1.
Introdução
Com
a edição da Lei n. 9099/95, o legislador deu cumprimento ao art. 98, inciso I,
da Constituição Federal, que previu a criação, no âmbito do Poder Judiciário,
de “juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos,
competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de
menos complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo,
permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de
recursos por turmas de juízes de primeiro grau”.
Essa
lei inaugurou uma nova fase no sistema processual penal brasileiro, a da
justiça pactuada ou consensual, e vem causando
perplexidade a juízes, advogados, membros do Ministério Público, defensores e
demais operadores jurídicos.
Tal
incerteza dogmática e jurisprudencial deve-se em grande monta à dificuldade de
assimilação da transação penal e da suspensão condicional do processo,
institutos inseridos no ordenamento brasileiro, respectivamente, pelos arts. 76 e 89 da Lei Federal n. 9099/95, que modificaram as
noções sobre a indisponibilidade da ação penal pública e refletem uma
inspiração despenalizadora.
O
sursis processual, como vem sendo chamada a suspensão
condicional, é direito subjetivo do acusado ou poder discricionário do
Ministério Público? Abordar o cerne dessa polêmica é aquilo a que nos propomos,
deixando claro, desde já, que preferimos que a solução do conflito exegético e
valorativo acerca da aplicação concreta dos novos institutos se dê pela via do
controle hierárquico da discricionariedade ministerial, tudo ocorrendo interna corporis.
2.
Uma nova era: a justiça criminal consensual
LUIZ
FLÁVIO GOMES (in Suspensão condicional do processo. São Paulo: RT, 1995, p.
124), um dos mais ilustres estudiosos do assunto, explica que a polêmica
instalada no meio forense acerca da interpretação da nova lei decorre, em
parte, do laconismo do legislador, que “cuidou de um dos mais revolucionários
institutos no mundo atual em apenas um artigo (art. 89)”, deixando margem a uma
série de indagações.
Com
efeito, o tratamento legislativo dado aos dois novos institutos merece essa
crítica, pelo acanhamento na especificação dos seus mecanismos e omissão no
aclaramento de certas conseqüências jurídicas, o que certamente deixou lacunas
a serem preenchidas pela praxis e pelos aportes da
doutrina e dos tribunais.
No
entanto, é fora de dúvida que a Lei n. 9099/95 implantou no Brasil um novo
sistema de justiça pactual, não conflitiva, tendente
a estabelecer o consenso para a composição dos litígios, sempre mediante o
efetivo acordo entre as partes processuais, com mediação judicial. A nova lei
visou, também, a estabelecer uma política criminal individualizante, que
permite de logo a exclusão do processo e de suas agruras, em benefício do
acusado, adotando também uma lógica de responsabilização e reintegração do
agente do fato delituoso, aproximando-o da mesa do juiz, onde se dará a
composição civil ou a transação penal lato sensu (a
expressão aqui empregada, abrange os dois institutos).
O
que nos traz ao campo da discussão é, especificamente, a natureza jurídica do
instituto previsto no art. 89 da Lei n. 9099/95. Trata-se realmente de um
direito subjetivo do acusado ou de uma via alternativa à persecução penal posta
à disposição do Ministério Público? As considerações a serem expendidas
aplicam-se mutatis mutandi
à transação penal stricto sensu, prevista no art. 76 da lei especial, que, ao
nosso sentir, é legítima manifestação do direito de ação penal, em nova
roupagem.
Eis
o texto da lei:
“Art.
89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou
inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao
oferecer denúncia, poderá propor a suspensão condicional do processo, por dois
a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha
sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam
a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)”.
Como se disse, a Lei n. 9099/95 é fruto do art. 98,
inciso I, da Constituição Federal, que, prevendo um procedimento oral e sumariísimo, mitigou o princípio da obrigatoriedade da ação
penal ao determinar a criação de juizados especiais competentes para a
conciliação, o julgamento e a execução de infrações penais de menor potencial
ofensivo, permitindo a transação e o julgamento de recursos por turmas de
juízes de primeiro grau.
Transação
nada mais é que um acordo, ajuste ou pacto que dirime um litígio, mediante
concessões recíprocas das partes interessadas, de forma a obter a autocomposição dos interesses em conflito. É negócio
bilateral por excelência. No sistema preconizado, está sempre sujeita ao
controle judicial. O magistrado assume a função de mediador da avença. A
mediação é a nova tarefa do juiz no sistema de justiça pactual, que tende a
facilitar a consecução da paz social, pois são as partes que se compõem
espontaneamente, fazendo prevalecer o bom-senso. Portanto, não se trata mais de
impor uma decisão que sujeite os interesses de uma parte aos da outra, como
acontecia (e ainda acontece) no modelo de justiça conflitiva.
O
Ministério Público, por sua vez, “aderirá à justiça consensual, agindo dentro
da lei e apresentando, sempre que possível, suas propostas de transação penal,
disposto a discuti-las com o juiz, os conciliadores e a parte contrária” (in
Juizados especiais criminais. Ada Pellegrini Grinover
et alli. São Paulo: RT,
1996, p. 22). Por isso, é necessário que os membros do Parquet,
como de resto todos os demais operadores do Direito, assumam uma nova postura
processual e abandonem a mentalidade meramente repressiva, para que, sempre que
possível, se busque o consenso.
Sem
dúvida, a Lei n. 9099/95 quebrou a rigidez do princípio da obrigatoriedade,
permitindo que o Ministério Público possa dispor da ação penal pública em
determinadas hipóteses, taxativamente previstas em lei, por
exemplo quando faz proposta penal alternativa (art. 76), agindo com
exclusividade.
No
entanto, apesar dos termos claros da lei e da certeza de seu propósito consensual,
têm sido vistos julgados e textos doutrinários contrários ao espírito
conciliatório da lei, na medida em que admitem propostas transacionais ex officio ou mediante a iniciativa do autor do fato,
excluindo-se o Ministério Público do desejado consensus.
Segundo
ALBERTO ZACHARIAS TORON, “Em face dos termos claros da lei, a melhor
intelecção, ainda que não represente a melhor solução, é de se manter a
faculdade de propor a suspensão nas mãos do Promotor de Justiça” (in Drogas:
novas perspectivas com a lei 9099/95”, Boletim IBCCrim, novembro/95, p. 6). Discordamos do ilustre
jurista no periférico, mas com ele concordamos no substancial. A proposta de
suspensão é uma opção institucional do Ministério Público, e, como tal, a
solução alvitrada por parte da comunidade jurídica, delimitando seu conteúdo de
facultatividade, é a melhor solução, pois valoriza o sistema acusatório e acaba
por fortalecer a posição do juiz-garantidor, ao afastá-lo da condição de parte
processual.
Assim,
de início, deve-se fixar noção de que as propostas dos arts.
76 e 89 da Lei 9099/95 são faculdades cuja legitimidade ativa cabe, com
exclusividade, ao Ministério Público, situando-se ambas dentro do espaço de
discricionariedade administrativa conferido à instituição, como adiante se examinará.
No
artigo A lei 9099/95 e a proposta de suspensão (in Justiça Penal 4. São Paulo:
RT, 1997, p. 204), IRAHY BAPTISTA DE ABREU registra dois acórdãos de tribunais
paulistas que sufragam o entendimento da exclusividade do Ministério Público no
manejo da proposta do art. 89 da lei comentada:
“Caso
o parquet não entenda preenchidos os requisitos retromencionados, não há como impingir-lhe a proposta, eis
que, como já dito anteriormente, cuidando-se de ato consensual, indispensável a manifestação de vontade de ambas as partes, não podendo o
Estado-juiz substituir-se ao Estado-Administração,
para o fim de propor a suspensão condicional da ação” (TJ-SP, HC 204.579-3/0,
4ª Câm. Criminal, Rel. Des.
Sinésio de Souza, j. 19.03.96)”
“(..)
Não vejo como permitir ao Juiz que decida ex officio.
O espírito da Lei 9099/95, no caso, é o da transação. Acordo entre acusador
(que faz a proposta) e o acusado (que a aceita)” (TACrim-SP,
Correição parcial n. 1.012.835-9, 12ª Câmara, v. u., j. 17.06.96).
Tais
decisões seguem a mens legis
e não merecem reparo. Os autores do projeto de lei n. 1480/89, que deu origem à
parte criminal da Lei n. 9099/95 (essa parte criminal foi encampada pelo Dep.
MICHEL TEMER, a partir do anteprojeto de uma comissão de juristas; a parte
cível é de autoria de NELSON JOBIM e o substitutivo, englobando as duas, foi
elaborado pelo Dep. IBRAHIM ABI-ACKEL), deixaram bem claro na exposição de
motivos que se estava adotando o princípio da “discricionariedade controlada”,
com a proposta de suspensão partindo do Ministério Público e ficando sujeita à
aceitação do acusado e à homologação do juiz.
O
juiz ANTÔNIO CARLOS DOS SANTOS BITENCOURT, no seu Justiça
Penal Pactuada (Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1997, p. 25/26 e 50), diz que a
Lei n. 9099/95 “inaugura um novo modelo de justiça consensuada
para as infrações de pequeno potencial ofensivo e para as de média lesividade (estas para as quais reservou a suspensão
condicional do processo), permanecendo a indisponibilidade da ação penal
pública para os crimes de grave ofensa à ordem jurídica. (…) Derruba-se,
enfim, o mito da indisponibilidade absoluta da ação penal pública cujos
postulados são uma hipocrisia legal”.
E
tem razão o insigne magistrado, pois o art. 2º da Lei n. 9099/95 estatui, como
princípio geral, que o processo sumariíssimo nela
previsto deve buscar “sempre que possível, a conciliação ou a
transação”.
A
contrario sensu, deve-se entender que a conciliação e
a transação nem sempre são possíveis. Daí dizer-se que não se poderá jamais
impor uma transação ao Parquet, a pretexto de
assegurar suposto direito subjetivo do acusado, pois a própria lei admite a
hipótese de a transação não ocorrer, dando mostras de sua afeição à
disponibilidade e ao consenso.
O
mesmo se diga a respeito do art. 62 da lei especial, que objetiva “sempre que
possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não
privativa de liberdade”. Novamente a locução “sempre que
possível”, a revelar que, quando não for possível resolver o litígio pela
composição, pela transação ou pela suspensão condicional, é evidente que não
poderá o juiz obrigar as partes a isso, uma vez que a norma prevê a hipótese
negativa, ou seja, prevê a possibilidade de não se obter de logo a composição
civil e a aplicação de pena não privativa de liberdade. É a lógica do
razoável, de que fala Recasén-Siches.
Confirma
essa lógica o art. 72 da lei, que determina que, na audiência preliminar, “o
juiz esclarecerá sobre a possibilidade de composição dos danos e da aceitação
da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade”. Mais uma
vez realça-se a possibilidade, a faculdade, a não-obrigatoriedade da composição
e da transação, informando todo o sistema da Lei n. 9099/95.
Reforçada
fica, com tudo isso, a idéia conciliatória trazida
pela nova lei despenalizadora, que busca, por
vocação, a conciliação, a composição e a transação, e introduz no sistema um
novo fator: o da discricionariedade da ação penal, já que a proposta de pena e
a de suspensão são atos dispositivos de conteúdo volitivo, cujo conteúdo e
mérito são estipulados pelos interessados, para homologação judicial,
evidenciando a bilateralidade.
Por
depender do acordo de vontades de partes adversas que convergem (e aí está sua
natureza bilateral), não se podem ver, nos arts. 76 e
89 da Lei de Juizados Especiais – LJE, direitos subjetivos do acusado. Na lição
de LUIZ FLÁVIO GOMES, no primeiro instituto, há uma conformidade penal, e no
segundo uma conformidade processual. Em suma, há sempre transação, porque o
acusado e o Ministério Público cedem, tendo em conta a incerteza quanto ao
resultado do processo.
3.
Direito subjetivo versus expectativa de direito
Os
que sustentam tratar-se de um direito subjetivo, entendem
que a suspensão condicional do processo pode levar à extinção da punibilidade,
e aí estaria o fundamento do suposto direito. O ponto de vista é frágil e não
resiste a uma singela comparação. Ora, sempre, em qualquer processo, há a
expectativa da extinção da punibilidade. Desde que se consuma o fato, passa a correr
a prescrição e pode surgir o ensejo a uma das outras modalidades extintivas do
jus puniendi previstas art. 107 do Código Penal.
Por
outro lado, não se pode confundir expectativa de direito com direito subjetivo.
No âmbito do Direito Administrativo, é ponto pacífico que a mera aprovação em
concurso público não gera direito à nomeação. Trata-se de uma simples
expectativa, que não tem proteção por ação constitucional. HELY LOPES MEIRELLES
ensina que “Ainda mesmo a aprovação no concurso não gera direito absoluto à
nomeação, pois que continua o aprovado com simples expectativa de direito à
investidura no cargo ou emprego disputado” (in Direito administrativo
brasileiro. São Paulo: Malheiros, 17ª edição, p. 376), tudo porque o provimento
do cargo fica à inteira discrição da Administração Pública, segundo os
critérios de conveniência e oportunidade.
Da
mesma forma, somente porque a suspensão do processo gera uma expectativa de
direito à extinção da punibilidade, não se pode dizer que ali surgiu um direito
subjetivo, a reclamar proteção judicial imediata ou antecipada. É que mesmo
essa expectativa é remota e incerta. O direito à extinção da punibilidade
somente se configurará se todas as condições da suspensão processual forem
inteiramente cumpridas pelo réu, o que já cria uma ponderável incerteza e
desnatura a decantada liquidez desse “direito”.
Esse
estranho raciocínio, acima exposto, pode levar o réu a alegar hipotético
direito subjetivo à prescrição, antes que ela ocorra, legitimando, por exemplo,
qualquer resistência ao andamento normal de ações penais, como ocorre com os
famosos “recursos de gaveta”.
Ou
por outra, a elocubração ora criticada pode levar à
defesa de um improvável direito subjetivo que obrigue a vítima a não
representar contra o indiciado ou suspeito, já que o acusado teria direito
subjetivo à decadência, antes de sua real implementação.
Aceitar
a tese contraria o sistema da lei e a própria tradição do direito penal, que
sempre previu em favor do réu certos favores do Príncipe, como a graça e o
indulto. Jamais se defendeu que tais institutos constituem direitos subjetivos.
“O indulto e a graça no sentido estrito são providências de ordem
administrativa, deixadas a relativo poder discricionário do Presidente da
República, para extinguir ou comutar penas” (JOSÉ FREDERICO
MARQUES, Tratado, vol. 3/425”. São, assim, meras expectativas de
direito, não sendo autoexecutável o decreto
presidencial que os concede.
É
por essas e outras razões que se deve afastar a idéia de que a suspensão é um
direito subjetivo do acusado. É mais um “favor administrativo”, manejado com
exclusividade por órgão do estado-Administração,
dentro dos limites da discricionariedade.
4. A
descabida polêmica vernacular
Toda
essa celeuma representa apenas uma formidável perda de tempo e de esforço, que
poderiam ser melhor aproveitados na discussão de
assuntos mais urgentes e mais relevantes do ponto de vista social. No entanto,
como se lançou o tema e para que as inovações da Lei de Juizados Especiais –
LJE não sejam vãs, compra-se a briga para que ao final reine a paz.
Mas
para que isso ocorra, é preciso, antes, ficarmos em paz com o idioma e com a
exegese das normas, recordando que, na interpretação, devemos
sobretudo considerar o que está escrito, e não o que “deveria” estar escrito
ou que “gostaríamos” que estivesse.
O
professor JOÃO JOSÉ CALDEIRA BASTOS (in Curso Crítico de Direito Penal,
Florianópolis: Obra Jurídica, p. 19) explica que “os intérpretes, de seu turno,
oficiais e oficiosos, não conseguem interpretar sem legislar (…). Não custa
aduzir que as práticas sociais e políticas, os costumes da administração, os
manuais de doutrina e os repertórios de jurisprudência retratam sérias
divergências interpretativas e flagrantes decisões contra a lei, inclusive em
matéria criminal”.
Muito
dessa realidade decorre, sem dúvida, da quizília dos juristas com a língua
portuguesa.
PAULO
SÉRGIO CORNACCHIONI (in Justiça criminal x verbo poder. Boletim IBCCrim n. 59 – out/97, p. 10), aduz, com muita propriedade, perspicácia e
senso de humor, que é costumeira a queixa do jurista contra a “edição de tantas
leis tecnicamente deficientes. Mas o legislador nada reclama do jurista,
malgrado por vezes tenha motivos de sobra para fazê-lo. Com efeito, há décadas,
quase toda vez que o legislador diz ‘pode’, o jurista teima em ler ‘deve’.
