Teoria e aplicabilidade da função social da posse e da propriedade nos direitos reais enquanto instrumento de efetivação dos direitos fundamentais

Resumo: O referido artigo tem por escopo o estudo da função social da posse e propriedade enquanto instrumento de efetivação dos Direitos Fundamentais à luz do texto constitucional e do Constitucionalismo Contemporâneo, ressaltando a compreensão dos fenômenos sociais desta sociedade complexa em detrimento da pluralidade de direitos que lhe é proposta. Alude-se a função social da posse tendo em vista os princípios constitucionais.


Palavras-chaves: função social; posse; propriedade; direitos fundamentais; Constituição.


Resume: The article aims at studying the social function of ownership and property as a tool for enforcement of Fundamental Rights in the light of the constitutional text and Contemporary Constitutionalism, emphasizing the understanding of social phenomena of this complex society at the expense of the plurality of rights that is proposal. Alludes to the social function of ownership regarding the constitutional principles. [1]


Keywords: social function; possession, ownership, fundamental rights; Constitution.


Sumário: Introdução. 1. Definição básicas; 1.1 Da Posse; 1.2 Da Propriedade; 2. Da Função Social; 3. A Função Social da posse e da propriedade enquanto instrumento de efetivação dos direitos fundamentais. 4. Considerações Finais. 5. Referências.


INTRODUÇÂO


O presente artigo se propõe a expor alguns dos aspectos relevantes à relativização do direito de propriedade sob o prisma do instituto da função social, em decorrência natural da necessidade de se atender ao atual contexto social. Dessa forma, entende-se a função social da posse como corolário da efetivação dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares, tais como conferindo efetividade aos direitos de moradia, dignidade da pessoa humana, dentre outros direitos e garantias constitucionais.


O estudo em tela também alude aos aspectos controvertidos como a interpretação do resultado de eventual confronto entre propriedade privada e função social, classificação jurídica e doutrinária, bem como aferir a efetiva satisfação do atendimento ao interesse coletivo entendida como a materialização da função social da propriedade. Ressaltando aqui a concepção do jurisconsulto Otto Von Gierke de que “o Direito Público deve estar alentado por um sopro do ideal de liberdade jurídico natural, e nosso Direito Privado tem que estar impregnado por uma gota de socialismo”.


Vale ressaltar que o presente artigo não pressupõe aqui esgotadas as peculiaridades inerentes à temática abordada. Dantes, porém, entende que a função social da posse enquanto instrumento de efetivação dos direitos fundamentais contempla um espaço inexorável e imprescindível, devendo ser operacionalizado e fundamentado de forma compatível à sua magnitude.


Nada obstante, tem-se nas posições doutrinárias majoritárias sobre o tema e sob a ótica do texto constitucional que versam sobre os direitos e garantias individuais, o pressuposto de cláusula pétrea alcançado pelo instituto da função social.


Ao colocar em análise tal temática, faz-se mister também versar sobre definições e diferenças básicas entre os conceitos de posse e propriedade; visto que a função social da posse é um instrumento recente que objetiva satisfazer uma necessidade social e econômica. Isto posto, não deve ser confundido com a função social da propriedade, assim como sua utilização na doutrina e jurisprudência.


1- DEFINIÇÕES BÁSICAS


“Os ditames fundamentais dos direitos de propriedade devem vir sempre disciplinados  na Lei Maior. A razão de ser da propriedade deve ser buscada em cada país, em cada ordenamento, em cada época, em sua organização política, social e econômica. Em termos gerais, podemos afirmar que, enquanto os direitos pessoais ou obrigacionais são estruturados para satisfazer basicamente às necessidades individuais, os direitos reais buscam o aperfeiçoamento dos estágios políticos, sociais e econômicos, procurando não apenas satisfazer a necessidades individuais, mas também principalmente a coletivas. Por essa razão, a Constituição Federal assegura o direito de propriedade (art. 5º, XXII), mas acrescenta que ela ‘atenderá sua função social’ (art. 5º, XXIII) ”. (VENOSA, 2007, p. 24).


Segundo Venosa (2007) a ordem pública é fator preponderante na disciplina dos direitos reais, sendo normas definidoras de tais direitos, bem como guarda relação direta com o conteúdo institucional da propriedade. Antes de conceituar posse e propriedade, para atentar à sua função social, faz-se necessário um esclarecimento sobre o direito real e a eficácia erga omnes, em face ao absolutismo histórico da propriedade e a relativização do direito.


