1. Introdução
Os poderes de fiscalização da Administração Tributária envolve várias questões, limitando-nos a examinar aspectos concernentes ao sigilo bancário e à fiscalização nas empresas (e, na parte final, a legislação básica), em face do art. 145, § 1º e disposições constitucionais e infraconstitucionais pertinentes.
2. Sigilo bancário e privacidade: aspectos doutrinários
Na República Federativa do Brasil, que se constitui num Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, e preâmbulo – CF/88), entre outros princípios emerge o da legalidade geral (art. 5º, II), e a denominada estrita legalidade tributária (art. 150, I).
Assim, apesar de o saudoso mestre GERALDO ATALIBA, coerentemente, em inúmeras oportunidades, referir-se ao princípio da igualdade como o maior entre os princípios (porque realiza a justiça – preâmbulo; art. 5º, caput; art. 150, II, CF/88), não temos dúvidas em afirmar que, para fins de tributação, de obrigação tributária principal e acessória (CTN, artigos 97 e 113), o princípio da legalidade tributária emerge como o primeiro e mais importante.
Esse fenômeno impositivo legal vem desde a época do Rei JOÃO SEM TERRA, porquanto, conforme anotei em meu livro:[1]
“Estamos em 1215, na Inglaterra. O Rei João Sem Terra aumenta tributos. Os barões feudais reclamam: emerge o princípio da legalidade tributária.”
Antes de examinarmos o nosso ordenamento jurídico, vejamos como a tributação é vista no Direito Comparado (que pode servir de reflexão), em especial no Direito Italiano, cuja Constituição de 1948 estabelece:
Art. 53. Tutti sono tenuti a concorrere alle spese pubbliche in ragione della loro capacita contributiva.
Il sistema tributário è informato a criteri di progressività.[2]
A respeito desse dispositivo, CRISAFULLI e PALADIN, logo de início, anotam:[3]
1. Considerações preliminares. Uma decisão da Corte Suprema dos Estados Unidos da América de 1899 (Nicol v. Ames) resume a essência da problemática posta no art. 53: “O poder de tributar é o único grande poder sobre o qual é fundado o inteiro edifício nacional. Ele é tão necessário à vida e à prosperidade da nação, quanto o ar à vida do homem. Não é somente o poder de destruir, mas o poder de manter a vida.” (GRAVES, As finanças de um Estado moderno, p. 21).
Em outras palavras, o problema da imposição é essencialmente um problema de direito constitucional, que interessa – entre outro e em espécie – os ordenamentos do tipo parlamentar, no âmbito do qual é exatamente o Parlamento que pratica “o poder de votar o tributo” (LIVET-MOUSNIER, História da Europa, IV, p. 19). Mas isso não significa que o Parlamento possui uma competência exclusiva e total: “a análise das instituições governamentais ensina a distinguir a iniciativa, a decisão, a execução e o controle” (TRATOBAS, Les finances publiques et les impôts de la France, p. 20). É um modo como um outro para sublinhar a natureza funcional (ou, se se preferir, ancilar) da atividade impositiva – e, portanto, do fisco (DEL PUNTA, em Fisco e liberdade, pp. 61ss.) – que deve colocar-se em conexão com as exigências da coletividade: a qual sofre, por um lado, uma privação da própria riqueza e, por outro lado, uma potencialidade de direitos, cujo gozo fica subordinado à existência de disponibilidade de caráter financeiro.
Estas noções elementares permitem esclarecer, portanto, como a inclusão nos modernos textos constitucionais das cláusulas que “consistem em normas-base ou normas-princípio para a legislação tributária e ao mesmo tempo normas-parâmetro para avaliar a legitimidade constitucional das leis fiscais” (ELIA, Prefácio a DE MITA, Fisco e Constituição, I, p. XV) seja um dado indefectível (imperecível).” (os itálicos e os grifos são do original)
Queremos destacar, nessa doutrina, dois aspectos de suma importância, que consubstanciam o nosso entendimento, em relação ao sigilo bancário:
1º) – o PODER de tributar (que inclui o PODER-DEVER de fiscalizar);
2º) – o PARLAMENTO pratica “o poder de votar o tributo” (legalidade tributária, no âmbito do Estado Democrático de Direito).
A conjugação desses dois PODERES (de tributar e de produzir as leis), constituem os grandes pilares do Estado Democrático de Direito (ou seja, normas-base, normas-princípio ou normas-parâmetro), a traduzir o exato conteúdo, significado e alcance do art. 145, § 1º, parte final, da CF/88, no que diz respeito ao sigilo bancário.
