A relevância da atuação do Poder Judiciário e demais aplicadores do direito frente ao estado de calamidade sanitária pela COVID-19

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Roberta de Oliveira Costa Campelo – Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Pós graduada em Direito Processual Civil, pela Escola Paulista da Magistratura – EPM. Servidora Pública Federal do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo – TRE/SP.

“Numa sociedade democrática, as medidas restritivas de liberdade devem ser limitadas à estrita dimensão das situações. Algumas decisões de urgência foram tomadas sem consultas jurídicas nem debates parlamentares: não será de se temer sua retomada arbitrária?” (Edgar Morin, “É hora de mudarmos de via – as lições do coronavírus”)

RESUMO: O presente artigo tem por intuito realizar breve e singela análise acerca da atuação do Estado democrático brasileiro, em suas três esferas de Poder, especialmente no que tange à atuação do Poder Judiciário, para enfrentamento da crise pela COVID-19. Buscou-se, inicialmente, traçar um panorama geral dos problemas surgidos com a pandemia e seus reflexos na atuação do Estado, com especial enfoque no Judiciário. Promoveu-se uma pequena demonstração da intensa atividade legiferante no país e dos consequentes problemas dela advindos. Com o levantamento de dados estatísticos disponibilizados em sites de órgãos oficiais, procurou-se demonstrar a efetiva alta na demanda imposta ao Judiciário, em razão das questões conflituosas surgidas no seio social. Destacou-se a atuação intensa dos operadores do direito na busca por soluções concretas, com especial atenção aos temas submetidos ao STF, reforçando-se o relevante papel dos juristas na garantia e defesa das liberdades individuais, na manutenção do equilíbrio das relações econômico-sociais e do próprio Estado Democrático e suas necessárias estruturas, como na construção da coerência e segurança jurídica do Ordenamento, entendendo sua atuação não como “ativismo”, mas exercício legítimo do poder político. Concluiu-se que, apesar de algumas ações não tão louváveis, a atuação do Poder Judiciário evoluiu e ofereceu efetiva tutela aos jurisdicionados.

Palavras-chave: COVID-19. Estado Democrático de Direito. Poder Judiciário. Poder político. Atuação.

 

Abstract: This article aims to carry out a brief and simple analysis of the performance of the Brazilian democratic State, in its three spheres of power, especially with regard to the role of the Judiciary, to face the crisis by COVID-19. Initially, we sought to draw an overview of the problems that arose with the pandemic and its consequences on the State’s actions, with a special focus on the Judiciary. A small demonstration of the intense legislative activity in the country and the consequent problems arising from it was promoted. With the survey of statistical data available on official bodies’ websites, we sought to demonstrate the effective increase in demand imposed on the Judiciary, due to conflicting issues that arose in the social sphere. The intense performance of legal practitioners in the search for concrete solutions was highlighted, with special attention to issues submitted to the STF, reinforcing the relevant role of jurists in guaranteeing and defending individual freedoms, in maintaining the balance of economic and social relations and of the Democratic State itself and its necessary structures, as in the construction of the legal coherence and security of the Order, understanding its performance not as “activism”, but as a legitimate exercise of political power. It was concluded that, despite some not so commendable actions, the role of the Judiciary Branch has evolved and offered effective protection to the jurisdictions.

Keywords: COVID-19. Democratic State. Judicial Power. Politic Power. Acting.

 

Sumário: Introdução. 1. Um panorama geral. 2. A necessidade de regulamentação frente a pandemia. 2.1. Breve histórico legislativo a partir da decretação do estado de calamidade pública. 2.2. A atuação do Poder Judiciário como órgão político. 2.3. Dos dados estatísticos e casos concretos. 3. Poder Judiciário entre erros e acertos. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

Três meses após a confirmação do primeiro caso de COVID-19, em Wuhan, na China, a Organização Mundial da Saúde (OMS), através de seu diretor-geral, Tedros Adhanom, anunciava ao mundo a crise sanitária classificada como “pandêmica”, relegando aos países a dura missão de enfrentarem um inimigo desconhecido e adotarem as medidas pertinentes para salvaguardar seus territórios e respectivos cidadãos.

A partir dali, o mundo passou a viver momentos de verdadeiro terror,  testemunhando, diariamente, números crescentes de contaminação, a sobrecarga do sistema de saúde, e a inevitável necessidade de evitar que o “tal” vírus transpusesse barreiras territoriais, com a adoção de medidas restritivas rígidas, que teriam impactos profundos sobre a vida social e financeira de sua população, bem como sobre a economia Estatal e suas relações comerciais e jurídicas.

No Brasil, o cenário não foi diferente, levando o Governo a adoção de necessárias  medidas emergenciais para enfrentamento da crise sanitária, presenciando-se, a partir da chegada da COVID-19 a nosso território, uma fértil e vasta produção legislativa, com o intuito de traçar as diretrizes a serem observadas. Nada obstante o vasto cabedal normativo, o Estado brasileiro mergulhou em profundo caos não só econômico, mas essencialmente político e jurídico, fazendo eclodirem situações jurídicas as mais diversas, que trouxeram inúmeras dúvidas, envoltando de insegurança as relações – públicas e privadas – e exigindo a pronta ação dos operadores do direito, mormente do Poder Judiciário, no afã de prestar aos jurisdicionados e à sociedade em geral respostas e tutela adequada.

Em face desse cenário, tem o presente artigo a intenção de promover uma modesta reflexão acerca das lições trazidas pela pandemia, e desenvolver uma breve análise acerca dos reflexos trazidos pelo novo coronavírus na atuação do Estado democrático brasileiro, em sua estrutura tripartite de Poder, com particular enfoque no Judiciário e em sua intensa atuação frente à judicialização de temas direta e indiretamente relacionados à pandemia, tentando demonstrar que o desempenho da Justiça brasileira, a despeito das críticas insurgidas, não deve ser confundido com ativismo judicial, em sua acepção negativa, mas como indiscutível manifestação do atributo político, que compõe a estrutura do Judiciário, enquanto poder estatal, e deve ser reconhecido como legítimo exercício de suas prerrogativas institucionais.

