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Teoria Pura do Direito sob enfoque dogmático privilegiado

Resumo: Vislumbra analisar a Teoria Pura do Direito através de um enfoque dogmático privilegiado. A importância do tema em questão decorre da grandiosidade da referida teoria para o Direito, partindo de que a idéia kelseniana é considerada um marco pela tentativa de conferir à ciência jurídica métodos e objetos próprios, com condições de superar as confusões metodológicas e de dar ao jurista uma autonomia científica. Assim, justifica-se o surgimento do propósito denominado princípio da pureza, segundo o qual método e objeto da ciência jurídica deveriam ter como premissa básica o enfoque normativo. Através da sistematização e compreensão do conjunto normativo emanado pelo Estado, é necessário o domínio de determinadas categorias operacionais. Nesse diapasão, as teorias jurídicas utilizam como ponto de partida a noção de poder originário como forma de justificar o ordenamento jurídico estatal e, então, submetem a interpretação das normas à vontade da lei ou do legislador. Trata-se de uma exigência de racionalização do Direito, que permite enxergá-lo como um sistema unitário e hierárquico de normas. Essa racionalização, entretanto, provoca algumas separações, como ocorre entre direito e sociologia, culminando na “purificação” do direito.  O profissional do direito deve partir do pressuposto de que as normas advêm de um legislador racional e possuem vida própria, sendo capazes de condicionar comportamentos sem serem condicionadas por eles.


Palavras-chave: Teoria Pura. Direito. Dogmática. Kelsen.


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Sumário: 1. Introdução; 2. A vertente kelseniana; 2.1. O sistema estático e o dinâmico; 2.2. O príncípio metodológico fundamental; 2.3. Norma jurídica e proposição jurídica; 2.4. Norma hipotética fundamental; 2.5. Validade e eficácia; 2.6. A sanção; 2.7. O positivismo; 3. A interpretação verdadeira; 4. Impossibilidade da sociologia; 5. A relação entre as doutrinas de Max Weber e de Hans Kelsen; 6. Conclusão


1 INTRODUÇÃO


Há duas possibilidades de proceder à investigação de um problema jurídico: acentuando o enfoque zetético ou enfatizando o foco dogmático. Sob ótica kelseniana, de onde brota a Teoria Pura do Direito, valoriza-se o enfoque dogmático, que toma como ponto de partida a lei – o dogma.


Realçar o enfoque dogmático não significa excluir o zetético; este, certamente, aparecerá, mas de modo menos ostensivo. Para a referida explanação sobre o assunto é preciso esclarecer algumas situações em que ocorre abordagem dogmática do direito. A primeira delas diz respeito às técnicas de compreender um direito positivo que se caracteriza pela intensa mutabilidade dos seus conteúdos.


O Estado é o titular da soberania e dispõe de um aparato de força que lhe permite impor à sociedade certos fins em detrimento de outros. Em outras palavras, diante de um universo de alternativas possíveis, o poder estatal escolhe algumas e descarta outras.


As alternativas escolhidas transformam-se em normas jurídicas e passam a compor o ordenamento jurídico estatal. O positivismo jurídico (paradigma dominante) propõe, como tarefa principal do profissional do direito, captar a vontade do legislador ou da lei, sendo necessário, para isto, que ocorra a interpretação do conjunto normativo.


A hermenêutica pesquisa e desenvolve os métodos de interpretação e, para tratar de exegese da norma jurídica, determinando seu real alcance e sentido, sobreleva abordar a Teoria Pura do Direito, cujo entendimento aponta que, de uma mesma norma podem-se extrair vários significados, sendo que todas as demais também devem estar em consonância com as insculpidas na Constituição Federal. Daí advém, então, a necessidade de expor a acanada teoria, formulada por Hans Kelsen, assunto a ser tratado no estudo que verte.


2 A VERTENTE KELSENIANA


Preliminarmente, para abordar de forma clara a corrente kelseniana, releva transcrever o prólogo de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, “Por que ler Kelsen, hoje?”, da obra de Ulhoa Coelho (1994, p.13), onde aduz que o principal objetivo da obra Teoria Pura do Direito foi discutir e propor os princípios e métodos da teoria jurídica em razão dos debates metodológicos que eclodiram no final do século XIX e repercutiram no alvorecer do século XX. O positivismo jurídico de diversas tendências, bem como a reação dos teóricos da livre interpretação do direito, colocava em questão a própria autonomia da ciência jurídica.


Para alguns, o caminho dessa metodologia indicava para um acoplamento com outras ciências humanas, como a sociologia, a psicologia e até com os princípios das ciências naturais. Para outros, a libertação da ciência jurídica deveria ir de encontro com critérios de livre valoração, não faltando os que recomendavam uma volta aos parâmetros do direito natural. Nesta senda, a idéia kelseniana seria o marco pela tentativa de conferir à ciência jurídica método e objeto próprios, capazes de superar as confusões metodológicas e de dar ao jurista uma autonomia científica.


Justifica-se, por essa razão, a existência do propósito denominado princípio da pureza, segundo o qual o método e objeto da ciência jurídica deveriam ter, como premissa básica, o enfoque normativo, devendo o direito ser encarado pelo jurista como norma, e não como fato social ou valor transcendente.


Na concepção de Karl Larenz, foi Hans Kelsen que, com admirável energia e ímprobo rigor de pensamento, desempenhou a missão de impor uma consciência metodológica por parte da ciência do Direito. Averba o primeiro doutrinador que:


“A sua “Teoria Pura do Direito” constitui a mais grandiosa tentativa de fundamentação da ciência do Direito como ciência – mantendo-se embora sob o império do conceito positivista desta última e sofrendo das respectivas limitações – que o nosso século veio até hoje a conhecer” (LARENZ, 1997, p. 92).


Larenz (1997) acrescenta, também, que, como a Jurisprudência dos interesses é deficiente enquanto teoria, mas foi de grande utilidade prática, a teoria pura a que se alude atinge um alto nível como teoria, embora do ponto de vista prático os seus resultados sejam escassos.


A obra de Hans Kelsen ‘Teoria Pura do Direito’ é assim chamada porque se propõe a garantir um conhecimento dirigido ao Direito e excluir desta cognição tudo que não pertença ao seu objeto (Direito) (KELSEN, 2000).


Assim, a acenada doutrina tem a pretensão de separar o conhecimento do Direito em face da psicologia, sociologia, ética e teoria política, mesmo que haja conexão entre todos, marcando os limites e fazendo surgir a essência da ciência jurídica.