Não é sem razão que o saudoso mestre CELSO BASTOS, ao tratar do “Poder tributário”, e que ele se desenvolve nos termos da LEI, assevera que “a força impositiva do Poder Público em matéria tributária encontra seu fundamento no cerne mesmo das prerrogativas estatais. Daí porque a existência de autores que fundamentam o poder tributário na soberania do Estado”.[4]
Para correta postura interpretativa, é preciso ter presente que, enquanto o art. 145 situa-se no Capítulo da Tributação, o art. 5º consta do Capítulo dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivos. E isto é importante observar, porquanto, antes de se iniciar a interpretação pelo critério gramatical, é preciso ver em que Capítulo está situado o dispositivo que se pretende interpretar.
Destarte, não há, entre o dois artigos – 145 e 5º -, nenhum confronto: ambos aplicam-se no campo em que a Constituição lhes reservou, o que significa dizer que a CF faculta (autoriza) à autoridade administrativa de identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, e aos mesmo tempo dispõe que tal outorga deve ser exercida nos termos da lei, e respeitando direitos individuais.
Diante dessa faculdade expressa, os direitos individuais devem ser respeitados, mas a interpretação deles não pode chegar ao ponto de impossibilitar a identificação, simplesmente porque a identificação se apóia em normas-base, normas-princípio ou normas-parâmetros, que são o PODER de Tributar (que implica no PODER-DEVER de fiscalizar) e Poder de votar o tributo (que implica na observância do princípio da legalidade).
Diante disso, entendemos que:
1º) Estando o art. 145, § 1º, no campo da tributação, cujo PODER envolve o PODER-DEVER de fiscalizar, a CF faculta à administração tributária de identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte;
2º) trata-se de uma faculdade expressamente prevista pela CF, que, todavia, deve ser exercida nos termos da lei, e respeitados os direitos individuais;
3º) os termos da LEI são os previstos nas normas gerais (CTN, LC 104, 105) e normas ordinárias (Lei 9.311/96, entre outras), que devem orientar-se, inclusive, nos critérios da razoabilidade e proporcionalidade;
4º) os DIREITOS INDIVIDUAIS são os constantes do art. 5º, em especial os do inciso LV (devido processo legal = contraditório e ampla defesa, nos termos da lei);
5º) a intimidade e a vida privada, do inciso X, não é ofendida pelo Estado, na obtenção de informações, tendo em vista que o Estado não é terceiro, porquanto titular do interesse público;
6º) os dados, do inciso XII, não se referem, propriamente, aos dados bancários, pois estes são expressamente autorizados pelo art. 145, § 1º – campo propício da tributação –, e a atual legislação que rege o sigilo bancário é conforme à Constituição, inclusive a teor do que extraímos da doutrina posta por CRISAFULLI e PALADIN;
7º) mesmo que se entenda que os DADOS a que se refere o inciso XII incluem os dados bancários, continua incólume a faculdade outorgada pela CF à administração pública para obtê-los, nos termos da lei e respeitados direitos individuais, ou seja, não podem ser divulgados a terceiros não integrantes da relação jurídico-tributária, devendo ser mantidos em sigilo.
Entre nós, esse PODER-DEVER já foi afirmado pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, e à unanimidade, na voz do Relator, Ministro MOREIRA ALVES, nos EDIv no RE 94.462, que:[5]
“Com efeito, na realidade, a relação obrigacional tributária nasce, como não poderia deixar de ser por sua própria natureza, com a ocorrência do fato gerador. E, a partir desse momento, surge, também, para o Fisco o direito potestativo de efetuar o lançamento, e direito potestativo a ser exercido dentro de prazo determinado que, por ser prazo de exercício de direito potestativo, é prazo de decadência.
[….]
O direito potestativo existente tem como titular o Estado (e não seu funcionário) e se contrapõe ao contribuinte que a ele está sujeito; já o poder-dever do funcionário, enquanto poder, se dirige – por exercê-lo em nome do Estado – contra o contribuinte, mas, enquanto dever, o é em face do Estado, e não do contribuinte.”
