Taxatividade das novas Medidas Cautelares do artigo 319, CPP de acordo com a Lei 12.403/11

A Lei 12.403/11 trouxe à legislação processual penal várias medidas cautelares diversas da Prisão Provisória com a finalidade de prover os operadores do Direito de instrumentos hábeis a evitar o aprisionamento prematuro sem que haja prejuízo à efetividade da prestação jurisdicional, da investigação policial e da segurança e tranquilidade dos envolvidos em um episódio criminal.


Com esse novo rol de cautelares alternativas a Prisão Preventiva torna-se efetivamente uma “medida extrema” ou de “ultima ratio”, conforme se espera em um sistema constitucional que privilegia a liberdade provisória com vistas ao Princípio da Presunção de Inocência. [1] Outra coisa não diz o § 6º do artigo 282, CPP, com a nova redação conferida pela Lei 12.403/11. [2]


Para deliberar pela aplicação de uma medida cautelar, seja ela do rol do artigo 319, CPP ou mesmo uma prisão provisória, deverá sempre o Juiz levar em conta os critérios da necessidade e da adequação previstos no  artigo 282, incisos I e II.


Acontece que com o advento das previsões expressas do artigo 319, CPP em sua nova redação, vem à tona, com maior ênfase, uma antiga discussão, qual seja: poderia o Juiz no Processo Penal adotar medidas cautelares não previstas legalmente com fulcro no chamado “Poder Geral de Cautela”?


O Código de Processo Penal não previa e nem vem a prever com a atual reforma esse chamado “Poder Geral de Cautela”, o que já apontaria, “ab initio”, para a vedação de sua aplicação nessa sede. No entanto, há quem indique a possibilidade de integração do ordenamento com as normas do Processo Civil, cujo Código respectivo prevê expressamente o “Poder Geral de Cautela do Juiz” no artigo 798, CPC. [3]


Como lembra Theodoro Júnior, mesmo no Processo Civil, antes da previsão expressa operada em 1973, havia alguma relutância em admitir em toda sua extensão o chamado “Poder Geral de Cautela”. [4] Obviamente, nessa seara, a partir da previsão expressa, cessaram quaisquer dúvidas, de modo que se pode tranquilamente falar em cautelares nominadas (previstas expressamente no CPC como um rol exemplificativo) e cautelares genéricas ou inominadas (derivadas do “Poder Geral de Cautela”). [5]


Mas, será possível estender esse mesmo tratamento para o ramo processual penal, de modo a considerar o rol do artigo 319, CPP como exemplificativo, podendo o Juiz deliberar por cautelares não previstas pela lei, mas adequadas e necessárias ao caso concreto nos termos do artigo 282, I e II, CPP?


A discussão acerca da aplicabilidade do “Poder Geral de Cautela” ao Processo Penal não é nova e ganha reforço com os atuais dispositivos que impõem com maior rigor a “ultima ratio” das prisões provisórias e arrolam medidas cautelares alternativas.


Para Iennaco, “o rol é exemplificativo, nada impedindo que o juiz, com base no poder geral de cautela, determine outras medidas, desde que fundadas em critérios análogos aos que informam as hipóteses dos incisos I a IX do artigo 319, do CPP, bem como inspiradas, no plano concreto, nas diretrizes gerais do artigo 282”. No entendimento do autor, a consideração do rol do artigo 319, CPP como taxativo perverteria o intento legislativo de tomar a prisão provisória como media extrema, fazendo com que, em certos casos, onde seria cabível e efetiva uma cautelar inominada para evitar a prisão, assim não se pudesse agir, impondo a prisão sem necessidade e adequação. [6]