(…) Cuida-se de antigo descompasso entre o que escreve o legislador e o que
lê o jurista. O problema, de início, convida a cogitar de uma possível reforma
lingüística, ainda pouco conhecida, que quiçá haja modificado a significação do
verbo ‘poder’ (…) Mas a suposição não seria mesmo razoável, já que em outros
tantos dispositivos o legislador diz ‘poderá’ (…) e para espanto geral o
jurista interpreta o vocábulo como ‘poderá’ mesmo (…) A falha de comunicação
entre a lei e o jurista precisa, contudo, ser entendida e resolvida. Afinal,
como é que o legislador fará quando quiser realmente estabelecer uma faculdade
(um ‘poder’) e não uma obrigação (um ‘dever’)?”.
Ao
adotar a atual redação da LJE, quis o legislador conferir uma faculdade ao Parquet para fins de política criminal, ou impor um dever à
Instituição Ministerial, ao qual corresponde um direito subjetivo do réu?
Assim
visto o problema, parece-nos de fácil solução, pois, de logo, a letra da lei
nos remete à busca do sentido do verbo “poder”. Basta uma consulta ao Aurélio,
que apresenta as seguintes acepções para “poder”: ter a faculdade de; ter
possibilidade de, ou autorização para; ter oportunidade de;
faculdade, possibilidade; capacidade; aptidão. Há outros significados, mas
nenhum deles é sinônimo do sentido inventado pela doutrina: o de “dever”.
É
absolutamente sem sentido essa interpretação do verbo “poder” como “dever”. Em
mais de uma oportunidade, o legislador impõe efetivamente aos órgãos estatais o
cometimento de uma função, tal como (só para ficar no que nos interessa) com o
Ministério Público, ao dispor no art. 24 do CPP que a ação penal pública “será
promovida”, deixando bem claro que a iniciativa é obrigatória.
De
igual modo (impondo uma conduta), agiu o Parlamento quando determinou que o
juiz, expirado o prazo da suspensão condicional sem revogação, “declarará
extinta a punibilidade” (§5º, do art. 89). Como se vê, o legislador não disse
que o juiz “poderá declarar” extinta a punibilidade.
Disse “declarará”, provando conhecer bem o idioma. E aqui, sem a menor sombra
de dúvida, após o cumprimento das condições impostas, surge um direito público
subjetivo para o acusado.
Diferentemente
agiu o legislador ao escrever que o MP poderá propor a suspensão condicional do
processo, dando corpo a uma faculdade a ser exercida pelo Parquet
no interesse público de repressão à criminalidade e de efetivação da justiça
concreta.
Para
melhor compreender a extensão do problema e melhor responder à pergunta formulada,
dando a exata exegese dos arts. 76 e 89 da Lei n.
9099/95, deve-se apreciar uma circunstância histórico-legislativa que a
precedeu, qual seja, a extensa discussão doutrinária e jurisprudencial que se
implantou nos meios forenses a respeito do sentido do verbo “poder”, usado, por
exemplo, no art. 77 do Código Penal e no art. 156 da LEP, que se referem ao
sursis, bem como no art. 121, §1º, do CP, que cuida do homicídio privilegiado.
IRAHY
BAPTISTA DE ABREU é de opinião de que “Seria insultar a inteligência dos que a
redigiram entender que erraram na utilização do verbo, mesmo após a conhecida
discussão sobre a utilização dele no lugar do ‘deverá’. Se na elaboração do
estatuto processual penal vigente, essa divergência podia ter lugar, impossível
aceitar que, hodiernamente, alguém ainda se utilize do
‘poderá’ com o sentido de ‘deverá’, mesmo sabendo da pendência doutrinária e
jurisprudencial que grassou nessa matéria” (op. cit.,
p. 206).
Depois
desse longo e cansativo debate, firmou-se o entendimento de que onde a lei
disser “pode”, o jurista ou exegeta lerá “deve”, por tratarem tais casos
de direitos subjetivos dos réus. Todavia, tal posicionamento parece-nos
inteiramente equivocado, e ainda hoje há quem o conteste, insurgindo-se contra
essa injustificável limitação ao livre convencimento do magistrado, e
assegurando que o sursis é instrumento de individualização da pena, deferido ao
juiz.
DAMÁSIO
E. DE JESUS, em
seu Código Penal Anotado (São Paulo: Saraiva,
1998, 8ª edição, p. 224), quanto à natureza jurídica do sursis do art. 77 do
CP, ensina que “O instituto, na reforma penal de 1984, não constitui mais
incidente da execução nem direito público subjetivo de liberdade do condenado
(…). É medida penal de natureza restritiva da liberdade. Trata-se de forma da
execução da pena. Não é um benefício. Tem caráter sancionatório”.
E
continua, ensinando que a expressão “poderá”
empregada no caput do art. 77 e no 2º “deve ser interpretada no sentido de
que a lei confere ao juiz a tarefa de, apreciando as circunstâncias do caso
concreto em face das condições exigidas, aplicar ou não a medida. Assim, ele
‘poderá’, diante do juízo de apreciação, aplicar o sursis se presentes os
requisitos; ou ‘poderá’ deixar de fazê-lo, se ausentes”.
A
propósito, veja-se o que estatuem os §§3º e 4º do art. 89 da Lei n. 9099/95, a
respeito da revogação da suspensão do processo. Cuidam os parágrafos,
respectivamente, da revogação obrigatória e da facultativa.
Quanto
à primeira (obrigatória), o legislador usou a expressão determinante “será
revogada”. Referindo-se à segunda forma de revogação (a facultativa), valeu-se
dos termos “poderá ser revogada”. Com tal redação, ficou evidenciada a intenção
do Parlamento de criar uma obrigação (vinculação) e uma faculdade
(discricionariedade) para o juiz; e mostrou-se que o legislador fez o uso
corrente da língua portuguesa, nela não inovando.
Por
que, então, no caput do mesmo artigo 89, o legislador agiria diferentemente no
trato com o idioma pátrio? Se usou os verbos “poderá
propor” é porque quis significar facultatividade, que se confirma no poder
conferido ao juiz, nos mesmos moldes, de revogar ou não a suspensão
condicional, na forma do §4º desse cânone.
Se
não for admitida essa simetria vernacular, que afirma
a discricionariedade do Ministério Público (e, por outra via, valoriza a
independência e o livre convencimento do juiz), deve-se concluir que, por força
da isonomia, a acusação pública tem direito subjetivo à revogação da suspensão,
nas hipóteses do §4º do art. 89. Ou seja, o juiz estará obrigado a revogar a
suspensão se o acusado vier a ser processado no curso do prazo por contravenção
ou se o acusado descumprir condição imposta.
Seguindo-se
esse raciocínio (que busca somente ressaltar o absurdo do entendimento que
transforma o “poder” em “dever”), toda revogação será obrigatória, não haverá
revogação facultativa, por surgir sempre um direito subjetivo do Ministério
Público à revogação.
Da
mesma forma, a expressão “poderá especificar outras condições”, prevista no §2º
do art. 89 resolver-se-á em dever, vale dizer, o juiz estará sempre obrigado a
especificar condições adicionais para a suspensão. Não se trataria, pois, de
uma faculdade judicial, mas de um dever cujo cumprimento pode ser exigido pelo
Ministério Público, como titular de um outro direito subjetivo, lendo-se ali,
para a satisfação dos alquimistas do Direito, que o juiz “especificará” outras
condições.
E
aí merece crítica o respeitado professor LUIZ FLÁVIO GOMES. Sustenta
ele que o verbo “pode” no caput e no §1º do art. 89 da Lei n. 9099/95 é
“deve”, ao passo que o “pode” do §2º, do mesmo artigo, é “pode” mesmo! Em sua multicitada obra (p. 181), diz o acatado jurista que “O
juiz, conforme o caso concreto, especificará ou não
outras condições. É uma faculdade”. Ora, por uma mera questão de bom senso e
simetria, deve-se concluir que onde o legislador valeu-se do “pode” estava
criando mesmo uma faculdade. Ademais, como faria o Parlamento se quisesse (como
quis) criar uma faculdade ao Ministério Público, senão usando o polêmico verbo?
Evidentemente,
tudo isso é absurdo e só serve para reclamar a atenção dos doutrinadores que
vêm sustentando esse teorema bizarro, que transfigura uma coisa noutra sem a
menor cerimônia, retirando as pétalas de lógica da “última flor do Lácio”.
A que vêm tais assertivas? A
resposta é simples. Vêm reafirmar que a LJE, ao dispor que o Ministério Público
“pode”, está dizendo que “pode” mesmo, i. e., está
atribuindo uma faculdade a essa instituição. E não poderia ser diferente. A
ilustre comissão de juristas que participou do processo de gênese da Lei n.
9099/95 não deixaria de atentar para uma situação tão óbvia. Certamente, todos
aqueles que contribuíram para o exsurgimento da LJE
tinham conhecimento dessa tortuosa questão vernacular
e não dariam ensejo a uma nova e inútil polêmica.
Se
tais estudiosos (Ada Pellegrini Grinover, Antônio
Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes,
entre outros) permitiram que na redação dos arts. 76 e 89 permanecesse o verbo “poder”, é porque era isso
mesmo o que pretendiam regular: uma faculdade, uma possibilidade, uma
autorização para propor ou não.
Tal
realidade mostra-se com mais força quando se lembra que o projeto final foi
fruto de um longo e amplo debate entre diversos atores jurídicos, sempre tendo
como ponto de partida institutos similares no Direito Comparado.
Seria
suficiente dizer que in claris cessat
interpretatio, pois não se tem nos arts. 76 e 89 uma zona cinzenta. O legislador foi claro.
Diria “proporá”, e não “pode propor”, se o quisesse. Mas não o quis. Por isso
não há campo à ambigüidade. Segundo o professor J. J. CALDEIRA BASTOS somente
as “zonas cinzentas” da legislação justificam as inúmeras divergências
doutrinárias e jurisprudenciais detectadas no sistema. E pergunta: “Caberia no entanto perguntar que gênero de palavras usam os
analistas da linguagem? Por que pretendem que suas explicações podem tudo
aclarar, recusando porém a mesma chance aos órgãos legiferantes?”.
Parece-nos
então que chegou a hora de dar razão ao legislador.
Não se pode recorrer a uma ficção contra a língua portuguesa (que afinal é o
idioma no qual devem ser escritos os textos legais, conforme o art. 13, caput,
da Constituição) para extrair da norma um sentido (e um valor) que ela não tem.
Verdadeiramente, o que quiseram comunicar os legisladores? O que quiseram dizer
quando usaram o verbo “poder”? Valeram-se do sentido usual da palavra,
sem dúvida, e não daquele que resulta de uma interpretação jurisprudencial
longeva e incongruente. Pensar o contrário, data venia,
é estuprar o idioma.
Ora,
o verbo “poder” tem apenas um sentido corrente. É unívoco e não plurívoco. Por mais respeitáveis que
sejam as opiniões que tentam extrair da lei um significado oculto, supostamente
acessível apenas aos letrados, é difícil explicar ao homem comum (aquele a quem
a lei se dirige) que o que se lê, não é o que se quis dizer. Talvez
somente o amor à polêmica justifique o entendimento tortuoso, que contribui
para criar um imenso abismo entre a teoria e a prática e para distanciar o
homem comum das vestais e dos sacerdotes do Direito.
Como
na antiga Igreja das verdades ocultas e dos dogmas insolúveis, não se fala
português. Entre os juristas, fala-se certamente o latim ou, pior, um dialeto
qualquer ou um bizarro patois, contextualizando uma
linguagem jurídica complicada e inacessível, quando o que a sociedade exige é
simplicidade e objetividade e não hermetismo.
Para
onde vai o Direito, se continuar a trafegar por estradas tão sinuosas, mesmo no
que é simples? Certamente para o abismo já referido, onde acabará por se
destroçar, porque inacessível aos que andam pela planície. A lei não é feita
para o deleite dos juristas, mas para o povo, e é também essa a Justiça que se
quer.
Afinal,
em que se fundamenta a mágica de transformar o “pode” em “deve”? Não se sabe.
Trata-se certamente de um desses mistérios insolúveis do mundo. Uns argumentam,
sem razão, que decorre da aplicação da teoria da despenalização,
que é absolutamente aceitável, para delitos de bagatela, mas não explica a
transubstanciação verbal.
O
que resulta do sistema da nova LJE em cotejo com o art. 129, inciso I, da
Constituição Republicana, é a certeza de que os institutos dos arts. 76 e 89 representam instrumentos de política criminal
a serem manejados pela Justiça Pública. A pergunta é: quem pode manejá-los? O
Ministério Público. Não adianta construir no vazio, elocubrar
sobre o nada, criar artifícios, para refutar essa realidade. O que deve fazer o
intérprete?
“Não
lhe compete, por impossível, arrancar das palavras sentidos ontológicos que no
fundo, isto sim, lhe são fornecidos pela vontade final de quem se encontra
eventualmente no exercício do poder de ação, de decisão. Não lhe cabe esboçar
teorias dogmáticas substitutivas da realidade jurídica desagradável a seus olhos”. (J. J. CALDEIRA BASTOS, op. cit., p. 64).
VOLNEI
CARLIN, citado por JOÃO JOSÉ CALDEIRA BASTOS (op. cit., p. 30), conclui que “Em síntese, o direito deve
adaptar-se aos fatos. Para tanto, aconselhável se examine, também, a origem, o
alcance e a finalidade da lei, sempre diante da simples exigência do realismo”.
Adaptemo-nos, todos, aos fatos, portanto.
5.
Origens do instituto e a posição do parquet
Mas
alguns podem objetar que “a letra mata, e o espírito vivifica”, para sustentar
que a interpretação gramatical do texto legal nem sempre é a melhor, e que se
deve buscar o “espírito” da norma. Também aí ter-se-á
uma resposta indicativa de que se trata de poder discricionário (mas não
absoluto, nem arbitrário) do Ministério Público. E, para isso, basta lembrar
que a lei colheu inspiração no princípio do consenso entre as partes
processuais.
Para
melhor abordagem do tema, é válido que busquemos em FERNANDO DA COSTA
TOURINHO FILHO (in Processo Penal, São Paulo: Saraiva,
20a. edição, 1998, p. 167/168) algumas notas quanto à interpretação das normas.
Segundo
o ilustre professor, a interpretação gramatical: “é a que se inspira no
próprio significado das palavras”. E serve ao nosso entendimento, ao citar
FENECH: “em casos de dúvida entre os vários significados de uma frase ou
palavra, o intérprete gramatical deve aceitar o significado comum (significatio vulgaris), salvo se
puder demonstrar um uso lingüístico especial (significatio
particularis)”.
Já
na interpretação lógica, busca-se “precisar a genuína finalidade da lei, a vontade nela manifestada”. No caso proposto, a
genuína finalidade da lei é a de promover o consenso e de mitigar o princípio
da obrigatoriedade.
Na
sistemática, “o intérprete deve colocar a norma em relação com o conjunto
de todo o Direito vigente e com as regras particulares de Direito que têm
pertinência com ela”. Pode-se, inclusive “lançar mão da analogia e
dos princípios gerais do Direito”. (p. 169). É o que se tem feito em
relação à Lei n. 9099/95, posta sob o pálio da Constituição Federal e em cotejo
com os princípios do sistema acusatório, entre nós adotado.
Analogia
“é um princípio jurídico segundo o qual a lei estabelecida para um
determinado fato a outro se aplica, embora por ela não
regulado, dada a semelhança em relação ao primeiro. Supõe, como diz Maggiore: a) a falta de uma disposição precisa no caso a
decidir; b) a igualdade de essência entre o caso a decidir e o caso já
regulado” (p. 173). As semelhanças das hipóteses tratadas levam à
aplicação analógica do art. 28 do CPP aos casos de recusa ministerial a uma
proposta de transação lato sensu.
Da
aplicação conjunta dessas técnicas interpretativas, surge,
realçado, um dos princípios inspiradores da lei sob comento: o da consensualidade, que inaugurou no Brasil a justiça penal
pactuada, tal como já existe nos Estados Unidos, com o instituto da plea bargaining (bargain é negociação).
A
plea bargaining
consiste numa transação que abrevia o processo, eliminando a colheita da prova,
suprimindo a fase de debates entre as partes. O agente do fato ilícito admite
sua culpabilidade, em troca de benefícios legais. O objetivo do instituto é
garantir a elucidação de crimes, assegurar uma rápida
punição aos autores de crimes e diminuir a carga de trabalho no Judiciário.
LUIZ FLÁVIO GOMES defende que a transação penal aproxima-se mais da guilty plea que da plea bargaining,
pois naquela há mera conformidade à pena proposta pelo acusador, quando o réu
declara-se culpado, ao passo que nesta há verdadeira barganha, com ampla
possibilidade de transação.
Segundo
ANTÔNIO JOSÉ FEU ROSA, a plea bargaining “consiste numa faculdade conferida pela lei
ao Ministério Público, permitindo-lhe fazer acordo com os réus, transigindo,
desistindo da ação penal e até mesmo conceder-lhes imunidade, para que
confessem detalhes de crimes, apontem cúmplices, chefes, planos, etc.” (in
Direito penal concreto).
Na
suspensão condicional do processo do direito brasileiro, o espaço reservado ao
consenso é limitado, cingindo-se apenas ao seguimento ou sustação do processo,
mediante certas condições.