Ao longo da exposição, foram selecionados alguns atos normativos expedidos em razão da pandemia, a fim de demonstrar a variedade ‘tipológica’ e a extensa atuação legiferante da Administração e do Congresso Nacional, num espaço de menos de um ano. Foram, ainda, eleitos  alguns temas submetidos concretamente ao Supremo Tribunal Federal, cuja repercussão gerada na sociedade brasileira rendeu vasto debate e críticas, com a finalidade de expor o posicionamento fixado pela Corte, com destaque a alguns fundamentos empregador ao longo do voto de ministros, deixando patente a fundamentalidade de sua atuação para o contexto de crise.

Assim, através de pesquisas e estudos de casos concretos e levantamento de dados estatísticos, todos disponibilizados por sites oficiais de órgãos e entidades de atuação Nacional, promoveu-se uma compilação de informações relevantes para o propósito deste trabalho, de demonstrar a relevância na atuação jurisdicional para o enfrentamento da COVID-19.

Conquanto seja o escopo do presente artigo reconhecer a difícil tarefa atribuída ao Judiciário e tecer-lhe a devida congratulação por seu desempenho, não se furtou neste espaço ao tecimento de crítica quanto a algumas decisões e posturas adotadas por magistrados brasileiros, cujas falhas distanciam-nas do propósito de tutelar adequadamente situações jurídicas conflituosas. Contudo, não são tais atuações capazes de sobrepor-se à inevitável ilação de que o Poder Judiciário brasileiro deu passos importantes com a pandemia, rumo à evolução da Justiça.

 

  1. UM PANORAMA GERAL

Há mais de 01 ano a população mundial volta seus olhares atentos e direciona profundos esforços no intuito de solucionar ou, ao menos minimizar o quanto possível, os impactos catastróficos advindos da séria crise sanitária imposta pelo novo coronavírus.

A pandemia ocasionada pela COVID-19 tem sido “a pauta do dia” nos mais diversos círculos de debates. Análises da crise sob os pontos de vista sociológico, psicológico, histórico, econômico, científico, cultural, ambiental, político e jurídico procuram traçar os panoramas futuros da humanidade e, a partir de métodos dedutivos, apresentam as possíveis (prováveis) consequências esperadas para o mundo pós pandêmico.

O mais surpreendente (e assombroso) é o fato de, em pleno século XXI, em meio às grandes (re)evoluções tecnológicas, a uma nova fase do liberalismo político-econômico, à vasta expansão das relações intercontinentais e à caminhada rumo a novas conquistas científicas e espaciais, em que o homem está prestes a romper barreiras, estabelecendo novas interações no campo da Inteligência artificial, promovendo grandes avanços na medicina e explorando o universo e seus mistérios em busca de “novos mundos” habitáveis, ter a humanidade de encarar sua fragilidade e se ver subjugada por um ser de proporções atomicamente minúsculas, mas com um hercúleo potencial destrutivo.

Um ser acelular, para muitos no mundo científico sequer considerado um ser vivo, obrigou-nos a parar com o ritmo de vida turbulento e desenfreado; a viver períodos de reclusão e isolamento; a guardar distanciamento social (nós seres gregários por natureza!), e a repensar a forma de viver, de trabalhar, de produzir, de instruir-se, de divertir-se, de relacionar-se, remetendo-nos a uma inevitável comparação com obras da literatura ficcional. E assim, transpondo as previsões distópicas de mundo das páginas dos livros para a realidade, propõe-nos o grande desafio de, na qualidade de protagonistas, estabelecer novos hábitos, definir novas pautas de conduta e de explorar os recurso e as ferramentas disponíveis de modo a favorecer a continuidade da vida.

Um ser invisível aos olhos, mas que presta uma imensurável lição: a de que para sobrevivermos – enquanto seres individuais, enquanto sociedade organizada, enquanto Estado Democrático – é preciso fortalecer as estruturas, adaptar-se, adequar-se às novas condições e desenvolver mecanismos (e técnicas) efetivos de organização do presente, para que tenhamos uma forte e sólida diretriz prospectiva.

Essa parece a ideia presente nas palavras de Antonio do Passo Cabral, que dissertando acerca da necessidade de adequação do Estado às mudanças impostas pelo tempo, defende:

 

“Com as exigências das constantes alterações e adaptações, bem assim diante da tarefa de estimular condutas, este novo Estado de Direito do séc. XXI deve ter, simultaneamente, preocupação com o passado, o presente e o futuro, e então proteger e assegurar a segurança jurídica neste conjunto de espaços temporais.” (CABRAL, 2020, pág. 37)

 

 

O cenário pandêmico descortinou inúmeros problemas estruturais e fez irromper profundas e latentes contradições existentes nas Instituições, organismos e entes federados pertencentes ao nosso país.

 

Desigualdades sócio-econômicas; despreparo técnico; falta de valorização e investimento em setores fundamentais da sociedade; ausência de planejamento estratégico e políticas públicas efetivas; atuações institucionais retrógradas, ultrapassadas e desconexas com as necessidades da realidade, da ciência e do mundo moderno, má gestão da coisa pública, enfim, carência de valores ético-morais e de transparência nas ações, tudo isso contrastado-se com ações cooperativas, iniciativas inovadoras, empreendedorismo, estímulo a ações comunitárias, dinâmica atuação jurídica, enfim, evolução e revitalização de práticas civilizatórias.

Em meio a esse contexto caótico e dúbio, de tantas vicissitudes e de necessária resiliência, inúmeras situações inéditas e questões conflituosas, aparentemente sem solução, emergiram, exigindo do Estado Democrático de Direito, em sua tríplice formação de poder, uma postura ativa, tendente ao oferecimento de um mínimo de regramento, a fim de traçar orientações, preceitos de conduta, respostas oficiais, legais e normas jurídicas pertinentes, que promovam o equilíbrio e conduzam ao mínimo de tranquilidade social, que se mostrem capazes de compor as disputas, rixas e conflitos de interesses, frutos da realidade de exceção e da excepcionalidade e leve ao alcance da pacificação social.