Etimologicamente, o vocábulo ‘res’ significa coisa; estuda-se nesse capítulo o direito das coisas. Contudo, a conotação dada a palavra coisa é mais subjetiva, por isso é impertinente afirmar que o livro dos direitos reais findam-se em um objeto jurídico absoluto.


Em referência à tradição, os direitos reais são tidos como absoluto. Entretanto, Diniz (2006) adverte que admitir a existência de direitos estritamente absolutos é negar a própria existência do direito. Ainda sobre a polêmica, aponta Venosa apud José Oliveira Ascensão (1987: 56) que o caráter absoluto dos direitos reais deve ser visto em paralelo com os direitos relativos. Nesse ínterim, permite-se inserir o instituto da função social também na pose e propriedade como instrumento que transcende o absolutismo dos direitos reais e se apresenta como limitador dos interesses privados ante aos coletivos, de ordem social.


1.1- Da Posse


Segundo Diniz (2006), o conceito de posse por mais que etimologicamente pareça simples, é dantes doutrinariamente uma tarefa árdua devido à ambigüidade do termo e pelo seu emprego em sentido impróprio para designar propriedade, condição de aquisição do domínio, exercício do direito e etc. A posse pode ser real ou presumida, de boa-fé ou de má-fé, direta ou indireta. Existem duas teorias que definem o conceito de posse:


– Teoria de Savigny (Subjetiva): Para Savigny, a fim de se caracterizar a posse, é necessário que o possuidor tenha o “corpus” (ter a coisa em seu poder), e “animus” (vontade de ter a coisa como sua), sendo que se tiver somente o “corpus” não será considerado possuidor e sim, detentor, não tendo, com isto, proteção possessória.


– Teoria de Ihering (Objetiva): Para Rudolf von Ihering, a fim de se configurar a posse, há necessidade de se comprovar apenas o “corpus”, dispensando-se o “animus”, pois este encontra-se inserido naquele. Venosa acentua que ao separar a posse da propriedade, paralelamente está colocando a relação de posse ao “serviço” integral da propriedade.


A posse continua sendo, segundo muitos doutrinadores, um dos institutos mais controvertidos de todo o direito. Seu conceito, teorias, natureza jurídica e seus elementos são motivos de divergência doutrinária. Porém, no entendimento doutrinário majoritário, bem como do ordenamento pátrio, a posse é o fato que permite e possibilita o exercício do direito de propriedade.


“Considera-se possuidor todo aquele que tem o poder fatídico de ingerência socioeconômica, absoluto ou relativo, direto ou indireto, sobre determinado bem da vida, que se manifesta através do exercício ou possibilidade de exercício inerente à propriedade ou outro direito real suscetível de posse”. (PROJETO LEI N. 6.960/2002, art. 1.196)


Embora a redação estritamente técnica do artigo acima transcrito visar abarcar o conceito de posse de forma unitária, as divergências conceituais ainda subsistem.


1.2- Da Propriedade


A propriedade apresenta em seu conceito e compreensão, inúmeras influências no decorrer da história, desde a antiguidade até a moderna concepção da referida temática. Pode-se remeter ao estudo da propriedade na época feudal, no direito romano, no Estado liberal, absolutista, dentre outras épocas, visto que história da propriedade é decorrência direta da organização política do Estado.


Dantes considerada direito subjetivo absoluto, a propriedade atualmente é vista sob outra concepção, ao aliar-se a função social às suas faculdades inerentes de usar, gozar e dispor. O conceito de propriedade pode ser em suma, expresso como “direito que permite a um titular usar, gozar e dispor de certos bens, desde que ele o faça de modo a realizar a dignidade de pessoa humana” (Kataoka, 2000: 465).


Destarte, diferente da posse, a propriedade não apresenta a mesma capacidade intuitiva de percepção. A propriedade espelha um direito. De acordo com Venosa (2007), trata-se do direito mais amplo da pessoa em relação à coisa, sendo submetida à senhoria do titular, do “domunus”, conforme descreve o art. 1.228 do Código Civil de 2002: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.