Na
Itália, existe o patteggiamento, introduzido
no sistema processual penal em 1981, estando hoje previsto no art. 444 do
Código de Processo Penal, na seguinte forma:
“Art.
444. O imputado e o Ministério Público podem requerer ao juiz
a aplicação, na espécie e na medida indicada, de uma sanção substitutiva,
diminuída em até um terço, ou ainda de uma pena detentiva quando esta,
tomando-se em conta as circunstâncias e diminuída até em um terço, não supera
dois anos de reclusão ou detenção, só ou conjuntamente com a pena pecuniária”.
No
§6º prevê-se que “O Ministério Público, em caso de dissenso, deve enunciar as
razões”. Segundo CARLOS EDUARDO DE ATHAYDE BUONO e ANTÔNIO TOMÁS BENTIVOGLIO
(in A reforma processual penal italiana. São Paulo: RT, 1991, p. 89), “a
determinação do Ministério Público deve ser discricionária e não arbitrária, ou
seja, para negar o seu consenso devem existir razões válidas, que devem ser
externadas”.
Esses
dois institutos (plea e patteggiamento)
são os que mais se aproximam da idéia da suspensão condicional do processo
brasileira, que também estabelece uma faculdade ao Ministério Público.
O
art. 93 do Anteprojeto Frederico Marques previu uma espécie desse procedimento sumariíssimo:
“Art.
93. Ao invés de devolver o inquérito para novas diligências, antes de oferecer
denúncia, ouvir o indiciado, o ofendido e as testemunhas. O indiciado será
intimado para assistir aos depoimentos, que serão tomados sem a sua presença,
se deixar de comparecer”.
“§2º.
Ao ouvir o indiciado, poderá o Ministério Público propor-lhe a condenação
imediata em multa, segundo o previsto no art. 233, 1º e 2º”.
Parece-nos
apropriada a observação de CAIO TÁCITO de que “não é competente quem quer, mas
quem pode, segundo a norma de Direito”. E essa competência (ou atribuição, como
queiram), na LJE é do Ministério Público, como se vê da exposição de motivos do
projeto de lei. Em nota de rodapé, os autores do anteprojeto,
identificaram que “a lei não deve preocupar-se com a natureza da proposta do
MP, cabendo ao direito científico equipará-la, ou
não, à denúncia, na interpretação do princípio nulla poena sine judicio”,
dando mostras que admitiam a hipótese de ser a proposta, como é, um ato
privativo do Parquet, desde que identificada com a
denúncia criminal.
AFRÂNIO
SILVA JARDIM (in Os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade nos
juizados especiais criminais. Boletim IBCCrim
n. 48 – nov/96, p. 4), entende que ao propor a
transação penal do art. 76 o Ministério Público está exercendo a ação penal
pública, ficando claro “porque ao juiz é vedado fazer a proposta de aplicação
de pena”.
Segundo
o autor, essa interpretação teria a vantagem de superar a discussão sobre a
violação ou não do princípio nulla poena sine judicio,
acrescentando que “descabe dizer que o autor do fato tem direito subjetivo de
ser acusado da prática de uma infração de menor potencial ofensivo…”.
Quanto
à suspensão do processo, AFRÂNIO JARDIM reconhece que o art. 89 mitigou o
princípio da indisponibilidade, ao conferir ao MP a faculdade
jurídica de propor o sursis processual, sendo vedada a proposta ex officio, porque o juiz não pode dispor do direito de ação
que não é seu, não pode impedir que o titular da ação continue a exercê-la, nem
pode excluir o Parquet da relação processual trina.
6.
Direito de ação
A
exposição de motivos do anteprojeto da LJE faz referência também ao acolhimento
da tendência universal “no sentido da ampliação dos casos de disponibilidade da
ação penal”, pela adoção do instituto da suspensão condicional do processo,
inspirada no princípio da discricionariedade da ação penal.
DELMANTO,
no seu Código Penal Comentado, diz que “ação penal é o exercício do
direito subjetivo de pedir o pronunciamento jurisdicional para a aplicação da
lei penal a um caso concreto (CR/88, art. 5º, XXXIV, a, e XXXV). No caso do
Ministério Público há o poder-dever de oferecer denúncia na ação penal
pública.” (São Paulo: Renovar, 4ª edição, p.162).
DAMÁSIO
ensina que “Cabendo ao Estado o jus puniendi,
que não é ilimitado mas circunscrito aos fatos típicos
e que deve ser exercido nos termos da lei processual, fica ele investido no jus
persequendi, ou jus accusationis,
ou seja, no direito de ação que não é outro senão o direito à jurisdição. A
ação penal é assim o direito de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do direito
penal objetivo. O Estado-Administração ingressa em
juízo e exerce o direito de ação para obter o julgamento da pretensão
punitiva” (p. 65). “Em princípio toda ação penal é pública, pois é um
direito subjetivo público do titular perante o Estado-juiz”, de exigir a
prestação jurisdicional.
No
entanto, ZAFFARONI (Tratado de Derecho penal, tomo I,
p. 33) ensina que não se pode conceber que o Estado goze de um direito
subjetivo a incriminar condutas dos seus nacionais. “O Estado não tem um
‘direito’ a incriminar nem a apenar, mas unicamente o ‘dever’ de fazê-lo,
porque é um dever que surge de sua própria função, vale dizer, de sua própria
razão de existir” (apud Maurício Antônio Ribeiro Lopes, op. cit., p. 101).
Sendo
um dever de punir, mais natural se torna perceber que o Estado, por intermédio
do Ministério Público, tem o dever de prosseguir na ação penal, até final, caso
considere, por convicção jurídica, ou por razões de política criminal, que a
ação de determinado agente é socialmente reprovável e requer a imposição de uma
sanção limitativa do direito de liberdade. Em última análise, o MP estará
defendendo o direito subjetivo dos demais membros da sociedade de viver com
segurança e de ver respeitado o direito material penal, com a imposição de uma
sanção a quem violou a ordem jurídica.
Proibida
a autotutela ou autodefesa, abolindo a vingança
privada, surgiu para os particulares o direito de se dirigirem ao Estado para
reclamar a aplicação da sanção, compondo o conflito intersubjetivo de
interesses de natureza penal.
MIRABETE
(in Processo penal. São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 98), esclarece que o direito
de ação, ou “direito à prestação jurisdicional estende-se também ao Estado-Administração quando a este não é permitida a
auto-execução de determinados atos e funções, como ocorre, por exemplo, com o
direito de punir. O jus puniendi ou direito de punir,
que é de natureza administrativa. mas de coação
indireta diante da limitação da autodefesa estatal, obriga o Estado-Administração a comparecer perante o Estado-Juiz
propondo a ação penal para que seja ele realizado. A ação é, pois, um direito
de natureza pública, que pertence ao indivíduo, como pessoa, e ao próprio
Estado, enquanto administração, perante os órgãos destinados a tal fim” (idem,
p. 99).
Assim, a proposta de suspensão não é um direito
subjetivo do acusado, porque o particular que violou a lei penal não tem o
poder de exigir do Estado-Juiz a suspensão do processo sem o consenso e contra
a vontade do titular da ação penal, que é quem tem direito à manifestação da
jurisdição penal, para subordinar o interesse do autor do fato delituoso ao
interesse público estatal.
Não
se pode esquecer também o direito da vítima, ou de seus familiares, à
repressão, já que o Estado proibiu a vingança privada. Porque também há
imanente ao sistema um direito subjetivo à segurança, que está ligado ao
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Há, portanto, um dilema
a ser resolvido: liberdade versus segurança e bem-estar, que somente pode ser
solucionado, privilegiando-se o princípio acusatório, que segue o espírito da
separação dos poderes preconizada por MONTESQUIEU.
FAUZI
HASSAN CHOUKR diz que “Colocar em prática este princípio significa, entre
outros pontos de importância, a separação nítida de papéis entre o acusador e o
julgador” de forma a garantir o delicado equilíbrio entre a liberdade
individual e a necessidade de repressão criminal (in Garantias constitucionais
na investigação criminal, São Paulo: RT, 1995, pp. 35/36).
Evidentemente,
por ocasião da análise dos institutos do art. 76 e 89 da LJE, não tem aplicação
o princípio do favor inocentiae, que dá origem ao in dubio pro reo. É ponto pacífico
que, na fase da denúncia, tal como na pronúncia nos feitos do tribunal do júri,
vigora o princípio in dubio pro societate.
Assim, o que o operador deve ter em mente ao propor ou não a suspensão é a
defesa social.
7.
Ação penal: oportunidade e obrigatoriedade
MAURÍCIO
ANTÔNIO RIBEIRO LOPES (in Princípio da oportunidade no sistema penal
contemporâneo. Justiça Penal 4. São Paulo: RT, 1997, p. 152), assinala que a
Lei n. 9099/95 mitigou o princípio da obrigatoriedade da ação penal “pela
paulatina introdução do princípio da oportunidade através da discricionariedade
regrada da atuação do Ministério Público”.
Essa
instituição ganhou grande relevo no sistema constitucional que adveio da Carta
de 1988; assumiu um novo perfil e adquiriu elevado status constitucional. Daí
MAZZILLI conceituar o Ministério Público como “órgão do Estado (não do governo),
dotado de especiais garantias, ao qual a Constituição e as leis cometem algumas
funções ativas ou interventivas, em juízo ou fora
dele, para a defesa de interesses da coletividade, principalmente os
indisponíveis e os de larga abrangência social” (in Regime jurídico do
ministério público. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 2).
Também
assim se deu com a LJE, que cometeu ao Parquet uma
nova função ativa, a de transacionar na ação penal pública, na defesa dos
interesses da coletividade.
É
sabido que são princípios da ação penal púbica:
a)
a oficialidade, pois a ação só pode ser proposta pelo Ministério Público, que é
o órgão oficial (CF, art. 129, I).
b)
a obrigatoriedade (legalidade, necessidade), pois o Ministério Público está
obrigado a propor a ação penal, desde que estejam presentes os pressupostos
necessários à sua instauração, salvo nos casos de transação. Opõe-se ao
princípio da oportunidade, que segue a regra minima
non curat praetor.
c)
a indesistibilidade, pois o Ministério Público não
pode desistir da ação penal já proposta.
d)
a privatividade, pois, somente havendo inércia do
Ministério Público, é que a ação poderá ser iniciada por queixa-crime
subsidiária.
Há
bastante tempo JOSÉ FREDERICO MARQUES, lembrando Euclides Custódio da Silveira,
já admitia que o art. 28 do CPP mitiga o princípio da obrigatoriedade da ação
penal, por fazer referência a “razões invocadas”. Não esclarecendo que “razões”
são essas, o CPP abre caminho para pedidos de arquivamento por considerações de
oportunidade ou conveniência ou insignificância, que, podem ser acolhidos pelo
juiz ou pelo Procurador-Geral de Justiça (in Elementos de direito processual
penal, vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 338/339).
MIRABETE,
em seu CPP
Interpretado (São Paulo: Atlas, 5ª edição, p. 66) assevera
que o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública “sofreu
atenuação, em termos constitucionais, ao prever-se a conciliação e transação mas infrações penais de menor potencial ofensivo, a serem
apreciadas por juizados especiais (art. 98, I, CF)”. Trata-se de uma
exceção ao princípio da obrigatoriedade, abrindo-se campo ao exame da
oportunidade e ao exercício da disponibilidade.
Quanto
à ação penal, o modelo da conveniência, baseia-se no brocardo minima non curat
praetor, que tem relação com o princípio da
insignificância, que leva à disponibilidade da ação. Tal princípio opõe-se
àquele ora adotado em
alguns Estados e cidades norte-americanas,
notadamente Nova Iorque, que busca o full enforcement, manifestando “tolerância zero” às infrações
penais, mesmo as de menor potencial ofensivo.
MAURÍCIO
ANTÔNIO RIBEIRO LOPES, adepto do sistema da oportunidade, faz severa crítica ao
princípio da obrigatoriedade, assinalando a hipocrisia de sua adoção rigorosa.
Assegura o referido autor, apoiando-se na exposição de motivos da Lei n.
9099/95, que “Na prática, operam diversos critérios de seleção informais e
politicamente caóticos. Não se desconhece que, em elevadíssima percentagem de
certos crimes de ação penal pública, a polícia não instaura o inquérito, o
Ministério Público não oferece a denúncia, esse mesmo órgão e o juiz agem de
modo a que se atinja a prescrição” (in Direito penal, estado e constituição,
São Paulo: Boletim IBCCrim,
1997, p. 157).
E
isso é a mais pura e cristalina verdade. Na maior parte dos casos, é a Polícia
Judiciária que dispõe da ação penal, “porque sempre esteve em vigência
clandestina o princípio da oportunidade, mas sem qualquer controle da
discricionariedade e fragmentado pelos diversos órgãos de atuação estatal, desde
a polícia até o Poder Judiciário” (idem).
“Mesmo
na França, onde a ação penal é sempre pública, o Procurador
da república podem quando julga infundada a notitia
criminis, classer
sans suite (deixar de
iniciar a ação penal), e, como diz Vitu, le classemente sans suite est
une mesure d’administration et
non un acte
judiciare“.
Assim,
ao exercer as atribuições cometidas ao órgão pelo art. 28 do CPP (mesmo em
aplicação analógica), o Procurador-Geral do Ministério Público, não está
praticando ato jurisdicional, mas recusando-se a exercer o direito de ação,
numa legítima opção administrativa.
O princípio da obrigatoriedade jamais foi e jamais
poderá ser levado às últimas conseqüências, como pretende a doutrina filiada à
corrente do direito penal máximo, porque há toda uma gama de infrações penais
que não são conhecidas, outras que, mesmo conhecidas pelas vítimas, não são
comunicadas à Justiça e ao aparelho de enforcement, e
outras ainda que, mesmo conhecidas pelo Estado, não são apuradas ou punidas,
constituindo o que se denomina “cifra negra”.
Daí
é porque o princípio da oportunidade vem-se impondo naturalmente, ganha agora
foros de legalidade e assoalho constitucional e assume corpo de instituto de
direito, traduzindo-se num instrumento da nova política-criminal, superador
do sistema da justiça penal conflitiva.
8.
Sistema acusatório
Segundo
GARCIA VELASCO, a pedra de toque do sistema acusatório, entre
nós acolhido, é sempre a nítida e rígida separação das figuras do
acusador e do julgador.
A
Constituição Federal adotou o sistema acusatório, em que há diversidade de
órgãos de acusação e julgamento, banindo desta forma o sistema inquisitivo.
É
conseqüência do primeiro sistema que só o MP tem atribuição para emitir juízo
de valor sobre as diligências realizadas pela autoridade policial, por ser o
destinatário de toda a prova colhida pela Polícia Judiciária. O juízo
jurisdicional (por assim dizer) será emitido pelo magistrado ao cabo da
instrução criminal, vale dizer, ao final do processo penal.
O
processo de tipo inquisitório é a antítese do acusatório. Não existe o
contraditório, estando afastada a regra da igualdade processual. As funções de
acusar, defender e julgar concentram-se na pessoa do
juiz, admitindo certas variações, que, no entanto, terminam por comprometer a
imparcialidade do juiz.
A
propósito, MAURÍCIO ANTÔNIO RIBEIRO LOPES aduz que “O corolário fundamental da
dignidade da pessoa humana como pressuposto do Estado Democrático encontra
retaguarda na preservação dos interesses individuais e sociais contra o
arbítrio estatal, e por isso mesmo, uma intervenção que deve ser, antes de mais
nada, legalizada. (…) A pena estatal deve ser controlada pelas regras-princípios de imparcialidade e do devido processo
legal, como método garantidor dessa imparcialidade” (op. cit., p. 194).
É
para atender a esse imperativo que se deve garantir a privatividade
da ação penal a cargo do Parquet, liberando o juiz de
funções acusatórias ou com ela relacionadas.
“A
iniciativa da ação penal é do Ministério Público, mediante o oferecimento da
denúncia, e não pode o juiz obrigá-lo a oferecê-la, mas apenas cabe adotar as
providências previstas no art. 28 do CPP e atender, como é o caso, à
determinação contida na parte final do mesmo dispositivo. O Ministério Público
tem o poder de ação, no campo processual, e o juiz ou o tribunal, o poder
jurisdicional. O exercício deste depende da iniciativa daquele” (STF in RT
629/384).
Ilustra
FAUZI HASSAN CHOUKR:
“Muito
embora tenha o CPP fortes ares autoritários, nesse ponto (o do art. 28)
privilegiou o modelo acusatório, quase que na sua pureza, vez que coloca nas
mãos do titular da ação penal pública a derradeira manifestação sobre a
oportunidade ou não de exercitá-la”. Continua o ilustre autor em nota a
informar que “Na verdade, a fórmula do art. 28 do CPP acabou por ser entendida
como aplicável a outras hipóteses sempre que houver conflito entre o julgador e
o membro do parquet sobre a oportunidade ou não da
atuação funcional deste último. Eis o fruto máximo da separação institucional
da Magistratura e do Ministério Público, entendendo-se dentro da linha exposta
que cabe ao MP dizer nesses momentos se sua atuação é ou não devida” (op. cit., p. 67).
