Sumário: 1. Introdução. 2. Ec 45/04, um ponto de partida às súmulas vinculantes. 3. A súmula vinculante 10 e a reserva de plenário. 3.1.Os precedentes que deram origem à súmula vinculante 10. 3.2. Algumas conclusões acerca da súmula vinculante 10.
1.INTRODUÇÃO
Na efêmera realidade pós-moderna, a mutação é uma constante, e as instituições como um todo, sejam públicas, sejam privadas, tem sempre que se reinventar a propósito de sobreviver aos novos desafios a elas impostos. O Direito não está a fugir desta regra e a implementação de novos mecanismos aptos a responder ao surgimento de novas necessidades não permite adiamentos.
O soerguimento dos direitos fundamentais no contexto neoconstitucionalista, aberto pela Constituição de 1988, vem trazendo, desde então, um aumento exponencial nas demandas judiciais. O cidadão comum pós-constituição passou a perceber no judiciário um garantidor de direitos até então adormecidos pelos muitos anos sob o apanágio da ditadura militar.
Nesta nova era, trocou-se a inflação dos preços pela inflação de ações judiciais, sinal positivo dos tempos de Estado Democrático de Direito. O novo tempo não é só de flores, a alvissareira luta pelo Direito esbarra em muitos entraves. Daí a busca inadequada a todo custo de soluções imediatas, que muitas vezes pretendem ser apenas passes de mágica, para resolver rapidamente os conflitos no afã de produzir “justiça”. Alguns destes “truques” se valem da infeliz visão quantitativa do direito, a equivocada “justiça” de números e estatísticas em detrimento da qualidade na prestação jurisdicional.
O mal da “justiça” de massa numérica convive ainda com outros males. A perpetuação, talvez inconsciente, de soluções impróprias como e.g. a “dualização metafísica” verificada na patusca súmula 07 do Eg. Superior Tribunal de Justiça, que rivaliza questões de fato e questões de direito, que não se prestam mais como resposta à racionalidade discursiva contemporânea[1]. Outro problema bem atual é a perigosa “carnavalização da constituição” o “decisionismo” e o “oba-oba”, em clara referência a desvalorização: da argumentação jurídica, e do respeito às regras jurídicas por parte dos órgãos do judiciário[2]. Nem a primeira nem a segunda resposta se prestam para o efetivo acesso à Justiça.
Quais são, por conseguinte, as soluções para a efetivação da Justiça? Por mais paradoxal que possa parecer, algumas ainda próprias velhas medidas, mesmo que sejam o pontapé inicial, têm a capacidade de alcançar bons resultados. O debate aberto das questões em pauta merece ser, em uma democracia, sempre que possível, exercitado com a participação da “sociedade aberta de intérpretes da constituição[3]”. A despeito desta necessidade, na nossa realidade de país de modernidade tardia raramente ela se efetiva.
Nem por isso a legislação deixa de ser própria aos fins que se destina, e nem por isso bastam “três palavras de correção do legislador e bibliotecas inteiras transformam-se em papel de embrulho”[4]. Soluções unilaterais e simplistas são retóricas inúteis na pós-modernidade. É crucial o desenvolvimento de um discurso crítico superador das aparentes simplicidades.
O “oba oba” decisionista e as soluções simplistas mágicas frutos podres de um judiciário de massa estatística vêm merecendo, nos últimos anos, remédios legislativos pretensamente transformadores. Estamos a falar da EC 45/2004, que inaugurou em nosso ordenamento a prévia demonstração no recurso extraordinário da repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso para o seu julgamento pelo STF, cujo artigo constitucional, § 3º do art. 102, foi regulamentado pela Lei 11.418/2006, bem como da criação da súmula vinculante também pela EC 45/2004, art. 103-A, regulamentado pela Lei 11.417/2006. E, mais recentemente, a Lei 11.672 entrou em vigor em agosto de 2008 estabelecendo o procedimento para o julgamento de recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Os três exemplos legislativos não são os únicos, existem outros, mas aqui trataremos apenas, ainda que de maneira breve e não exaustiva, da súmula vinculante, e da edição da súmula vinculante 10.