Em suma, trata-se de um direito real que recai diretamente sobre a coisa e que é independente, tanto para o seu exercício, quanto para a prestação de quem quer que seja. O direito de propriedade é o mais amplo da pessoa em relação à coisa, conforme reza o art. 1228 do C.C, engloba tanto os bens corpóreos, incorpóreos, móveis e imóveis, mas impõe também, limitações.


Nada obstante, difere-se dos demais direitos reais, por incidir sobre a coisa própria, o “animus dóminus“. De acordo com Gomes apud Lafayete (2002: 98), o “Domínio é o direito real que vincula e legalmente submete ao poder absoluto de nossa vontade a coisa corpórea”.


Quanto á natureza jurídica da propriedade pode-se afirmar que o princípio da função social relativizou o individualismo, marcante no direito de propriedade na concepção passada. A propriedade não deixou de ser direito subjetivo tutelado pelo ordenamento jurídico, mas a função social altera a estrutura e o regime jurídico do direito de propriedade, atuando sobre o seu conceito e o seu conteúdo. A natureza da propriedade é vista hoje em um sentido predominantemente social.


2- Da Função Social


“A função social da posse como princípio constitucional positivado, além de atender à unidade e completude do ordenamento jurídico, é exigência da funcionalização das situações patrimoniais, especificamente para atender as exigências de moradia, de aproveitamento do solo, bem como aos programas de erradicação da pobreza, elevando o conceito da dignidade da pessoa humana a um plano substancial e não meramente formal. É forma ainda de melhor se efetivar os preceitos infraconstitucionais relativos ao tema possessório, já que a funcionalidade pelo uso e aproveitamento da coisa juridiciza a posse como direito autônomo e independente da propriedade, retirando-a daquele estado de simples defesa contra o esbulho, para se impor perante todos”. (ALBUQUERQUE, 2002, p. 40)


A posse é um instituto jurídico que vem satisfazer uma necessidade, que pode ser individual ou coletiva. Conforme já abordado, a posse é a utilização de um bem visando sua destinação socioeconômica. Ratifica-se, portanto, que a posse vem atender o princípio da dignidade da pessoa humana, e, pode-se elencar a dogmática jurídica materializadora da função social da posse nos artigos 1.238, parágrafo único, 1.239, 1.240, e, 1.242, parágrafo único do Código Civil.


Dentre as diversas importâncias da função social da posse, pode-se ressaltar o fato de que, como escreve Bercovici (2001: 107), “todo homem tem direito natural ao uso dos bens e à apropriação individual desses bens através da posse, a fim de atender a necessidade individual ou para o bem comum”.


Destarte, a função social da posse não pode ser entendida como uma limitação ao direito de posse, dantes, porém, como uma exteriorização do conteúdo agregado da posse, permitindo uma visão mais abrangente de sua utilidade social, bem como de sua autonomia em face de outros institutos jurídicos.


Sem embargo, cabe se fazer a distinção entre função social da propriedade e função social da posse. Vejamos, a função social da posse é mais evidente; a posse já é dinâmica em seu próprio conceito; e, o fundamento da função social da posse revela uma expressão natural da necessidade. A função social da propriedade é menos evidente; sua finalidade é instituir um conceito dinâmico de propriedade em substituição do conceito estático; e, o fundamento da função social da propriedade é eliminar da propriedade o que há de eliminável.


Apesar da função social da posse ser trabalhada apenas com princípios constitucionais positivados isso não a torna menos importante que a função social da propriedade, por exemplo, mas não devemos confundir os institutos, pois eles são autônomos e independentes. A função social da posse relaciona-se com o uso da propriedade, alterando, alguns aspectos pertinentes a essa relação externa que é o seu exercício. E por uso da propriedade é possível verificar o modo com que são exercidas as faculdades ou os poderes inerentes ao direito de propriedade.


A função social da posse está em um plano distinto, pois a função social é mais evidente na posse e muito menos na propriedade, que mesmo sem o uso pode se manter como tal. O fundamento da função social da propriedade é eliminar da propriedade privada o que há de eliminável, ou seja, tem limitações fixadas no interesse público e tem a finalidade de instituir um conceito dinâmico a propriedade. O fundamento da função social da posse, por sua vez, revela uma expressão natural da necessidade.


A posse vem sendo motivo de longas discussões na doutrina e na jurisprudência. As controvérsias que a envolvem geralmente se referem aos questionamentos dogmáticos que são levantados no sentido de destacar a sua dependência e subsidiariedade em relação à propriedade.