Embora discordando daqueles que tecem uma crítica exagerada à denominada “Teoria Geral do Processo”, aduzindo que esta promoveria uma equivocada homogeneização do Processo, permitindo certa invasão do Processo Penal por institutos do Processo Civil a ele inadequados [7], deve-se realmente admitir que determinados institutos e normas processuais civis não podem simplesmente serem transportados para o campo processual penal. Uma “civilização” do Processo Penal, não no bom sentido de torná-lo “civilizado” ou “humanizado”, mas no de promover uma verdadeira “colonização” do ramo penal, tornando-o uma espécie de parente pobre ou miserável do Processo Civil, pode ser altamente deletéria. Há tempos Carnelutti já chamava atenção para a miserabilidade ínsita ao Processo Penal, não somente por sua técnica menos apurada, mas, principalmente, pelas questões humanas com que lida e pelos limites naturais impostos à solução dos problemas e conflitos por ele enfrentados. [8] É de se ressaltar, porém, que a “Teoria Geral do Processo”, bem entendida e aplicada, visa exatamente  identificar o que há de comum e o que há de específico em cada ramo processual. Não por outra razão pretende identificar princípios gerais e princípios específicos do processo:


“Através de uma operação de síntese crítica a ciência processual moderna fixou os preceitos fundamentais que dão forma e caráter aos sistemas processuais. Alguns desses princípios básicos são comuns a todos os sistemas; outros vigem somente em determinados ordenamentos. Assim, cada sistema processual se calca em alguns princípios que se estendem a todos os ordenamentos e em outros que lhe são próprios e específicos”. [9]


Não se pretenderá, de forma alguma, devido à “Teoria Geral do Processo”, aplicar a confissão presumida ao Processo Penal, pois haveria violação ao Direito ao Silêncio e à Presunção de Inocência. Mesmo princípios gerais como, por exemplo, a ampla defesa, deverão ser aplicados com alguma diferenciação conforme o ramo processual, não podendo ser dotados da mesma conformação no campo civil e penal. Mas isso não invalida a afirmação de que esse princípio (ampla defesa) seja comum a todos os ramos processuais. Apenas uma visão míope da “Teoria Geral do Processo” como um pensamento unificador simplista e insensível às diferenças entre os diversos ramos processuais é que pode levar alguém a formular uma crítica exacerbada dessa construção teórica que tanto pode ajudar numa melhor compreensão e aplicação da ciência processual. Inclusive no caso em estudo, esse discernimento possibilitado pela “Teoria Geral do Processo” entre aquilo que é comum e aquilo que é específico de cada ramo pode ser muito útil para deslindar a questão da existência ou não de um “Poder Geral de Cautela” no Processo Penal por integração com a norma expressa do Código de Processo Civil.


Inobstante se tenha atualmente uma segura visão acerca da distinção entre direito material e direito formal, não se pode perder de vista a noção da interdisciplinariedade extremamente próxima existente entre os ramos do Direito Penal e do Direito Processual Penal. Na verdade um ramo jurídico não pode ser pensado apartado do outro, eles se influenciam mutuamente. Conforme afirmam Zaffaroni e Batista, “apesar de ninguém pretender que o direito processual pertença ao direito penal em sentido estrito, deve com ele manter uma vinculação estreita e mesmo certo grau de dependência, já que o direito processual é sempre um meio e não um fim em si mesmo”. [10] Ora, como o Direito Penal atinge diretamente a liberdade e a dignidade da pessoa humana e seu instrumento de concretização, sem o qual “não toca sequer um fio de cabelo do delinquente” [11], é o Processo Penal, não se pode chegar a outra conclusão senão a de que este último deve orientar-se por garantias bastante semelhantes, especialmente quando se refere à ingerência em Direitos Fundamentais do indivíduo.