2. EC 45/04, UM PONTO DE PARTIDA ÀS SÚMULAS VINCULANTES.
Toda novidade geralmente é recebida com estranheza e repulsa, sentimentos absolutamente normais e que com passar do tempo tendem a se modificar, a favor ou contra a impressão inicial. Não tem sido diferente o sentimento da doutrina brasileira acerca da súmula vinculante. Salutar que seja assim, pois eventual unanimidade não traria evolução do instituto. Críticas e discussões efetivamente só trazem o desenvolvimento após sua formação. Assim, doutrinadores do peso de Luiz Flávio Gomes[5] já passaram a comentá-la, entendendo que a súmula vinculante violaria a independência do juiz, “Toda interpretação, dada por um Tribunal a uma lei ordinária, por mais sábia que seja, jamais pode vincular os juízes das instâncias inferiores, que devem julgar com absoluta e total independência.”
A respeitada opinião, entretanto, não convence ao afirmar que a súmula vinculante macula a independência funcional do juiz. A EC 45/04, que acrescentou à CRFB/88 o art. 103-A, parece ser um importante ponto de partida para a efetividade do acesso à Justiça e, neste giro, cabe verificá-la literalmente. O citado artigo dispõe que o STF poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
A súmula vinculante, segundo o § 1º do referido dispositivo, tem por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. O § 2º outorga àqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade a faculdade de provocar a revisão, cancelamento ou aprovação de súmula.
O novo instituto teria essencialmente dois objetivos fundamentais: buscar a celeridade ao processo e concentrar na cúpula do judiciário (STF) a orientação sobre determinadas questões[6]. Não se pretenderia com isso engessar o juiz em suas garantias funcionais, mormente em sua independência. Esta seria uma interpretação exageradamente desautorizada da súmula. Em outras palavras, seria como dar um outro uso ao lápis que não a escrita[7], o que seria possível mas não desejável. A existência do inadequado não desautoriza a adequação. A existência de outra possibilidade inadequada, da mesma forma como não retira do lápis a sua importância como instrumento adequado à escrita, também não a retira da súmula vinculante[8].
É natural que se pense em novos mecanismos como opressores do pensamento jurídico, afinal, toda novidade gera uma boa dose de desconfiança. Com o intuito de minimizar este sentimento inaugural, cabe conhecer suas origens históricas e alguns parâmetros aplicativos do instituto. Entretanto, este aspecto merece ser analisado com certa dose de cuidado, tendo em vista os diferentes contextos em questão, o alienígena e o brasileiro.
A doutrina[9] brasileira converge na questão das origens da súmula vinculante ligando-a ao stare decisis nos países que adotam a common law. O precedente chamado de stare decisis atuaria como julgamento norteador superior a ser seguido pelos órgãos do judiciário de hierarquia inferior.
Quanto aos parâmetros aplicativos dos enunciados das súmulas vinculantes, ainda neste viés histórico, Patrícia Perrone[10] faz importantes considerações trazidas do Direito estrangeiro:
“No direito comparado, tais ferramentas correspondem às noções de holding (regra necessária à solução do caso), obter dictum (considerações marginais não necessárias à solução do caso), rationale (lógica da decisão) e material facts (fatos considerados relevantes para o julgamento). De forma bastante simplificada, é possível afirmar que um caso se individualiza por seus material facts e pela substantive reasoning (fundamentação necessária) que os liga à sua conclusão. É a partir de tais elementos que se extrai a regra vinculante de um julgado. A aplicação de um precedente é afastada quando quer seus fatos, quer sua lógica/fundamentação são muito diversos ou inaplicáveis ao caso a decidir, em virtude das peculiaridades deste último, dando ensejo ao que se denomina distinguish (distinção). Assim, através do distinguish e, de forma geral, do trabalho empreendido inclusive pelas cortes vinculadas, a regra vinculante vai sendo reformulada, limitada, estendida, tendo vida própria, constituindo expressão do papel criativo da jurisprudência na criação do direito.”
Extrair parâmetros das influências históricas já produzidas pela jurisprudência e doutrina estrangeira é sem dúvida uma solução inteligente, mas não finalizadora de qualquer discussão. O contexto do direito brasileiro com características culturais próprias precisa trilhar seu caminho.
