1.Intróito
A Lei nº. 11.441/07, recentemente editada, determinou a inclusão do art. 1.124-A no Código de Processo Civil, com a seguinte redação:
“Art. 1.124-A. A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.
§ 1º. A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para o registro civil e o registro de imóveis.
§ 2º. O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado comum ou advogados de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.
§ 3º. A escritura e demais atos notariais serão gratuitos àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei”.
Assim, a partir de 4 de janeiro de 2007[1] passou a ser possível efetivar a separação consensual em Cartório, sem procedimento judicial.
São muitas as questões já suscitadas em face da nova lei. Neste singelo texto, contudo, pretendemos discorrer tão somente sobre uma delas, que nos parece de importância fundamental: pode ou não o Oficial do Cartório recusar-se à realização da escritura com base na norma do art. 1.574, parágrafo único, do Código Civil? Quais serão as implicações de tal recusa?
2.Recusa à Homologação do Acordo em Processo Judicial
A nova lei, em sua perigosa simplicidade, não regulou uma questão de extrema relevância: a aplicação da regra do parágrafo único do art. 1.574 do Código Civil. Diz este dispositivo, reproduzindo o que já dizia o art. 34, § 2º., da Lei do Divórcio: “o juiz pode recusar a homologação e não decretar a separação judicial se apurar que a convenção não preserva suficientemente os interesses dos filhos ou de um dos cônjuges”. Antes de tratarmos especificamente sobre a aplicação deste dispositivo à nova lei, convém tecermos algumas considerações sobre sua aplicação judicial.
Em primeiro lugar, convém notar que esta regra não se confunde com a chamada cláusula de dureza, constante do art. 6º. da Lei do Divórcio, que foi abolida pelo novo Código Civil[2]. A cláusula de dureza nunca se aplicou à separação consensual, tão-somente à separação litigiosa não culposa, permitindo ao Juiz negar a separação quando ela fosse causa de agravamento da situação pessoal do cônjuge réu[3]. Ademais, é de se repudiar também a alegação de inconstitucionalidade da regra do parágrafo único do art. 1.574[4]; não há qualquer afronta ao princípio da liberdade no dispositivo; não se pode compreender tal princípio de forma tão ampla a ponto de impedir a proteção do Estado à estabilidade da família e à preservação dos interesses dos cônjuges e, sobretudo, dos filhos.
Deve o Magistrado ter cautela ao se utilizar desta faculdade. Sobretudo quando o interesse prejudicado for o de um dos cônjuges, deve o o cônjuge prejudicado não tem consciência de tal circunstância deverá ele recusar homologação ao acordo. Afinal, sendo os cônjuges capazes, nada impede que um deles disponha, até mesmo, de todos os seus bens (com a ressalva do art. 548 do novo Código Civil, ou seja, se possuir rendimentos para o seu sustento), em favor do outro[5]. E se poderia ele fazê-lo, após a homologação do acordo, por meio de doação, por que não lhe permitir que o faça no próprio acordo de separação[6]?
Ademais, não raras vezes o consenso para a separação só é obtido com a renúncia por um dos cônjuges de alguns, ou até de todos os bens que lhe competiriam[7]. E é sempre preferível que as partes realizem a separação consensualmente, se não para preservá-las das agruras da ação contenciosa, ao menos para resguardar os filhos.
Neste aspecto, melhor dispôs o Código Civil português, que determinou ao Juiz convidar os cônjuges a alterarem o acordo se ele não acautelar suficientemente os interesses de algum deles ou dos filhos (art. 1.776º, 2). Somente em segunda conferência poderá o Juiz marcar prazo para que os cônjuges alterem o acordo, sob pena de ficar o pedido de divórcio sem efeito (art. 1.777º).
Embora proceda a crítica de Yussef Said Cahali, entendendo que “não parece razoável que a recusa de homologação deva determinar a extinção do processo; até porque, sempre possível a renovação do pedido ainda que com as adaptações necessárias ou em circunstâncias diversas, pela própria natureza administrativa ou de jurisdição graciosa de seu processo, não haveria de se cogitar de lide para ser renovada”[8], temos para nós que, no Brasil, o Juiz não pode alterar o acordo, nem mesmo instar a que os cônjuges o façam, só podendo recusar sua homologação. Poderia, no máximo, recomendar aos cônjuges a alteração do acordo impróprio à homologação.
Aceita-se, contudo, a cindibilidade do acordo, para permitir ao Juiz que, verificando não preservar este suficientemente os interesses da prole e dos cônjuges, homologar a separação pessoal dos cônjuges, deixando de homologar a partilha proposta no acordo, remetendo esta para posterior fase de execução[9], embora já tenha o Supremo Tribunal Federal decidido não ser possível tal cisão[10].
3.Recusa à Realização da Escritura
A questão que agora se põe, com a vigência da Lei nº. 11.441/07, é: como aplicar tal disposição quando a separação é feita em Cartório? Em primeiro lugar: poderá o Oficial recusar-se a realizar a escritura? Esta questão parece-nos simples. Como servidor público que é, incumbe-lhe evitar nulidades. Se constata que o acordo não preserva suficientemente os interesses de um dos cônjuges[11], deve ele naturalmente recusar-se à celebração do acordo, recomendando aos cônjuges que refaçam o acordo[12].