Kelsen, dentro do positivismo jurídico, em sua teoria, procurou delinear uma ciência do Direito desprovida de qualquer influência que fosse externa, propondo uma análise estrutural de seu objeto. Afasta, desta feita, de seu interior a justiça, sociologia, origens históricas, ordens sociais determinadas.


A redução do objeto jurídico à norma causou muitas polêmicas, sendo Kelsen acusado de reducionista, de esquecer as dimensões valorativas e sociais, de fazer do fenômeno jurídico uma mera forma normativa, despida de seus caracteres humanos. Todavia, sua intenção não era de negar os aspectos multifaciais de um fenômeno complexo como o Direito, mas, sim, de escolher, dentre eles, um que coubesse autonomamente ao jurista.


Para o Positivismo de Kelsen, o ponto de apoio de todo o sistema jurídico seria uma estrutura escalonada de normas, onde a última é a fundamental. A validade da norma inferior é extraída da superior até se chegar à norma fundamental – Grundnorm: o ápice da pirâmide.


A ciência do direito não se vincula com a conduta efetiva do homem, mas apenas com o prescrito juridicamente. Não é uma ciência de fato, como a sociologia, mas uma ciência de normas; o seu objeto não é o que é ou que acontece, mas o complexo de normas. Só se garante o seu caráter científico quando se restringe rigorosamente à sua função e o seu método se conserva puro de toda e qualquer mescla de elementos estranhos à sua essência, não havendo, pois, qualquer influência da sociologia, psicologia ou proposições de fé, de ordens ética ou religiosa. (LARENZ, 1997, p.93).


A Teoria Pura do Direito baseia-se e resume-se no estudo da norma jurídica, sendo relevante a pesquisa sobre validade (existência da norma jurídica), vigência (produção de efeitos de uma norma jurídica) e eficácia (condutas obedientes e observantes a uma norma).


Para Hans Kelsen, a ciência do direito não é a ciência de fatos, dados concretos, acontecimento, atos sociais: é a ciência do dever-ser, ou seja, que procura descrever o funcionamento e o maquinismo das normas jurídicas.


Não pode a ética intervir na ciência do direito, por ser considerada autônoma. Intenta-se, destarte, expurgar, da teoria pura, a preocupação do que é justo ou injusto. Justiça, para o egrégio pensador, é tarefa da Ética, pois é ciência que investiga normas morais (certo e errado; justo e injusto). Kelsen afirma que, do ponto de vista de um conhecimento científico, deve-se excluir a aceitação em geral de valores absolutos e, em especial, de um valor moral absoluto, pois não se pode determinar o que, em qualquer circunstância, tem de se haver por bom ou por mau, por justo e injusto, não podendo o Direito distinguir-se de outras ordens coercivas, por ser considerado uma ordem justa.


Para a teoria em observância, somente o Direito Positivo deve ser objeto de preocupação, sendo que a ciência jurídica possui um único objeto de preocupação: o Direito Positivo, e somente deste deve se incumbir, sem aí penetrarem as outras ciências.


A teoria em tela, desta feita, colima o estudo das estruturas com as quais se constrói o Direito Positivo, tratando de suas estruturas normativas (validade, vigência, promulgação, eficácia, sanção, entre outras). Infere-se que a norma jurídica constitui, então, o princípio e o fim do sistema legal.


O insigne autor define Direito como algo que se constitui, primordialmente, como um sistema de normas coativas permeado por uma lógica interna de validade que legitima, a partir de uma norma fundamental, todas as outras normas que lhe integram. A fim de compreender esta definição é curial captar a essência de seus elementos integrantes: sistema, norma coativa, norma fundamental e validade.


Sistema pressupõe a existência de partes que, inter-relacionadas, compõem um todo e, para que continuem a existir e se comunicar harmonicamente, necessita-se de uma estrutura que as disponha em ordem, conferindo-lhe hierarquia e dinamicidade.


Norma coativa é aquela que, nos termos lecionados por Kelsen, evita conduta por todos indesejada por meio da coação (mal aplicado ao infrator), com emprego de força física, se necessário.


Por seu turno, fundamental é a norma que concede validade a todas as outras, porquanto toda norma do sistema tem o fundamento de tal pressuposto alicerçado nesta espécie originária. Validade seria, portanto, a legitimidade do ato criador da norma, cujo procedimento deve restar estabelecido no ordenamento.


Após essas explicações primeiras, cabe verificar que Kelsen, ao formular sua teoria, não ignorava elementos outros que o Direito trazia consigo; em os abstraindo, quis ele isolar a porção normativa da fática e da axiológica. Tal propósito justificava-se na medida em que buscava os fundamentos para uma ciência jurídica independente, onde o rigor científico estaria concentrado na análise à exaustão da norma jurídica; uma ciência a permitir, bem mais que justificar, as decisões jurídicas num nexo próprio ao ordenamento, deixando à sociologia a análise do teor político-social e à filosofia do teor axiológico/valorativo. Nesta conjectura e aqui se situa o porém à formulação kelseniana.


Assim, ao se excluir do Direito o que lhe há de psíquico ou sociológico, dificulta-se a compreensão da positividade (respeito à norma pelos seus destinatários). Entre as críticas ao normativismo de Kelsen (como também aos axiologismos e sociologismos no campo jurídico), também há a Teoria Tridimensional do Direito (fato, valor e norma) do emérito jurista brasileiro Miguel Reale.


Percebe-se, claramente, que a teoria pura não se preocupa com o conteúdo, mas só com a estrutura lógica das normas jurídicas, verificando o sentido, a possibilidade e os limites de todo e qualquer enunciado jurídico, bem como a espécie e modo de seu estabelecimento (LARENZ, 1997), deixando de lado o subjetivismo máximo e dando prevalência à objetividade. Assim, em consonância com tal ideário, a lei seria um referencial de objetividade.


Sobre a validade e invalidade, e sua relação com o ser e o dever-ser, pontifica Kelsen:


“A norma não é um enunciado sobre a realidade e, portanto, não tem como ser ‘verdadeira’ ou ‘falsa’ no sentido explicitado acima. Uma norma é válida ou não válida […] [e] o fundamento para a validade de uma norma não é, como o teste de veracidade de um enunciado de ‘ser’, a sua conformidade à realidade. Como já dissemos, uma norma não é válida por ser eficaz. […] O verdadeiro fundamento são normas pressupostas, pressupostas porque tidas como certas. […] O fundamento para a validade de uma norma é sempre uma norma, não um fato. A procura do fundamento da validade de uma norma reporta-se não à realidade, mas a outra norma da qual é derivável […]” (KELSEN, 2000,  p.162).


