1. Introdução
Os riscos sempre fizeram parte da existência humana em sociedade. Todavia, antes do advento da Revolução Industrial, os riscos eram tidos e sentidos pela coletividade como oriundos de fatores externos e estranhos a ela [1]. Assim, ou se referiam a eventos naturais ou a contato belicoso com outras comunidades.
Com a evolução tecnológica, enquanto se minimizavam riscos externos, como doenças e catástrofes naturais, numa contradição apenas aparente, a sociedade humana passou a se expor a uma carga cada vez maior de riscos originados naquela mesma evolução tecnológica. [2] Riscos estes inversamente proporcionais às facilidades decorrentes do desenvolvimento científico.
Vivemos hoje em tempos de globalização, cujas principais causas são a aceleração dos ritmos de abertura econômica, dos intercâmbios de mercadorias e serviços; a liberalização dos mercados de capitais; e a revolução das comunicações e da informática, que veio a conectar o tempo real com o espaço. [3]
Também os riscos se globalizaram. Se de inicio os riscos eram pessoais, durante a Idade Moderna Clássica os riscos assumiram uma nova dimensão, passando a atingir não mais indivíduos, mas antes coletividades; agora, na sociedade pós-moderna em que vivemos, os riscos passaram a poder potencialmente atingir a toda a sociedade humana.
O risco passou mesmo a fazer parte integrante de qualquer atuação humana numa sociedade globalizada. Nos dias de hoje o homem passa a ter de atuar sobre o mundo sem poder dispor de antemão de normas seguras ou conceitos fixos sobre a natureza correta de suas ações, ou seja, caso queira ele atuar sobre a realidade, deverá fazê-lo com risco. [4]
Assim, a evolução da sociedade humana fez com que transcendesse ao individualismo liberal para ingressar numa fase de necessária limitação da conduta do homem em prol de bens jurídicos maiores, quais sejam, aqueles pertencentes não a um indivíduo particularmente considerado, mas antes a uma coletividade deles.
Por conseguinte, a humanidade vive hoje cada vez mais na denominada sociedade de risco, entendida como aquela na qual se vislumbra uma orientação à prevenção e controle das fontes de perigo, bem como a minimização dos riscos. [5]
Tal realidade vem criando contradições que não podem deixar de ser consideradas pelo Direito. Conforme leciona Feijoo Sánche [6], embora não se constitua em fim ou função primordial do Direito Penal a manutenção da confiança dos jurisdicionados na vigência da norma, não podemos negar que esta seja uma das funções do Direito e, por conseqüência, do Direito Penal, que se constitui em ultima ratio do ordenamento jurídico. Isto, pois a confiança depositada pelos jurisdicionados na obediência das normas por parte dos outros, é um efeito empírico da existência das normas de conduta e, principalmente, das normas sancionadoras.
Diante das alterações que a realidade vem sofrendo na atual globalizada sociedade de risco, é de todo compreensível que o ordenamento jurídico anseie pelo aumento exponencial dos bens jurídicos a serem tutelados. Todavia, os deveres de cuidado correspondentes não comportam sujeição ao mesmo fenômeno de multiplicação, sob pena de deixarem aquelas normas de conduta de ter relevância, passando a ser regra geral o seu desrespeito, e não o seu acatamento. Isto ocorre pois a interiorização por parte dos jurisdicionados de novas regras de conduta sempre dependeu do fator tempo. [7]
É a relevância atribuída pela sociedade a um bem jurídico que o torna suscetível de tutela penal. Somente os bens jurídicos entendidos como bens jurídicos penais possibilitam a sua tutela através do Direito Penal. Assim, pelo pensamento dominante é que, como bem nos explica Jorge de Figueiredo Dias[8], se por um lado temos a restrição da tutela penal a bens jurídicos penais, e por outro temos a subsidiariedade desta tutela, a conclusão natural a que devemos chegar é de que o Estado e seus aparelhos de controle da criminalidade devem intervir o menos possível, e na medida exata para possibilitar a manutenção do funcionamento da sociedade.
Todavia, a ruptura do paradigma de proteção de bens individuais e sociais a que se destina o Direito Penal, e o entendimento tradicional de que o Direito Penal se constitui ultima ratio legis (princípio da intervenção mínima), não poderiam deixar, em confronto com a atual realidade globalizada, de fazer emergir novas teorias que tenham por fim possibilitar a tutela penal de interesses que transcendam ao individualismo tradicional.