Nesse sentido, valioso conceito é ensinado por João Maurício Adeodato, ao expressar que:

 

A pertinência é entendida (aqui) como a qualidade do significante jurídico, da fonte do direito que o sistema dogmático determinou como adequada ao caso em tela. Isso significa que as fontes do direito pinçadas do ordenamento jurídico para fundamentar a interpretação, a argumentação e a decisão sugerida por qualquer dos participantes em uma lide dogmática precisam corresponder ao caso concreto.” (grifo nosso) (ADEODATO, 2018, pág.216)

 

 

Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o estado de emergência em saúde pública de importância Internacional, alertando o mundo acerca da existência de um evento de alto grau de complexidade, que exigiria dos Estados Mundiais, globalizados e sem fronteiras, e obviamente do Estado Brasileiro, a inegável (e indeclinável!) adoção de medidas de cunho administrativo, legislativo e judicial urgentes, para seu enfrentamento. Atuação conjunta e coordenada, harmônica portanto, na visão clássica de Montesquieu e estampada em nossa Magna Carta, em seu art. 2º.

 

Oportunas as palavras de Alexandre de Moares, que preleciona:

 

“A divisão segundo o critério funcional é a célebre ‘separação de poderes’, que consiste em distinguir três funções estatais, quais sejam, legislação, administração e jurisdição, que devem ser atribuídas a três órgãos autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade, foi esboçada pela primeira vez por Aristóteles, na obra “Política”, detalhada posteriormente, por John Locke, no Segundo Tratado de Governo Civil, que também reconheceu três funções distintas, entre elas a executiva, consistente em aplicar a força pública no interno, para assegurar a ordem e o direito, e a federativa, consistente em manter relações com outros Estados, especialmente por meio de alianças. E, finalmente, consagrada na obra de Montesquieu O Espírito das Leis, a quem devemos a divisão e distribuição clássicas, tornando-se princípio fundamental da organização política liberal e transformando-se em dogma pelo art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e é prevista no art. 2o de nossa Constituição Federal”. (MORAES, 2007, pág. 133).

 

 

No contexto brasileiro, gerou-se a expectativa de uma reação do Estado e de seu governo, a partir da definição do “estado de coisas calamitoso”, tendente a produzir atos e ações capazes de reafirmar e ratificar a proteção inviolável de seus cidadãos, na medida posta em nossa Carta Constitucional de 1988 através dos direitos e garantias fundamentais, bem como medidas qualificadas e hábeis a fortalecerem a confiança dos indivíduos nas Instituições, e adequadas a prestarem de forma eficiente a devida tutela à segurança jurídica. Enfim, apostou-se em uma adequação do Estado à situação emergencial posta, com respostas ágeis e efetivas aos acontecimentos sanitários.

Precisa a lição extraída das palavras do administrativista José dos Santos Carvalho Filho ao lembrar o papel existencial do Estado:

 

“O Estado, embora se caracterize como instituição política, cuja atuação produz efeitos externos e internos, não pode deixar de estar a serviço da coletividade. A evolução do Estado demonstra que um dos principais motivos inspiradores de sua existência é justamente a necessidade de disciplinar as relações sociais, seja propiciando segurança aos indivíduos, seja preservando a ordem pública, ou mesmo praticando atividades que tragam benefício à sociedade”. (CARVALHO, 2013, pág. 45)

 

 

O anseio social por proteção encontra seu fundamento no texto Magno que estabelece, já em seu preâmbulo, ainda que em caráter meramente orientador da hermenêutica constitucional, conforme ensina Paulo Gustavo Gonet, o compromisso assumido pelo Estado democrático brasileiro em garantir ao seu povo o bem-estar, a igualdade e a justiça; estatue como um de seus fundamentos, em seu art.1º, III, a dignidade da pessoa humana e erige, em seu art.3º, incisos I e IV, como dois de seus objetivos fundamentais: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; bem como a promoção do bem de todos, sem qualquer forma de discriminação.

Nesse sentido, esclarecedoras as palavras de Dalmo de Abreu Dallari, ao declarar:

 

“O Estado Democrático, para que realmente o seja, depende de várias condições substanciais, que podem ser favorecidas ou prejudicadas pelos aspectos formais, mas que não se confundem com estes. Para que um Estado seja democrático precisa atender à concepção dos valores fundamentais de certo povo numa época determinada. Como essas concepções são extremamente variáveis de povo para povo, de época para época, é evidente que o Estado deve ser flexível, para se adaptar às exigências de cada circunstância. Isso já demonstra que, embora a ideia de Estado Democrático seja universal quanto aos elementos substanciais, não é possível a fixação de uma forma de democracia válida para todos os tempos e todos os lugares”. (DALLARI, 2015, pág.302\303)   

 

  1. A NECESSIDADE DE ATUAÇÃO REGULAMENTAR FRENTE À PANDEMIA

Uma investigação do ordenamento jurídico pátrio, face ao pandemônio sanitário, denunciou a existência de inúmeras regras jurídicas, princípios e cláusulas gerais potencialmente aplicáveis aos casos concretos recém-gerados, nada obstante carecedores de um filtro hermenêutico hábil a transformá-los em concretas normas jurídicas voltadas a sanar os problemas (fatos jurídicos) então brotados da crise. No entanto, também revelou a premente necessidade de regulamentação do “direito vivo” então despontado, entendido este, nas palavras de MALISKA como a “designação dada por Ehrlich a esse Direito existente independente do direito legislado, caracterizado como ‘direito vigente’, é aquele que, apesar de não fixado em prescrições jurídicas, domina a vida”. (MALISKA, 2001, pág. 71)

 

A pandemia lançou ao Estado Democrático, como já se disse, uma vultosa provocação, fomentando sua atuação criativa, no âmbito Administrativo, no âmbito Legislativo e, especialmente, no âmbito Judiciário, com o fito de tutelar adequadamente direitos fundamentais dos cidadãos, a exemplo daqueles relacionados à vida, à saúde, à informação, à liberdade de locomoção, à moradia, à educação, à alimentação, ao trabalho, à proteção de dados, entre outros que se destacaram fortemente em razão das novas relações jurídicas emanadas da crise.