Por outro lado, distinguir o precedente do caso concreto parece ser fundamental tanto lá como aqui. A questão encontra-se em separar o caso distinto do sumulado em meio a milhares de processos aparentemente iguais, em meio à produção em série empreendida pelo Poder Judiciário, na crônica falta de tempo da pós-modernidade. A produção em massa de sentenças padronizadas fruto de escolhas por vezes equivocadas do aparelho estatal, fazendo atuar o judiciário quase como uma linha de montagem, principalmente na esfera dos juizados especiais cíveis, pode não permitir a devida aplicação da distinção alienígena, que perante esta realidade numérica, por si só não parece ser capaz de produzir seus efeitos. E diante deste quadro de massificação numérica da prestação jurisdicional, há alguma outra forma de distinção dos casos diferentes da súmula vinculante?
Com já exposto anteriormente, soluções simples não resolvem problemas complexos. As respostas, seguindo a sorte dos problemas, tendem a ser complexas. Assim, a implementação de distintas medidas conjugadas incrementa o efetivo acesso à Justiça. O mutirão de conciliação nos juizados especiais é uma delas, o projeto e discussão do código de ações coletivas é outra, aliás, bem necessária, juntamente com as câmaras de conciliação e arbitragem de iniciativa da própria administração pública federal para dirimir conflitos entre as diferentes pessoas jurídicas de direito público, entre outras medidas que auxiliam na redução da inflação de demandas jurisdicionais. Tais ações tornam-se verdadeiramente importantes na desconstrução da linha de montagem de sentenças modelo, abrindo tempo à necessária distinção e discussão dos casos regidos pela súmula vinculante daqueles não aplicados a ela.
O que de fato já é possível perceber é que o acesso à Justiça efetivo certamente precisará de constante reinvenção e inovação para responder a complexidade mutante da pós-modernidade. Vista, então, ainda que de maneira breve, a operacionalidade das súmulas vinculantes, cabe agora analisar a súmula vinculante número 10 recentemente editada pelo STF.
3. A SÚMULA VINCULANTE 10 E A RESERVA DE PLENÁRIO.
Neste momento, conscientes de que um dos pressupostos autorizadores da aprovação da súmula vinculante são exatamente as reiteradas decisões sobre matéria constitucional, não seria possível examinar a súmula vinculante 10 do Eg. STF, sem antes analisar os precedentes que lhe deram origem, bem como as possíveis pretensões expressas na sua edição. Com este intuito, didaticamente, é necessário primeiro verificar seu texto.
Dispõe a Súmula Vinculante nº 10 do STF:
“Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.”
3.1.Os precedentes que deram origem a súmula vinculante 10
A referida súmula tem por precedentes o RE 482090, RE 240096, RE 544246, RE 319181 e AI 472897 AgR.
O primeiro precedente, o RE 240.096-2, DJ de 21/5/1999 e RTJ 169/756, que teve por relator o Ministro Sepúlveda Pertence, figurou como recorrente o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS e como recorrida Nelina de Souza Calil.
O RE interposto pelo INSS atacou o acórdão do TRF 2ª região que negou provimento aos embargos de declaração por ele também propostos, declarando a inconstitucionalidade incideter tantum das normas editadas para regulamentar o artigo 201, § 2º, da CRFB[11]. O INSS sustentou em seus embargos omissão no que concerne a não observância do disposto no artigo 97 da CRFB, que trata da reserva de plenário, uma vez que as referidas normas legais editadas para regulamentar preceito constitucional tiveram sua inconstitucionalidade alegada, sem que, no entanto, a questão fosse levada ao Plenário do Tribunal.
Os embargos de declaração foram rejeitados sob o argumento de que não fora declarada, expressamente, a inconstitucionalidade das referidas normas, havendo, apenas, a declaração de inconstitucionalidade incideter tantum, de determinadas normas, situação esta diferente da declaração de inconstitucionalidade, que tem por fundamento o art. 97 da CRFB.
O INSS, então, interpôs recurso extraordinário alegando que qualquer pronúncia de inconstitucionalidade submete-se ao quórum do art. 97 da CRFB, seja ela declaração proferida em sede de controle direto de constitucionalidade, seja ela proferida incideter tantum, na via do controle difuso de constitucionalidade.
O acórdão proferido pelo STF deu provimento ao recurso do INSS, cassando a decisão recorrida, por entender que a reserva de plenário e o quórum de maioria absoluta previsto no art. 97 da CRFB tanto se aplicam à hipótese de declaração principaliter, quanto à hipótese de declaração incideter de inconstitucionalidade de leis: “É inequívoco de sua vez que, no caso, ainda que não explícita, houve declaração de inconstitucionalidade de normas legais questionadas: é o que se há de entender, pena de esvaziar o preceito do art. 97, CF, toda a vez que se afastar a incidência da norma ordinária pertinente à lide para decidi-la sob critérios diversos alegadamente extraídos da Constituição.” Deve, portanto, a questão da constitucionalidade ser submetida ao Plenário, ou, se for o caso, ao Órgão Especial do Tribunal a quo.