Anteriormente à CF/88, o STF já vislumbrara uma distinção entre a possibilidade de obter informações bancárias e a obrigatoriedade do sigilo profissional & privacidade (RE 71.640-BA, 1ª Turma, Djaci Falcão, unânime, 17-9-1971 -RTJ 59/571), a teor da ementa:
“Sigilo bancário. As decisões na instância ordinária entenderam que em face do Código Tributário Nacional o segredo bancário não é absoluto. Razoável inteligência do direito positivo federal, não havendo ofensa ao disposto no art. 153, § 9º, da Lei Magna, nem tampouco negativa de vigência do art. 144 do C. Civil.
O objetivo do writ era afastar a exigência de apresentação de fichas contábeis, ao fundamento de violação de sigilo bancário. Inocorrência de dissídio jurisprudencial. Recurso extraordinário não conhecido.”
NOTA – Do voto do Relator transcrevemos o seguinte trecho:
“A regra do art. 195 abrange, não há dúvida, os Estados e Municípios. Cuidando da preservação do sigilo profissional, escreve o prof. Aliomar Baleeiro:
‘Não é, porém, o caso dos banqueiros por exemplo, que não estão adstritos às mesmas regras éticas e jurídica de sigilo. Em princípio só devem aceitar e ser procurados para negócios lícitos e confessáveis. Diversa é a situação do advogado, do médico e do padre, cujo dever profissional lhes não tranca os ouvidos a todos os desvios de procedimentos éticos ou jurídico, às vezes conhecidos somente da consciência dos confidentes’ (Direito Tributário Brasileiro, p. 550 e 551).
E mais:
‘Os bancos podem ser compelidos a informar ou fornecer cópia dos bordereaux dos títulos descontados e das duplicatas ou cambiais sacados contra o contribuinte, a fim de apurar-se a exata natureza ou volume de seus negócios (CTN, art. 197, II)’ (obra citada, p. 547).”
Na vigência da Carta de 1988, o Ministro CARLOS VELLOSO, relator do RE 219.780-5-PE (STF, 2ª turma, unânime, 13.04.1999, DJU 10.09.1999; Recorrente: União Federal), elaborou a seguinte ementa:
“CONSTITUCIONAL. SIGILO BANCÁRIO: QUEBRA. ADMINISTRADORA DE CARTÕES DE CRÉDITO. CF, Art. 5º, X.
I – Se é certo que o sigilo bancário, que é espécie de direito à privacidade, que a Constituição protege – art. 5º, X – não é um direito absoluto, que deve ceder diante do interesse público, do interesse social e do interesse da Justiça, certo é, também, que ele há de ceder na forma e com observância de procedimento estabelecido em lei e com respeito ao princípio da razoabilidade. No caso, a questão foi posta, pela recorrente, sob o ponto de vista puramente constitucional, certo, entretanto, que a disposição constitucional é garantidora do direito, estando as exceções na norma infraconstitucional.
II – RE não conhecido.” (RE 219.780-5-PE, STF, 2ª Turma, Carlos Velloso, unânime, 13-4-1999, DJU 10-9-1999; Recorrente: União Federal)
NOTA – Do voto do Ministro Carlos Velloso, destacamos os seguintes trechos:
“Quando do julgamento da Pet. 577-(QO)-DF – caso Magri – examinei a questão da quebra do sigilo bancário.
Decidiu o Supremo Tribunal Federal:
‘Constitucional. Penal. Processual Penal. Sigilo bancário: Quebra. Lei nº 4.595, de 1964, art. 38.
I – Inexistentes os elementos de prova mínimos de autoria de delito, em inquérito regularmente instaurado, indefere-se o pedido de requisição de informações que implica quebra de sigilo bancário. Lei nº 4.595, de 1964, art. 38.
II – Pedido indeferido, sem prejuízo de sua reiteração.’ (RTJ 148/366)
Disse eu no voto que proferi:
‘[…]
A questão, portanto, da quebra e sigilo, resolve-se com observância de normas infraconstitucionais, com respeito ao princípio da razoabilidade e que estabeleceriam o procedimento ou o devido processo legal para a quebra do sigilo bancário.
A questão, portanto, não seria puramente constitucional. A quebra do sigilo bancário faz-se com observância, repito, de normas infraconstitucionais, que subordinam-se ao preceito constitucional. É dizer, aquelas normas, sujeitam-se ao controle de constitucionalidade, porque, em termos abstratos ou materiais, poderiam não estar conforme ao mandamento constitucional.