Dentro da teoria kelseniana, verifica-se a existência de um princípio estático e de um dinâmico, os quais, como se verá adiante, inferem um sistema de legal, cujo fundamento de validade e conteúdo são deduzidos de uma norma, considerada como fundamental, dentro de uma ordem de outras mais.


Atesta-se, com respaldo no princípio dinâmico a seguir discorrido, que a norma fundamental pressuposta não possui conteúdo, sendo-lhe conferido apenas o poder inerente a uma instituição de um fato produtor de normas, uma atividade legisladora, que determina como devem ser criadas as regulamentações gerais e individuais do ordenamento sobre ela estabelecido.


Assim, em outras palavras, qualquer conteúdo de norma pode ser Direito, desde que ela seja elaborada em conformidade com aquela considerada fundamental, sendo crível que qualquer conduta humana componha seu objeto substancial. Não se trata, então, de a norma fundamental ater caráter material, mas de ser dotada de um poder sui generis perante as demais, constituindo o último crivo acerca da validade das normas jurídicas e desencadeando, através de um ato especial, o processo de criação do Direito Positivo.


In casu, é importante ressaltar que um sistema de normas que se organiza e se apresenta como uma ordem jurídica possui caráter dinâmico, não sendo certo conteúdo elemento decisivo para  determinar a validade normativa, haja vista que o teor da disposição legal advém de norma anteriormente produzida, de acordo com os ditames daquela considerada como fundamental (KELSEN, 2000).


Kelsen, neste sentido, foi um ardoroso defensor da neutralidade científica aplicada à ciência jurídica, sempre insistindo na separação entre o ponto de vista jurídico do moral e político. À ciência do direito não caberia fazer julgamentos morais nem avaliações políticas sobre o direito vigente. Consoante escolia Coelho (1996, p.19),


“a obra de Kelsen ainda o mantém vivo. Suas implicações para a ciência jurídica, para lógica da norma, para a aplicação do direito são tão fecundas, que, por mais que o critiquemos, não deixam de desvendar novos ângulos, novos encaminhamentos. […] Ao contrário do que se supõe, seu espírito polêmico nunca revelou um obstinado, tanto que, em diversas ocasiões e até mesmo no fim da vida, não teve medo de enfrentar suas próprias convicções, mudando-as quando as percebia insustentáveis racionalmente.”


O pensamento kelseniano, criticado por sua estreiteza e apego à lógica, é entendido como dogmático e conservador, a antítese da sociologia jurídica. Seu malogrado empreendimento evidencia-se na inexistência de fidelidade doutrinária, nacional ou estrangeira, à hermenêutica presentemente abordada.


A derrocada do pensamento kelseniano (consistente na crença da impossibilidade de definição científica do conteúdo das normas jurídicas) perante o levante de teorias mais híbridas e maleáveis, figura na contextura histórica tal como a sujeição do positivismo lógico pela filosofia contemporânea. A superação do narrado ideário representa verdadeiro corolário do desenvolvimento filosófico-jurídico, confrontando sua questão fundamental e viabilizando o amadurecimento e a exploração de novas e revolucionarias possibilidades.


2.1 O SISTEMA ESTÁTICO E O DINÂMICO


Kelsen entende como sistema jurídico todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma basilar, podendo tal ordem legal deter caráter estático, bem como dinâmico.


Sobre o assunto, Coelho (1994) pontua que, através do conhecimento jurídico, possível é considerar as normas integrantes de seu objeto a partir de duas perspectivas diversas. Por um lado, pode-se surpreender a norma jurídica enquanto reguladora da conduta humana, operando, assim, a partir de uma teoria estática do direito, buscando relacionar as normas entre si como elementos da ordem em vigor. Em outro vértice, é viável tomá-las no processo de sua produção e aplicação, operando a partir de uma teoria dinâmica.


A teoria estática aborda, neste contexto, os temas sobre a sanção, o ilícito, o dever, entre outros; por seu turno, a teoria dinâmica do direito compreende a validade, a unidade lógica da ordem jurídica, o fundamento último do direito, e assim por diante.


O mestre vienense explica da seguinte forma o sistema estático:


“Um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo de validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental é um sistema estático de normas. O princípio segundo o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema  é um princípio estático” (KELSEN, 2000, p.218).


Quanto ao sistema dinâmico, afirma que


“é caracterizado pelo fato de a norma fundamental  pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como deve ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental” (KELSEN, 2000, p.219).


Percebe-se, então, que Kelsen considera o sistema jurídico essencialmente dinâmico. Paralelamente, distingue duas possibilidades de organização de sistema de normas, como esclarece Coelho (1994, p.24): “relacionando-as a partir de seus conteúdos ou a partir das regras de competência e as demais reguladoras da sua produção”.


No primeiro caso, origina-se um sistema estático; no segundo, um sistema dinâmico. Aduz o insigne doutrinador vienense também que, apesar de não estarem, de forma alguma, vinculadas à norma fundamental quanto ao conteúdo, as normas que são postas em consentâneo a ela segundo um princípio dinâmico, compõem uma unidade. Dessarte, “uma norma pertence a um ordenamento que se apóia numa norma fundamental porque é criada pela forma determinada através dessa […]” (KELSEN, 2000, p.220).


Ambos os princípios, estático e dinâmico, podem ser encontrados em um e mesmo ordenamento. O exemplo dado por Kelsen é o de que os Dez Mandamentos, ao mesmo tempo em que prescrevem a confecção de imagens (ou ídolos), estabelecem os pais como autoridade legisladora. Nesta senda, os princípios estático e dinâmico


“estão reunidos numa e na mesma norma quando a […] fundamental pressuposta se limita, segundo o princípio dinâmico, a conferir poder a uma autoridade legisladora e esta mesma autoridade ou outra por ela instituída não só estabelecem normas pelas quais delegam noutras autoridades legisladoras mas também normas pelas quais se prescreve uma determinada conduta dos sujeitos subordinados às normas e das quais – como o particular do geral – podem ser deduzidas novas […] através de uma operação lógica” (KELSEN, 2000, p. 220).


Para Hans Kelsen (2000, p.221), o ordenamento jurídico tem “essencialmente um caráter dinâmico”. Portanto, o conteúdo de uma norma não é qualquer empecilho para que figure em um tal ordenamento, desde que a norma que o prescreve tenha sido “produzida através de um ato especial de criação”.