Adotou-se
no Brasil também o princípio da inércia da jurisdição. Na exposição de motivos
do CPP em vigor, fica clara essa opção como imanente ao sistema:
“V
– O projeto atende ao princípio ne procedat judex ex officio, que, ditado pela evolução do direito judiciário
penal e já consagrado pelo novo Código Penal, reclama a completa separação
entre o juiz e o órgão da acusação, devendo caber exclusivamente a este a
iniciativa da ação penal”.
Os princípios acusatório
e da inércia jurisdicional têm relações com o princípio do contraditório, que
se consubstancia no brocardo audiatur et altera pars, segundo o
qual a parte contrária deve ser sempre ouvida. Os alemães identificam-no com o
“onde não há acusador, não há juiz”.
Daí
decorre o ne eat judex ultra petita partium, isto é “o juiz não pode dar mais do que foi
pedido, não pode decidir sobre o que não foi solicitado”. Nem mesmo nos
Juizados Especiais, este princípio fica ameaçado, pois os objetivos de
celeridade, informalidade e economia processual não se sobrepõem àquela
garantia constitucional.
Por tudo isso, admitir a proposta transacional
excluindo-se o Ministério Público é quase como querer revigorar a Lei n.
4611/65, que autorizava a instauração da ação penal por portaria de autoridade
policial ou judicial e furta-se ao reconhecimento do princípio da independência
ministerial, citado por MIRABETE, segundo o qual “o membro do Ministério
Público não fica, no processo, sujeito a ordem de ninguém”.
Sendo titular da pretensão punitiva do estado quando esta é levada a juízo, não
se afasta o MP do dever de defesa da ordem jurídica e da qualidade de seu
fiscal.
9.
Uma nova mentalidade
ADA
PELLEGRINI GRINOVER et alli
(op. cit., p. 125), explicam
que a proposta de suspensão condicional ex officio
“faz tabula rasa do princípio da aplicação consensual da pena e violenta a
autonomia da vontade do acusador”, que sempre poderá interpor recurso, ficando
assim prejudicados os objetivos da lei: celeridade, informalidade, economia
processual.
“Mesmo
para a transação posterior ao oferecimento da denúncia, permitir que o juiz
homologue uma transação , que elimina ou suspende o
processo, contra a vontade do Ministério Público, significa retirar deste o
exercício do direito de ação, de que é titular exclusivo, em termos
constitucionais. Mesmo porque o direito de ação não se esgota no impulso
inicial, mas compreende o exercício de todos os direitos, poderes, faculdades e
ônus assegurados às partes ao longo de todo o processo” (idem, p. 126).
Não
é recomendável que os operadores do Direito deixem perpetuar-se
concepções do velho Direito Penal e Processual Penal. Dizemos melhor: devemos
todos nos curar dos maus vezos da arcaica dogmática, que privilegia o conflito
e menospreza o consenso.
Revolucionou-se
o sistema. O Direito está sempre em processo de transformação. Agora, antes do
conflito, do embate e do entrechoque de opiniões e teses, é possível a
conciliação entre as partes, permite-se que se evitem as agruras do processo
penal (difícil para ambos os atores processuais), mediante o acordo das partes,
cada um cedendo um pouco de seus direitos, para o aperfeiçoamento de um pacto
que atenda aos interesses recíprocos.
Dessa
revolução nos fala LUIZ FLÁVIO GOMES (in Suspensão condicional do processo. São
Paulo: RT, 1995, p. 7), referindo-se à quebra da inflexibilidade do princípio
da obrigatoriedade da ação penal pública, instituindo-se o princípio da
oportunidade, abrindo-se campo ao consenso.
Na
nova feição pactuada e consensual desses ramos, que ora se inaugura no País, é
necessário abandonar antigos preconceitos e aceitar a nova realidade processual
instaurada pelos arts. 76 e 89 da Lei n. 9099/95,
delimitando-se um “espaço de consenso”, no qual o “pode” não é “deve”,
valorizando-se também o sistema acusatório e positivando-se a maturidade do
Ministério Público, como uma das instituições que maneja a política criminal e
não como mero autômato, que aplica rigorosamente regras preestabelecidas, sem o
mínimo juízo crítico.
Está
claro que o objetivo da Lei 9099/95 é diverso do sistema vigente até 1995. Há
um novo desiderato, a fenomenologia axiológica é inovadora, demandando uma
mudança conceitual, inclusive no que pertine aos ônus
e poderes atribuídos às partes e especialmente ao Parquet,
à vista de seu novo perfil constitucional.
Essa necessidade de recolocação institucional do
Ministério Público, como ente de defesa da legalidade e dos interesses sociais,
é registrada por FAUZI HASSAN CHOUKR, ao referir que o Código-Modelo para a Ibero-América “trabalha com um modelo acusatório para o
processo penal, sendo que a condução das investigações cabe ao Ministério Público,
que valoriza o acervo informativo com supremacia no que tange à etapa
pré-processual, bem como no momento do arquivamento ou propositura da ação
penal” (in Garantias constitucionais na investigação criminal, São Paulo:
RT, 1995, p. 51), acrescendo que “nas hipóteses de arquivamento sem a
concordância do julgador, o controle do pedido de inação será feito na
modalidade hierárquica”.
Se
o Ministério Público é a instituição encarregada da defesa da ordem jurídica,
do regime democrático e dos interesses difusos, coletivos e individuais
indisponíveis, sendo titular privativo da ação penal pública, é conseqüência
lógica a necessidade de poder participar da administração da Justiça Penal de
forma autônoma. Afinal, o Parquet é essencial à
função jurisdicional do Estado. Por isso é que poderá a Instituição Ministerial
atuar como executora e planejadora de política criminal e garantidora da
segurança pública (na qual se inclui a primeira).
LUIZ
FLÁVIO GOMES, em sua bem-sucedida monografia (op. cit., p. 126), já reconhecia que o Ministério Público “é um dos
grandes responsáveis por essa política” (a criminal).
Segundo
o juiz WALTER FANGANIELLO MAIEROVITCH, a política criminal “é tida como a
ciência e a arte da prevenção e da repressão dos ilícitos. A adoção de uma
deficiente política criminal compromete a defesa social”. Deve-se pois eleger prioridades e estabelecer estratégias de persecussão, buscando eficiência dos resultados, tarefa da
qual também participa o MP.
FEUERBACH
define-a como “o conjunto dos procedimentos repressivos através dos quais o Estado reage contra o crime”. O Estado-Ministério
Público insere-se no conceito.
10.
Aplicação analógica do art. 28, do cpp e privatividade da ação penal pública
É
pelas razões elencadas no tópico anterior que ADA PELLEGRINI
GRINOVER et alli (op. cit., p. 126), propugnam uma
solução que respeita os princípios constitucionais atinentes ao Ministério
Público e a autonomia da vontade:
“Consiste
ela na aplicação analógica do art. 28 do CPP. Considerando
improcedentes as razões invocadas pelo representante do parquet
para deixar de propor a transação – e essas razões devem ser necessariamente
manifestadas, em respeito ao princípio constitucional da motivação do ato
administrativo (…) -, o juiz fará a remessa das peças de informação ao
Procurador-Geral, e este poderá oferecer a proposta, designar outro órgão do
Ministério Público para oferecê-la, ou insistir em não formulá-la”.
O
STJ, no julgamento do recurso especial n. 155.426/SP (5ª Turma, Rel. Min. Félix Fischer, j. 17.02.98, unânime), encampou a
aplicação analógica do art. 28 do CPP, ao decidir que:
“I
– Incumbe ao Ministério Público a proposta de
suspensão condicional do processo (…), não podendo em princípio ser esta
realizada pelo julgador.
II
– Na hipótese de divergência entre juiz e promotor acerca da oferta da
suspensão, os autos devem ser, por aquele, encaminhados ao procurador-geral de
justiça.
III – Recurso conhecido e provido”.
A
aplicação analógica do art. 28 do CPP, em caso de recusa ministerial, vem ganhando
adeptos na doutrina e vem traçando curso nos tribunais. Na obra coletiva
Juizados especiais criminais, já citada (p. 211), que teve a
participação de LUIZ FLÁVIO GOMES, lê-se que a suspensão, “de modo algum
poderia ser concebida sem a transação explícita do órgão acusatório. A solução
para a recusa injustificada está no art. 28 do CPP, portanto”.
Segundo
EDUARDO ARAÚJO DA SILVA (in Suspensão condicional do processo: impossibilidade
de concessão ex officio. Boletim IBCCrim n. 49 – dez/96, p. 4), a aplicação analógica
do art. 28 do CPP, em caso de divergência entre acusador e julgador, é a saída
que o próprio sistema processual oferece para a colmatação
da lacuna da lei especial.
Além de assegurar ao acusado uma espécie de “duplo
grau” de natureza extrajudicial, a apropriação do art. 28 do CPP à Lei n.
9099/95 tem a vantagem de permitir à Administração Superior do Ministério
Público “traçar uma política de persecução criminal da instituição, em relação
às propostas de suspensão do processo, visando a orientar os promotores de
justiça para uma atuação harmônica”, de forma a evitar o draconianismo
ou a leniência de um ou outro de seus membros.
À toda evidência, tal política criminal a cargo do Parquet, situa-se na seara do mérito administrativo.
Como
nós, o referido autor propugna que a suspensão condicional do processo é poder
discricionário do MP, e não direito público subjetivo do acusado, não podendo o
Judiciário “adentrar a análise do mérito do entendimento ministerial, sob pena
de (…) ofender a separação dos poderes”.
O
artigo 28 do CPP pode ser aplicado, também, sempre que o MP recusar a proposta
e o juiz acolher a manifestação ministerial, persistindo o interesse do acusado
ao acordo. Neste caso, poderá o réu pedir a remessa dos autos ao Procurador-Geral
para que mantenha a recusa ou propicie a proposta, mantendo-se, assim, a
garantia de um processo de partes e a efetividade do contraditório, em
benefício do próprio acusado e da imparcialidade do julgador.
Chega-se
assim a um consenso. A transação e a suspensão condicional são atos inter partes. A função do juiz é a de mediar o acordo,
presidindo uma fase conciliatória no processo penal, sem qualquer outra
iniciativa senão a de homologar ou não o acordo, já que se a ação penal é
indisponível para o MP, com mais razão o é para o juiz. As partes é que cedem,
fazendo concessões recíprocas. No caso do MP, a concessão é a desistência da
imposição de uma sanção condenatória privativa de liberdade ou de outra
natureza (no mínimo é o direito a um provimento de mérito que aprecie a
demanda). Já o acusado renuncia, em certa medida, ao direito à ampla defesa,
pois assume de logo obrigações e sujeita-se a uma
conseqüência de ordem civil (a necessidade de reparação do dano, caso
existente).
Veja-se
sempre, na pista dos melhores doutrinadores, que os novos institutos da Lei n.
9099/95 sustentam-se sobre os princípios do consenso, buscando-se, sempre que
possível, um acordo. Daí não se entender que possa haver direito subjetivo do
acusado a tal acordo. Onde ficam o consenso, a
autonomia da vontade do órgão acusador, o princípio do contraditório, e a
isonomia, quando se pretende obrigar a parte pública a transacionar?
Esse
entendimento é contraditório e está em rota de colisão com os próprios
fundamentos do novo sistema político-criminal. Se a base do sistema é o
consenso, a execução da norma deve estar inspirada pelo mesmo princípio.
“Ora,
se a transação implica renúncia a algum direito, evidente que só as partes
podem dela participar, nunca o juiz, pois dele não se espera abra mão de algum
direito mas, sim, que apenas exerça a tarefa
jurisdicional, sob pena de estar impedindo que o Ministério Público exerça sua
função constitucional e legal de titularidade da ação penal pública” (IRAHY
BAPTISTA DE ABREU, op. cit., p. 205).
Se
o legislador tivesse a intenção de instituir outro legitimado ativo, além do
Ministério Público, para a proposta de suspensão, tê-lo-ia feito expressamente
no texto do art. 89, não teria usado a palavra “poderá” dirigida ao Parquet e teria estipulado com clareza o direito subjetivo
à transação em sentido lato.
As
contradições, que são inerentes ao sistema jurídico, não podem sobrepor-se a
ele, ainda mais se forem de origem corporativa. Caso tal ocorra, dá-se a
derrocada do arcabouço jurídico.
Todavia,
a ebulição doutrinária é compreensível, pois o que se tem na LJE é quase um
transplante. É natural que, num primeiro momento, os órgãos desse sistema
manifestem certa rejeição ao tecido novo que se implanta no corpo da ciência
penal brasileira. O remédio contra essa rejeição é disponibilizado pelo próprio
sistema jurídico: a pacificação dos conflitos interpretativos pela
jurisprudência, após serem recolhidos e assimilados todos os fatores e aportes
que influenciam o organismo da justiça pactual.
“Texto
de lei, depois seu espírito, e ainda a vontade coletiva, a consciência social,
a ideologia do momento, os novos hábitos e concepções, definitivamente
incorporados aos genes valorativos do meio, assim como o próprio direito
natural positivo, conquista inalienável da humanidade, tudo é confrontado no
momento do veredicto” (J. J. CALDEIRA BASTOS, op. cit., p. 32).
O
mesmo autor, ao tratar da jurisprudência penal contra a lei, que muito temos
visto por aí, ensina que “A decisão contra legem
constitui fenômeno universal, observável em todas as áreas do direito. Aumenta
à medida que o texto legal se petrifica no tempo”. (op. cit., p; 35). Naturalmente,
tal não deveria ocorrer com a Lei n. 9099/95. A norma é nova, não havendo
motivo nem espaço para decisões tão díspares.
A
lei não é hieroglífica. É clara. Mas a dogmática penal e sua interpretação
clássica esgotaram-se; estão míopes e não têm mais fôlego para sobrevida diante
das transformações sociais que se apresentam. A facilidade de comunicação de bens,
produtos e conceitos, ficou favorecida pela
globalização, que é um fenômeno sócio-econômico de relevantíssimas
implicações jurídicas, gerando um sistema interativo de enormes proporções.
Os
valores que se apresentam em todo o mundo para a solução de controvérsias são
os do consenso. Basta ver o grande êxito dos juízos de conciliação e dos
tribunais de arbitragem, inclusive entre Estados, para se perceber que nasce
por toda parte um novo modo de resolução de conflitos. A mediação de conflitos
se sobrepõe ao comum de decisões impostas ou de violência explícita.
Já
se viu que é mitológica a idéia de que as sentenças judiciais, compondo a lide,
pacificam o meio social. Isto não parece ocorrer em nenhum dos processos que
temos visto. Sempre há alguém a reclamar contra a decisão judicial terminativa,
que sempre é uma imposição. Ora é o promotor de Justiça que critica a decisão
do magistrado, por não ter acolhido seu posicionamento; ora é o advogado que
desmerece o decisum por não ter feito a justiça
esperada. Raro é que ambas as partes estejam ou fiquem satisfeitas com a
decisão. Por isso, melhor sempre que haja acordo. Ou, ao menos, que haja a
possibilidade dele, não se criando mais uma imposição, tendo como destinatário
o Parquet.
O
que o Ministério Público “deverá” fazer sempre no sistema da LJE é
manifestar-se a respeito da suspensão do processo, quer a proponha, quer a
negue, pois aí estará atendendo à exigência legal de motivação de seus atos e
assegurando o direito subjetivo do acusado a uma manifestação oficial do
Estado-Ministério Público, negativa ou positiva.
Ninguém
é obrigado a compor, a efetuar tratativas, a firmar
acordos, ou a assinar pactos. Logo, se o princípio que inspira os institutos é
o do consenso (chegar ao consenso é dar aprovação a; concordar com; permitir;
estar em harmonia; ser conforme; anuir), não se pode falar que a proposta de
suspensão condicional do processo é uma obrigação do Ministério Público, quando
presentes os requisitos legais.
Imagine-se
a hipótese de o juiz impor à vítima a composição dos danos civis, alegando
suposto direito subjetivo público do acusado à não instauração da lide penal.
Ter-se-ia aí uma impossibilidade, que violentaria a autonomia privada. Mudem-se
os sujeitos e as circunstâncias e teremos também uma violência à autonomia do
Ministério Público.
Pensar
que só por ter sido iniciada a ação penal, está o juiz autorizado a propor a
suspensão processual é posição inconsistente. Basta perceber que só por sido
oferecida denúncia, não está o juiz autorizado a aditá-la para incluir co-réu,
qualificadora ou outro delito. A privatividade da
ação penal vai até aí. Ou melhor, vai além.
O
Ministério Público “é o agente da ação penal. Promove-a desde a peça inicial,
que é a denúncia, até os termos finais em primeira e segunda
instâncias. Acompanha-a, está presente em todos os atos, fiscaliza a
seqüência dos atos processuais; zela e vela pela observância da lei até a
decisão final” (in VICENTE DE AZEVEDO, Curso de direito judiciário penal, vol.