Passando ao segundo precedente, o RE 544.246-2, Dj nº 32/2007, em 08/06/2007; DJ de 08/06/2007, teve como relator o Ministro Sepúlveda Pertence, como recorrente a União, e como recorrido, Auto Posto Serrano LTDA. O RE interposto visava atacar o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça que havia declarado, ainda que não expressamente, a inconstitucionalidade dos art. 3º e 4º da LC 118/2005. O recurso extraordinário da União apontou violações aos arts. 5º, XXXVI e 97, ambos da CRFB.
O acórdão do STF foi no sentido de dar provimento parcial ao RE, a fim de que a decisão recorrida fosse devolvida ao Órgão Especial do STJ. Afirmou o STF que a “inaplicação dos dispositivos questionados da LC 118/2005 a todos processos pendentes reclamava, pois, a declaração de sua inconstitucionalidade, ainda que parcial”. Portanto, apesar de entender que os referidos artigos questionados são aplicados retroativamente, considerando prescrita a pretensão da União de repetição de indébito tributário, na hipótese de lançamento por homologação, passados cinco anos do pagamento antecipado, a inaplicação dos dispositivos questionados resultou em declaração de inconstitucionalidade parcial deles, malgrado sem redução de texto. Isso acabou por violar o art. 97 da CRFB, que dispõe que “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.” Sendo assim, violando o acórdão do STJ o art. 97 da CRFB (reserva de plenário), foi dado parcial provimento ao recurso extraordinário interposto pela União, sem, no entanto, assistir-lhe razão no tocante à violação do art. 5º, XXXVI, CRFB.
Já o RE 319.181-1, DJ de 28/06/2002, terceiro precedente, que teve como relatora a Ministra Ellen Gracie, e figuraram como recorrente a União, e como recorrido, Philip Morris Brasil S/A. Nele, a União interpôs recurso extraordinário contra acórdão do Tribunal Federal da 1ª Região, que por maioria concedeu mandado de segurança em favor da impetrante, Philip Morris Brasil S/A, assegurando-lhe o direito de comercializar cigarros em embalagens com quantidade inferior a vinte unidades, por entender que a norma que exige o comércio de cigarros em embalagens com, no mínimo, vinte unidades, não atende ao princípio da razoabilidade e proporcionalidade, proclamando também a livre iniciativa da ordem econômica e o princípio da livre concorrência.
A União, em seu recurso extraordinário, sustentou a violação do art. 97 da CRFB, argumentando que a 4ª Turma do TRF/1ª Região, na verdade, declarou inconstitucional o art. 272 do Decreto nº 2637/1998, ao reputá-lo incompatível com o princípio da livre concorrência.
O acórdão do STF deu provimento ao recurso da União, para cassar a decisão recorrida, a fim de que seja a questão da inconstitucionalidade submetida ao órgão competente. Assim entendeu o referido acórdão do STF: “A norma inscrita no art. 97 da Constituição consagra no nosso ordenamento jurídico o princípio da reserva de plenário, determinando que a insconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público somente pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta de seus membros, ou, quando houver, dos integrantes do respectivo órgão especial. E essa exigência, in casu, não foi observada, pois, embora a Corte de origem tenha considerado que não houve declaração de inconstitucionalidade, não é isso que se depreende da leitura do voto condutor do acórdão proferido em sede de apelação […].” Sustentou, ainda, que a reserva de plenário não deve ser observada somente na declaração de inconstitucionalidade pela via principal, mas também na declaração incidente de constitucionalidade, reputando-se declaratório de inconstitucionalidade o acórdão que, embora não explicitando, afasta a incidência de norma ordinária pertinente à lide para decidi-la sob critérios diversos alegadamente extraídos da Constituição. Destarte, concedeu provimento ao RE interposto pela União.
O Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 472.897-7, Dj nº 131/2007, em 26/10/2007, e DJ de 26/10/2007, teve como relator o Ministro Celso de Mello, como agravante Renato Pianowski e Sandra Pianowski S/C LTDA e outro (a/s), e como agravada a União.