Resta claro que o sistema jurídico é dinâmico e mutável, posto que as normas que o compõem tentam acompanhar as valorações de seu tempo sobre os fatos já vividos até então e sobre os novos vivenciados pela sociedade humana.       


2.2 O PRÍNCÍPIO METODOLÓGICO FUNDAMENTAL


Conforme retroexplicitado, a teoria declinada busca definir as condições para a construção de um conhecimento fundamentalmente científico. Kelsen preocupa-se de forma substancial com o conhecimento do Direito, bem assim com os meios, cautelas e métodos  utilizados para assegurar seu estatuto. A Teoria Pura do Direito tem, portanto, lições dirigidas aos doutrinadores e professores da matéria jurídica, pouco influenciando a práxis, ressalvada sua aplicação elucidativa.


Na concepção do ínclito Fábio Ulhoa Coelho (1994), o princípio fundamental do método proposto refere-se ao objeto do conhecimento, sendo que o cientista deve utilizar, de forma exclusiva, a norma posta. Os fatores que interferem na sua produção e os valores que nela se encerram são estranhos ao objeto da ciência jurídica. O exame da vinculação entre o Direito e os fatos elementares da sociologia, psicologia e ética caberia a cada uma dessas disciplinas. A teoria pura não nega, assim, a existência de conexões exógenas, mas a importância destas no estudo do conteúdo da norma legal.


Afirma o ilustre doutrinador, ainda, que a cognição jurídica, para ser científica, deve ser neutra, isenta de qualquer juízo de valor acerca da orientação adotada pelo órgão competente para editar a norma. Assim sendo, o princípio metodológico fundamental kelseniano consigna que o conhecimento da norma jurídica deve, necessariamente, prescindir daqueles outros relativos à sua produção, como também abstrair todos os valores referentes à sua aplicação, posto que inúteis, inócuos e dispensáveis. O cientista do direito deve ignorar tais matérias para que não vicie a veracidade de suas afirmações. Prega a melhor corrente doutrinária que


“a desconsideração pela doutrina dos limites precisos de seu objeto (a norma posta) confere-lhe ou o caráter de saber estranho à realidade jurídica, ou o de mera aglutinação de proposições ideológicas. A pureza da ciência do direito, portanto, decorre da estrita definição de seu objeto (corte epistemológico) e de sua neutralidade (corte axiológico)” (COELHO, 1994, p.23).


2.3 NORMA JURÍDICA E PROPOSIÇÃO JURÍDICA


As normas jurídicas são estabelecidas por atos das autoridades; já as proposições são formuladas pela Ciência do Direito, constituindo atos de conhecimento, verdadeiros enunciados sobre a norma que atestam a sua validade e colimam a conscientização do outro, enquanto a norma, em si, objetiva determinar a vontade do outro, fixá-la, de modo que sua conduta volitiva corresponda ao preceito por aquela delineado. O enunciado é o sentido de um ato de pensar, e a norma é o sentido de um ato de querer dirigido à conduta de outrem.


Para Kelsen, as normas jurídicas estabelecidas pelas autoridades competentes têm caráter imperativo, pois prescrevem determinadas formas de agir; são prescrições dirigidas à vontade humana, tendo o fito de serem aplicação e observação pelos destinatários do direito. Não se trata, portanto, de juízo ou manifestação de ato cognitivo, mas de vontade, que impõe obrigações e confere prerrogativas, emergindo como fonte do Direito.


Já a proposição jurídica tem por escopo o conhecimento da norma, nada podendo prescrever, mas descrever as disposições legais com base no seu conhecimento, não regulamentando, portanto, a conduta humana. Consubstancia-se na descrição científica do jurista, no momento refletivo oriundo do estudo da norma, não podendo ser classificada como fonte do direito, pois é a representação de uma própria, um enunciado da norma legal como expressão independente. A proposição, destarte, nada mais é que a formulação lógica, abstraída pelo jurista enquanto tal, desprovido de toda e qualquer autoridade jurídica, não atuando como órgão ou membro da comunidade.  É através da proposição que a jurisprudência desenvolve o estudo objetivo dos diversos aspectos da ordem normativa vigente.


O professor Ulhôa Coelho (1994, p.27) assevera que:


“a distinção mais relevante entre normas e proposições concerne à organização lógica do sistema jurídico. Para Kelsen, o conjunto de normas jurídicas, a ordem em vigor, não tem lógica interna. As autoridades simplesmente baixam atos de vontade, no exercício de suas competências jurídicas. Aliás, como as normas podem ser unicamente válidas ou inválidas, não havendo sentido atribuir-lhes ou negar-lhes função de verdade, e, por outro lado, a lógica se cinge às inferências entre enunciados verdadeiros ou falsos, então não cabe submeter as relações entre normas de uma mesma ordem jurídica aos prescritos lógicos. Apenas indiretamente, isto é, através das proposições jurídicas que a descrevem, será admissível investigar a logicidade das relações internormativas.”


Kelsen ensina que a conduta estatuída na norma constitui o seu conteúdo. E quando se diz que “a norma refere-se a uma determinada conduta”, quer-se significar a conduta que constitui o conteúdo da norma (KELSEN, 2000, p. 13). Sendo esta uma determinação de conduta, ilativamente tem-se que o comportamento do homem é o objeto, ainda que indireto, das disposições legais.


Antes de apontar qual o objeto da proposição jurídica, cumpre aclarar que esta representa o enunciado de uma verdade que se quer demonstrar, ou de um problema que se pretende resolver. Assim, as proposições são, no dizer de Kelsen, a “função da Ciência Jurídica”, que tem por finalidade conhecer as normas e descrevê-las, não podendo nada prescrever.


Assim, a distinção entre norma jurídica e proposição jurídica é evidente, haja vista que o objeto da proposição jurídica é descrever a norma jurídica e, assim, não pode ela ser havida como fonte de direito. Configura, pois, um juízo hipotético condicional (um juízo duvidoso, incerto), que contém a enunciação sobre a norma jurídica. Pela proposição é possível contemplar o que se deve ou pode fazer sem incidir numa conseqüência jurídica desfavorável, isto porque nela estão perfeitamente definidos os tipos de fato condicionantes, aos quais se vinculam as implicações prescritas na norma.