Corroborando o pensamento exortado acima, relevante lição acerca da abrangência da tutela de direitos realizada pelo Estado é desenvolvida pelo ilustre mestre Luiz Guilherme Marinoni:

 

“As normas de direito material que respondem ao dever de proteção do Estado aos direitos fundamentais – normas que protegem o consumidor e o meio ambiente, por exemplo – evidentemente prestam tutela – ou proteção – a esses direitos. É correto dizer, assim, que a mais básica forma de tutela dos direitos é constituída pela própria norma de direito material. A atividade administrativa – nessa mesma linha – também pode contribuir para a prestação de tutela aos direitos. A tutela jurisdicional, portanto, deve ser compreendida somente como uma modalidade de tutela dos direitos. Ou melhor, a tutela jurisdicional e as tutelas prestadas pela norma de direito material e pela Administração constituem espécies do gênero tutela dos direitos.” (MARINONI, 2020, pág,98)

 

2.1. BREVE HISTÓRICO LEGISLATIVO A PARTIR DA DECRETAÇÃO DO ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA.

Fazendo uma análise retrospectiva, constatou-se que a primeira atuação normativa direcionada à pandemia expedida pelo Governo Brasileiro, no âmbito Administrativo, em caráter regulamentar, foi a Portaria nº 188, de 03 de fevereiro de 2020, proveniente do Ministério da Saúde, sob o comando do então Ministro Luiz Henrique Mandetta, cujos arts. 1º e 2º estabeleceram, respectivamente, a declaração de emergência em Saúde Pública, na conformidade do Decreto nº 7.616/2011; e a criação do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública – COE-nCoV.

Em 06 de fevereiro de 2020, a Presidência da República promulgou a Lei nº 13.979 (seguida do Decreto Legislativo nº 06, de 20/03/2020 que decretou o estado de calamidade pública para fins fiscais) que instituiu medidas gerais a serem adotadas para enfrentamento da COVID-19, trazendo dentre seus regramentos definições para termos como “isolamento” e “quarentena”; bem como instituindo o uso individual de máscara e promovendo restrições aos direitos de ir e vir, com fechamento de fronteiras, atingindo as relações internacionais, através de proibição de acesso e saída do país; e de locomoção interestadual e intermunicipal entre outras medidas. Contudo, tais assuntos foram abordados de modo genérico, aberto e lacunoso, gerando intensos debates e fervorosas discussões acerca de suas implementação, extensão e aplicabilidade.

Em 26 de fevereiro de 2020, foi confirmado o primeiro caso de COVID-19 no Brasil, localizado no Estado de São Paulo, tornando concreto para a realidade brasileira aquilo que, até então, somente era presente no noticiário divulgado pela mídia e verificado em um contexto geográfico distante.

A partir desse evento, desse “marco fático”, o que se assistiu em nosso país foi um período de intensa e farta produção legiferante, com atuação precípua da Administração Pública Federal, por meio do gabinete presidencial, bem como de seus Ministérios – em especial da Saúde, Economia, Segurança Pública e Casa Civil -, e do Congresso Nacional, que no intuito de promoverem a regulamentação do enfrentamento à pandemia expediram diversos tipos de atos normativos dentre portarias, circulares, instruções normativas, decretos legislativos e presidenciais, resoluções, medidas provisórias, leis ordinárias e complementares, além de 03 (três) Emendas Constitucionais.

Tais atos estabeleceram regramentos relativos aos mais diversos assuntos, tais como: à abertura de créditos extraordinários, sua liberação e destinação, em caráter emergencial – Medidas Provisórias nº 921 e 924; orientações acerca de medidas de proteção e enfrentamento da doença para órgãos da Administração Pública – Instrução nº 20/2020; definição de critérios e procedimentos extraordinários e temporários para a certificação de boas práticas de fabricação para fins de registro e alterações pós-registro de insumo farmacêutico ativo – Resolução nº 346/20202; determinação de suspensão das visitas sociais, atendimentos de advogados e as escoltas dos presos custodiados nas Penitenciárias Federais – Portaria nº 04/2020; Instituição do Gabinete Integrado de Acompanhamento à Epidemia do Coronavírus-19 (GIAC-COVID19) – Portaria nº 59/2020; Instituição do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da COVID-19 – Decreto nº 10.277/2020; regulamentação sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da COVID-19 – Medida Provisória nº 925/2020, convertida na Lei nº 14.034/2020; estabelecimento de restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros oriundos dos países, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa – Portaria nº 125/2020; autorização prévia para fins de exportação de cloroquina e hidroxicloroquina e de produtos sujeitos à vigilância sanitária destinados ao combate da COVID-19 – Resolução nº 352/2020; regulamentação da Lei nº13.979, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais – através do Decreto Presidencial nº 10.282/2020; criação do Regime Jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado  Lei nº 14.010/2020; Nova alteração da Lei nº 13.979, para dispor sobre a obrigatoriedade do uso de máscaras de proteção individual para circulação em espaços públicos e privados acessíveis ao público, em vias públicas e em transportes públicos, sobre a adoção de medidas de assepsia de locais públicos, transportes públicos, e sobre a disponibilização de produtos saneantes aos usuários durante a vigência das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública – Lei nº 14.019/2020; Instituição do programa de proteção e manutenção do emprego e renda – Lei nº 14.020/2020; Mais uma alteração à Lei 13.979, para dispor sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública – Lei nº 14.022/2020; Alteração da dada das Eleições Municipais 2020 – Emenda Constitucional nº 107/2020.

A listagem acima proporciona uma noção da veemente e diversificada atuação processual legislativa brasileira, somente para citar algumas dentre as tantas medidas normativas produzidas, que renderam, no início da crise pandêmica, a criação de uma seção especial no site do Planalto, dedicada exclusivamente à legislação relativa à COVID-19.