O agravo interposto atacou a decisão que conheceu e deu provimento, desde logo (art. 544, § 4º, CPC), ao recurso extraordinário deduzido pela União Federal. A parte recorrente postulou o restabelecimento do v.acórdão emanado do Superior Tribunal de Justiça.
O Acórdão do STF entendeu que não assistia razão ao recorrente, pois o acórdão emanado de órgão fracionário do STJ, ao decidir que o art. 56 da Lei 9.430/96 não poderia derrogar isenção tributária concedida por lei complementar (LC 70/91, no caso), e culminou por afastar a incidência do referido artigo, acabando por declarar, ainda que não expressamente, a inconstitucionalidade do dispositivo, sem a observância do art. 97 da CRFB, que trata da reserva de plenário. Sustenta o v. Acórdão que é declaratório de inconstitucionalidade, o acórdão que afasta a incidência da norma ordinária pertinente à lide para decidi-la sob critérios diversos alegadamente extraídos da Constituição, ainda que não faça isso expressamente.
Também neste precedente entendeu a Suprema Corte que equivale “[…] à própria declaração de inconstitucionalidade, o julgamento que, sem declará-la, explícita e formalmente, vem a recusar aplicabilidade ao ato do Poder Público, sob alegação de conflito com critérios resultantes do texto constitucional.” A não observância do princípio da reserva de plenário nesses casos, acarreta a nulidade absoluta da decisão judicial colegiada, por isso, ao não observar a decisão do STJ o referido princípio, o v. Acórdão do STF nega provimento ao agravo, mantendo, em conseqüência, por seus próprios fundamentos, a decisão agravada. Vistos os precedentes que deram origem à súmula vinculante 10 do Eg. STF cabe agora fazer algumas ilações.
3.2. Algumas conclusões acerca da súmula vinculante 10
Logo de pronto, a primeira ilação que salta aos olhos quando estabelecida a comparação do texto da súmula vinculante 10 com o do art. 97 da CRFB/88 seria a tautologia da redação daquela. A súmula vinculante tem o seguinte texto.
“Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.”
Já o artigo 97 da CRFB/88 está assim redigido:
“Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.”
De fato, a despeito de também dizer a mesma coisa que diz o art. 97, só que de maneira diferente, também inova quando inclui, na interpretação do artigo constitucional, a declaração não expressa de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público que afasta sua incidência no todo ou em parte. A mera leitura dos precedentes que deram origem a súmula levam a esta conclusão, sendo esta, tautologicamente, a súmula dos precedentes.
Ives Gandra Martins[12] em artigo recente deu ares catastróficos à súmula vinculante 10 ao afirmar que o controle difuso teria sido por ela fulminado. Com o devido respeito, é manifestamente descabida a reflexão do respeitado professor por um motivo muito simples, a interpretação literal não permite tal posicionamento. A súmula acresce concretude ao dispositivo constitucional que sempre conviveu em harmonia com o controle difuso no Brasil e continuará convivendo. Os juízes continuarão declarando a inconstitucionalidade de leis e atos normativos do poder público, o que mudará é a efetividade, força operativa no mundo dos fatos, do art. 97 da CRFB/88, ou seja, os órgãos fracionários dos Tribunais (câmaras ou turmas) quando decidirem declarar a inconstitucionalidade deverão fazê-lo pelo seu órgão especial.
Caso seja descumprido o preceito caberá reclamação diretamente ao STF conforme dispõe o art. 7º da Lei 11.417/06. A reclamação, endereçada diretamente ao Supremo, caracteriza-se por ser um instrumento processual até então respeitado pelos órgãos judiciários que nela passam a constar no pólo passivo. Neste mesmo giro interpretativo literal, as turmas recursais dos juizados especiais, Lei 9.099/95, estão excluídas da abrangência do artigo constitucional, porquanto não são tribunais, mas turma composta por 3 (três) juízes togados[13].
Neste ponto, fica claro o intuito da “mens legislatoris” quando da edição da súmula vinculante 10 pelo STF[14]. As questões de debate constitucional devem necessariamente ser resolvidas e pacificadas pelo plenário dos tribunais de justiça ou tribunais regionais antes de bater às portas da instância superior. Concentrar as decisões de inconstitucionalidade nos órgãos especiais dos tribunais resulta numa substancial redução do número de recursos para o Supremo Tribunal Federal, porque é muito diferente analisar um único recurso extraordinário contra uma decisão adotada pelo plenário dos tribunais, do que vários recursos extraordinários contra várias decisões de diversas turmas de diversos tribunais.