2.4 NORMA HIPOTÉTICA FUNDAMENTAL


A norma hipotética fundamental, conforme asseverado algures, é a categoria kelseniana criada para solucionar o fundamento último da validade das normas jurídicas, ditando a subserviência em relação aos editores da primeira constituição histórica, ainda que de forma não positivada, que legitimaria a hierarquia da Carta Política sobre todos os outros diplomas.


Em Kelsen, porém, percebe-se que o conceito de constituição histórica não rompe o princípio metodológico fundamental, considerando-se a não projeção da anterioridade cronológica – que caracterizaria mera observância à matéria cativa aos historiadores, que consideram a primeira Constituição Imperial de 1824. O cientista do direito localiza a primeira constituição de uma determinada ordem jurídica, exclusivamente a partir das normas positivas, como sendo o texto fundamental cuja elaboração não se encontra prevista em nenhuma disposição normativa anterior, aqueles cujos editores não foram investidos de competência por nenhuma outra lei. Assim, de acordo com a expressão kelseniana, a primeira constituição histórica deriva de revolução na ordem jurídica, não encontrando suporte, mas inaugurando uma nova quadratura.


Na obra póstuma de Kelsen, é revisto o caráter hipotético da norma fundamental. Afirma tratar-se de uma ficção, no sentido de opor-se à realidade e ser contraditória em si mesma. De fato, a norma pensada pela ciência jurídica contradiz a realidade normativa, já que, em não correspondendo a nenhum concreto ato de vontade, não pode existir enquanto norma. E abarca conflitos internos, porque descreve a outorga de poder supremo, partindo de uma autoridade ainda superior. A ficção, no entanto, a despeito de suas inerentes contradições, é instrumento de saber limitado.


2.5 VALIDADE E EFICÁCIA


Para Kelsen, inicialmente, a validade da norma jurídica depende de sua relação com a norma fundamental.


As normas jurídicas integram um sistema essencialmente dinâmico, sendo pois, o seu conteúdo irrelevante para a definição de validade. Ainda que não muito discutido pela teoria pura do direito, depreende-se que a norma jurídica somente é válida desde que satisfeito o simples pressuposto de advir de autoridade competente para editá-la, mesmo que o respectivo comando não seja compatível com o disposto em normas hierarquicamente superiores.


Para que a norma seja válida, no entanto, não é suficiente apenas que seja ligada à norma fundamental, eis que também exige-se o mínimo de eficácia. Assim, a questão da relação entre a validade e a eficácia é muito complexa, causando um enorme desafio para a teoria pura e pelos jurídico-positivistas. Nesse sentido, Kelsen sustenta que a validade não depende da eficácia, salientando também que ambas se identificam.


A teoria pura afirma que tanto a norma jurídica considerada por si só, e a ordem jurídica como um todo, deixam de ser válidas se perderem sua eficácia, sendo incorreto pretender, então, que a vigência não tenha qualquer relação com a eficácia. De outra forma, existem normas que não são observadas por algum período e nem por isso são invalidadas. Incorreto, portanto, aludir validade como sinônimo de eficácia.


Kelsen cuida do assunto em dois níveis: com relação à questão da eficácia no plano das normas singularmente consideradas e no plano global da ordem positiva. A eficácia se revela condição nos dois planos.


Qualquer norma totalmente ineficaz é inválida pela ótica kelseniana, sendo clarividente, contudo, que nenhuma norma jurídica perde a validade por não ser aplicada em determinada situação ou por algum período de tempo. Assim, a ineficácia temporária não afeta a vigência de determinada norma jurídica.


“Uma ordem jurídica não perde, porém, a sua validade pelo fato de uma norma jurídica perder a sua eficácia, isto é, pelo fato de ela não ser aplicada geral ou em casos isolados. Uma ordem jurídica é considerada válida  quando as suas normas são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são de fato observadas e aplicadas. E também uma norma jurídica singular não perde sua validade quando apenas não é eficaz em casos particulares, isto é, não é observada ou aplicada, embora deva ser observada e aplicada” (KELSEN, 2000, p. 237).


A ordem jurídica não perde a validade  em razão de uma ou mais normas ineficazes. Assim, a validade da ordem jurídica não depende da eficácia de todas as normas que a compõem, enquanto a norma singular será considerada inválida se ocorrer a ineficácia da ordem jurídica da qual faz parte. Por outro lado,


“também não se considera como válida uma norma que nunca é observada ou aplicada. E, de fato, uma norma jurídica pode perder a sua validade pelo fato de permanecer por um longo tempo inaplicada ou inobservada, quer dizer, através da chamada desuetudo” (KELSEN, p.237).


Dessa feita, a validade da norma jurídica está condicionada a três pressupostos: competência da autoridade que a editou, derivada da norma hipotética fundamental; mínimo de eficácia, sendo irrelevante a sua observância episódica ou temporária; e a eficácia global da ordem jurídica que a compõe.


Depreende-se, assim, pela apreciação da ótica kelseniana, que validade e eficácia não se confundem, sendo esta apenas uma condição para aquela.


Colaciona-se, nesta senda, o escólio de Fábio Coelho(1994, p.44):


“[…] pode-se sintetizar o pensamento kelseniano sobre o assunto na assertiva de que a ineficácia absoluta compromete a validade da norma jurídica. Qualquer outra relação entre a validade e eficácia não se pode estabelecer prontamente nos quadrantes da teoria pura do direito.”


2.6 A SANÇÃO


Kelsen traça uma linha de separação entre o mundo do ser (os eventos operam conforme o princípio da causalidade) e do dever-ser (princípio da imputação). Diferentemente dos jusnaturalistas, alude que nem as normas morais nem as jurídicas podem ser definidas a partir da natureza do homem, nem esta pode ser alterada pela vontade expressa dos padrões de conduta (COELHO, 1994, p.44).


Sobre o assunto, o emérito jurista explica que:


“[…] uma determinada conduta apenas pode ser considerada, no sentido dessa ordem social, como prescrita – ou seja, na hipótese de uma ordem jurídica, como juridicamente prescrita – , na medida em que a conduta oposta é pressuposto de uma sanção ( no sentido estrito ). Quando uma ordem social, tal como a ordem jurídica,prescreve uma conduta pelo fato de estatuir como devida ( devendo ser ) uma sanção para a hipótese da conduta oposta, podemos descrever esta situação dizendo que, no caso de se verificar uma determinada conduta, se deve seguir determinada sanção. Com isto já se afirma que a conduta condicionante da sanção é proibida e a conduta oposta é prescrita. O ser-devida da sanção inclui em si o ser-proibida da conduta que é o seu pressuposto específico e o ser-prescrita da conduta oposta.” (KELSEN, 2000, p.26-27).