1, p. 195).
Por
outro motivo, não se admite a proposta ex officio. O
art. 5º, inciso LIII, da CF, estabelece que “ninguém será processado (…)
senão pela autoridade competente”, que, no caso das propostas transacionais, é
o Ministério Público. Daí decorre a ilegitimidade ativa de qualquer outro
indivíduo ou órgão para a propositura da suspensão, e a nulidade da ação na
qual tiver sido desatendido o devido processo legal.
Já
advertia MONTESQUIEU que a concentração de poderes em uma só pessoa conduz,
quase sempre, a excessos e ao arbítrio. E onde há arbítrio, não há liberdade. E
isso é o que pode resultar do acúmulo de funções de julgamento e de acusação
num só órgão, quebrando-se a absoluta separação de tais funções.
E
se o Ministério Público pode o mais (não denunciar ou não aditar a denúncia,
sem que o juiz nada possa fazer, senão enviar o processo ao Procurador-Geral no
primeiro caso), porque não poderia o menos (não propor a suspensão do
processo)?
Se
o juiz e o réu não podem obrigar o Parquet a pedir a
absolvição do segundo (direito subjetivo?), por que poderiam obrigar o
Ministério Público a oferecer a suspensão com a mesma alegação?
Enfim,
sustentamos que nos art. 76 e 89 da LJE se tem, sim, um poder discricionário do
Parquet, que representa uma mitigação do princípio da
obrigatoriedade da ação penal, previsto no art. 24, do CPP. Discordamos dos que
denominam tal faculdade de discricionariedade regrada, pois todo poder
discricionário é necessariamente limitado, taxativamente discriminado em lei.
11.
Ainda sobre a disponibilidade da ação penal pública
HELY
LOPES MEIRELLES ensina que poder discricionário “é o que o Direito concede à
Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos
administrativos com liberdade de escolha de sua conveniência, oportunidade e
conteúdo”. (in Direito administrativo brasileiro, São Paulo: Malheiros, 17ª
edição, p. 102).
O
princípio da oportunidade da ação penal é uma exceção ao princípio da
obrigatoriedade, que permite ao Parquet não agir
naqueles casos de mínima reprovabilidade ou escassa lesividade, bem como desistir da ação penal nos mesmos
casos e também naqueles nos quais houve o integral restabelecimento do status quo ante (como na devolução da coisa furtada), e naqueles
nos quais a prova tornou-se impossível.
Citamos, como exemplo que
reclama a aplicação do princípio da disponibilidade, o caso de uma ação penal
pública paralisada por mais de dez anos, na qual nem se fizera o interrogatório
do acusado. Iniciada a instrução, não se localizou nenhuma das quatro
testemunhas arroladas na denúncia de uma década antes. Naturalmente, ter-se-ia,
após a oitiva da testemunha da defesa, um non liquet. Por que prosseguir obrigatoriamente no processo?
Antes
da Lei n. 9099/95, o Ministério Público somente tinha duas opções: propor a ação
penal, quando houvesse justa causa (o que os norte-americanos denominam probable cause) ou pedir o arquivamento do inquérito
policial ou das peças de informação. Uma terceira opção (a devolução do
inquérito policial para novas diligências) fatalmente levaria a uma das duas
anteriores.
Depois
da Lei dos Juizados Especiais, quando se trata de crime cuja pena mínima é de
um ano, o Ministério Público tem, verdadeiramente, uma terceira opção: a de
propor a suspensão condicional do processo (ou a transação, em caso de crime de
bagatela). Eis a via alternativa aberta pela Lei n. 9099/95 no tormentoso mundo
processual penal, pela qual o Ministério Público dispõe da ação penal,
desistindo de uma sanção privativa de liberdade, para encerrar de logo o caso,
com o que LUIZ FLÁVIO GOMES (no tocante à transação) denomina de “condenação
imprópria”, por não haver discussão de culpabilidade.
Nenhum
poder é absoluto. Observe-se que realmente há um regramento nessa faculdade,
pois a lei exige que o Ministério Público proponha a ação, ou seja, é
necessário que haja a denúncia criminal concomitante à proposta de suspensão,
tudo sob controle judicial.
Ainda
que se admita em casos especiais a existência de um hiato entre a acusação
formal e o oferecimento da proposta, um ato é dependente e indissociável do
outro. A proposta de suspensão vincula-se à denúncia; e o recebimento desta é
pressuposto da eficácia daquela. Sendo assim, estando tão imbricados os
institutos, somente o legitimado ativo para a deflagração da ação penal, pode
oferecer a proposta incidental: “o Ministério Público, ao oferecer a denúncia,
poderá propor …”.
12.
O art. 129, inciso i, da cf, como garantia individual
Em
virtude das noções acima postas, afirma-se que tais atribuições (art. 76 e 89
da LJE) se inserem, sem dúvida, no âmbito da deflagração da ação penal pública,
que é privativa do Ministério Público, conforme o art. 129, inciso I, da
Constituição da República.
Embora
situada no capítulo reservado ao Parquet, a norma do
art. 129, inciso I, da CF não é uma garantia corporativa, mas verdadeiramente
de uma garantia do cidadão, irmã daquela que veda juízos e tribunais de
exceção, na medida em que garante a imparcialidade do juiz e o devido processo
legal, evitando também a titularidade difusa da ação penal, facilitadora de
verdadeiras vinditas processuais.
“Art. 129. São funções
institucionais do Ministério Público:
I – promover, privativamente, a ação penal pública
na forma da lei”.
Promoção
privativa é iniciativa exclusiva de alavancar a
jurisdição. Observe-se que tal promoção deve se dar na forma da lei. Ora, ao
instituir os juizados especiais e ao trazer ao sistema a possibilidade de
suspensão condicional do processo, previu o legislador uma nova forma, uma
forma especial, de promoção da ação penal, que confere ao legitimado ativo a
faculdade de transacionar com o acusado.
O
que se quer dizer é que o legislador, ao inovar no sistema, possibilitando a
suspensão condicional do processo, introduziu uma nova forma de exercício da
ação penal. Uma das manifestações da lei mencionada no art. 129, inciso I, da
CF, é a Lei n. 9099/95, cujo art. 89 deve ser apreciado em conjunto com a norma
constitucional, para de ambas extrair-se a
interpretação correta do instituto da suspensão condicional do processo: a de
que se trata de poder discricionário do Parquet.
Tudo
porque processo somente existe na medida em que a jurisdição é provocada, pois
é intrínseco ao sistema o princípio nemo judex sine actore.
Em matéria penal pública, a jurisdição só é provocada e o processo só se inicia
com a manifestação do órgão estatal de acusação: o Ministério Público,
permitindo ao juiz manter sua condição de imparcialidade.
Por
conseguinte, somente essa instituição (o Parquet) tem
o poder de pactuar sobre o seu direito de ação, inclusive para efeito da
suspensão do processo que está por se iniciar. Ao juiz é vedado firmar acordo
com direito que não lhe pertence (o de ação) sob pena de aproximar-se o
magistrado perigosamente da figura do inquisidor, tornando-se, a um só tempo, parte e julgador, ferindo garantia individual.
Sendo
o Parquet “instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado” na dicção do art. 128 da CF, não pode o juiz, no
exercício dessa função jurisdicional, excluir o Ministério Público do consenso,
substituindo-se a ele, impondo um acordo não desejado, traduzindo em nada essa
natureza essencial.
Ou
seja, se a lei infraconstitucional atribui uma faculdade ao MP, na esteira da
sua essencialidade constitucional, não há como desconhecer essa característica,
nem como desrespeitar a independência funcional de seus órgãos (art. 127, §1º,
da CF) e a própria autonomia do Parquet.
MAZZILI
adverte que “Dentro de um Estado democrático de direito, a independência do
Ministério Público não deve ser vista como mera abstração legal ou ficção
jurídica, mas como condição prática para o correto exercício de suas funções”
(in Ministério público: instituição e processo. Independência do ministério
público. São Paulo: Atlas, 1997, p. 104) e aponta como condições dessa independência
“as garantias a seu ofício (nas suas atividades-fim)”. Estas referem-se
à “autonomia do ofício exercido pelo Ministério Público em face de outros
órgãos estatais, especialmente em face dos governantes, legisladores e juízes”
(idem, p. 107). Vale dizer, o MP, no exercício de suas atribuições, sujeita-se apenas ao cumprimento da Constituição e das leis.
A
proposta ex officio também malfere o art. 129, §2º,
da Constituição, que proíbe o exercício das funções de Ministério Público por
pessoas estranhas à carreira ministerial (a reprovável figura do promotor ad hoc).
Ademais,
a função prevista no art. 89 da Lei n. 9099/95 decorre diretamente dos incisos
I e IX do art. 129 da Lei Magna, sendo essas possibilidades, de transação penal
e avença coetânea à
denúncia, compatíveis com a finalidade do MP.
13.
Uma abordagem à luz do direito administrativo
E
para que não haja dúvidas quanto à privatividade da
proposta de suspensão condicional pelo Parquet
deve-se lembrar que o Ministério Público, no sistema constitucional brasileiro,
integra o Estado-Administração.
Não sendo Estado-Juiz, nem Estado-Legislador, está, por exclusão, no âmbito da
Administração Pública, ainda que aí se situe de forma autônoma, constituindo um
órgão estatal anômalo.
Como
órgão da Administração, ao Ministério Público aplicam-se
os princípios que a regem, especialmente os do mérito administrativo. Não há
dúvidas de que a denúncia criminal é um ato administrativo que provoca o
exercício da jurisdição (ato judicial). Como ato administrativo, é uma
manifestação de vontade da Administração para o exercício de suas funções
acusatórias, com o objetivo de produzir um determinado efeito jurídico: a
aplicação de uma sanção penal.
Segundo
MIRABETE (in Processo penal. São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 316), “Analisando as
principais funções institucionais do Ministério Público, previstas na
Constituição, pode-se concluir que todas elas têm natureza administrativa”.
MAZZILI
(in O ministério público e a constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 44) concorda e pontifica que “pela
natureza intrínseca de suas funções, indiscutivelmente o Ministério Público
exerce atividade administrativa”.
FÁBIO
MEDINA OSÓRIO esclarece que “o Poder Judiciário, via de regra, não substitui a
discricionariedade da Administração Pública na prática de atos administrativos,
ainda que deste resulte algum prejuízo a terceiros” e que “essa vedação não
significa violação ao art. 5º, inc. XXXV, da CF” (in O consensus
na transação pena e suspensão condicional do processo penal: observações sobre
a lei n. 9099, de 26-09-95).
Isso
significa que o Ministério Público é livre, dentro de sua esfera de
competência, para decidir de acordo com o mérito administrativo, estando
limitado apenas pela legalidade.
Segundo
HELY LOPES MEIRELLES, o mérito administrativo consiste na valoração dos motivos
e na escolha do objeto do ato discricionário, “feitas pela Administração
incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência,
oportunidade e justiça do ato a realizar”. Esse conceito diz respeito à
valoração da eficiência, oportunidade, conveniência e justiça do ato.
Continua
o mestre, lecionando que no que se refere aos atos discricionários “a
Administração decide livremente, e sem possibilidade de correção judicial, salvo
quando o seu proceder caracterizar excesso ou desvio de poder. Em tais atos
(discricionários), desde que a lei confia à Administração a escolha e valoração
dos motivos e do objeto, não cabe ao Judiciário rever os critérios adotados
pelo administrador, porque não há padrões de legalidade para aferir essa
atuação” (op. cit., p. 138).
É
por isso que se permite ao Ministério Público, entre as possibilidades legais,
escolher a solução que melhor corresponda, no caso concreto, ao interesse
público. Ou seja, o Parquet ao praticar o ato
discricionário é livre dentro das opções previstas em lei quanto à apreciação
do mérito administrativo. E diz HELY: “entre praticar o ato ou dele se abster,
entre praticá-lo com este ou aquele conteúdo (p. ex: advertir, apenas, ou
proibir), ela (a Administração) é discricionária. Porém, no que concerne à
competência, à finalidade e à forma, o ato discricionário está tão
sujeito aos textos legais como qualquer outro”. (op. cit., p. 153).
Devemos
dizer que a abordagem de Direito Administrativo em matéria penal-processual
nada tem de aberrante, pois o Direito Penal e o Direito Administrativo são
ramos de uma mesma árvore: o Direito Público, sendo alimentados pela mesma
seiva jurígena. Ademais, a própria natureza da instituição titular
da ação penal pública exige a apreciação dos princípios da Administração, que
também a regem.
Não
é por outra razão que HELY LOPES MEIRELLES conceitua o
Direito Administrativo como o “conjunto harmônico de princípios jurídicos que
regem os órgãos, agentes e as atividades públicas tendentes a realizar
concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado”. (in Direito
administrativo brasileiro, São Paulo: Malheiros, 17ª edição, p. 29).
Diz
mais o conceituado publicista que “Do funcionamento estatal
só se afasta o Direito Administrativo quando em presença das atividades
especificamente legislativas (feitura da lei) ou caracteristicamente
judiciárias (decisões judiciais típicas)”. (op. cit., p. 30). Portanto, o funcionamento do
Ministério Público é também seu objeto de estudo.
É consabido que inspiram
o ato administrativo os princípios da oportunidade, economicidade, justiça, conveniência, que constituem o
mérito administrativo. Tratando-se de ato da Administração, o Poder Judiciário
não pode imiscuir-se em matéria de mérito, id est,
não pode examinar-lhe a oportunidade, a conveniência, a economicidade
e o conteúdo. Deve limitar-se exclusivamente a verificar sua legalidade.
Transportando
esse conceito administrativo para a análise do art. 89 da Lei n. 9099/95
ver-se-á que a denúncia e a proposta de suspensão condicional do processo são
também atos do Estado-Administração, que se regem
pelo mérito administrativo e pela legalidade. Assim, poderá o juiz rejeitar a
denúncia que se afastar dos critérios legais do art. 41 do CPP, bem como poderá
rejeitar a suspensão do processo que desatender as exigências do art. 89 da LJE
e do art. 77 do CP (legalidade). Estará então, como Estado-juiz, no exercício
legítimo da jurisdição. No entanto, se o magistrado pretender substituir-se ao Estado-Administração para propor a suspensão processual
estará muito próximo do arbítrio.
14.
Proposta transacional ex officio: quem suporta os
ônus do fracasso?
Segundo
MAURÍCIO ANTÔNIO RIBEIRO LOPES (in Direito penal, estado e constituição, São
Paulo: IBCCrim, 1997, p. 85)
diz que “O princípio da legalidade dos delitos e das penas não apenas exige o
como fazer, mas impõe também o é proibido fazer de outro modo”.
Logicamente,
somos nós que concluímos, não se pode obrigar o Ministério
Público a agir de forma diversa da que está prevista em lei, obrigando-o a
fazer acordo que não deseja.
O
mesmo autor, com apoio em JOSÉ AFONSO DA SILVA, define as normas como
“preceitos que tutelam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, ou seja,
reconhecem, por um lado, a pessoas ou a entidades a faculdade de realizar
certos interesses por ato próprio ou exigindo ação ou
abstenção de outrem, e, por outro lado, vinculam pessoas ou entidades à
obrigação de se submeterem às exigências de realizar uma prestação, ação ou
abstenção em favor de outrem” (in Curso de direito constitucional positivo, São
Paulo: Malheiros, 9ª edição, p. 89).
Evidentemente,
se todos os requisitos legais estiverem presentes, a suspensão condicional em
regra deverá ser proposta. No entanto, a análise desses pressupostos cabe ao
Ministério Público (mérito administrativo).
Se
a instituição considera que um desses requisitos é inexistente, não pode o juiz
obrigar o membro do Parquet a propor a suspensão. E
uma circunstância deve ser considerada em prol desse entendimento. Caso seja
admitida uma suspensão ex officio ou uma transação
entre o juiz e o réu, o que acontecerá se a suspensão for revogada?
Primeiro:
o réu voltará ao status quo ante, pois não terá
havido qualquer mácula ao seu estado de inocência, já que na proposta não se
discute culpabilidade. Assim, poderá o agente exercer em toda a sua inteireza o
direito de defesa.
Segundo:
o mesmo não se poderá dizer em relação ao MP. Embora o curso da prescrição
também se suspenda, só a parte pública acusadora
sofrerá os ônus da proposta fracassada, pois terá perdido tempo valioso para a
colheita de provas, que podem perecer, e a resposta estatal à infração à ordem
jurídica será muito mais demorada (além do “normal”).
Conclui-se portanto que a suspensão condicional do processo tem
influência direta sobre o jus puniendi estatal,
dificultando de certo modo a demonstração da culpabilidade (em caso de
seguimento do processo), por embaraçar a colheita de prova suficiente ou por favorecer
o desaparecimento da que antes havia.