Com todo esse arsenal legislativo especialmente voltado à pandemia (que ainda se encontra em plena atividade, tendo nossa última Lei Federal nº 14.174, que prorroga o prazo de medidas emergenciais para a aviação pátria, sido promulgada em 17/06/2021), o Brasil iniciou sua tortuosa jornada para enfrentamento da crise, assistindo a um vexatório espetáculo de contradições, atuações duvidosas, intervenções questionáveis, conflitos de competência, medidas ímprobas e irresponsáveis por parte das Administrações, atos de corrupção em meio ao desastre, desvio de verbas públicas e atuações fraudulentas, substituições de Ministros na área da saúde, enfim, ações que surtiram efeitos profundamente negativos, desencadeando medidas desastrosas, embates técnicos, dúvidas procedimentais e ações desencontradas, demonstrando uma total falta de unidade na atuação dos entes Federados, desvirtuando o conceito de atuação autônoma a que estão vinculados, por força do estatuído no art. 18, caput da CF/88, e perpetrando ações que vão de encontro à sua competência comum definida no texto Constitucional, em seu art. 23, notadamente nos incisos I, II e X, de zelar pela guarda do texto Magno e das instituições democráticas, cuidar da saúde e assistência públicas e combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, enfim, gerando uma “intromissão” na vida de seus cidadãos, patentemente contrária aos interesses públicos e sociais.

 

2.2. A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO COMO ÓRGÃO POLÍTICO

Em maio de 2020, o Brasil já ocupava o terceiro lugar no ranking mundial de países com maior número de casos confirmados de COVID-19 em 24 horas, segundo estudo divulgado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), através do “Coronavirus disease (COVID-19) Situation report nº 124”, de 23 de maio de 2020. Mas, antes mesmo de chegar a este nível crítico de transmissão da doença, alguns Estados brasileiros – a exemplo do Maranhão, do Pará, do Amapá e do Ceará – já haviam adotado ações mais rígidas, em face da situação extremada de contaminação e do total colapso em seu sistema de saúde, com a implementação de “lockdown” (bloqueio total da cidade), fosse tal medida por ato da Administração Estadual ou Municipal, fosse por determinação judicial em resposta à omissão dos Governos e/ou à atuação do Ministério Público, impetrante de ações civis públicas, voltadas à urgente necessidade de contenção pandêmica.

O Maranhão foi o primeiro Estado brasileiro a adotar a medida extrema mediante atuação do Poder Judiciário, por determinação da Justiça Federal, seguindo-se a ações impetradas, no mesmo sentido, junto às varas da Fazenda Pública dos Estados do Rio Grande do Norte, Amazonas e Pernambuco, todas em meados de abril de 2020. Tais medidas trouxeram vasta discussão, gerando controvérsias, resistência em sua implementação por parte de muitos gestores, e  questionamentos acerca da atuação do Judiciário.

Duras críticas foram disferidas à Justiça brasileira, suscitando-se o dervituamento no desempenho de magistrados, a usurpação de competências administrativas e legislativas, e o destaque para um viés ativista do Poder julgador, levando a uma acirrada divisão da sociedade na ponderação dos valores a prevalecer – entre saúde pública e economia – e ao repúdio e à negação a outras medidas que precisaram ser adotadas para enfrentamento da crise, muitas das quais, com a intervenção judicial.

O fechamento do comércio, com a consequente redução na produção de bens, na comercialização e no consumo em razão da diminuição do poder aquisitivo; estagnação das importações e exportações; proibições de viagens e estabelecimento de bloqueios sanitários nas fronteiras, com prejuízos para o comércio turístico, adoção de planos de classificação por grau de intensidade de risco; toques de recolher etc, foram algumas ações que interferiram na liberdade dos indivíduos, e afetaram a situação financeira de muitos pequenos e médios empresários, profissionais liberais e trabalhadores dos setores informais, e acarretaram uma profunda crise econômica no país, com reflexos no mundo jurídico, tanto na perspectiva das relações públicas, quanto nas privadas, trazendo à baila a inevitável constatação de que a sociedade como “organismo vivo” – na expressão consagrada por Durkheim, cujos acontecimentos e transformações operam-se em uma velocidade assombrosamente superior à capacidade estatal de regulamentação formal de condutas – exige a devida interpretação das situações empíricas, que encerrando questões periclitantes, urgentes e de evidência, reclamam pronta construção de regramentos voltados à prestação de tutelas imediatas, cuja espera por procedimentos burocráticos, muitas vezes, leva a um verdadeiro colapso geral da sociedade e torna patente a crise política vivida pelo Estado.

Nas palavras do ex-ministro do STJ, Antônio de Pádua Ribeiro: “A crise do Estado decorre da gritante disparidade entre a demanda social e a resposta política. Hoje, não se pede ao Estado apenas proteção, mas muito mais que isso, e ele não tem poder suficiente para realizar o que dele se espera”. É neste cenário que a atuação dos operadores do direito e do Poder Judiciário avulta em importância para o real alcance de efetivas soluções.

Como desencadeamento lógico da crise política e financeira instalada pelo contexto da pandemia, testemunhou-se o advento de questões que passaram a compor o cotidiano dos operadores do direito brasileiro, especialmente no trato negocial. Relações contratuais pactuadas inicialmente em um estado de coisas de normalidade, num ambiente socioeconômico estável, foram afetados por execuções inseridas num cenário de incertezas e imprevisões; relações envolvendo contratos de locação, desocupação e despejo; questões relativas a direito de vizinhança e condomínio; contratação de prestação de serviços (como buffets, para realização de casamentos e eventos comerciais) suspensos e/ou interrompidos em sua execução, por proibição de aglomerações; compromissos de compra e venda não adimplidos; cessão de quotas sociais; contratação de empreitadas sem execução do serviço; empréstimos e financiamentos em geral prejudicados por falta de renda; contratos de trabalho rescindidos, revistos ou repactuados, com acordos de redução salarial para manutenção de empregos; redefinição de prazos prescricionais; aumento da violência doméstica contra menores, mulheres e idosos; suspensão de processos licitatórios e adoção de dispensas emergenciais; inadimplência no recolhimento de tributos e taxas públicas, com prorrogação de prazos para sua quitação e proibição de suspensão na prestação de serviços públicos entre outros, foram temas que geraram enorme comoção no mundo jurídico, em razão das dúvidas e incertezas circundantes, e que fomentaram um aumento exponencial de assessoramento por advogados, e na busca pelo Poder Judiciário, que sob o jugo do princípio da proibição do “non liquet” erigido no art. 140, caput do CPC/15, avocou a árdua tarefa de, mesmo em meio ao “ineditismo material”, fornecer respostas capazes de garantir o devido acesso à Justiça e um mínimo de segurança jurídica aos seus jurisdicionados, que se mostraram atentos ao antigo brocardo jurídico “Dormientibus Non Sucurrit Ius” (O direito não socorre aos que dormem).