O direito só pode ser entendido como uma ordem social coativa, impositiva de sanções, diversamente da moral. A discrepância não restringe-se ao conteúdo das respectivas normas, mas à natureza da reação frente a sua desobediência. O direito estatui conseqüências que podem ser imputadas às pessoas com o uso da força física, enquanto a moral apenas recomenda a aprovação ou desaprovação das condutas.


Sobre as sanções, Kelsen escolia tratarem-se de atos de coerção que são estatuídos contra uma ação ou omissão determinada pela ordem jurídica (KELSEN, 2000, p.121).


Para a prescrição de certa conduta, a norma jurídica estabelece a sanção para a conduta oposta. Assim, o ilícito é pressuposto do direito e não sua negação. Dessa forma, o dever-ser é comportar-se conforme a disposição oposta àquela legalmente sancionada.  Em outros termos, o direito subjetivo se reduz ao direito objetivo, positivo.


2.7 O POSITIVISMO


Coelho (1994) afirma que  a norma fundamental pressuposta pela ciência do direito é condição de validade de todas as normas componentes da ordem jurídica, mas não de seus conteúdos. Da determinação de que deve ser obedecido o primeiro constituinte histórico, não se pode derivar qualquer gênero de ilicitude. Daí, a teoria pura reputa válida qualquer ordem jurídica positiva e, em decorrência dessa concepção, afirma-se como positivista. (COELHO, 1994, p.33)


O vocábulo positivismo tem sentidos diferentes na filosofia em geral e na filosofia jurídica, além de expressar ambigüidades em cada uma dessas áreas. Ab initio, utilizou-se na identificação de uma vertente filosófica, representada por Comte, segundo a qual o conhecimento científico seria a mais evoluída manifestação do espírito humano, suplantando a metafísica e a religião. De forma progressiva, o termo alcançou a designação de uma postura epistemológica de busca de rigor nos resultados verificados pelo conhecimento. A denominação positivismo lógico para identificação da filosofia oriunda do Círculo de Viena insere-se neste contexto.


Para a filosofia do direito, constata-se, também, imprecisão, divergindo os autores inclusive na extensão dos desentendimentos. De um modo geral, tem sido considerado positivista tanto aquele autor que nega qualquer direito além da ordem jurídica posta pelo Estado, em contraposição às formulações jusnaturalistas e outras não formais, como o defensor da possibilidade de construção de um conhecimento científico acerca do conteúdo das normas jurídicas. Kelsen é positivista em ambos os sentidos.


Sobre a polêmica relacionada à teoria do direito natural, destaca-se, de um lado, a idéia de que a ciência fundada em postulados jusnaturalistas legitima a ordem jurídica, ao invés de simplesmente descrevê-la; em outro vértice, salienta-se a proposição de que todo direito natural é, em última análise, direito positivo. Com pertinência à primeira assertiva, Kelsen aponta como implicação necessária do princípio metodológico e fundamenta a renúncia da ciência do direito relativamente a qualquer manifestação valorativa sobre as normas estudadas. Como a teoria do direito natural sempre se contrapõe ao direito estatuído, é inevitável apreciação da justiça ou injustiça da solução prescrita na norma. Assim, ao dissertar sobre a justiça da ordem jurídica e concluir por entendê-la justa, a ciência passa a exercer função, que não lhe cabe, de legitimar essa mesma ordem. Esta atitude acarreta perigo à pureza que deve revestir o método científico (COELHO, 1994 p.35).


Ao enfrentar o referido tema, Kelsen rejeita a concepção de uma moral absoluta. O entendimento sobre o que é justo e sobre o que não é, para ele, não tem solução nos quadrantes do conhecimento científico. O relativismo axiológico, isto é, a idéia de que não existe apenas um único sistema de valores morais afirmável por algum tipo de conhecimento, é uma das mais importantes referências filosóficas para a teoria pura do direito.


No que concerne ao caráter positivo do direito natural, Kelsen insere tal formulação no rebate à crítica de que o positivismo não poderia dar qualquer tipo de segurança, já que todo direito posto, independentemente de seu conteúdo, é reputado válido. Em verdade, também a teoria do direito natural não forneceria pautas seguras para avaliação da justiça contida no Direito. Se o fundamento da validade da ordem jurídica reside em sua correspondência com o direito natural, então haveria também uma norma fundamental pressuposta, a determinar a obediência aos comandos da natureza. Ou, ainda, o fundamento de validade da ordem jurídica, nos quadrantes do jusnaturalismo, é a consideração de que a ordem natural deve ser obedecida, sendo esta última também positiva, no sentido de ser posta por uma vontade supra-humana.


Considera-se positivismo, neste contexto, a teoria cuja “regra fundamental consiste em afirmar que toda proposição, que não possa ser reduzida com o máximo rigor ao simples testemunho de um fato, não encerra nenhum sentido real e inteligível” (REALE, 1988, p.166).


Tal afirmação respalda-se no empirismo, forma de conhecer das ciências naturais cujo objeto de investigação, o ser (o fato, o fenômeno) é conhecido pela experiência sensorial e explicado pelos nexos de antecedente e conseqüente.


Esta teoria, que dominou o mundo científico no século XIX, exerceu forte influência sobre o pensamento jurídico da época, sendo fora do propósito deste estudo tecer considerações sobre todas as concepções do Direito que tiveram influência basilar do empirismo, como o exegetismo, historicismo e sociologismo jurídico, além de outras.


Vale salientar, no plano evolutivo, aqueles aspectos que representam efetiva contribuição ao amadurecimento do pensar jurídico. Neste âmbito destaca-se o reconhecimento do Direito como ciência, como objeto real – o fato social cujo conhecimento se respalda na experiência. Esta nova conotação leva a um grande retraimento do Direito Natural, uma vez que o raciocínio zetético próprio dos jusnaturalistas cede lugar a um pensar dogmático, positivo, com o predomínio do direito escrito (posto). Esta concepção essencialmente fática do Direito empresta grande objetividade à norma jurídica, culminando na valoração exclusiva do ser e não do dever-ser.


Nem todos os jusfilósofos, porém, adotaram a teoria empirista de análise, não havendo homogeneidade ideológica. A Escola da Exegese, verbi gratia, como o próprio nome diz (exegese significa ater-se à obra literária minuciosamente), tem como base apenas o uso da letra da lei como forma de aplicação do Direito, sendo também conhecida como Escola Legalista e Escola Racionalista, pela crença de que todo o Direito está contido na Lei e apenas nesta. Seu surgimento deu-se na França, mas teve vários adeptos, como a Escola Pandectista alemã.