No entanto, há um majoritarismo doutrinário que defende a função social da posse / propriedade; entendimento esse baseado no princípio constitucional da função social. A Constituição, em seus artigos 5º, caput e inciso XXII e 170, inciso II, o direito à propriedade privada. Contudo, limita nos artigos 5º, inciso XXII e 170, inciso III, o exercício do direito de propriedade, quer seja móvel ou imóvel, estipulando que deve a mesma atender a sua função social.


Nesse sentido, prevalece o princípio de que os interesses e necessidades da coletividade se sobrepõem aos interesses individuais, devendo a propriedade, primariamente, atender à sua função social, sem perda do valor fundamental da pessoa humana, assunto a ser tratado mais adiante no presente trabalho.


A Constituição preceitua ainda, em alguns casos especiais, o sentido de função social, como a função social da propriedade imóvel urbana, no parágrafo 2º do artigo 182, e da propriedade imóvel rural, artigo 186, devendo o direito de propriedade ser compatível com a preservação do meio-ambiente, conforme artigo 186, inciso II, e 225 e seguintes da Constituição.


Vale ressaltar que a interferência constitucional no Direito Civil causou grandes impactos ao Projeto de Código Civil, tanto que, após a promulgação da Constituição Federal em 1988, teve ele que ser adaptado às novas realidades, passando a abranger as mudanças impostas pelo novo texto constitucional, como as acima citadas.


A função social, portanto, incide no conteúdo do direito de propriedade, impondo-lhe novo conceito. A constituição posiciona a propriedade privada como princípio da ordem econômica, submetendo-a aos ditames da justiça social. Dessa forma, legitima a propriedade enquanto cumpre sua função social.


O Código Civil estabele regras ligadas à finalidade social e econômica da propriedade. Esse o caso da norma do art. 1.229, que apesar de inserir na abrangência da propriedade do solo o espaço aéreo e subsolo, retira a garantia de proteção do direito do proprietário se desenvolvidas atividades por terceiros a “uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las.”


Da mesma forma, o §2º do art. 1.228 consagrou proibição ao abuso do direito de propriedade, ao estabelecer serem “defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.”


Venosa destaca que essas regras demonstram como a propriedade também é concebida como fator econômico e social, e, a constitucionalidade de tais preceitos não desperta controvérsias, na medida em que a função social compõe o próprio direito de propriedade, que aliás não é absoluto – até porque se relaciona com mais de um só sujeito.


Sobre a falta de absolutismo do direito, a própria Constituição confere à União exceções nas quais podem ser requeridos os usos da propriedade para fins de necessidade pública, valendo-se do princípio da função social da mesma.


Outra matéria que ressalta a função social da posse é no que tange à aquisição da propriedade imóvel por usucapião. Os artigos 1.239 e 1.240 versam sobre as hipóteses de usucapião criadas pela CF/88, bem como diminuído o prazo da usucapião ordinária para 15 anos (caput do art. 1.238), salvo se o possuidor houver estabelecido no imóvel moradia habitual ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo, caso em que o prazo cai para 10 anos (par. único do art. 1.238).


 A constituição ainda esclarece os seguintes conceitos para que não haja dúvida na aplicação do caso concreto, apresentando o conceito de moradia habitual ou (note-se o caráter alternativo dos requisitos) a realização de obras ou serviços que remedeiem a inércia do proprietário reduz o prazo da usucapião, ainda que ausente a boa-fé do possuidor.


Em suma, vale salientar que a função social da propriedade foi positivada, em nosso direito, com o advento da Constituição Federal de 1988. A Carta Maior da República dispõe que a propriedade atenderá sua função social, inteligência do art. 5o, inciso XXIII. Também, em seu art. 170, inciso III, determina que a ordem econômica observe a função da propriedade, impondo freios à atividade empresarial.


Teori zavascki define a função social da propriedade e da posse como “ um princípio que diz respeito à utilização dos bens, e não à sua titularidade jurídica, a significar que sua força normativa ocorre independentemente da específica consideração de quem detenha o título jurídico de propriedade. Os bens, no seu sentido mais amplo, as propriedades, genericamente consideradas, é que estão submetidas a uma destinação social, e não o direito de propriedade em si mesmo”.


3- A Função Social da posse e da propriedade enquanto instrumento de efetivação dos direitos fundamentais.