Uma teoria é a que prega um Direito Penal funcionalizado, ou seja, aquele que objetivaria a tutela por antecipação dos grandes riscos a que está e estará sujeita a humanidade. Por esta teoria é indispensável que haja uma aceleração do processo legislativo para criação de normas penais, o que certamente implica numa hipertrofia legislativa. Fenômeno este que estamos presenciando nos dias que seguem.
Outra teoria propugna pela fragmentação do poder punitivo do Direito Penal, através da transferência de uma parcela daquele a um Direito Administrativo ao qual se atribui poder sancionador. Competiria a este Direito Administrativo Sancionatório a punição de condutas que, inicialmente insignificantes para o Direito Penal tradicional, quando adquirem uma dimensão coletiva, passam a representar a possibilidade de geração de danos massificados, de ampla abrangência. [9] Ou seja, condutas, que de início irrelevantes, tenham o condão de adquirem uma potencialidade de destruição em massa, tanto espacial quanto temporal, capazes de afetar populações inteiras, presentes e futuras. [10]
Como que buscando um equilíbrio possível entre aquelas teorias, Renato de Mello Jorge Silveira[11] propugna que seja deixado ao Direito Penal a reprovabilidade de condutas estritamente reprováveis, devendo se deslocar as demais questões para outras áreas do Direito.
2. Bem Jurídico Penal
É entendimento majoritário na doutrina penal nos dias de hoje que é missão do Direito Penal a proteção da sociedade, que se dá através da proteção dos bens jurídicos, entendidos estes como os interesses sociais que por sua importância mereçam a proteção do Direito.
É, assim, função do Direito Penal a proteção de bens jurídicos. Todavia, nem todos os bens jurídicos devem ser protegidos pelo Direito Penal, mas somente aqueles tidos pela sociedade como os mais relevantes. [12] A estes denominamos bens jurídicos penais.
A indicação de quais sejam estes bens jurídicos de relevância penal está a cargo do legislador, como representante que é da sociedade, a quem incumbe identificar aqueles objetos da realidade que são por ela valorados como bens jurídicos merecedores de regulamentação jurídico-penal.
Das várias conceituações ofertadas pela doutrina sobre o que venha a ser bem jurídico penal, ressaltamos aqui a criada por Polaino Navarrete[13], que entende bem jurídico como bens e valores mais consistentes da ordem de convivência humana em condições de dignidade e progresso da pessoa em sociedade.
Na doutrina nacional, grandemente influenciada pela doutrina italiana, temos que bem ou interesse jurídico é tudo aquilo que seja capaz de satisfazer a uma necessidade humana. [14] Todavia, desde a década de 80 o conceito de bem jurídico vem sofrendo grandes alterações, donde a correção da percepção de Figueiredo Dias de que talvez jamais venha a converter-se em um conceito fechado. [15] Isto porque, por óbvio, o direito é dinâmico, constituindo-se em um sistema aberto e não fechado.
Gianpaolo P. Smanio, após estudo sobre o desenvolvimento histórico da conceituação de bem jurídico penal, em sua obra Tutela Penal dos Interesses Difusos, tendo por base uma perspectiva sistêmico-social, conceitua bem jurídico como “um objeto da realidade que constitui um interesse da sociedade para a manutenção de seu sistema social, protegido pelo direito, que estabelece uma relação de disponibilidade, por meio da tipificação das condutas”.[16]
Quatro são os princípios que possibilitam a identificação de quais bens jurídicos devam ser tutelados pelo Direito Penal. O primeiro é o princípio da lesividade, segundo o qual é indispensável para a tutela penal de um bem jurídico a comprovação da lesão efetivamente sofrida por este, sem a qual não será possível a aplicação de qualquer sanção pelo Estado ao seu ofensor. O segundo é o princípio da intervenção mínima, pelo qual o Direito Penal somente deverá atuar na proteção de bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não possam ser eficazmente tutelados por outros ramos do direito. O terceiro princípio é o da fragmentaridade, segundo o qual somente agressões e ataques socialmente intoleráveis a bens jurídicos de extrema relevância os sujeitam a tutela penal. O quarto e último princípio é o da subsidiaridade, pelo qual o Direito Penal é remédio extremo, somente utilizável quando a atuação de qualquer outro dos ramos do direito, como o Direito Civil ou Administrativo, se quedar insuficiente. [17]
3. Bens Jurídicos Supra-Individuais
Com dito neste trabalho, vivemos nos dias de hoje em sociedades ditas de risco, em decorrência das quais novos bens jurídicos vêm se consubstanciando: os denominados bens jurídicos supra-individuais ou metaindividuais, que, como o próprio nome indica, transcendem ao individual.
