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Tribunal do tráfico

Uma situação estarrecedora ocorreu no Rio de Janeiro no final do mês de março, qual seja? O julgamento de um menor por um grupo de traficantes.

Pode soar um tanto quanto midiático, mas foi verdadeiro: um grupo de mandatários do tráfico resolve decidir se um adolescente merece viver ou morrer em virtude de ter violado as regras de conduta para uma “boa convivência” entre os habitantes de uma favela.

O que impediu a execução sumária foi à presença e, além disso, a insistência de um pastor que interpelou junto aos julgadores por seguidas e reiteradas vezes para tentar poupar a vida do menor.

A questão que envolve o caso é maior do que o fato da pessoa em questão ser maior ou menor de idade, o problema é o cenário de justiça pelas próprias mãos criado pelos traficantes, numa demonstração clara de poder, independentemente da existência ou não, de leis ou autoridades competentes.

O substrato dessa cena pode ser definido numa única frase: DR. AQUI QUEM FAZ AS LEIS SOMOS NÓS.

E, mais do que isso, a lei de uma cidade, de um país em nada se confunde com a lei criada pelos donos do tráfico. É interessante se falar em de temas como ética e conduta, confiança, respeito e amor ao próximo justamente por pessoas que diuturnamente descumprem a lei, como se existissem dois mundos em separado: o dos demais, o qual os traficantes não seguem seus mandamentos e um segundo mundo, no qual a regência é feita pelos comandantes da favela e a quem todos da comunidade devem respeito.

Contra-senso maior não há, pois se uma pessoa furtar ou roubar fora da favela não existe qualquer tipo de reprimenda, o que não é admissível é a prática entre seus co-irmãos, pois quando tal fato ocorrer ai serão aplicadas as leis internas e, geralmente o tribunal do tráfico não tem a menor compaixão ou condescendência com o infrator, até mesmo, para que a punição sirva de exemplo e desestimule os demais.

Esse tipo de violência vai de encontro aos ditames fundamentais dos direitos humanos fundamentais a qualquer ser humano, seja ele bandido ou não, mas, infelizmente, apesar de chocar, não chega a ser nenhuma noticia nova no universo do crime.

O chefe de um morro ou favela controla não só a entrada e saída das pessoas do ambiente como todas as atividades que envolvem o ambiente por uma questão de proteção de interesses, afinal, ao monitorar os demais o chefe se sente mais seguro e protegido.

Ademais, com a criação e instituição de um Código de Ética na favela, o objetivo é claro: se você morador confiar em novos donos do lugar, terá nossa proteção; no entanto, se alguém desrespeitar as regras o tratamento será exemplar.

A idéia é a construção artificial de uma família, na qual todos os membros da comunidade têm por obrigação ajudar e cooperar uns com os outros, assim a comunidade está protegida e prospera, independentemente dos interesses e da intervenção do Estado.

Esse plano de ação existe há muito tempo entre os chefes do tráfico e a execução de uma pessoa que não respeita a segurança dessa família não chega a surpreender, já que o chefe quer a paz social entre seus pares e, acima de tudo, quer manter a hierarquia e a certeza de que ninguém irá roer a corda para fora da comunidade, ou seja, cooperar com a polícia, etc.

E por que a conduta do morro ou da favela funcionam e a do Estado está cada vez mais ineficiente? A resposta é a forma como a punição é aplicada: enquanto que o traficante utiliza o método da vingança, o Estado usa de métodos processuais para não ferir os direitos e garantias individuais consagrados na Constituição Federal.

O traficante pode trair a lealdade da sociedade, mas o mesmo jamais poderá ser feito com ele, porque a resposta será o extermínio, o que impera é a política do medo. Se uma pessoa decidir agir contra as regras, irá conhecer a violência; porém, se for pacato e andar na linha não há porque ter medo.

Ora, o medo está presente 24 horas no imaginário de um morador de favela, seja por temor de uma batida, de uma bala perdida, de um olhar mal interpretado, qualquer sinal de desconfiança pode ser fatal e o que impede uma resposta é o medo que obriga o morador à resignação perante a hierarquia.

O morador de uma favela vive sempre à beira do medo, como andar sob o fio da navalha e por que não vai morar em outro lugar? Se for para outro ambiente similar as regras serão as mesmas e se for para um ambiente, em tese, mais pacífico, como poderá arcar com o custo de vida? Então a resignação e o conformismo habitam o seu cotidiano.

Além disso, fora da favela não existe segurança ou Código de Ética, portanto, a pessoa pode ser vítima de um assalto, tráfico, etc.

A pergunta a ser feita é: o tribunal do tráfico é certo ou não?

Certo não é e nunca será, mas, num país em que o crime se mostra mais organizado que o governo, a Justiça demora anos para ser aplicada e a impunidade de uns não é a mesa de outros o que podemos entender como certo?

Como cidadão desejo a existência de um terceiro mundo que não o do traficante e nem o que ele destrói, mas sim o que faz com que ele pague por seus crimes. Devaneio? Utopia?

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Antonio Baptista Gonçalves

 

Advogado, Membro da Association Internationale de Droit Penal, Membro da Associação Brasileira dos Constitucionalistas. Membro da Comissão dos Direitos Humanos da OAB/SP, Mestrando em Filosofia do Direito – PUC/SP, Especialista em International Criminal Law: Terrorism´s New Wars and ICL´s, Responses – Istituto Superiore Internazionale di Scienze Criminali, Especialista em Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra, Pós Graduado em Direito Penal – Teoria dos delitos – Universidade de Salamanca, Pós Graduado em Direito Penal Econômico da Fundação Getúlio Vargas – FGV

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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