A Escola Exegética teve seu apogeu durante o século XIX, estabelecendo que qualquer ato ocorrido no meio social estaria previsto numa lei, logo o Direito seria completo e poderia ser aplicado a qualquer caso. Os adeptos desta Escola entendem que a lei é absoluta, devendo o juiz extrair o significado dos textos para assim aplicá-lo ao caso concreto.


3 A INTERPRETAÇÃO VERDADEIRA


De acordo com Ferraz Júnior (2000), a idéia de interpretar juridicamente é decodificar conforme regras de uso. A ventilada opinião mostra-se demasiadamente simplória face à grandiosidade da matéria. Segundo a hermenêutica jurídica, tem-se uma discricionariedade que finaliza a sucessão de interpretações e as decodificam, caracterizando, assim, o escólio dogmático e, também, sua problemática teórica, qual seja, a dificuldade básica para a teorização dogmática da interpretação (FERRAZ JÚNIOR, 2000, p.261).


Tal dificuldade é percebida por Kelsen, que se esforçava teoricamente em suas obras para conferir à doutrina e ao saber dogmático um estatuto reconhecidamente científico, questionando a possibilidade de uma teoria interpretativa viabilizar a tangibilidade daquilo considerado como verdadeiro e falso. A explanação sobre a interpretação jurídica é frustrante, pois  não fornece nenhuma base para a hermenêutica jurídica (FERRAZ JÚNIOR, 2000, p.261).


Kelsen aborda, ainda, a distinção entre interpretação autêntica (realizada por órgão competente) e doutrinária (realizada por ente que não tem qualidade de órgão), ressaltando a força vinculante do enunciado normativo decorrente da primeira  discussão da hermenêutica. Assim, em contrapartida, todo ente que não é órgão, ao interpretar, ainda que diga qual deva ser o sentido de uma norma, não tem cogência, o dever-ser não tem caráter de norma. É o que ocorre, a título de exemplificação, no caso de um parecer jurídico ou opinião doutrinária citada no livro.


O ato interpretativo de um órgão, então, determina o conteúdo de uma norma de maneira absoluta, definindo o sentido através de um ato de vontade (trata-se de um “eu quero”, e não de um “eu sei”), repousado na sua competência (tanto o juiz, como o próprio legislador ao interpretar o conteúdo de uma norma constitucional). Havendo dúvidas quanto ao sentido estabelecido, caberá recurso para uma autoridade superior até que uma última e decisiva competência o estabeleça definitivamente.


Ocorre que o próprio Kelsen, reconhece que os atos de vontade são baseados em atos de conhecimento (conhecimentos doutrinários). Mas observa que, havendo desequilíbrio entre o ato de vontade e o de conhecimento, prevalecerá o primeiro.


Diante disso, Ferraz Júnior (2000, p.262) indaga: “o que ocorre, então, quando a interpretação é mero ato de conhecimento? Não seria possível descobrir-lhe um fundamento, por exemplo, a verdade, que lhe permitisse adquirir a qualidade de obter aquela aceitação geral?”.


Kelsen (2000) afirma que os conteúdos normativos, objetivo de uma interpretação doutrinária, são plurívocos, por sua natureza lingüística, trazendo, assim, a possibilidade de equivocidade (por serem vagos e ambíguos). Portanto, agindo com método e de acordo com procedimentos racionais, não pode o doutrinador alcançar uma interpretação verdadeira? Para o pensamento Kelseniano, não, sendo tal hipótese irrealizável porque, se aceita, criar-se-ia uma ilusão, a ficção da univocidade das palavras da norma. Para ele, cumpre à ciência jurídica apenas conhecer o direito, descrevendo-o com rigor.


Há a exigência de método, obediência a cânones formais e materiais. Assim, a ciência é um saber rigoroso, caminhando em um modelo bem determinado e impondo limites. Sendo, então, objeto da hermenêutica os conteúdos normativos plurívocos, e agindo o legislador por vontade, e não por razão, sempre serão abertas múltiplas possibilidades de sentido para os conteúdos que ele estabelece. Deste modo, à ciência jurídica cabe descrever esse fenômeno em seus devidos limites. Assim, através de artifícios metódicos, querer demonstrar uma univocidade que não existe é o mesmo que falsear o resultado e ultrapassar fronteiras da ciência (FERRAZ JÚNIOR, 2000, p.263).


4 IMPOSSIBILIDADE DA SOCIOLOGIA


No entendimento de Kelsen, a sociologia do Direito utiliza conceitos elaborados pela ciência jurídica, negando seu caráter científico, limitando o universo do fenômeno jurídico a uma ótica muito restrita da realidade.


Kelsen contestou o posicionamento de Eugen Erhlich, que sustentava a exclusividade de a Sociologia do Direito ser capaz de dar uma definição ao fenômeno jurídico, reduzindo, assim, a ciência do Direito a uma disciplina sociológica.


O mestre vienense, contudo, entendia que a sociologia jurídica não era uma ciência autônoma, sendo que, para a definição de seu objeto, seria necessária a utilização de conceitos elaborados pela Ciência do Direito. Tal fato gera a responsabilidade pela dependência conceitual da sociologia jurídica para com esta ciência.


O pensamento kelseniano é coerente, pois ao tratar do fenômeno jurídico como um sistema de normas válidas hierarquicamente organizado – ou melhor, leis que estariam em conformidade com as diretamente superiores -, até alcançar o preceito fundamental (Grundnorm), fundamento de validade de todo o sistema jurídico, reduz-se o âmbito do estudo da Ciência Jurídica à norma, excluindo-se os fenômenos sociais, políticos e psicológicos, objetos, respectivamente, da Sociologia, Ciências Políticas e Psicologia, gerando assim, a pureza para a Teoria do Direito.


Tal entendimento deixa claro que, para Kelsen, a sociologia jurídica não poderia jamais ser considerada uma ciência autônoma, por lhe faltarem conceitos próprios. Ocorre que aquele se equivocou, haja vista não ser possível excluir a Sociologia, já que somente através dela é viável interpretar o fato concreto e, assim, a premissa menor, desconsiderando as regras de interpretação que são os padrões sociais.