O RE, pois, é inviável, dado que a recorrente quis discuti-lo somente sob o ponto de vista constitucional, É certo que interpôs recurso especial, argumentando ter sido ofendido o CTN, art. 197 e seu parág. único. O recurso, entretanto, não prosperou, por falta de prequestionamento. Cumpria à ora recorrente, nos momentos adequados, ter provocado o tribunal de 2º grau ao debate da questão, o que não fez.
Na verdade, a Constituição, no art. 145, § 1º, estabelece que é ‘facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte’.
Está-se a ver, da leitura do dispositivo constitucional, que a faculdade concedida ao Fisco, pela Constituição, exerce-se com respeito aos ‘direitos individuais e nos termos da lei’.
Tem-se, novamente, questão infraconstitucional que deveria ser examinada, o que inviabiliza o recurso extraordinário. […]
Do exposto, não conheço do recurso.”
Não parece haver dúvida no sentido de que, desse julgamento da Suprema Corte, resulta que as informações bancárias (patrimônio, rendimentos e atividades econômicas – Art. 145, § 1º, CF/88) estão sujeitas ao regramento previsto em lei, a qual estabelece:
a) sigilo em relação a terceiros não integrantes da relação jurídico-tributária (sob as penas da lei);
b) obtenção de informações pelo Estado, para consecução dos seus fins (nos termos da lei), em homenagem ao primado da lei num Estado Democrático de Direito.
Tendo sido revogado o art. 38 da Lei 4.595/64 pelo art. 13 da LC n. 105, de 2001, passa a questão em foco a ter novo regramento legal, e para tanto cumpre-nos divulgar a serena postura do Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE no MS 21.729 (um dos votos vencedores que denegou a segurança – Pleno – DJ 19.10.2001), que reproduzimos:
“O sigilo bancário só existe no Direito brasileiro por força de lei ordinária. Não entendo que se cuide de garantia com status constitucional. Não se trata da ‘intimidade‘ protegida no inciso X do art. 5º da Constituição Federal. Da minha leitura, no inciso XII da Lei Fundamental, o que se protege, e de modo absoluto, até em relação ao Poder Judiciário, é a comunicação ‘de dados’ e não os ‘dados’, o que tornaria impossível qualquer investigação administrativa. Reporto-me, no caso, brevitatis causao, a um primoroso estudo a respeito do Professor Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Em princípio, por isso, admitiria que a lei autorizasse autoridades administrativas, com função investigatória e sobretudo o Ministério Público, a obter dados relativos a operações bancárias.”
Com efeito, do estudo do professor TERCIO SAMPAIO, reproduzimos os seguintes trechos, pelo quais o eminente professor entende que são legais e constitucionais as normas que regem o sigilo bancário:[6]
“8. Em primeiro lugar, a expressão ‘dados’ manifesta uma certa impropriedade (Celso Bastos & Ives Gandra, Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989, v. 2, p. 73). Os citados autores reconhecem que por ‘dados’ não se entende o objeto de comunicação, mas uma modalidade tecnológica de comunicação. Clara, nesse sentido, a observação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Comentários à Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1990, v.1, p. 38): ‘Sigilo de dados. O direito anterior não fazia referência a essa hipótese. Ela veio a ser prevista, sem dúvida, em decorrência do desenvolvimento da informática. Os dados aqui são os dados informáticos (v. inc. XV e LXXII)’.
A interpretação faz sentido. O sigilo, no inciso XII do art. 5º, está referido à comunicação, no interesse da defesa da privacidade.
[…]
11. Feitas estas observações, é oportuno perguntar, em que limites a autoridade fiscal pode exercer sua atuação fiscalizadora, no que diz respeito ao disposto nos incisos X e XII do art. 5º da CF.
O art. 174 da Constituição determina que o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, exerça, entre outras, a função de fiscalização, na forma da lei. Fiscalizar, um dos sentidos da palavra controlar (cf. Fábio Comparato, O Poder de Controle na sociedade anônima. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 14), significa vigiar, verificar e, nos casos de anormalidade, censurar (Caldas Aulete: verbete fiscalizar). Fiscalização é, pois, vigilância, donde a verificação continuada e, detectada a anormalidade, é censura. O acesso continuado a informações faz parte da fiscalização. Sem isso não há vigilância. O acesso intermitente, na verificação da anormalidade, faz parte da censura, que implica castigo, punição.
A competência da administração fazendária para o exercício da função fiscalizadora encontra embasamento constitucional em vários dispositivos.