Sendo
assim, é imprescindível a aceitação do Parquet, para
que se implemente a suspensão, já que, ao fim e ao cabo, somente o MP e a
sociedade, “sujeitos” interessados na repressão à criminalidade, terão sido
sacrificados pela suspensão arbitrária e não consensual.
Em
apoio a essa tese, LUIZ FLÁVIO GOMES registra que “o fato de o acusado ter
antes concordado com a suspensão do processo não pode ser levado em conta para
efeito de culpabilidade” (op. cit.,
p. 126), pois vigora em favor do denunciado o nolo contendere, sistema no qual o réu não admite culpa nem
proclama inocência. Enfim, o ônus é do Estado-Administração.
O
raciocínio de que a suspensão se trata de direito subjetivo do acusado chega a
ser esdrúxulo, se levado ao paroxismo. Imagine-se se, querendo fazer valer tal
tese e considerando que a celeridade almejada pela LJE deve vigorar em qualquer
hipótese, um juiz impusesse ao acusado um acordo por ele não aceito, com base
em proposta de suspensão feita pelo Ministério Público?
Em
tese, nada impediria tal ocorrência, pois em última análise estaria o juiz
agindo “em prol” do acusado, substituindo-se a ele para firmar um acordo com o Parquet, porque pensa que o réu deve fazer valer o seu
“direito subjetivo” (interesse individual juridicamente protegido) e evitar
maiores delongas na instrução processual penal. Com isso, estaria sendo lesada
a garantia do devido processo legal e da ampla defesa.
Evidentemente,
o exercício mental acima delineado não passa de hipótese absurda, mas que
guarda simetria com a tese que vem sendo esposada por ilustres juristas e
acolhida por alguns tribunais: a de que o juiz pode impor um acordo ao
Ministério Público, contra a vontade da instituição, que é autônoma, segundo
expressa disposição constitucional (art. 128, da CF).
Como
bem disse, LUIZ FLÁVIO GOMES “no modelo de Justiça
criminal consensual nenhuma instituição pode ter a mesquinha pretensão de se
sobrepujar a outra” (op. cit., p. 162). Se é assim para o ilustre processualista, não é aceitável
que seja o Ministério Público a instituição a ser alijada do consenso, pela
imposição de uma suspensão ex officio.
15.
Outros obstáculos à transação penal ex officio
O
Ministério Público é órgão estatal autônomo, cujas funções só podem ser
exercidas por seus membros pessoalmente, com exclusão da legitimidade de
terceiros.
O
que vem a ser autonomia? Segundo JOÃO MENDES JÚNIOR, autonomia é a “direção do
que lhe é próprio”, devendo ser considerada em relação a outros órgãos ou
poderes.
HELY
LOPES MEIRELLES (op. cit.,
p. 66/67) situa o Ministério Público entre os órgãos independentes, “colocados
no ápice da pirâmide governamental, sem qualquer subordinação hierárquica ou
funcional, e só sujeitos aos controles constitucionais de um Poder pelo outro.
Por isso são também chamados órgãos primários do Estado. Esses órgãos detêm e
exercem precipuamente as funções políticas, judiciais e quase-judiciais
outorgadas diretamente pela Constituição, para serem desempenhadas pessoalmente
pelos seus membros (agentes políticos, distintos de seus servidores, que são
agentes administrativos), segundo normas especiais e regimentais”.
Ao
conceituar agentes políticos, o professor HELY explica que “exercem funções
governamentais, judiciais e quase-judiciais, elaborando normas legais,
conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos
assuntos de sua competência”.
E
completa: “Em doutrina, os agentes políticos têm plena liberdade funcional,
equiparável à independência dos juízes nos seus julgamentos” (op. cit., p. 73).
Como
exemplo de decisões que merecem crítica, por ofenderem essa autonomia dos
agentes políticos que integram o Ministério Público, acerca da interpretação do
art. 89 da LJE, está a proferida pela 2ª Câmara
Criminal do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, na apelação criminal n.
200.274-4, da Comarca de Lima Duarte.
“Não
afronta o art. 129, I, da CF, decisão do juiz que, a requerimento do réu,
decreta a suspensão condicional do processo, uma vez que, recusada pelo Ministério
Público a formulação da proposta cabível, pois, sendo a medida um direito
público subjetivo, não é dado perseguir julgamento de mérito, quando se
verificar, em tese, a aplicabilidade do art. 89 da Lei 9099/95”.
Vê-se
de logo, pela ementa, que o acórdão desvirtua completamente o instituto da
suspensão condicional, que deixa de ser obtida mediante o consenso das partes
para surgir de um decreto judicial.
Observa-se
também que a decisão viola frontalmente o art. 129, inciso I, da CF, ao afirmar
que, presentes os requisitos do art. 89 da Lei 9099/95, “não é dado perseguir
julgamento de mérito” (sic). Ora, a privatividade da
ação penal conferida ao Ministério Público implica não só no poder de oferecer
denúncias, como também no de perseguir julgamentos de mérito! Ao atribuir mais
força ao art. 89 da LJE que ao art. 129 da CF, o tribunal subverteu a
hierarquia das normas e cassou indevidamente pelo menos três direitos do
Ministério Público: o direito à persecução penal em juízo, o direito a um
julgamento de mérito das pretensões deduzidas, e o direito ao devido processo
legal.
Sendo
assim, a apreciação de mérito quanto ao cabimento ou não da proposta de
suspensão cabe ao Ministério Público, pois é o órgão que formulará ou não a
proposta. Assim, é o Parquet que verifica,
preliminarmente à instauração do processo, se o acusado preenche os requisitos
legais: pena mínima cominada ao crime, inexistência de antecedentes,
personalidade, etc.
Tais
juízos se inserem no mérito administrativo, não podendo o juiz imiscuir-se em
assuntos da Administração strictu sensu,
mormente quando se sabe que o novel instituto é um instrumento de política
criminal entregue ao Parquet, num momento processual
em que vige o axioma in dubio pro societate.
O
acórdão do TA-MG supramencionado merece outros reparos. Embora tenha
reconhecido que o juiz não pode suspender o processo ex officio
(no que merece encômios), deliberou que o magistrado deve intimar o réu para,
querendo, formular pedido de suspensão do processo.
Essa
solução também afronta o art. 129, inciso I, da CF, pois a ação penal (com os
seus consectários, inclusive a proposta de suspensão) é privativa do Ministério
Público, não podendo o réu usurpar atribuição constitucional do Parquet, excluindo-o da relação processual, pois, a partir
daí ter-se-á uma tratativa bilateral entre juiz e
acusado.
Ofende-se
também o art. 25, parágrafo único, da Lei n. 8625/93 (que impõe nulidade do ato
praticado por terceiro estranho aos quadros do Parquet)
e a letra e o espírito do art. 89 da LJE, pois retira-se
ao MP o direito de ação pública, tudo a reclamar a impetração de mandado de
segurança para defesa de direito líquido e certo do Ministério Público.
O
art. 89, §6º, da LJE determina a suspensão do curso do prazo prescricional
durante o período de prova resultante da suspensão. Sabe-se que a prescrição
não corre na pendência de um acontecimento que impossibilite alguém de agir.
Logo, vê-se que há verdadeira limitação do direito de ação do Estado.
Em
suma, a falta de acordo entre as partes quanto a todos os termos da suspensão
impede que qualquer juiz ou tribunal homologue, decrete ou conceda a suspensão
condicional do processo, pois tal imposição ou deferimento malfere as garantias
constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da imparcialidade
do juízo.
Este
fica ameaçado porque o julgador, no limiar da ação penal, antecipa uma
valoração dos antecedentes, da personalidade e da culpabilidade do autor do
fato, sem contato prévio com a prova, bem como faz um juízo sobre a conduta do
réu (que ainda não conhece). Assim, não aceito ou desfeito o acordo, estará o
juiz irremediavelmente vinculado àquele pronunciamento prévio e inoportuno, no
átrio da relação processual, com evidentes implicações sobre sua
imparcialidade.
Desrespeita-se
também o princípio da tripartição dos poderes do Estado de Direito, pois o
Judiciário assume para si uma tarefa do Estado-Administração,
bem como violenta a vontade do Poder Legislativo, ao dar à expressão legal
sentido diverso do pretendido pelo Parlamento. Sabe-se que a separação
funcional de poderes constitui instrumento para a garantia dos direitos
humanos, que ficam ameaçados com o surgimento da figura do juiz-legislador, ou,
pior, do juiz-acusador.
Que
faz o juiz quando procede ex officio? Constitui-se
simultaneamente julgador e parte adversa do réu. Agora, pensemos que a
suspensão, considerada equivocadamente um direito (trata-se de mera expectativa
de direito), seja deferida ao réu contra a vontade do MP. Assim, estará o réu,
no exercício desse suposto direito, obrigado a cumprir
as condições que lhe são impostas por lei, além das especificadas pelo juiz,
bem como sujeito à suspensão do prazo prescricional.
Se,
por acaso, o réu não cumprir uma das condições obrigatórias (como o
ressarcimento do dano, por exemplo), que fará o juiz: a) suportará os ônus do
não cumprimento do “acordo”?; b) imporá o cumprimento
imediato das condições?; c) devolverá ao MP a ação
penal? Enfim, qual a garantia que é dada à vítima, ao Parquet
e à sociedade de que o acusado cumprirá as condições da suspensão? Nenhuma. E
não se pode esquecer que os direitos em jogo não são apenas os do réu. Limitar
dessa forma o exercício da ação penal pode conduzir a um julgamento (ou
desfecho) citra petita e
que desconsidera os interesses gerais da coletividade para privilegiar
interesses individuais.
Não
merece acolhida, outrossim, o entendimento de que o requerimento de suspensão
pelo réu visa a assegurar o princípio da isonomia processual. Não nos
convencemos do acerto da tese, pois no processo instaurado o acusado poderá
exercer sua defesa em toda a sua inteireza, inclusive obtendo provimento
absolutório, se for o caso.
A pretexto de igualar as partes,
não se pode impedir o exercício de um direito (o de ação) por uma delas. Os
direitos de acusação e defesa podem e devem coexistir, sem exclusão de nenhum
deles, até a decisão final do Judiciário. Sacrificar o direito de ação do
Ministério Público – que, em última análise, é o direito de ação da sociedade
-, não atende as necessidades de uma Justiça eficiente e igualitária.
A
esse respeito, deve-se dizer que não se conceberia a hipótese de o juiz, tendo
à frente a proposta do Ministério Público, impor ao acusado a sua aceitação. Se
tal paisagem processual é absurda, como admitir o contrário, sem violar o
princípio da isonomia das partes? Claro está que tal princípio não existe
apenas para beneficiar o réu, mas milita também em favor do defensor da
sociedade: o Ministério Público.
De
igual sorte, não deve prosperar a compreensão de que a privatividade
da proposta de suspensão do processo pelo Ministério Público a exclui do
controle jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV, CF). Sabe-se que o juiz é o
fiscal do princípio da obrigatoriedade, à luz do art. 28 do CPP, devendo
encaminhar os autos de inquérito policial ao Procurador-Geral sempre que
discordar do pedido de arquivamento.
Se é assim em relação à
propositura ou não da ação penal (o mais), deve ser assim em relação à oferta
de suspensão condicional do processo (o menos). O controle jurisdicional da
proposta de suspensão estará sempre presente, seja pela homologação ou não da
avença pelo juiz, seja pela remessa dos autos ao Chefe do Parquet,
para que, dentro do Estado-Administração, decida-se,
definitivamente, quanto ao exercício da faculdade inserta no art. 89 da LJE.
O
ato dependente de homologação não tem eficácia enquanto não a recebe. Assim é
com a proposta de suspensão. A homologação é ato de controle judicial, que
apenas pode confirmar o ato (no caso o pacto), ou rejeitá-lo, a fim de que a
irregularidade seja corrigida por quem a praticou.
Daí
é que advém o entendimento de que à recusa ministerial à proposta deve
seguir-se a remessa dos autos ao Procurador-Geral, para que examine da
conveniência e da oportunidade de oferecimento da proposta, pois unicamente o Estado-Administração (aí representado
pelo Ministério Público) pode valorar internamente se praticará o ato ou
se absterá de fazê-lo.
“O
juízo de conveniência ou oportunidade de revisão e controle é fundamentalmente
político-administrativo e discricionário” (HELY LOPES MEIRELLES, op. cit., p. 573).
Em
razão disso, o controle da conveniência, justiça, eficiência e oportunidade da
proposta é privativo da chefia do Ministério Público,
que exerce o controle de legalidade e de mérito, ao passo que o Judiciário
limita-se ao controle de legalidade, não podendo pronunciar-se sobre o mérito
dos atos da Administração, aqui entendida como Estado-acusador, pois, assim
agindo, estaria desbordando de sua competência jurisdicional, para atuar como parte
na relação processual a se formar.
16.
Discricionariedade do ministério público como ente da administração
Não
se pode negar que o Ministério Público integra o Estado-Administração porque a instituição atua
independentemente de provocação para que a vontade legal seja cumprida, ao
passo que a jurisdição atua mediante provocação da parte interessada.
JOSÉ
AFONSO DA SILVA diz que o Ministério Público é “uma instituição vinculada ao
Poder Executivo, funcionalmente independente, cujos membros integram a
categoria dos agentes políticos e, como tal, há de atuar com plena liberdade
funcional”(in Curso de direito constitucional
positivo, São Paulo: Malheiros, 9ª edição, p. 511).
MARIA
SYLVIA ZANELLA DI PIETRO corrobora o pensamento de HELY, asseverando que “A
discricionariedade, sim, tem inserida em seu bojo a
idéia de prerrogativa, uma vez que a lei, ao atribuir determinada competência,
deixa alguns aspectos do ato para serem apreciados pela Administração diante do
caso concreto; ela implica liberdade a ser exercida nos limites fixados na lei”
(in Direito administrativo, São Paulo: Atlas, 1990, p. 70).
A
renomada administrativista esclarece que no poder
vinculado a lei não deixa opções à Administração. “Ela estabelece que, diante
de determinados requisitos, a Administração deve agir de tal ou qual forma. Por
isso mesmo se diz que, diante de um poder vinculado, o particular tem um
direito subjetivo de exigir da autoridade a edição de determinado ato, sob pena
de, não o fazendo, sujeitar-se à correção judicial” (op. cit., p. 161). Isto em matéria de vinculação, aduzindo em
seguida que:
“Em
outras hipóteses, o regramento não atinge todos os aspectos da atuação
administrativa; a lei deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso
concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma dentre várias
soluções possíveis, todas válidas perante o direito. Nesses casos, o poder da
Administração é discricionário, porque a adoção de uma ou outra solução é feita
segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, eqüidade, próprios da
autoridade, porque não definidos pelo legislador” (op. cit., p. 161).
DI
PIETRO conclui que a atuação da Administração é discricionária diante do caso
concreto quando “tem a possibilidade de apreciá-lo segundo critérios de
oportunidade e conveniência e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas
válidas para o direito”. Eis a hipótese que surge quando da aplicação do art.
89 da Lei n. 9099/95, que é a norma que expressamente criou novos espaços de
atuação institucional do Ministério Público, conferindo-lhe a possibilidade de
atuar ou não, de forma discricionária.
Contudo,
no que se refere à proposta de suspensão do processo, não há discricionariedade
na escolha do momento da prática do ato, porque a lei determina que seja ela
promovida ao se oferecer a denúncia (embora seja possível proposta posterior,
em certas hipóteses). Nesse ponto, a atividade é vinculada e sujeita ao
controle jurisdicional, tal como no que se refere à competência, à forma e à
finalidade.
Quanto
ao motivo do ato administrativo, DI PIETRO acentua que será discricionário
quando a lei não o definir, deixando-o ao inteiro critério da Administração ou
defini-lo “utilizando noções vagas, vocábulos plurissignificativos, que deixam
à Administração a possibilidade de apreciação segundo critérios de oportunidade
e conveniência administrativa” (op. cit., p. 164).
É
o que ocorre, por exemplo, com os requisitos da suspensão condicional do
processo. Alguns deles são indicados precisamente, com conceitos matemáticos.
São os requisitos objetivos, e, por isso, vinculados. Outros requisitos são de
apreciação subjetiva, segundo conceitos de valor, como os atinentes aos
antecedentes, personalidade, culpabilidade, conduta social do agente, etc.
E
continua: “Com relação aos atos discricionários, o controle judicial é
possível, mas terá que respeitar a discricionariedade administrativa nos
limites em que ela é assegurada à Administração Pública pela lei (…) Daí
porque não pode o Judiciário invadir esse espaço reservado, pela lei, ao
administrador, pois, caso contrário, estaria substituindo por seus próprios
critérios de escolha, a opção legítima feita pela autoridade competente com
base em razões de oportunidade e conveniência que ela, melhor do que ninguém, pode decidir diante de cada caso concreto”. (op. cit., p. 165).
De
forma alguma, ter-se-á arbítrio no agir do Ministério Público.