Interessante a impressão captada pelo eminente juiz baiano Pablo Stolze, em artigo publicado em junho de 2020, tecendo comentários ao então Regime Jurídico emergencial trazido pela Lei nº 14.010/2020, ao retratar que:

 

Os vários juristas, às vezes com ímpetos acrobáticos, tentam brandir as armas que têm para dar soluções aos inúmeros problemas nas relações particulares. Vários artigos doutrinários são publicados: a COVID-19 já se torna o epicentro das produções acadêmicas”.

 

E, de fato, nos meses iniciais da crise, testemunhou-se uma intensa e arrojada atuação de juristas e do Judiciário brasileiro em causas relacionadas, direta e reflexamente, ao tema “COVID-19”, mormente em razão do enfrentamento deficiente ou mesmo omisso dos demais Poderes quanto a questões fulcrais, de cunho político, econômico, social e moral, levando  doutrinadores e magistrados a desempenharem papel fundamental na fixação das normas dos casos concretos, e na definição de entendimentos formadores de precedentes, atuando ativamente na concepção de verdadeiras “pautas de conduta”, nas palavras de Tereza Arruda Alvim, que sobre tal atuação defende:

 

“a tarefa de criar pautas de conduta para o jurisdicionado não é fruto apenas da atividade do legislador, mas também da do Judiciário. Pode haver alguma variação de país para país, de sistema para sistema, e esta cooperação pode ocorrer em diferentes medidas ou dimensões, mas existe sempre a participação do que faz a lei e do que a interpreta, na criação da pauta de conduta”. (ALVIM, 2019, pág. 16)

 

É preciso destacar, para que reste claro, que a postura ativa do Judiciário (que nada tem a ver com ativismo) foi, e é, necessária para a condução e controle da crise sanitária vivia pelo país, posto que lacunas deixadas pela atuação (ou falta dela!) dos demais poderes geraram incertezas e trouxeram inseguranças quanto à postura a ser adotada pela sociedade, em face de questões de ordem prática, a exemplo do que aconteceu com a referida Lei nº 14.010/2020, que fixou o “Regime jurídico emergencial e transitório”, silenciando quanto a assuntos relevantes como a realização de reuniões por pessoas jurídicas de direito privado (art. 4º), a locação de imóveis urbanos e suas respectivas ações de despejo (art. 9º) ou quanto aos poderes conferidos ao síndico (art.11), todos vetados.

 

2.3. DOS DADOS ESTATÍSTICOS E CASOS CONCRETOS

Em levantamento realizado pelo Centro de Regulação e Democracia do INSPER, sob a liderança de Vanessa Rahal Canado e Larissa Luzia Longo, respectivamente coordenadora e pesquisadora do Núcleo de Tributação, no início do período pandêmico computaram-se, somente no período de 16 de março a 18 de maio de 2020, a prolação de mais de 165 mil (cento e sessenta e cinco) decisões judiciais relacionadas à COVID-19.

Já, dados coletados pelo Observatório Nacional do CNJ, atualizados até 10 de maio de 2021, apontam para uma realidade ainda mais profusa, encontrando-se em tramitação na Justiça brasileira mais de 344 mil ações ligadas ao tema, sendo incontestável a relevância da atuação judiciária para a definição das diretrizes a serem seguidas pela sociedade como resultado de sua acentuada demanda.

Nesse contexto, imperioso destacar a atuação da Corte Suprema Brasileira, que foi chamada a enfrentar temas da mais expressiva magnitude e complexidade, cuja definição impactaria diretamente não só nas ações da Administração Pública do país, como também, e primordialmente, na configuração da realidade econômica, sanitária e social brasileiras.

Dentre as matérias abordadas, vale a referência, por sua repercussão, às seguintes:

 

1) ADI nº 6343 – DF, sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, que reconheceu a competência concorrente dos entes federados no Combate à COVID-19, excluindo estados e municípios da necessidade de autorização do ente federal para atuarem, conforme previsto no art.3º, §7º, inciso II da Lei nº 13.979/2020. Relevante consignar que em seu voto-vista, o Ministro Dias Tóffoli destacou:

 

(…) a gravidade da situação vivenciada exige a tomada de medidas coordenadas e voltadas ao bem comum, sempre respeitada a competência constitucional de cada ente da Federação e com vistas a resguardar sua necessária autonomia para assim proceder. Por outro lado, a situação que ora vivemos também exige a tomada de providências estatais em todas as suas esferas de atuação, mas sempre por meio de ações coordenadas e devidamente planejadas pelos entes e órgãos competentes, e fundadas necessariamente em informações e dados científicos, e não em singelas opiniões pessoais de quem não detém competência ou formação técnica para tanto”.

 

2) ADI 6363 – DF, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, em que o plenário decidiu, por maioria, manter a validade dos acordos individuais (entre empregados e empregadores) sobre redução salarial e suspensão de contrato de trabalho, independentemente de anuência sindical. Destaque-se, quanto a este julgamento, o entendimento evidenciado pelo Ministro Alexandre de Moraes, de que a exigência de atuação do sindicato, abrindo negociação coletiva ou não se manifestando no prazo legal, geraria insegurança jurídica e aumentaria o risco de desemprego. Assim, diante da excepcionalidade e da limitação temporal, a regra estaria em consonância com a proteção constitucional à dignidade do trabalho e à manutenção do emprego.