Por exemplo, na prevenção (vigilância) e repressão (censura) do contrabando e do descaminho, em sua área de competência, ela é afirmada no art. 144, § 1º, II, Já o art. 145, § 1º, ao estabelecer o princípio da capacidade contributiva conforme o qual os impostos, sempre que possível, devem ter caráter pessoal e ser graduados, faculta à administração tributária, ‘especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte’. Esta faculdade de identificar está ligada à implementação de um princípio. Note-se que o contribuinte usa a expressão especialmente para conferir a faculdade referida. Este advérbio, em português, significa ‘de modo especial; particularmente; principalmente; nomeadamente’ (Aulete: verbete especialmente). Ou seja, pode significar exclusivamente (só para aquela espécie) ou principalmente (sobretudo, mas não só para aquela espécie). Ora, tendo em vista a função fiscalizadora da administração tributária, parece-nos que o advérbio está usado no segundo e não no primeiro sentido. Ou seja, o constituinte, de um lado, escreveu especialmente porque a mencionada faculdade de identificar não é de presunção óbvia para o efeito de assegurar efetividade àquele princípio e, se não fosse aí inscrita, não se poderia inferir a sua autorização. De outro lado, porque o fez expressamente, admitiu, ao fazê-lo, implicitamente e a contrario sensu que a identificação de patrimônio, rendimento e atividade econômicas do contribuinte é uma presunção da função fiscalizadora da administração tributária. Interpretar de outro modo é tornar impossível a exigência de declaração de bens, de rendimentos, etc.
Por cautela, embora isso não fosse preciso, o dispositivo exige respeito aos direitos individuais. Ademais, que a identificação se faça nos termos da lei. Isto vale tanto para o caso especial, como para a fiscalização em geral.
No que se refere à fiscalização em geral, vale, em termos legais, o disposto nos arts. 194, 195, 196, 197, 198, 199 e 200 do CTN. Menciona-se ainda o ar. 12 da Lei Complementar nº 70/91. Em especial, o art. 197 fala de informações com relação a bens, negócios ou atividades de terceiros. E aí inclui bancos, entre entidades obrigadas a prestar, mediante intimação escrita, as informações.
Pergunta-se se estas autorizações legais estariam revogadas pelo art. 5º, XII da C.F. combinado com o inciso X. Não nos parece plausível admiti-lo pelo absurdo a que ele conduz. Isto significaria acabar com a competência fiscalizadora do Estado. Ora, como vimos, o inciso XII (proteção à comunicação de dados) impede o acesso à própria ação comunicativa, mas não aos dados comunicados.
E estes, protegidos péla privacidade, não constituem um limite absoluto. Tanto que, ainda recentemente, o Ministro Carlos Mário Velloso, relator de decisão que tinha por objeto o sigilo bancário, não teve dúvidas em afirmar, que não se trata de ‘um direito absoluto, devendo ceder, é certo, diante do interesse público, do interesse da justiça, do interesse social, conforme aliás tem decidido este Corte’ (destaquei; segue copiosa citação da jurisprudência do STF e da doutrina – cf. STF, Sessão Plenária, ac. de 25.03.92). Do mesmo modo, no mundo financeiro internacional, já se notam importantes mudanças no conceito de sigilo bancário quando estão envolvidas atividades criminosas (Spencer).
12. No tocante, pois, às informações sobre terceiros, exigíveis de instituições financeiras, quando protegidas pela inviolabilidade de sigilo de dados (sigilo bancário), podem ter acesso, observadas as cautelas e formalidades prescritas pela lei, as autoridades e agentes fiscais. O art. 38, § 5º (em Nota de rodapé: revogado pela LC 105, de 10 de janeiro de 2001) da Lei nº 4.595/64 exigia, para isso, processo instaurado (art. 196 do CTN) e que os dados requisitados fossem considerados indispensáveis pela autoridade competente. Não se trata de sigilo profissional (art. 5º, XIV da C.F.) que, na palavra autorizada de Aliomar Baleeiro, não alcança a profissão de banqueiro (p. 550). Em questão está o sigilo de dados privativos (art. 5º, X e XII da C.F.). A nosso ver, com ressalva de dados referentes à intimidade dos sujeitos, os dados da vida privada são acessíveis às autoridades fiscais nas condições e com as cautelas estabelecidas pela lei. Havendo processo administrativo instaurado e sob o sigilo a que o próprio Fisco está obrigado, devem ser reveladas pela instituição financeira intimada as informações consideradas indispensáveis, pela autoridade fiscalizadora, ao exercício da função.