Segundo Krell (2002: p.19), os direitos fundamentais sociais “não são direitos contra o Estado, mas sim direitos através do Estado, exigindo do poder público certas prestações materiais”.  Tais direitos são elencados no texto constitucional, e, possuem diversos estudos doutrinários que defendem sua conceituação e evolução histórica no decurso das chamadas dimensões dos direitos fundamentais.


“(…) como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitem melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao aferimento de igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.” (SILVA , 1955, p. 276-277)


Nesse ínterim, observa-se que os pilares da Carta de 1988 pressupõem que os Direitos Fundamentais possuem eficácia erga omnes. De acordo com Sarmento (2004), os direitos fundamentais devem ser respeitados nas relações privadas, pois “resultam de lutas e batalhas travadas no tempo, em prol da afirmação da dignidade humana”. Dessa forma tem-se uma ampliação, tanto verticalmente quanto horizontalmente da aplicabilidade da função social enquanto ‘efetivadora’ desses direitos fundamentais.


Nada obstante, esclarece-se que a aplicabilidade dos Direitos Fundamentais nas relações privadas deve proceder-se com a devida observância do caso concreto. A teoria da eficácia direta ou imediata dos Direitos Fundamentais nas relações privadas pondera o direito fundamental com a autonomia privada dos atores da relação submetida à análise.


Ressalta-se ainda que a efetividade e o adensamento dos Direitos Fundamentais apresentam como meio eficaz para consubstanciar a democracia e a dignidade da pessoa humana.


 “este gérmen da funcionalização social do instituto da posse é ditado pela necessidade social, pela necessidade da terra para o trabalho, para a moradia, enfim, necessidades básicas que pressupõem o valor de dignidade do ser humano, o conceito de cidadania, o direito de proteção à personalidade e à própria vida. Por isso pode-se dizer que a função social da posse não é limitação ao direito de posse. É sim, exteriorização do conteúdo imanente da posse, permitindo uma visão mais ampla do instituto, de sua utilidade social e de sua autonomia diante de outros institutos jurídicos como o do direito de propriedade. A posse possui como valores sociais a vida, a saúde, a moradia, igualdade e justiça”. (ALBUQUERQUE , 2002, p. 12)


Ressalta-se ainda que a efetividade e o adensamento dos Direitos Fundamentais apresentam como meio eficaz para consubstanciar a democracia e a dignidade da pessoa humana. A função social da posse tem por objetivo instrumentalizar a justiça, fazendo-se cumprir direitos tais como moradia, trabalho, e à própria vida, pois não se concebe dignidade e vida sem o mínimo necessário para a subsistência.


Trata-se, porém, de uma necessidade social e econômica, e por isso a posse e a propriedade precisa de função social para cumprir os requisitos a ela atinentes. Para tanto, são diversos os instrumentos de cumprimento da função social da propriedade, decorrentes da importância assumida no texto constitucional vigente.


 Tais formas são geralmente revestidas de eficácia e aplicabilidade advindas de fontes distintas. Destarte vale observar que referidos instrumentos emergem fundamentalmente do texto constitucional, são regulamentados por vasta e complexa legislação infraconstitucional, bem como dos principais dispositivos apresentados pelo novo Código Civil de 2002, interpretados sob a ótica do direito privado.


“A função social (da propriedade) está integrada, pois ao conteúdo mínimo do direito de propriedade, e dentro deste conteúdo está o poder do proprietário de usar, gozar e dispor do bem, direitos que podem ser objetos de limitações que atentem a interesses de ordem pública ou privada. […] A função social da propriedade assume dois relevantes aspectos, […] o primeiro, se referindo aos aspectos estático da propriedade, da sua apropriação, estabelecendo limites para a extensão e aquisição da propriedade por parte do proprietário. O segundo, legitimando a obrigação de fazer ou de não fazer, incidindo diretamente sobre a atividade de desfrutamento e de utilização do bem e condicionando a estrutura do direito e o seu exercício”. (ALBUQUERQUE , 2002, p. 53-54)


A atribuição de uma função social à propriedade está inserida no movimento da funcionalização dos direitos subjetivos. Segundo Miguel Reale (1992), a propriedade desempenha uma função social quando está voltada à realização de um fim economicamente útil, produtivo, em benefício do proprietário e de terceiros, especialmente quando se dá a interação entre o trabalho e os meios econômicos. Dessa forma, observa-se que a teoria e aplicabilidade da Função Social da posse e propriedade funcionam não como meio limitador do direito real, mas como meio fomentador e promulgador da efetivação de direitos fundamentais, garantidos no texto constitucional vigente.