 

3) ADPF Nº 828 -DF, sob a relatoria do Ministro Luiz Roberto Barroso, que determinou a suspensão por seis meses de ordens ou medidas, administrativas ou judiciais, relativas à desocupação, remoções forçadas ou reintegrações de posse coletivas, de áreas que já estivessem habitadas antes de 20 de março de 2020 (marco do estado de calamidade pública em razão da Covid-19), bem como dos despejos de locatários de imóveis residenciais em situação de vulnerabilidade. O Ministro Barroso, em sua decisão monocrática, justificou a medida:

 

 

“Diante de uma crise sanitária sem precedentes e em vista do risco real de uma terceira onda de contágio, os direitos de propriedade, possessórios e fundiários precisam ser ponderados com a proteção da vida e da saúde das populações vulneráveis, dos agentes públicos envolvidos e também com os riscos de incremento da contaminação para a população em geral. Se as ocupações coletivas já se encontram consolidadas há pelo menos um ano e três meses, não é esse o momento de executar a ordem de despejo. Razões de prudência e precaução recomendam que se aguarde o arrefecimento da crise sanitária.”

 

4) ADPF Nº 707 – DF, sob a relatoria do Ministro Nunes Marques, em substituição à relatoria do decano Celso de Mello, na qual se pede a abstenção do governo federal em recomendar o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina para pacientes da Covid-19, em qualquer estágio da doença, como também que se suspenda qualquer contrato de fornecimento dos referidos medicamentos. Tal ação, porém, ainda encontra-se sem decisão.

 

A análise dos casos acima citados é uma pequena amostra das matérias confrontadas pela Suprema Corte em razão da crise sanitária brasileira, já tendo enfrentado também temas como: adoção de um Plano Nacional de vacinação, com o estabelecimento de um calendário de vacinação (ADPF nº 830); compulsoriedade da vacinação (ADI’s nº 6586 e nº 6587); proibição de divulgação de campanhas que visem incentivar o retorno da população às suas atividades plenas, como garantia ao caráter informativo, educativo e orientador da sociedade (ADPF’s nº 668 e nº 669) e mais recentemente, suspensão da realização da Copa América no Brasil, em face da nova onda de contaminações (ADPF’s nº 756 e nº 849 e MS nº37933), entre tantos outros que se apresentam, à medida das transformações e movimentações advindas do dia a dia social.

 

Sublinhe-se que, no intuito de garantir a transparência de suas ações e a publicização de suas decisões, o STF criou no início deste ano (2021), o site especial “Combate à Covid-19”, no qual se encontra uma compilação de sua atuação em resposta às demandas sociais a ele submetidas, respeitando e garantindo o total acesso à informação. Através do acesso ao “painel de ações”, é possível conhecer, em termos quantitativos, a produtividade da Suprema Corte que conta, até a data de 22/06/2021, com mais de 8.900 processos em tramitação e com mais de 11 mil decisões.

É ainda digna de nota a atuação do ENFAM que, em parceria com o Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal, desenvolveu o “Centro de apoio à magistratura brasileira – COVID-19”, uma plataforma digital, que conta com 04 ambientes (repositório, fórum de discussão, cursos EAD e compilação de ações), voltada à capacitação e apoio aos juízes – estaduais e federais – em virtude da excessiva judicialização das questões, reflexo da pandemia. Tal iniciativa denota a preocupação das autoridades judiciárias em qualificar-se e atualizar-se, a fim de enfrentar a pauta da crise sanitária, além de procurar uniformizar as decisões, dar tratamento coerente aos casos similares e prestar uma tutela jurisdicional minimamente adequada.

A conclusão a que se chega, após a breve investigação dos dados supra traçados, é que a situação de total descontrole da pandemia, unida: 1) à omissão de gestores públicos, muitas vezes justificada pela dúvida quanto aos limites de sua competência federativa, 2) à desorganização de entes públicos e Instituições para enfrentamento da situação de calamidade; 3) à deficiência, sucateamento e sobrecarga do Sistema Público de Saúde; 4) à escassez de insumos e de recursos humanos e os desvios financeiros; 5) à falta de transparência nas ações governamentais e 6) à inexistência de uniformidade de posicionamentos acerca das medidas a serem adotadas pelas Administrações em todos as esferas do país, levou órgãos representativos coletivos, muitos municípios, Estados, Ministério Público e Defensoria Pública a recorrerem ao Poder Judiciário, como única esperança, em busca de respostas e ações firmes no sentido de tentar conter a pandemia e minimizar, o quanto possível, os impactos já desastrosos trazidos pelo novo coronavírus.

Vale aqui replicar as significativas palavras de Hermes Zaneti Jr., que versando acerca do controle de poder no modelo brasileiro de Jurisdição (judicial review) para garantir a adequação dos atos do poder público e dos atos dos poderes particulares, defendeu que:

 

“O Poder Judiciário – neste quadro – representa o espaço privilegiado para fazer valer os direitos fundamentais assegurados na constituição (democracia dos direitos), reconhecê-los e dar-lhes efetividade. Essa foi a aguda percepção, já no século XIX, da melhor doutrina (…)”. (ZANETI JR, 2019, pág. 36).

 

  1. PODER JUDICIÁRIO ENTRE ERROS E ACERTOS

Se é certo que a pandemia levou a uma judicialização de questões de peso como a decretação de Lockdown, o fechamento ou reabertura do comércio em geral, a liberdade de locomoção dos indivíduos face ao conceito de isolamento social, o diferimento do pagamento de tributos durante o período de pandemia etc, também é patente que muitas de suas atuações deixaram a desejar, com prolação de decisões contraditórias em casos semelhantes, imprimindo tratamentos conflitantes e desiguais em esferas federativas distintas e levando a implementação de realidades dissociadas, causando enorme dessabor aos destinatários de tais pronunciamentos.

Da mesma forma, presenciaram-se atuações desabonadoras de magistrados que, infelizmente, adotando posturas autoritárias, com alto grau de subjetivismo e discricionariedade, pautadas em suas exclusivas convicções pessoais e despidas de fundamentação legal, atuaram em desconformidade às exigências de seu papel institucional e trouxeram prejuízos ao jurisdicionado, mácula totalmente reprovável e que reclama uma renovação de postura e uma necessária e adequada responsabilização de seus autores.

Destaque-se, também, o fato de que muitas decisões, por seu conteúdo criativo e pela firmeza de suas fundamentações, desagradaram profundamente parte da Administração Pública e alguns estudiosos do direito, que enxergaram naquelas, um total desacerto, a invasão de competências, a extrapolação dos limites de sua atuação e um claro ativismo desenfreado.