Isso é o que ocorre no que tange às medidas cautelares arroladas no artigo 319, CPP, já que é induvidoso que tocam na liberdade das pessoas, ainda que de forma atenuada. E assim sendo, submetem-se também à garantia da reserva legal, podendo-se falar numa exigência de “tipicidade processual penal”. [12] A matéria versada impediria um transplante a fórceps do “Poder Geral de Cautela” ao Processo Penal, não sendo de desprezar a lição de Lopes Júnior quanto à necessidade de “respeito às categorias jurídicas próprias” desse ramo processual. Segundo o autor, “não se pode transportar alguns conceitos das medidas cautelares em geral para o processo penal de forma imediata e impensada, consistindo grande equívoco a busca da aplicação literal da doutrina processual civil ao processo penal”. [13]


Também alerta Fernandes sobre as dificuldades advindas do estudo da cautelaridade no processo penal a partir de categorias vindas do processo civil, já que em muitos casos sua adaptação ao ramo penal e suas especiais exigências torna-se inviável. [14] E sobre o tema específico da taxatividade das cautelares processuais penais,  Machado é incisivo:


“Com efeito, a previsão legal dessas medidas é exigência indeclinável para a sua decretação, afastado que está, em matéria penal, o chamado ‘poder geral de cautela’ do juiz, previsto em nosso ordenamento jurídico apenas na esfera processual civil”. [15]


Talvez um caminho bem preferível ao da simples integração do processo penal e do processo civil com relação ao “Poder Geral de Cautela”, fosse o aceno com o argumento da, aceitável em certos casos até no Direito Penal, “interpretação extensiva ou analógica”. [16] Com ela, pode-se ampliar um rol trazido pela lei a casos semelhantes, tal como ocorre no homicídio qualificado em que o legislador usa de exemplos casuísticos e encerra com uma ou mais fórmulas genéricas. Mas para isso seria necessário que o legislador houvesse assim agido, ou seja, tivesse fechado o dispositivo com um inciso ou um parágrafo que deixasse ao intérprete a ampliação para casos imprevistos. Poderia o legislador ter feito isso, simplesmente inserindo ao final do dispositivo a norma permissiva que diria que ao juiz seria dado estabelecer outras medidas semelhantes ainda que não expressamente previstas. Mas o legislador assim não o fez.


O argumento de que na ausência do “Poder Geral de Cautela” haveria imposição de Prisão Provisória desnecessária também não convence, a uma porque o rol delineado no artigo 319, CPP é bastante satisfatório, a duas porque, ao reverso, se imporia aos magistrados a exigência de uma criatividade infinita que na realidade iria prejudicar o interesse social em certos casos nos quais a custódia cautelar se faz realmente necessária.  De outra banda o direito individual dos investigados e processados correria também o risco de ser aviltado por cautelares descabidas e sem sustento legal, impostas de forma atabalhoada, mesmo em casos nos quais não se cogitaria de eventual prisão cautelar. Note-se que nesses casos, aí sim, em virtude de eventual descumprimento de medida cautelar atípica, poderia dar-se azo ao decreto de Prisão Preventiva nos termos do artigo 312, Parágrafo Único c/c 282, § 4º, CPP (nova redação).


Ademais, é plenamente possível ampliar o rol do artigo 319, CPP, sem dano à tipicidade processual penal, mediante recurso às legislações esparsas aplicáveis a determinados casos concretos, tais como a Lei 11.340/06 (medidas protetivas de urgência – artigos 22 a 24); o Código de Trânsito Brasileiro – Lei 9503/97 (Suspensão preventiva da habilitação – artigo 294, CTB); Lei 11.343/06 (artigos 60 a 62) etc. Também é possível recorrer ao próprio Código de Processo Penal (Busca e Apreensão – artigo 240 e seguintes, CPP; Medidas Assecuratórias – artigo 125 e seguintes) entre outras. Isso sem olvidar o recurso efetivo ao Processo Civil para obtenção de determinadas tutelas, bem como aos regramentos de Direito Administrativo Disciplinar que preveem afastamentos provisórios de exercício funcional, retenção de armas de policiais e outros funcionários públicos que as portam, entre outros recursos possíveis de serem obtidos em ramos do Direito diversos da seara Penal e Processual Penal, em obediência à fragmentariedade e à “ultima ratio”.