O que se diz para a instituição financeira vale, a priori, para entidades não protegidas pelo chamado sigilo bancário, como as mencionadas no art. 12 da Lei Complementar nº 70/91, cuja fiscalização se rege, sem as restrições da Lei nº 4.595/64, pelo CTN e pela legislação tributária específica a cada tributo.
[…]
Por fim, este temperamento das situações, a busca da hermenêutica equilibrada, só favorece o Estado de Direito que não significa um bloqueio do Estado, mas o exercício de sua atividade, no contorno que lhe dá a Constituição, para a realização do próprio bem estar social.” (o itálico é do original e os negritos são nossos)
Agora, percebe-se a utilidade e a coerência da doutrina comparada, posta no início destas considerações, mormente em relação ao Estado, detentor do PODER de Taxar e DEVER de Fiscalizar.
Essa situação fática desigual, entre quem paga o tributo e quem não paga, obrigou, de certa forma, ao legislador derivado (EC 42, de 2003), a acrescentar o art. 146-A à CF/88, embora esse novel dispositivo não diga pertinência direta com os dados bancários:
Art. 146-A. A lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo.[7]
E, mais recentemente, o Ministro CARLOS VELLOSO, no RE 444.197/RS, em decisão monocrática de 31.03.2005 (DJU 12.04.2005, p. 67), voltou a afirmar que a questão da quebra de sigilo bancário é questão afeta à lei infraconstitucional:
“[…] DECIDO. O recurso extraordinário não tem viabilidade. A uma, porque para se chegar ao exame da alegada ofensa à Constituição (art. 5º, X e XII, CF), faz-se necessário analisar as normas infraconstitucionais, o que não é possível em sede de recurso extraordinário. A duas porquanto o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada encontram proteção em dois níveis: em nível infraconstitucional, na Lei de Introdução ao Cód. Civil, art. 6º, e em nível constitucional, art. 5º, XXXVI, C.F. Todavia, o conceito de tais institutos não se encontra na Constituição, art. 5º, XXXVI, mas na lei ordinária, art. 6º da LICC. Assim, a decisão que dá pela ocorrência, ou não, no caso concreto, de tais institutos, situa-se no contencioso de direito comum, que não autoriza a admissão do RE. A três, dado que a alegação de ofensa aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa não prescindo do exame da matéria sob o ponto de vista processual. Assim, se ofensa tivesse havido aos princípios da CF, art. 5º, LIV e LV, seria ela indireta, reflexa, o que não autoriza a admissão do recurso extraordinário.
Do exposto, nego seguimento ao recurso.”
De qualquer sorte, importa notar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tende a direcionar para a constitucionalidade da legislação que estamos examinando, embora haja ADIns a serem julgadas, a teor de decisão do Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, de 24.09.2001, na ADI 2.406/DF (DJ 02.10.2001, p. 35):
“DESPACHO: Em razão da distribuição da primeira delas – ADIn 2390 – e da coincidência total ou parcial dos objetos das demais, por distribuição ou redistribuição, sou relator de cinco ações diretas de inconstitucionalidade, com pedido de cautelar, todas atinentes a preceitos da recente legislação complementar ou ordinária que propiciam a transmissão à administração tributária de dados da movimentação financeira do contribuinte, cobertos, em princípio, pelo sigilo bancário. Assim: a) ADIn 2386 – Confederação Nacional do Comércio, CNC: LC 105/01, ARTS. 5º e 6º; b) ADIn 2389 – Partido Social Liberal, PSL: L 10174/01; c) ADIn 2390 – Partido Social Liberal, PSL: LC 105/01, arts. 5º, 6º e § 1º; D. 3724/01; d) ADIn 2397 – Confederação Nacional da Indústria, CNI: LC 105/01, art. 3º, § 3º; art. 6º e a remissão a ele feita no art. 1º, § 3º, VI; art. 5º e §§; LC 104/01: art. 1º (na parte em que altera o art. 98 da Lei 5172/66 e lhe acrescenta o inciso II e o § 2º); D. 3724/01; e) ADIn 2406 – Confederação Nacional da Indústria, CNI: Lei 9311/96, art. 11 e § 2º; Lei 10174/01, art. 1º (que introduz § 3º ao art. 11 da L. 9311/96.