Por outro lado, não se pode olvidar o desafio enfrentado pelo Judiciário, enquanto órgão de tradições burocráticas e concretas, simbolizadas por prédios, balcões, salas de audiência, despachos diretos com o juiz, protocolos de papéis e volumosas pilhas de processos e quadro de magistrados ainda formado, em sua maioria, por gerações não tecnológicas (…), quanto à necessidade de adequação e aperfeiçoamento de sua atuação, com o implemento de rotinas virtuais e uso massivo de tecnologia, para processamento e julgamento de seus feitos o que trouxe consigo uma nova e amedrontadora realidade, e um período de grande renovação de posturas.

A promoção de uma verdadeira revolução tecno nos Tribunais acelerou em demasia um paulatino processo que vinha sendo implementado a lentos passos, instituiu o trabalho remoto, as sessões por videoconferência, os peticionamentos eletrônicos e o desenvolvimento de plataformas digitais para realização de mediações judiciais, posturas que denotam um avanço na prestação de serviço por parte da Justiça e que, inegavelmente, refletiram num aumento considerável de sua produtividade.

Por fim, é preciso que se faça uma ponderação. É inegável que o Poder Judiciário encontra-se em uma posição de evidência no cenário da pandemia, sofrendo forte pressão de vários setores sociais a dar respostas e deliberar sobre as mais variadas e delicadas questões, sendo certo que as funções judicantes são exercidas por seres falíveis (afinal humanos), que não é possível agradar ou atender a todas as expectativas, assim como não há, num cenário pandêmico de total imprevisibilidade, como se classificar taxativamente alguns posicionamentos como “certos” ou “errados”, mormente quando o juízo de valor a ser externado exige ponderação e razoabilidade, mediante pronunciamento num curtíssimo espaço de tempo, furtando-se, na maioria das vezes, ao devido debate, o que leva inafastavelmente à produção de algumas decisões maculadas por “error in Judicando”.

Fato é que o novo coronavírus ofereceu aos aplicadores do direito e juristas um dilema: questões emergenciais requerem medidas rápidas, sob pena de perecimento do direito, irreparável prejuízo e falha na tutela jurisdicional. Por sua vez, respostas rápidas costumam pautar-se em juízos de cognição sumária, em análises superficiais. No entanto, questões contingenciais, como no caso da Pandemia, costumam encerrar situações com alto grau de relevância e repercussão social, sem mencionar a especificidade dos temas, requerendo profundas reflexões e extenso e plural debate (o que impulsionou, inclusive, o legislador derivado a inserir expressamente no regramento processual civil de 2015, em seu art. 138, a figura representativa do amicus curiae para os feitos em geral!), sob pena de cometimento de injustiças e imposição de prejuízos, muitas vezes, irrecuperáveis.

Como, então, conciliar a necessidade de prescrever “pautas de conduta” mediante premente estudo e cognição profunda e exauriente, com a exigência de respostas rápidas e eficientes, frente a exiguidade do tempo exigida pela urgência das questões, garantindo-se o acesso à Justiça (entendido aqui, não como mero ingresso formal no Judiciário, mas como a obtenção material de justiça, através de tutela efetiva) sem cometimento de erros?

Ao que parece, à falta de uma solução acabada, a melhor orientação a seguir encontra-se representada nas palavras de Mauro Cappelletti, que na introdução de seu ensaio produzido em razão do “Projeto de Florença”, advertiu:

 

“A expressão ‘acesso à Justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.” (CAPPELLETTI, 2002, pág. 08).

 

 

Assim, entre erros e acertos, o balanço geral leva a conclusão de que a atuação do Poder Judiciário, enquanto poder integrante do Estado de direito e órgão de cunho jurídico, mas também essencialmente político, nesse contexto de imprevisões, percauços e incertezas traçados pela pandemia buscou atender aos clamores sociais que lhe foram submetidos, prestando tutela aos direitos materiais desabrigados, a despeito de suas limitações e dificuldades de adequação operacional, estrutural e humana. Enfim, não se furtando a seu dever institucional e legal de retornar a seus jurisdicionados um mínimo de resultado e segurança, o Judiciário não se quedou omisso frente a crise.

 

CONCLUSÃO

A reflexão que fica, ao final desta singela exposição, é de que, talvez, a mais importante lição trazida pela Pandemia pela COVID-19, por todos nós vivenciada, seja a de que as situações de catástrofe, que instituem verdadeiros Estados de excepcionalidade, requerem respostas conjugadas de toda a sociedade organizada e do Estado de Direito para o alcance de resultados efetivos e eficazes ao interesse coletivo. E, para tal desiderato, é preciso abrir mão de questões individuais, posicionamentos retrógrados e de retrocessos, e adotar uma postura prospectiva, a fim de adaptar-se, adequar-se a novas realidades, aperfeiçoando mecanismos e técnicas de convivência, de produção, de proteção, de prestação de tutela…

Fortalecer e valorizar as estruturas e instituições estatais é passo fundamental para que se construa uma relação ESTADO – CIDADÃOS baseada na confiança, na segurança, na busca do bem comum e, acima de tudo, na constante evolução rumo a uma sociedade livre, justa e solidária

O que se testemunhou até aqui, em meio ao caos pandêmico, foi a tentativa do Poder Judiciário de aperfeiçoamento, adaptação de seu “modus operandi”, soerguimento de seu pensar crítico, ampliação e aprofundamento de sua análise acerca da realidade social, fortalecendo seu papel de órgão jurídico, mas também, (e em essência) frise-se político, com o devido peso da responsabilidade de, não se furtando ao exercício de seu papel fundamental, para além de mero “declarador de direito”, efetivamente “criar direito” e, desta feita, atuar em plena coerência aos fundamentos constitucionais do Estado brasileiro e em harmonia com a atual fase cooperativa vivenciada pelo processo civil brasileiro, e enfim, não desassistindo aos jurisdicionados que a ele recorreram, clamando por orientação, respostas e proteção.

Presenciou-se um movimento de evolução na atividade jurisdicional brasileira que, espera-se, continue a avançar por ainda haver um longo caminho a percorrer. Afinal, se um vírus é capaz de evoluir para garantir sua existência, por que não nós?

 

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