Repudiamos, data venia, o entendimento esposado por Cristiano Chaves de FARIAS no sentido da “absoluta impossibilidade do tabelião recusar-se a homologar[13] a escritura pública dissolutória do casamento, por falta de previsão e por atentar contra a liberdade das partes”, fundando seu entendimento, entre outras razões, no fato de a lei dispensar a homologação judicial. O autor chega a dizer que “havendo algum vício na declaração de vontade não cabe ao tabelião (que não detém poderes para tanto) discuti-lo. O caminho será a propositura de ação anulatória”[14].
Tal entendimento, contudo, não pode ser acolhido. Em primeiro lugar, não falta previsão legal para tal recusa; ao contrário, ela é determinada pelo citado parágrafo único do art. 1.574, que não foi alterado pela Lei nº. 11.441/07. Segundo, não podemos falar em liberdade das partes em nível absoluto, a ponto de nenhum limite se poder opor; e, sobretudo, não se pode falar em liberdade a ponto de permitir que um dos cônjuges seja pressionado pelo outro (ou pelo advogado do outro, ou até pelo advogado comum) a realizar um acordo contra os seus interesses. Que liberdade seria esta, que chegaria ao ponto de ferir a liberdade alheia? Terceiro, a desnecessidade de homologação judicial não significa que o tabelião não tenha que cumprir as normas referentes à separação consensual que eram determinadas ao Juiz antes de se permitir a separação em Cartório. Quarto, não se pode permitir a realização de um negócio nulo para se viabilizar a sua anulação em seguida; se o Oficial tem conhecimento do vício, cumpre-lhe evitar a nulidade. Parece-nos, portanto, evidente que o Oficial do Cartório não só pode como deve recusar-se à homologação nos casos citados no art. 1.574, parágrafo único.
Mas o problema maior que vemos aqui é outro: na prática, esse dispositivo será aplicado quando a separação for feita em Cartório? Tem o Oficial condições efetivas de aplicar essa disposição? Vai ele efetivamente se preocupar em investigar realmente as condições em que se deram o acordo e em que ficarão os cônjuges após a escritura? Parece-nos que, ao contratualizar ao extremo a dissolução do casamento, o legislador se esqueceu das relações pessoais dos cônjuges. O Oficial certamente não tem preparo suficiente e, sobretudo, não terá informações suficientes para alcançar a aplicação desta regra. Creio que muito raramente se observará as condições pessoais dos cônjuges eventualmente pressionados a um acordo, situação que ocorre freqüentemente.
É claro que o acordo realizado em Cartório estará sempre sujeito à anulação judicial. Mas isto não pode justificar o desleixo na aplicação da norma legal. Não se pode permitir que se celebrem atos nulos ou anuláveis simplesmente porque eles podem ser declarados nulos ou podem ser anulados posteriormente. É dever de ofício de todo agente público evitar nulidades. A lei deveria ter mais precaução em situações como esta. Este é, em nosso modo de ver, um dos pontos mais negligenciados na nova lei. Observe-se que, muitas vezes, a situação de penúria resultante de um acordo mal feito pode ser tamanha, que o cônjuge prejudicado talvez não tenha condições nem mesmo de promover a anulação do acordo.
Conclusão
De todo o exposto, podemos concluir, sem nos alongarmos, pela perfeita possibilidade (e até mesmo pela obrigatoriedade) de o Oficial do Cartório aplicar a regra do parágrafo único do art. 1.574 do Código Civil, para recusar a realização da escritura quando o acordo não preservar suficientemente os interesses de um dos cônjuges, notando que tal regra, de aplicação excepcional, só deve ser aplicada quando o acordo for extremamente prejudicial a um dos cônjuges a ponto de acarretar-lhe situação de penúria.
Notamos ainda que este é um dos pontos frágeis da lei, que, ao contratualizar ao extremo a dissolução do casamento, deixou de cuidar dos aspectos pessoais dos cônjuges, carecendo, portanto, de revisão.
Especialista em Direito pela Universidade Paranaense–Unipar. Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá–UEM. Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo–USP. Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Lisboa–Portugal. Professor de Direito Civil na Escola do Ministério Público, na Escola da Magistratura do Paraná e na FAPI. Promotor de Justiça no Paraná. Autor dos livros (entre outros): Novo divórcio brasileiro: teoria e prática, pela ed. Juruá, em 12ª. edição; Abuso do direito, pela ed. Juruá, em 5ª. edição; Responsabilidade civil no direito de família, pela ed. Juruá, em 5ª. edição; Curso de direito civil: teoria geral do direito civil, v. 1 (em 3ª. edição) e 2, pela ed. Juruá; Direito sucessório do cônjuge e do companheiro, pela ed. Método; Direito civil: direito das sucessões, v. 8, pela ed. Revista dos Tribunais; e de diversos artigos publicados em diversas revistas jurídicas
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