Portanto, outra conclusão não deve prosperar a não ser a de que o rol do artigo 319, CPP deve ser interpretado como taxativo em respeito às especiais exigências do ramo processual penal que neste caso não são compatíveis com o “Poder Geral de Cautela” previsto na seara processual civil, tendo em vista principalmente a necessidade de “tipicidade processual penal” sempre que se trate de normas restritivas de direitos individuais.   


A nova redação imprimida ao Código de Processo Penal pela Lei 12.403/11 põe fim à indigência da chamada “bipolaridade das cautelares no Processo Penal”, ou seja, um sistema no qual o Juiz ficava adstrito somente a duas opções opostas e extremas (a liberdade provisória ou a prisão provisória). Com o disposto no novo artigo 319, CPP, abre-se todo um leque de alternativas, promovendo-se uma diversificação e um sistema que se poderá doravante denominar de “pluralidade ou diversidade cautelar”. Não obstante, falar em “pluralidade e diversidade cautelar” não pode ser sinônimo de “indeterminabilidade cautelar”, “inumerabilidade cautelar” ou de um sistema “cautelar processual penal aberto”, como poderia ocorrer se acaso estendido o “Poder Geral de Cautela” do Processo Civil ao Processo Penal. Afinal, no Processo Penal, ao se lidar com os direitos e garantias individuais, quando se trata de cautelares, o mínimo que se deve exigir do legislador e dos intérpretes é que atuem com a devida cautela.


 


Referências bibliográficas:

CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. Trad. José Antonio Cardinalli. Campinas: Conan, 1995.

CINTRA, Antonio Carlos de Araujo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 8ª ed. São Paulo: RT, 1991.

CRUZ, Diogo Tebet da. Aspectos controvertidos sobre o instituto da prisão preventiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 68, set./out., p. 214 – 261, 2007.

DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Garantismo, legalidade e interpretação da lei penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 67, jul./ago., p. 212 – 232,  2007.

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 1999.

IENNACO, Rodrigo. Reforma do CPP: Cautelares, Prisão e Liberdade Provisória. Disponível em www.direitopenalvirtual.com.br , acesso em 13.05.2011.

LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

MACHADO, Antônio Alberto. Curso de Processo Penal. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 13ª ed. São Paulo: Leud, 1992.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. Volume I. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006.


Notas:

[1] Artigos 5º, LVII e LXVI, CF.

[2] “A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319)”.

[3] “Além dos procedimentos cautelares específicos, que este Código regula no Capítulo II deste Livro, poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver  fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação”

[4] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar. 13ª ed. São Paulo: Leud, 1992, p. 99.

[5] Op. Cit., p. 99 – 10.

[6] IENNACO, Rodrigo. Reforma do CPP: Cautelares, Prisão e Liberdade Provisória. Disponível em www.direitopenalvirtual.com.br , acesso em 13.05.2011.

[7] CRUZ, Diogo Tebet da. Aspectos controvertidos sobre o instituto da prisão preventiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 68, set./out.,2007, p. 220 – 230.

[8] CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. Trad. José Antonio Cardinalli. Campinas: Conan, 1995, passim.

[9] CINTRA, Antonio Carlos de Araujo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 8ª ed. São Paulo: RT, 1991, p. 51.

[10] ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. Volume I. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 289.

[11] BELING, Ernst. Apud, Op. Cit., p. 289.

[12] Em artigo jurídico, Delmanto Júnior trata da questão do garantismo e da reserva legal no Processo Penal. Cf. DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Garantismo, legalidade e interpretação da lei penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 67, jul./ago., 2007, p. 218.

[13] LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 188.

[14] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 1999, p. 280.

[15] MACHADO, Antônio Alberto. Curso de Processo Penal. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 454.

[16] Toledo informa que o tema é controverso, mas a admissibilidade em certos casos predomina. Cf. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 27 – 28.

Informações Sobre o Autor

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.


Equipe Âmbito Jurídico

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