Discricionariedade não se confunde com arbítrio. Este lembra abuso de direito,
excesso, violação da lei; aquela significa exercício legítimo de atribuições
dentro do campo delimitado pela legislação. Justamente, para que não se
confunda discricionariedade com arbítrio é que a lei exige que as manifestações
do Ministério Público sejam fundamentadas.
Novamente,
é HELY quem elucida o tema: “convém esclarecer que poder discricionário não se
confunde com poder arbitrário. Discricionariedade e arbítrio são atitudes
inteiramente diversas. Discricionariedade é liberdade de ação administrativa,
dentro dos limites permitidos em lei; arbítrio é ação contrária ou excedente da
lei. Ato discricionário, quando autorizado pelo Direito, é legal e válido; ato
arbitrário é sempre ilegítimo e inválido” (op. cit., p. 103).
Diz
mais o publicista, que para a prática de um ato
discricionário o agente do Estado deve ter competência legal, deve atender à
forma prescrita em lei e ter por finalidade a consecução do interesse público.
“O ato discricionário praticado por autoridade incompetente, ou realizado de
forma diversa da prescrita em lei, ou informado de finalidade estranha ao
interesse público, é ilegítimo e nulo. Em tal circunstância, deixaria de ser
discricionário, para ser ato arbitrário – ilegal, portanto”. (op. cit., p. 103).
Assim,
conclui-se que o membro do Ministério Público, como agente político, tem o poder
discricionário de requerer o arquivamento ou de oferecer a denúncia, e neste
caso, também oferecer a proposta de suspensão condicional do processo. A
competência (atribuição) para a prática do ato é privativa do Ministério
Público, por expressa disposição normativa, do art. 129, I, CF, e do art. 89 da
LJE.
Se
o magistrado pratica tal ato, está agindo com arbítrio e dando origem a uma
ilegalidade. Não podendo anular ou integrar o ato omissivo (a não oferta da
proposta), o máximo que poderia fazer seria não receber a denúncia, por falta
de condição de procedibilidade, como defende o Dr. RICARDO GALBIATI (in A
natureza jurídica da proposta de suspensão condicional do processo penal. São
Paulo: IBCCrim n. 60 – nov/97, p.10),
Se
o Ministério Público não propõe a suspensão com a denúncia, pode o juiz
rejeitá-la com base no art. 43, inciso III, parte final, do CPP, por “faltar
condição exigida pela lei para o exercício da ação penal”. O parágrafo
único do art. 43 estabelece que a rejeição da denúncia não obstará
o exercício da ação penal, desde que satisfeita a condição, ou seja, desde que
se ofereça a proposta de suspensão, quando cabível.
Poderia
também, com base no mesmo art. 43, inciso III, do CPP, não receber a incoativa,
por falta de interesse de agir (segundo entende MARCELO ROCHA MONTEIRO, in
Ausência de proposta do ministério público na transação penal: uma reflexão à
luz do sistema acusatório. São Paulo: IBCCrim
n. 69 – ago/98, p.19) ou simplesmente remeter o
processo ao Procurador-Geral, na forma do art. 28 do CPP, em aplicação
analógica.
A
competência para a proposta de suspensão é do Ministério Público; a forma da
proposta é escrita, concomitante à denúncia; e a finalidade é a despenalização e a célere resposta estatal à criminalidade,
privilegiando-se os interesses da vítima. Tais são elementos vinculados, que
não podem ser excluídos ou modificados sob pena de viciar-se o ato, com
nulidade, ainda mais quando se percebe que no sistema acusatório há rígida
separação de funções entre o acusador e o julgador.
MARCELO
ROCHA MONTEIRO acrescenta que “Ao abraçar a cláusula do devido processo legal,
certamente não quis o constituinte manter um sistema processual penal onde
existissem dois órgãos oficiais, promotor e juiz, para tomar iniciativas
buscando a punição de um indivíduo, o segundo suprindo eventuais falhas do
primeiro” (op. cit., p. 19).
Algumas
decisões têm refletido a lógica do sistema acusatório:
“A
medida prevista no art. 89, da Lei n. 9099/95, tem natureza de transação: o
Ministério Público propõe ao réu abrir mão de seu direito/dever de ação,
enquanto o réu abdica do direito do due process of law,
submetendo-se a determinadas condições, que a norma prescreve. À evidência, a
Lei 9099/95 não conferiu ao Judiciário a possibilidade de propor a suspensão ex
officio do processo, porquanto, não sendo parte, não
pode transacionar, até porque não pode o juiz dispor daquilo que não lhe
pertence: o direito de ação. Não cabe o argumento de que a suspensão do
processo deve ser concedida automaticamente, pelo magistrado, por se tratar de
um direito subjetivo do réu. É que não deferiu o legislador ao juiz o poder de
determinar a suspensão condicional do processo, no caso de não advir a proposta do Ministério Público, que é o dominus litis” (TJ-SP, mandado de
segurança n. 224.533-3/7, 1ª Câmara Criminal, Rel. Des.
Jarbas Mazzoni, j. 05.05.97, unânime).
Buscamos
ainda apoio no estimado professor HELY, que asseverava que “o que o Judiciário
não pode é, no ato discricionário, substituir o discricionarismo
do administrador pelo do juiz”, devendo limitar-se a “proclamar as nulidades e
coibir os abusos da Administração”.(op. cit., p. 105).
Se
o agente não dispõe de poder legal para a prática do ato, este é nulo, seja ele
ato vinculado ou discricionário. No caso específico, falta ao juiz competência
administrativa para manifestar a vontade do Estado-Administração
de suspender o processo, mediante condições.
Isto
porque a competência administrativa (atribuição) é um requisito de ordem
pública do ato administrativo, e, como tal, é intransferível e insuscetível de
ser alterada ao alvedrio do executor e contra disposição expressa de lei.
Negando-se
motivadamente a proposta, só restará ao acusado requerer ao juiz que encaminhe
os autos ao Procurador-Geral de Justiça ou ao Procurador-Geral da República,
para que mantenha o entendimento negativo ou designe outro membro do Parquet para que efetue a proposta suspensiva.
17. A
indispensabilidade do consenso
Mais
um argumento se expende contrariamente à tese de que pode o juiz suspender o
processo ex officio ou a requerimento do acusado. É
que para a deliberação judicial, é necessário que antes tenha havido uma
denúncia apta e que o acusado aceite a proposta. Depois, o juiz receberá a
denúncia e só então poderá suspender o processo. Percebe-se, então, que a
suspensão do processo somente ocorre após a aceitação da proposta pelo acusado
e o recebimento da denúncia. Não havendo proposta, não poderá o magistrado
tomar a iniciativa de propô-la, sob pena de ferir o princípio da inércia da
jurisdição e de usurpar atribuições administrativas do MP.
E
mesmo havendo requerimento do acusado, é vedada a suspensão contra a vontade do
Parquet, porque não haverá o consenso objetivado pela
lei, e estarão ameaçados os interesses público e institucional pela
possibilidade de breve implementação da extinção da punibilidade.
Ao
dispor que o juiz poderá suspender o processo, a lei estabelece expressamente
que isso se dá caso seja “aceita a proposta pelo acusado e seu defensor”. Para
que algo seja aceito, é necessário que antes seja proposta. Aceita-se
uma oferta e não um direito. A lei não tem palavras inúteis. Direito exerce-se.
Proposta aceita-se. Quem propõe? O Ministério Público.
O direito do Ministério Público é o de propor ou não. O direito subjetivo do
acusado é o de aceitar ou recusar a proposta, não o de aceitar o que não lhe
foi ofertado, nem o de exigir o que não lhe pertence, ou seja, exigir que o MP
abdique de seu direito à persecução penal, que, em última análise, nem é
direito seu, mas da sociedade. Pensar o contrário é admitir que se façam
liberalidades com o direito alheio.
Aqueles
que defendem a possibilidade de suspensão ex officio,
por si só absurda, esquecem que a tese desvia-se do princípio da inércia
da jurisdição, prejudicando o direito ministerial ao processo e à condenação,
pela interrupção daquele.
A CF impôs a separação de
funções não apenas na fase pré-processual, mas também no transcurso do
processo. Segundo aquele princípio, o Judiciário constitui um poder inerte, que
somente se movimenta mediante a função de alavanca do MP e das advocacias
pública e privada, representando essa inércia uma garantia do princípio da
imparcialidade do julgador.
Ensina
JOSÉ AFONSO DA SILVA (in Curso de direito constitucional positivo, São Paulo:
Malheiros, 9ª edição, p. 506) que “é um princípio basilar da função
jurisdicional que o ‘juiz deve conservar (…) uma atitude estática, esperando
sem impaciência e sem curiosidade que os outros o procurem e lhe proponham os
problemas que há de resolver’. A inércia, lembra ainda
Calamandrei, é, para o juiz, garantia de equilíbrio,
isto é: de imparcialidade, que, sendo ‘virtude suprema do juiz, é resultante de
duas parcialidades que se combatem’, parcialidades dos advogados das partes em
disputa”.
Segundo
LUIZ FLÁVIO GOMES (op. cit.,
p. 168), o juiz não pode tomar a iniciativa da suspensão condicional do
processo. Ou seja, não pode agir ex officio, porque
“pelo jus positum (…) quem detém a legitimidade
ativa é o Ministério Público”, mas refere que o art. 89 confere ao Parquet um poder-dever que reclama manifestação positiva,
no sentido da proposta, sempre que presentes os requisitos legais. E sustenta
que, em caso de negativa ministerial, cabe ao acusado requerer a suspensão, que
será deferida ou não pelo magistrado. Ainda assim, afirma o autor que tal deve
se dar apenas como exceção à natureza bilateral da suspensão.
Sem
dúvida essa não é a melhor solução, pois não se trata de assegurar um direito
subjetivo do réu, mas uma mera expectativa de direito, o que afasta a violação
ao art. 5º, inciso XXXV, da CF, que trata de “lesão ou ameaça a direito”.
Ademais, as partes continuam em juízo, podendo o Judiciário, ao final, emitir
decreto absolutório ou decisão condenatória conforme a culpabilidade do acusado.
Também
não é boa solução porque desatende o princípio da consensualidade
e usurpa atribuição ministerial (art. 129, §2º, CF), incorrendo em arbítrio. É
evidente que a lei está sendo ferida pelo ato judicial, e não pela recusa
fundamentada do MP, porque a suspensão perde sua natureza transacional, deixa
de ser ato personalíssimo do titular da ação penal e perde o caráter
voluntário.
Ademais,
por força do princípio da isonomia processual (igualdade entre as partes),
deve-se aplicar o art. 89, §7º, da Lei n. 9099/95, dando-se seguimento ao
processo, caso a proposta de suspensão seja negada pelo promotor de Justiça e
pelo Procurador-Geral de Justiça, nos moldes do art. 28 do CPP.
O
que se deve compreender é que o direito subjetivo do acusado somente nasce após
a conformação da avença processual, com a homologação da postulação pelo juiz.
É que, a partir daí, o Ministério Público estará vinculado ao acordo firmado,
não podendo ao seu alvedrio reiniciar o curso do processo, salvo se o acusado
der ensejo ao rompimento do acordo, por revogação.
18.
Proposta de suspensão subsidiária
Ousamos
colocar uma tese, que nos parece inovadora, embora não seja a que melhor
resolve o problema da oferta da suspensão condicional, em caso de negativa
ministerial.
Recusando
o Ministério Público o consenso, poder-se-ia prever a possibilidade de
oferecimento de proposta de suspensão subsidiária, a ser manejada pelo ofendido
ou seu representante legal, nas mesmas circunstâncias da ação penal privada
subsidiária da pública, prevista no art. 5º, inciso LIX, da CF, o que
representaria uma forma legítima de controle da atuação do Ministério Público,
em caso de inércia.
Claro
está que tal proposta subsidiária só seria factível quando o Ministério Público
silenciasse na fase do art. 89, vale dizer, quando não propusesse a suspensão e
não oferecesse fundamentação para a negativa. Nesta hipótese, abrir-se-ia à
vítima ou a seu representante legal o ensejo de propor a suspensão, sempre em
defesa de um eventual interesse à imediata reparação do dano.
Tal
solução levaria certamente a uma maior participação do ofendido na relação
processual penal, atendendo-se à principiologia da
Lei n. 9099/95, sem ofender o sistema acusatório adotado na Carta de 1988.
E
isto é fora de dúvida, pois, sendo a queixa-crime subsidiária a única exceção constitucional à regra da privatividade da ação penal pública, o aproveitamento da
idéia in bonam partem, criando-se a proposta de
suspensão condicional subsidiária, somente contribuiria para o êxito dos
propósitos da Lei n. 9099/95.
A
inovação também teria a vantagem de manter o magistrado em sua posição original
de imparcialidade, afastando-o da mesa de negociações como parte, mas
mantendo-o nela como mediador.
Assim,
não sendo proposta a suspensão pelo Ministério Público poderia a vítima ou seu
representante legal oferecê-la, para atender o seu imediato interesse de
reparação do dano sofrido. E aí estaria o interesse de agir do ofendido, cuja
intervenção na lide se daria na condição de assistente da acusação, visando à
defesa da pretensão primária cível.
Em
tal hipótese de transação substitutiva, seria vedado ao Ministério Público
opor-se ao consenso, segundo a regra dormientibus non sucurrit jus, devendo a
instituição limitar-se a opinar como fiscal da lei, para garantir o cumprimento
dos requisitos legais.
Todavia,
essa solução não seria aplicável às infrações nas quais a
vítima é indeterminada ou corresponde a uma coletividade ou a uma entidade sem
personalidade jurídica, como nos crimes vagos. Daí se propugnar que, nesses
casos, a proposta poderia partir de qualquer interessado.
Quanto
aos crimes de dupla subjetividade passiva, que são aqueles que têm dois
sujeitos passivos em razão do tipo (DAMÁSIO dá o exemplo da violação de
correspondência), a proposta subsidiária poderia partir de qualquer das
vítimas: v. g., o destinatário ou o remetente da
correspondência, no tipo do art. 151 do CP.
Essas
são sugestões ao legislador, mas a aplicação imediata desse entendimento não é vedado aos operadores jurídicos, mediante uma interpretação
analógica do art. 5º, inciso LIX, da Constituição Federal.
19.
Ainda especulações sobre a iniciativa da transação lato sensu
Com
relação à ação penal privada, não seria possível impor ao querelante a
suspensão. Na ação privada, o CPP conferiu ao ofendido o poder discricionário
de conceder ou não o perdão ao querelado, extinguindo-se a punibilidade pela
aceitação (bilateralidade). Mesmo assim, quanto a este instituto de mais de
cinco décadas (o perdão), jamais a doutrina propugnou tratar-se de direito
subjetivo do acusado.
Se
não é lícito ao juiz, na ação privada, deferir o perdão, que se chama, bem a
propósito, “perdão do ofendido”, como lhe seria facultado, na ação pública,
firmar acordo com o autor do fato, impondo a sua vontade (a do julgador) à do
Ministério Público? Onde estaria a diferença entre as partes para tratamento
tal desigual?
Assim,
se na ação penal privada o juiz não pode obrigar o querelante a fazer a
proposta, nem pode substituir-se a ele, deve-se concluir que o entendimento que
repudia a legitimidade exclusiva do MP à proposta é incongruente e contraria os
ditames constitucionais de cunho acusatório. Se o juiz não pode o menos (na
ação privada), não pode o mais (na ação pública). Eis mais uma vez a lógica do
razoável.
IRAHY
BAPTISTA DE ABREU figura interessante hipótese acerca dos riscos da corrente de
pensamento que aceita a atuação do juiz ex officio:
“Encerra-se uma última questão: negada fundamentadamente pelo Ministério
Público a proposta de suspensão, o juiz, arvorando-se em seu substituto, a
oferece ao acusado que, por sua vez, recusa a oferta. Como ficará a situação do
Magistrado, invadindo seara alheia e vendo negada sua proposta?!? Manterá a imparcialidade até o fim ou a perderá quando da
sentença, pelo desaforo da não aceitação?!?”.
FÁBIO
MEDINA OSÓRIO imagina tal hipótese com mais graves conseqüências, pois vê o
acusado e seu defensor numa posição inferiorizada diante do juiz, além do que
eventual não aceitação da proposta acarretaria ao réu o ônus de ser sentenciado
por seu “oponente”, pela “parte” sentada à cabeceira da mesa de audiências (op.
cit.).
Por
conseguinte, se o juiz insiste na proposta ex officio,
seja de transação seja de suspensão, cabe ao Ministério Público a impetração de
mandado de segurança ou correição parcial (na Bahia, denominada reclamação)
contra o ato iníquo e desbordante dos princípios constitucionais do processo
penal.
Tem
o Ministério Público direito líquido e certo ao devido processo legal. Com a
suspensão ex officio, há uma paralisação temporária
do processo, à espera de que o acusado cumpra certas
condições. Caso seja violado o pacto, o processo continuará, mas tudo será como
no início no que se refere à presunção de inocência, perdendo-se, por outro
lado, valioso tempo na busca da verdade real. Isso deixa bem claro que a
proposta ex officio (e mesmo aqueloutra
formada exclusivamente com a vontade do acusado) limita o exercício da ação
penal pelo Parquet, podendo trazer prejuízos ao
resultado útil da ação penal.