[…]
Valho-me, pois, da alternativa aberta pelo art. 12 da L. 9868/99 para pedir de logo, o parecer do Senhor Procurador-Geral da República, de modo a propiciar, com a brevidade possível, o julgamento definitivo dos dois grupos de ações.”
No Superior Tribunal de Justiça, há algumas decisões no âmbito da Primeira Turma, todas no mesmo sentido, tal como nos diz a ementa a seguir transcrita:
“TRIBUTÁRIO. NORMAS DE CARÁTER PROCEDIMENTAL. APLICAÇÃO INTERTEMPORAL. UTILIZAÇÃO DE INFORMAÇÕES OBTIDAS A PARTIR DA ARRECADAÇÃO DA CPMF PARA A CONSTITUIÇÃO DE CRÉDITO REFERENTE A OUTROS TRIBUTOS. RETROATIVIDADE PERMITIDA PELO ART. 144, § 1º, DO CTN.
1. O resguardo de informações bancárias era rígido, ao tempo dos fatos que permeiam a presente demanda (ano de 1998), pela Lei 4.595/64, reguladora do Sistema Financeiro Nacional, e que foi recepcionada pelo art. 192 da Constituição Federal com força de lei complementar, antes a ausência de norma regulamentadora desse dispositivo, até o advento da Lei Complementar 105/2001.
2. O art. 38 da Lei 4.595/64, revogado pela Lei Complementar 105/2001, previa a possibilidade de quebra do sigilo bancário apenas por decisão judicial.
3. Com o advento da Lei 9.311/96, que institui a CPMF, as instituições financeiras responsáveis pela retenção da referida contribuição, ficaram obrigadas a prestar à Secretaria da Receita Federal informações a respeito da identificação dos contribuintes e os valores globais das respectivas operações bancárias, sendo vedado, a teor do que preceituava o § 3º do art. 11 da mencionada lei, a utilização dessas informações para a constituição de crédito referente a outros tributos.
4. A possibilidade de quebra do sigilo bancário também foi objeto de alteração legislativa, levada a efeito pela Lei Complementar 105/2001, cujo art. 6º dispõe: ‘Art. 6º. As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.’
5. A teor do que dispõe o art. 144, § 1º do Código Tributário Nacional, as leis tributárias procedimentais ou formais têm aplicação imediata, ao passo que as leis de natureza material só alcançam fatos geradores ocorridos durante a sua vigência.
6. Norma que permite a utilização de informações bancárias para fins de apuração e constituição de crédito tributário, por envergar natureza procedimental, tem aplicação imediata, alcançando mesmo fatos pretéritos.
7. A exegese do art. 144, § 1º do Código Tributário Nacional, considerada a natureza formal da norma que permite o cruzamento de dados referentes à arrecadação da CPMF para fins de constituição de crédito relativo a outros tributos, conduz à conclusão da possibilidade da aplicação dos artigos 6º da lei Complementar 105/2001 e 1º da Lei 10.174/2001 ao ato de lançamento de tributos cujo fato gerador se verificou em exercício anterior à vigência dos citados diplomas legais, desde que a constituição do crédito em si não esteja alcançada pela decadência.
8. Inexiste direito adquirido de obstar a fiscalização de negócios tributários, máxime porque, enquanto não extinto o crédito tributário a Autoridade Fiscal tem o dever vinculativo do lançamento em correspondência ao direito de tributar da entidade estatal.
9. Recurso Especial desprovido, para manter o acórdão recorrido.” (REsp 685.708-ES, STJ, 1ª Turma, Luiz Fux, unânime, 12-05-2005, DJU 20-06-2005 – Recorrido: Fazenda Nacional – Site certificado no www.stj.gov.br)
Enfim, assentando-se, o Estado Democrático de Direito, no primado da LEI – segundo a qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II; 147; 148, caput; 149, caput; 150, I; 212, § 5º; 239, caput; 240, CF/88), a legislação vigente permite à autoridade administrativa fiscal a obtenção de dados bancários, sob a proteção de sigilo em relação a terceiros que não fazem parte da relação jurídico-tributária, prevendo clara e expressamente que a divulgação indevida de tais DADOS e INFORMAÇÕES está sujeita às penas de natureza administrativa, civil e penal.
Não podemos encerrar este item sem a ponderação do Professor Ives Gandra da Silva Martins, sobre o art. 145, § 1º, da CF/88:[8]
“Considero que o final do discurso do § 1º do art. 145 é a demonstração inequívoca do caráter ideológico e pouco científico que a dicção possui.
