Constituição do Reich alemão.
Assim, este derradeiro item trata do conflito “Constituição Bismarckiana do Reich Imperial x Constituição Weimariana da República Alemã”:
“Existe, sobretudo, o contraste entre função técnica e integrante. Smend deve admitir que a Constituição bismarckiana – para distingui-la, por exemplo, da Constituição da igreja de Paulo (Paulskirche) – apresenta-se ‘como meramente técnica’ (p. 121), ou seja, como uma constituição não integrante”[42].
Ante à posição dicotômica ódio-amor de Smend pela segunda parte da Constituição de Weimar, Hans Kelsen indaga:
“Por que tratá-la de forma tão depreciativa? Constituição: um punhado de parágrafos esquemáticos continuamente copiados. A mesma Constituição deveria ser entendida somente como o proclamado princípio de sentido da integração?”[43]
Antes de prosseguir com os desdobramentos do filosofar kelseniano, preciso mencionar um pensamento do professor da Universidade de Viena esculpido algumas páginas antes:
“Essa elevação dos direitos fundamentais ao posto de fatores de integração é surpreendente, porque precisamente os direitos fundamentais constituem a única herança verdadeiramente que as Constituições modernas receberam do liberalismo. E o liberalismo é, para Smend, exatamente o anticristo de toda a integração”[44].
Terminando o assunto e a obra literária, Kelsen conclui:
“E agora é possível compreender totalmente, pela primeira vez, por que a teoria da integração não pode usar a Constituição como fundamento do direito, já que ela pode entrever na concepção que reconhece na constituição o fundamento de validade do ordenamento jurídico uma afronta à idéia de direito. Portanto, a ruptura da Constituição, que essa teoria da integração pretende legitimar, pode ser desqualificada, não como ruptura jurídica, mas apenas como integração satisfatória, oposta a um posicionamento fiel à Constituição, mas ‘deficiente’, uma vez que Constituição e direito são coisas distintas que não têm nada a ver uma com a outra[45].
(…) é à luta contra a Constituição da República alemã que essa teoria – intencionalmente ou não – , com a sua ‘realidade’ do Estado, serve afinal”.[46]
Isto posto, encerro a exposição de motivos da retórica de Kelsen contra os ataques smendianos.
Filiando-me a corrente que sustenta a tese de que “ninguém deve ser refém do aplauso alheio”, sei que deixei a desejar em certos aspectos, entretanto também tenho consciência de que era o máximo que eu podia fazer. Nessa perspectiva, os trechos supracitados devem ser encarados apenas como ínfimas pílulas que norteiam o Leitor na busca por um conhecimento mais aprofundado.
Destarte, só me resta recomendar o deleite da leitura do livro em comento.
3.CONCLUSÃO.
Concluo que existe uma premência de que as normas jurídicas (não somente as constitucionais) sejam postas continuamente atualizadas através de novos métodos de interpretação, de modo a acompanhar as evoluções sociais, sem, contudo, haver necessidade de substituir essas normas.
Apesar de sempre procurar me posicionar em todos os meus textos jurídicos e acreditar que esse é o devido papel de quem escreve sobre correntes opostas de qualquer seara do Saber, clamo por uma exceção, pois na qualidade de fã e dedicado seguidor dos estudos do mestre da Escola de Direito de Viena – Hans Kelsen – meu juízo de valor prejudicaria uma isenta e imparcial análise do conflito metodológico em questão.
Vê-se, pois, que a atividade hermenêutica é primordial para a interpretação não só das normas constitucionais, mas sim do ordenamento jurídico em sua inteireza, competindo a sua práxis a todos os estudiosos e operadores do Direito, independentemente da corrente metodológica adotada.
Por conseguinte, uma vez superado o analfabetismo jurídico, não é preciso ser nenhum Theodor Viehweg, Konrad Hesse, Friedrich Muller, Peter Häberle, Rudolf Smend ou mesmo Hans Kelsen para realizar uma escorreita exegese das normas jurídicas. Afinal, como dizia o afamado poeta londrino William Blake [47]:
“Nenhum pássaro voa alto demais se voa com as próprias asas”.
Advogado/PA. Bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pós-graduando em Direito Médico com capacitação para o ensino no magistério superior pela Escola Paulista de Direito (EPD).
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