“Isto não significa dizer que o direito de propriedade tenha deixado o campo da regulação privada, passando a integrar o domínio do Direito Público. É que atribuição da função social aos bens enseja, em nossa mente antropocêntrica, centrada e concentrada na idéia de “direito subjetivo”, um verdadeiro giro epistemológico, para que passemos a considerar o tema a partir de suas efetivas utilidades: em outras palavras, a função social exige a compreensão da propriedade privada já não como o verdadeiro monólito possível de dedução nos códigos oitocentistas, mas como uma pluralidade complexa de situações jurídicas subjetivas, sobre as quais incidem, escalonadamente, graus de publicismo e de privatismo, consoante o bem objeto da concreta situação jurídica”. (MARTINS-COSTA, 2002, p. 96)


4- Considerações finais


A função social da propriedade foi positivada, em nosso direito, com o advento da Constituição Federal de 1988 e de diversas leis infraconstitucionais que a disciplinam. Ressalta-se também que uma análise doutrinária do instituto da função social da posse como corolário da efetivação dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares revela a necessidade de se observar o caso concreto e a possibilidade de aplicação indireta desses direitos nas chamadas relações horizontais.


Nesse ínterim, percebe-se que a propriedade é um direito doravante visto no coletivo e não de forma individualista, atendendo, portanto aos interesses da coletividade mediante a destinação para a sua função social, conforme previsão do texto constitucional. Disto deflui o fato de a propriedade que não cumprir a sua função social, não terá garantia constitucional, e que o seu proprietário não deverá ter assegurada a defesa nas ações possessórias.


A função social da posse não significa uma limitação ao direito de posse, mas a exteriorização do conteúdo imanente da posse. Isso nos permite uma visão mais ampla do instituto, de sua utilidade social e de sua autonomia diante de outros institutos jurídicos, como por exemplo, o direito de propriedade.


O referido artigo pretendeu, através do estudo dos principais conceitos e nuances da temática abordada, discutir a teoria e aplicabilidade da função social da posse e propriedade nos direitos reais, enquanto instrumento de efetivação dos direitos fundamentais. Isso posto, percebe-se que tal instituto revolucionou toda a pragmática e sistemática do direito atual, passando o mesmo a atender precipuamente as necessidades coletivas.


A função social da posse vem ao encontro do princípio da igualdade, eleva o conceito da dignidade da pessoa humana, fortalece a idéia de Estado Democrático de Direito e ameniza as necessidades vitais da sociedade, como a moradia e o trabalho, além de outros valores sociais, como o valor à vida, a saúde, a igualdade, a cidadania e a justiça. Vale dizer, que a função social do instituto da posse é estabelecida pela necessidade social, pela necessidade da terra para o trabalho, para a moradia, ou seja, para as necessidades básicas que pressupõem a dignidade do ser humano.


 


Referências

ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua conseqüência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2005.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2001.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 4, São Paulo: Saraiva, 2006.

GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade, in Problemas de Direito Civil Constitucional – coord.: Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2000.

KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: Os (Des)Caminhos de um Direito Constitucional Comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

MARTINS-COSTA, Judith. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 10 ed. São Paulo: Malheiros. 1995.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direitos reais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2002. 


Notas:

[1] Orientador: Messias Malheiros Meira.

Informações Sobre os Autores

Camila Alves Oliveira

formada em Comunicação Social pela Universidade Estadual de Santa Cruz – BA, Pós-Graduada em Tecnologia e Educação pela Universidade de São Paulo e Acadêmica de Direito da FTC/Itabuna

Jane Russel de Oliveira Malheiros Meira

Messias Malheiros Meira

formado em Farmácia Bioquímica, pela Universidade Federal de Minas Gerais, licenciado em Matemática pela PUC-MG, formado em Direito e Administração pela Universidade Estadul de Santa Cruz, BA, mestre em Genética e Biologia Molecular pela UESC-BA, e professor de Direito da Faculdade de Tecnologia e Ciências


Equipe Âmbito Jurídico

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