De início, o direito de fiscalizar é um direito inerente à Administração dentro das regras próprias do direito administrativo. E como a Constituição garante os direitos individuais, à evidência, garante a inviolabilidade do domicílio nos termos do art. 5º, XI, com o que o Fisco, pela nova Constituição, não tem mais direitos do que aqueles que tinha com a Constituição pretérita.
Por outro lado, todos os princípios próprios do direito tributário (estrita legalidade, tipicidade fechada, reserva absoluta) permanecem, de tal forma que o sistema não admite maleabilidade exegética ou imposição por aparência.
Dessa forma, não há como, pelo princípio constante, tirar-se a ilação de que a tributação por riqueza aparente ou a discriminação maleável de fatos geradores imprecisos possibilitariam a imposição tributária.
Em outras palavras, a identificação do patrimônio, dos residentes e das atividades do contribuinte apenas pode ensejar imposição se a lei definir com clareza o tipo tributário, o fato gerador, sem a possibilidade de utilização de interpretações clássicas ou da integração analógica.
Todos os dispositivos de garantia do contribuinte, como aqueles esculpidos nos arts. 108, § 1º, 97 e 112 do Código Tributário Nacional, continuam em vigor, lembrando-se que o elenco de garantias constitucionais passou a ser mais extenso na atual Constituição que na anterior, com a inclusão expressa do princípio da irretroatividade.
Isto posto, não vejo, no Texto Constitucional, algo que tenha resultado em acréscimo no poder de fiscalizar, visto que todas as garantias e direitos anteriores foram preservados a favor do contribuinte.
À nitidez, tal direito de a Administração fiscalizar, que já tinha no passado e continua a ter no presente, é irrelevante como fonte geradora de imposição, que só pode ser de lei para conferir o caráter pessoal a uma incidência ou determinar sua graduação.
Por esta razão, é a própria expressão ‘nos termos da lei’ que reduz às suas dimensões atuais o princípio constitucional.” (grifamos)
3. Conclusão
O Brasil gasta quase 10%, dos 36% do PIB que arrecada de tributos, com juros da dívida pública interna e externa. E há reclamos, justos, no sentido de que a tributação situa-se num patamar elevado, receita que não é repassada em benefícios que o povo por direito deveria receber.
E alega-se, também, que há necessidade de se diminuir o tamanho do Estado, pois isso exige volumosas receitas para sua manutenção – e essa é uma outra verdade que os Constituintes de 1988 não souberam resolver, prejudicando o País como um todo.
Contudo, o que nos parece também de suma importância, é que a sociedade civil e as instituições competentes, deveriam controlar melhor a arrecadação da receita e sua efetiva aplicação, para verificar se a receita, afetada ou distribuída, chega em sua totalidade ao seu destino, pois num evento promovido pela IOB Informações Objetivas, há uns 6/7 anos atrás, bem coordenado pelo Dr. Alberto Bugarib, um eminente ex Ministro da Fazenda, disse que significativa parte da receita não chegava ao seu destino, perdendo-se pelos ralos da burocracia (se é que bem lembro, disse mais ou menos isso).
Para tais controles gerais, deposito grande confiança nas instituições públicas e cíveis (nem sempre me parecem bem atuantes – mas torço para que minha impressa esteja errada), e em especial no Ministério Público, pelo que tem realizado em favor do Brasil a partir da Carta da República de 1988, atuando eficientemente.
Ao lado dessas considerações (que espero possam servir de reflexão), é preciso saber resolver, ou pelo menos diminuir drasticamente, a corrupção e toda espécie de evasão fiscal, e, para tanto, a atual legislação que regula o sigilo bancário deu um grande passo nessa direção, pois, como já ouvimos mais de vez, quem não deve não teme (embora isto não tenha nada a ver com o que a Constituição garante).
Penso que, por esse caminho, estaremos resgatando os valores morais, éticos, a manutenção dos bons costumes, a eficiência da Administração Pública (art. 37, CF), posturas nobres e eficazes que incrementam o desenvolvimento do País, momento em que a tributação terá condições de baixar em níveis razoáveis, premiando os bons contribuintes e, via de conseqüência, em benefício do Brasil como um todo.
É essa a postura ética e moral ínsita ao conceito de cidadania (art. 1º, II, CF/88), lembrando que é no preâmbulo que está a vontade do povo: valores supremos de uma sociedade fraterna.
São Paulo, 24 de agosto de 2006.
Professor Universitário
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