Sigamos
adiante na atividade especulativa. Haveria direito subjetivo à suspensão
condicional, sendo o acusado inocente? Parece-nos que não, porque, neste caso,
teria ele direito subjetivo a uma sentença absolutória, ao final da instrução,
e não ao cumprimento das condições e limitações próprias ao instituto do art.
89 da LJE.
Ainda
há de se ver que a suspensão condicional do processo leva imediatamente à
obrigação de reparar o dano. Pode ser considerado um direito subjetivo o
direito a uma obrigação?, quando
se sabe que o autor do fato, o denunciado, em certa medida está renunciando a
um direito muito mais evidente: o da ampla defesa? e
quando se sabe também que a rapidez na imposição dessa obrigação reparatória é
em certo sentido prejudicial aos seus interesses econômicos?
Deixemos
as perguntas acima sem resposta. É que elas encontram solução
em si mesmas, evidenciando que o único mecanismo consentâneo e compatível com o
sistema processual penal emergente da Carta Republicana de 1988 é o que remete
à aplicação analógica do art. 28 do CPP.
Como
já advertia LUIZ FLÁVIO GOMES, na primeira edição de sua conhecida monografia
(op. cit., p. 124), a tarefa
de fixar os contornos finais da suspensão condicional do processo caberia à
doutrina e à jurisprudência. De fato, isto tem sido feito, e o foi, com muita
propriedade, pelo Supremo Tribunal Federal. E isso o que agora se analisará.
20. Leading case: o caso
hosken
No julgamento do habeas
corpus 75.343-4, impetrado em favor do paciente JUAREZ QUINTÃO HOSKEN FILHO,
contra coação atribuída ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o Supremo
Tribunal Federal decidiu, por maioria, nos termos dos votos dos Ministros
Octavio Galotti e SEPÚLVEDA PERTENCE, que cabe ao
Ministério Público a iniciativa exclusiva de propor a suspensão condicional do
processo, prevista no art. 89 da Lei Federal n. 9099/95.
Os Ministros OCTAVIO GALOTTI, então relator, e
NELSON JOBIM, votaram pelo indeferimento do remédio heróico, argumentando que
havendo recusa fundamentada do Ministério Público, posicionando-se pelo não
oferecimento da proposta de suspensão condicional, o juiz não pode exercer tal
atribuição, porque não se trata de direito subjetivo do acusado, e sim de ato
que se acha dentro da esfera discricionária do Parquet.
O
voto do Ministro NELSON JOBIM é remuito
significativo, porque ele foi um dos autores dos dispositivos cíveis da Lei n.
9099/95, tendo participado ativamente dos debates que precederam sua aprovação
no Congresso Nacional, onde então exercia mandato de deputado federal. Por
conseguinte, ninguém melhor que o Min. JOBIM para dizer do espírito da lei e da
intenção do legislador nos arts. 76 e 89 da Lei dos
Juizados Especiais.
O
precedente jurisprudencial é de 12 de novembro de 1997, com prevalência do voto
do Ministro Octavio Galotti, relator. A decisão foi
majoritária, firmando o entendimento de que a proposta do art. 89 da LJE é uma
faculdade exclusiva do Parquet, em atenção ao
princípio do art. 129, inciso I, da CF, “não podendo o juiz da causa
substituir-se a este”. Foi voto vencido o Min. MARCO AURÉLIO, que
reconhecia a tese do direito subjetivo do réu ao benefício, desde que presentes
os requisitos objetivos para a suspensão do processo.
Também por maioria, considerando-se que o art. 89
da LJE “alude ao Ministério Público na qualidade de instituição”, a Corte
Suprema deliberou que “na hipótese de o promotor de Justiça recusar a fazer a
proposta, o juiz, verificando presentes os requisitos objetivos para a
suspensão do processo, deverá encaminhar os autos ao Procurador-Geral de Justiça
para que este se pronuncie sobre o oferecimento ou não da proposta”.
Interpretou-se
que o art. 89 mitigou o princípio da obrigatoriedade da ação penal para efeito
de política criminal. Sendo assim, para orientação de tal política, tem
prevalência o princípio da unidade do Ministério Público, previsto no art. 127,
§1º, da CF, a fim de que a discricionariedade reconhecida não seja transferida
ao subjetivismo de cada promotor de Justiça. Nesse ponto foi vencido o
relator originário, Min. Octavio Galotti, com o
entendimento de que a Lei n. 9099/95 não autorizava tal procedimento
administrativo. Em razão disso, foi relator para o acórdão o Min. Sepúlveda
Pertence, que sustentou a aplicabilidade do art. 28 do CPP, na hipótese de
recusa do membro do Parquet.
Em
14 de abril de 1998, no julgamento do habeas corpus
n. 76.436, do Paraná, tendo como relator o Ministro NÉRI DA SILVEIRA,
manteve-se a orientação, cassando-se a sentença condenatória e o acórdão guerreados, que inadmitiram
a suspensão condicional do processo prevista no art. 89 da Lei n. 9099/95, para
que fosse dada oportunidade ao Ministério Público de primeiro grau para
manifestar-se sobre a aplicação do referido instituto.
O
posicionamento firmou-se em 12 de maio de 1998, no julgamento do habeas corpus 76.439-SP (STF,
1ª Turma, Rel. Min. Octavio Galotti), quando se
decidiu que:
“Tendo em vista que a suspensão condicional do
processo é uma faculdade do Ministério Público para fins de política criminal,
a Turma deferiu em parte o habeas corpus para que a
recusa do promotor de justiça em fazer proposta de suspensão condicional do
processo, seja submetida à Procuradoria-Geral de Justiça, aplicando-se, no que
couber, o disposto no art. 28 do CPP. Orientação adotada pelo
STF no julgamento do HC n. 75.343-MG (Pleno, 12.11.97, v. Informativo n. 92)”.
Ultimamente,
em outras esferas judiciárias, têm sido valorizadas as atribuições do
Ministério Público, como dominus litis
e titular da atividade persecutória penal, não só em juízo, como também em sua
atividade investigatória extrajudicial, assegurando à instituição o direito ao
acesso direto a informações mesmo cobertas por sigilo, como o bancário. A
orientação do STF no tocante à suspensão condicional do processo é indicativa
dessa tendência. O boletim informativo STF n. 123, de 14 de novembro de 1998,
no título “Ministério Público e Suspensão do Processo”, noticiou a seguinte
decisão da 2ª Turma da Corte Constitucional:
“Compete
ao Ministério Público a iniciativa exclusiva para
propor a suspensão condicional do processo prevista no art. 89 da Lei 9.099/95
(“Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano,
abrangida ou não por esta lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia,
poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde
que…”). Com esse entendimento, a Turma, por maioria, indeferiu o pedido
relativamente ao trancamento da ação penal, vencido o Min. Marco Aurélio que o
concedia para tornar a denúncia insubsistente, podendo, sobre os mesmos fatos
outra ser oferecida, e, a seguir, por unanimidade, deferiu em parte o habeas corpus para determinar seja, no juízo de origem,
aberta vista ao Ministério Público para fins do art. 89 da Lei 9.099/95,
atendendo a orientação adotada pelo Tribunal no HC 75.343-MG (v. Informativos
76 e 92), aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 28 do CPP.
Precedentes: HC 76.439-SP (DJU de 21.08.98) e HC 74.153-SP (DJU 21.03.97). HC 77.723-RS, rel. Min.
Néri da Silveira, 15.9.98.”
No
entanto, em que pese tal orientação já firme do STF, algumas turmas do STJ
ainda vêm sustentando que a proposta do art. 89 da LJE é direito subjetivo do
acusado, aduzindo que “o juiz não deve estar vinculado à recusa do Ministério
Público” (RHC n. 7.583/SP, 5ª Turma, rel. Min. Edson
Vidigal, j. 23.06.98, v. u., DJU 31/08/98, p. 110).
Naturalmente,
esse posicionamento da 5ª Turma do STJ tende a se tornar minoritário, tendo em
conta a orientação adotada pelo STF em mais de um julgamento, bem assim
considerando que já se instalou divergência na mesma turma do STJ, como se pode
ver do seguinte excerto de decisão mais recente:
Acórdão
da 5ª Turma do STJ, unânime, no Recurso Ordinário em habeas
corpus n. 98/0051741-3, Relator Ministro FÉLIX FISCHER, em 25/08/1998:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL.
RECURSO ORDINÁRIO DE HABEAS CORPUS. LEI N. 9099/95. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO
PROCESSO. MAJORANTE (CRIME CONTINUADO).
I
– Para verificação dos requisitos da suspensão condicional do processo (art.
89), a majorante do crime continuado deve ser
computada.
II
– A eventual divergência entre o agente do Parquet e
o Órgão Julgador, acerca do oferecimento da suspensão se resolve,
analogicamente, com o mecanismo do art. 28 do CPP. Precedentes. Recurso desprovido.”
Anteriormente,
o STJ já decidira que “A suspensão condicional do processo prevista na Lei
9099/95 se circunscreve no princípio da discricionariedade regulada, da vontade
consciente do acusado e seu defensor, e da desnecessidade da aplicação da pena
privativa de liberdade de curta duração, tendo em vista o menor potencial
ofensivo da infração” (HC 5027, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJU
28.04.97).
Por
tudo, conclui-se com o sempre lembrado FREDERICO MARQUES, que o princípio da
legalidade (ou obrigatoriedade) da ação penal e o da oportunidade podem
conviver no sistema processual penal. É isso o que se está assistindo, no
momento em que se tenta dar a maior vitalidade possível aos institutos da Lei
n. 9099/95, que incomodam as velhas concepções dominantes, mas que descortinam
um horizonte límpido no futuro da Justiça Criminal consensual.
21.
Sugestões para o porvir
Como
sugestão do direito por legislar, deve-se estabelecer,
em parágrafo do art. 89 da LJE, que a negativa de transação penal ou de
suspensão condicional do processo, pelo promotor de Justiça, seja submetida,
tal como o arquivamento do inquérito civil ou a homologação do termo de
ajustamento de conduta cível, ao controle hierárquico do órgão colegiado
superior do Parquet: o Conselho Superior do
Ministério Público.
Com
a medida, seria transformada em lei a orientação do Supremo Tribunal Federal,
aperfeiçoando-a, uma vez que seriam eliminadas as desvantagens de uma decisão
monocrática a cargo do Procurador-Geral de Justiça, que também poderia estar
sujeito a vícios de subjetivismo. Esse sistema de reexame não é novo e foi
introduzido na ordem jurídica brasileira pela Lei Federal n. 7347/85, sendo
reproduzida em várias leis orgânicas estaduais do Ministério Público, como na
Lei Complementar Estadual n. 11, de 18 de janeiro de 1996, do Estado da Bahia.
FÁBIO
MEDINA OSÓRIO é favorável a essa forma de controle hierárquico pelo órgão
colegiado superior do Parquet (in O consensus na transação pena e suspensão condicional do
processo penal: observações sobre a lei n. 9099, de 26-09-95), mas não deixa de
sugerir a possibilidade de impetração de habeas
corpus contra resolução arbitrária do Conselho ou ato ilegal do
Procurador-Geral, no caso de se inviabilizar injustificadamente o acordo.
É
também o promotor gaúcho quem anota parte do voto do Juiz de Alçada TUPINAMBÁ
PINTO DE AZEVEDO (na correição parcial n. 296003734, da 2ª Câmara Criminal do
TA-RS) a respeito da transação penal sem participação do MP:
“Em
hipótese alguma o juiz transaciona, já que é da essência da transação a
renúncia a algum direito ou bem. Quem pode transacionar é parte: de um lado,
desiste o Ministério Público de buscar a condenação tout
court, que importaria em pressuposto da reincidência,
maus antecedentes, responsabilidade civil, etc; de
outro, renuncia o réu à possibilidade de absolvição (…) Agindo o magistrado
de ofício a que renuncia? De que direitos abre mão?”.
Na
mesma alteração da LJE, poderia ser prevista inclusive a possibilidade de
recurso administrativo da vítima ou seu representante legal ou de qualquer
interessado, independentemente do encaminhamento judicial, com faculdade de
apresentação de documentos, para que se assegure ao ofendido um espaço próprio
no novo modelo de justiça consensual.
A
decisão do STF é merecedora de aplausos, por fixar caminho seguro a seguir, mas
não inova. Doutrinadores de escol já defendiam a aplicação analógica do art. 28
do CPP à hipótese em relevo.
Outros,
como MIRABETE, apresentaram argumentos indispensáveis à supremacia da tese da
legitimidade exclusiva do Ministério Público:
“Ao
contrário do que já se tem afirmado, entendemos não ser a transação prevista no
art. 76 um direito público subjetivo do autor do fato, de modo a possibilitar
que seja apresentada contra a vontade do Ministério Público, quer por
iniciativa do juiz, quer por requerimento do interessado. Trata-se, aqui, do
eventual exercício da pretensão punitiva, cabendo exclusivamente ao Promotor de
Justiça a titularidade do jus persequendi in judicio, nos expressos termos do art. 129, I, da
Constituição Federal” (in Juizados especiais criminais, São Paulo: Atlas, 1997,
p. 82).
O
renomado processualista assinala ainda que “O Ministério Público é o titular,
privativo, da ação penal pública, afastada a possibilidade de iniciativa e,
portanto, de disponibilidade por parte do juiz (art. 129, I, da Constituição
Federal). Não pode, portanto, a lei, e muito menos uma interpretação extensiva
dela, retirar-lhe o direito de pedir a prestação jurisdicional quando entende
que deva exercê-la. Consagrado pela Constituição Federal o sistema acusatório,
onde existe a separação orgânica entre o órgão acusador e o órgão julgador, não
pode um usurpar a atribuição e competência do outro. Por conseqüência, ao
titular do jus persequendi pertence com exclusividade
também a disponibilidade da ação penal quando a lei mitiga o princípio da
obrigatoriedade”.
E
arremata que “A concessão do benefício sem a concordância do Ministério Público
desnatura a relação própria dessa espécie de transação admitida pela
Constituição Federal. Consenso é ato bilateral, acordo, livre adesão de
vontades e, onde há obrigatoriedade ou imposição a uma das partes, não se pode
falar em transação ou consenso” (op. cit., p. 153).
Por
essa natureza bilateral, admite-se, na suspensão condicional do processo, a
existência de contraproposta por parte do acusado, restando apenas, como
verdadeiro direito subjetivo, o de obter do Ministério Público, como ente da
Administração, uma prestação, entendida esta como manifestação positiva ou
negativa e fundamentada, acerca da transação ou da suspensão, quer acordando,
quer não.
22.
Conclusão
A
título de conclusão, podemos delinear os seguintes tópicos, já respondendo à pergunta-título:
1. A
suspensão condicional do processo e a transação não constituem direitos
subjetivos do acusado, mas sim faculdades postas à disposição do Ministério
Público para fins de política criminal, no exercício da ação penal, agora
informada pelo princípio da oportunidade.
2.
O acusado somente tem direito subjetivo à manifestação, negativa ou positiva,
do Estado-Administração quanto aos institutos dos arts. 76 e 89 da Lei n. 9099/95. A suspensão e a transação,
resultantes do acordo de vontades e da conformidade, constituem meras
expectativas de direitos.
3.
Ante a recusa do Ministério Público em oferecer proposta, o juiz não pode agir
ex officio, cabendo-lhe remeter os autos ao
Procurador-Geral, mediante aplicação analógica do art. 28 do CPP. O Parquet é ente do Estado-Administração
e decide conforme a legalidade e o mérito administrativo, cuja apreciação,
dentro do âmbito de discricionariedade, é vedada ao Judiciário.
4. A
Lei n. 9099/95 tem como fundamento o consenso, prevendo um processo de partes,
não se permitindo a violação da autonomia da vontade de qualquer delas. Nesse
sentido, em atenção à isonomia e à bilateralidade, não pode o magistrado
conceder a suspensão ou a transação, atendendo requerimento do acusado, sem a
concordância do Parquet.
5.
No sistema processual penal brasileiro, vige o princípio acusatório (art. 129,
I, CF), com rígida separação das funções do órgão acusador e do órgão julgador.
Este está vinculado ao princípio da inércia da jurisdição de forma a garantir
sua imparcialidade. Aquele é o titular privativo da ação penal, exercendo-a em
um processo contraditório.
6.
De lege ferenda, sugere-se
o aperfeiçoamento do reexame hierárquico da negativa ministerial à transação
lato sensu, de modo a permitir o controle por órgão
colegiado da Administração Superior do Ministério Público.
7. Propõe-se também, no direito do porvir, seja admitida, em caso de
inércia absoluta do Ministério Público, que a vítima, seu representante legal,
ou qualquer interessado (nos crimes vagos), ofereça proposta subsidiária de
suspensão condicional, nos moldes da ação penal privada substitutiva da pública
(art. 5º, inciso LIX, da CF).
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