Em sua teoria pura do direito, estuda-se o direito pela forma e não pelo conteúdo, mas através da interpretação da norma é utilizada a Sociologia.


5 A RELAÇÃO ENTRE AS DOUTRINAS DE MAX WEBER E DE HANS KELSEN


Analisando os pensamentos weberianos e kelsenianos é possível afirmar a existência de uma relação fluida entre ambos.


Weber (1999) discute sobre sociologia jurídica e dogmática jurídica, afirmando que ambas jamais poderiam ser justapostas, ocupando lugares distintos, isoladamente consideradas. Weber reduz a tensão entre a dogmática jurídica e a sociologia do direito a um problema estritamente metodológico, considerando que a primeira ciência utiliza o método lógico-normativo, enquanto a segunda usa o método empírico-causal (típico da sociologia).


O primeiro método tem a finalidade de verificar o interior de um “cosmos de regras abstratas”, suas regras de validade, verificando uma compatibilidade lógica das normas em um ordenamento. Tal operação situa-se no pensamento racional, no plano das idéias. De outro lado, o segundo método investiga o comportamento dos indivíduos frente a um sistema de regras, avaliando a potencialidade de suas condutas subsumirem-se àquelas disposições, ou orientarem-se conforme o conteúdo da norma, ainda que não cumprindo o que está disposto nela.


A dogmática jurídica, para Weber (1999), investiga quais as hipóteses em que uma norma será considerada proibida, permitida, concessiva, dentre outros, impondo-se como uma ordem àqueles a elas sujeitas.


De outra forma, Weber entende por sociologia jurídica o estudo do comportamento dos indivíduos frente às normas vigentes e a determinação de em que grau se verifica a orientação dos homens por esse conjunto de leis. A função da sociologia no âmbito do Direito é investigar, no contexto real, o acontecimento fático, o que se dá no comportamento das pessoas que se submetem a um ordenamento e de que maneira se verifica sua orientação segundo esta ordem legítima.


Evidencia-se a afinidade teórica entre os autores nas considerações de que enquanto a dogmática preocupa-se com o exame das normas e suas relações lógico-sistemáticas, a sociologia atém-se ao campo de perquirição do comportamento do indivíduo perante essas normas. Esse é o ponto mais coincidente entre os autores, no que concerne às suas conceituações. A sociologia jurídica limita-se às tarefas do ser, enquanto a dogmática jurídica está ligada ao teor prescritivo, do dever-ser.


Assim, a precípua divergência entre os estudiosos está na questão referente à total autonomia da sociologia do direito. Enquanto a postura weberiana afirma que a sociologia tem método e objetos próprios, sendo o método empírico-causal e o objeto o comportamento humano perante a norma, Kelsen, mesmo aquiescendo com o âmbito desta última categoria (ser), insiste em afirmar que, para tal comportamento ser estudado, é necessário que a sociologia jurídica recorra ao conceito de norma elaborado pela ciência do direito, afetando assim, sua autonomia como ciência, eis que teria que lançar mão de conceitos que estão fora de sua esfera de alcance.


Assim, para Kelsen, a única ciência capaz de definir direito seria a Ciência do Direito, tendo a sociologia jurídica dependência direta desta para a sua formação. Weber, porém, possui coerência e discernimento analítico quando separa cada uma das ciências, relegando-as a seus respectivos campos de validade, preservando suas autonomias e suas lógicas internas, as quais interpretam o Direito sob pontos de vista diversos, com harmonia e coerência interpretativa.


Após discorrer sobre Hans Kelsen e sua Teoria Pura do Direito, sobreleva ressaltar que a obra em comento surgiu de sua participação como jurista no Círculo de Viena – grupo informal em que estudiosos da estirpe de Kelsen, Freud, Wittgenstein, dentre outros, reuniam-se e pesquisavam, possibilitando a criação de novas teorias, como a nesse estudo discorrida, a qual é dotada de inconteste representabilidade no contexto jurídico mundial.


6 CONCLUSÃO


Ao tratar da Teoria Pura do Direito sob um enfoque dogmático privilegiado, ficou demonstrado que seu criador, almejando dar para a ciência jurídica objeto e métodos próprios, propôs-se a garantir um conhecimento dirigido ao Direito e excluir desta cognição tudo o que não pertencesse ao seu objeto. Neste contexto, percebe-se que Hans Kelsen inferiu ser indispensável, para que haja a interpretação do Direito, a abstração de outras ciências, fazendo desabar sua aludida teoria pura, influenciando até mesmo sociólogos como Max Weber, que seguem a vertente kelseniana em alguns  pontos.


O pensamento de Hans Kelsen não deixa de ter coerência ao tratar do fenômeno jurídico como um sistema de normas válidas, hierarquicamente organizado, cujas leis estariam em conformidade com as diretamente superiores, até alcançar o preceito fundamental (Grundnorm), que validaria todo o sistema jurídico, reduzindo, assim, o âmbito do estudo da Ciência Jurídica à norma, e, por via de conseqüência, excluindo os fenômenos sociais, políticos e psicológicos, objetos, respectivamente, da Sociologia, Ciências Políticas e Psicologia, dando origem à pureza da teoria em pauta.


A sociologia jurídica em momento algum poderia ter sido considerada ciência autônoma, porquanto não possui conceitos próprios; equivoca-se, destarte, Kelsen, tendo em vista não ser possível excluir a Sociologia, já que somente é possível interpretar o fato concreto por meio dela.


Assim, na interpretação do fato concreto também se interpreta a premissa menor, sendo que Kelsen desconsiderou as regras de interpretação que são os padrões sociais. Em sua teoria pura do direito, estuda-se o direito pela forma e não pelo conteúdo, mas através da interpretação da norma é utilizada a Sociologia.


 


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Informações Sobre os Autores

Natália Taves Pires

Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade de Direito da Alta Paulista – Tupã – SP; mestra em Direito pelo Centro Universitário Eurípides Soares da Rocha – Marília – SP; orientadora do Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário Salesiano – Araçatuba – SP; pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina – PR; advogada

João Carlos Leal Júnior

Acadêmico de Direito e pesquisador da Universidade Estadual de Londrina – PR; estagiário do Ministério Público do Trabalho – PR

Janaina Lumy Hamdan

Discente de Direito e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina; estagiária da Magistratura Federal – Juizado Especial em Londrina – PR

Julio César de Freitas Filho

Discente de Direito e pesquisador da Universidade Estadual de Londrina; estagiário da Magistratura Estadual do Paraná.


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Equipe Âmbito Jurídico

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