A súmula acaba funcionando como um verdadeiro filtro, obrigando primeiro uma posição do tribunal, através de seu órgão especial, chamando de pleno ou “pleninho” conforme dispuser o regimento interno de cada um, para depois abrir a possibilidade do recurso ao Supremo Tribunal Federal. Importante destacar que, no caso, estamos nos referindo à justiça comum federal e estadual. O procedimento será diferente na justiça especializada, ou seja, trabalhista, militar, eleitoral, na qual ainda existirá mais um filtro recursal, os tribunais superiores de cada uma destas esferas.
Posta a verdadeira filtragem levada a cabo pela súmula vinculante 10, percebe-se que este foco da redução quantitativa do número de processos que batem às portas do STF, tem sido uma constante também na legislação. A Lei nº 11.418/06 quando criou necessidade da demonstração da repercussão geral para os recursos extraordinários também possui esta mesma vocação. Inclusive ao atribuir ao tribunal à tarefa de selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte[15]. São nítidas, portanto, as várias filtragens pelo qual passarão os processos antes de serem julgados pelo STF.
Estes movimentos vieram de encontro a uma necessidade do Supremo Tribunal Federal de reduzir o número efetivo de julgamentos, pois com as competências que lhe foram atribuídas pela Constituição Federal de 1988, ou seja, como última instância recursal e como Tribunal Constitucional, sua operacionalidade e eficiência estavam sendo ameaçadas. As estatísticas do próprio Supremo demonstram que se algo não fosse feito para, de alguma forma, modificar as posições originárias adotadas pelo constituinte de 1988, a Suprema Corte brasileira pararia. Veja-se que no ano de 2006 foram 110.284 julgamentos, crescendo o número em 2007 para 159.522 mil julgamentos[16]. Em 2008, as novas medidas processuais adotadas desde 2006 parecem ter começado a surtir efeitos quantitativos esperados visto que o número de processos julgados passou para estimados 90.847[17].
Dessa forma, a razão mais evidente da súmula vinculante 10 é a mesma do art. 103-A que criou a súmula vinculante através da EC 45/04, da inovação da repercussão geral agasalhada pela mesma emenda, bem como das reformas do Código de Processo Civil, conter o excessivo número de recursos que chegam ao Supremo.
O contraponto desta jornada pelo esvaziamento do STF é o inchaço dos Tribunais que passaram a ter novas competências de admissibilidade recursal e procedimental (e. g. súmula vinculante 10) que antes não possuíam. De certo modo, o problema do volume de processos não foi solucionado, apenas deslocado de lugar, do Supremo para os Tribunais.
Enfim, somente uma mudança de procedimentos talvez não seja realmente eficaz contra o decisionismo oba-oba na racionalidade discursiva da atualidade. O continuísmo de pensar a Justiça como um número talvez acabe por levar, após um breve período de redução, a uma nova escalada de recursos. Não é difícil prever que os operadores do direito encontrarão uma saída processual alternativa ao recurso extraordinário para fazer chegar ao STF seus pleitos, e sem muito esforço inventivo, já que a reclamação está aí mesmo.
Se isto ocorrer, o único resultado de todas estas mudanças será o incremento de etapas procedimentais rotineiras, onerando ainda mais todo o aparelho estatal judicial, e conseqüentemente piorando a qualidade da prestação jurisdicional. Em vez de dar celeridade, aumentará o fosso já existente entre ricos e pobres, aqueles que podem e aqueles que não podem pagar um advogado, aqueles que têm direito efetivamente ao acesso à Justiça e aqueles que terão acesso formal à “justiça”, a esta nova “justiça” mais burocratizada e agigantada. A dualidade permanece, as soluções não são simplistas nem tampouco transformadoras da realidade do dia para a noite. No entanto, ainda que de maneira ingênua, oxalá que isso não aconteça e as recentes mudanças operem seu intuito desejado de melhorar de alguma forma a Justiça no Brasil. A dificuldade está em conciliar quantidade e qualidade, oferecer Justiça de massa a todos os cidadãos que dela necessitem.
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