A expressão “interesses metaindividuais”, ou a sinônima “supra-individuais”, inclui em seu bojo duas espécies distintas de interesses: os interesses públicos e os interesses coletivos lato senso.
Os interesses coletivos lato senso se dividem em: interesses individuais homogêneos, interesses coletivos estrito senso, daqui por diante denominados unicamente por interesses coletivos, e interesses difusos. Estudemos resumidamente cada um desses conceitos.
João Batista de Almeida, baseado no magistério de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, conceitua direitos individuais homogêneos como “os vinculados a uma pessoa, de natureza divisível e de titularidade plúrima, decorrentes de origem comum”. Ressalta o autor que tais direitos são tipificados pela homogeneidade, donde serem “iguais ou idênticos para todos os interessados e decorrerem de origem comum”. [18]
Como exemplo de interesse individual homogêneo temos a ação civil pública movida perante a 1ª Vara Federal de São Paulo, pela OAB – Seção de São Paulo, concernentes aos contratos de leasing de automóveis com prestações vinculadas à variação cambial. O pedido consistia determinar que as instituições financeiras rés emitissem novos boletos onde as parcelas passariam a ser corrigidas pela variação do INPC. [19] Os direitos ali a serem tutelados são inquestionavelmente individuais, todavia possuem inegável origem comum, qual seja, o mesmo tipo de contrato, o que possibilita a sua defesa em juízo na modalidade coletiva.
Para Péricles Prade são direitos coletivos aqueles “perseguidos através do processo associativo, conatural ao homem (família, cooperação profissional, empresa, sindicato)”. [20] Ou seja, “são interesses comuns a uma coletividade de pessoas e apenas a elas” que repousam sobre “vínculo jurídico definido que as congrega”. [21] Temos como exemplo, além dos já indicados: a sociedade comercial, o condomínio, associação de pais, etc.
Ainda quanto ao conceito de direitos coletivos, Celso Bastos [22] os conceitua como aqueles “afetos a vários sujeitos não considerados individualmente, mas sim por sua qualidade de membros de comunidades menores ou grupos intercalares, situados entre os indivíduos e o Estado”, dentre os quais se pode notar a existência de “um vínculo jurídico básico (…) que une todos os indivíduos”.
Como exemplo temos a ação civil público ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo contra a cobrança indevida de taxa de iluminação pública, de cujo julgado constava que, ademais de os interesses pertinirem a pessoas naturais, quando visualizados em conjunto transcendem à esfera dos interesses puramente individuais para se constituir em interesses da coletividade como um todo. [23]
Direitos difusos, no magistério de Péricles Prade são aqueles “titularizados por uma cadeia abstrata de pessoas, ligadas por vínculos fáticos exsurgidos de alguma circunstancial identidade de situações, passíveis de lesões disseminadas entre todos os titulares, de forma pouco circunscrita e num quadro abrangente de conflituosidade”. [24]
Para Mazzilli direitos difusos são “interesses indivisíveis de grupos menos determinados de pessoas, entre as quais inexiste vínculo jurídico ou fático muito preciso”. [25] A indivisibilidade de tais interesses diz respeito ao seu objeto, que não pode ser quantificado e distribuído entre os membros da coletividade.
Como exemplos de interesses difusos temos: habitar a mesma região, consumir o mesmo produto, viver sob determinadas condições sócio-econômicas, sujeitar-se a determinados empreendimentos, etc.
Caso prático que melhor possibilita a compreensão do que seja interesse difuso é o da apelação nº 41.630/5-00, da Vara da Infância e Juventude do Foro Regional de Pinheiros, Comarca da Capital, que foi julgada pela Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2.7.98. Dizia respeito ao condicionamento da matrícula de crianças menores de seis anos de idade à existência de vagas. Tal condicionamento foi afastado em vista a obrigação de criação de vagas pelo Estado para atender a todas as crianças.
Necessária se faz, ainda, a distinção entre interesses difusos e interesses públicos. Como muito bem disse Miguel Teixeira de Sousa [26], “interesses públicos correspondem aos interesses gerais de uma colectividade, mas abstraem dos interesses individuais que são satisfeitos; (…) os interesses difusos são sempre interesses que estão a satisfazer necessidades efectivas de cada um dos membros de uma classe ou de um grupo”. Exemplifica o mesmo autor: “os interesses difusos dos consumidores ou dos habitantes de uma região não podem ser pensados sem as utilidades que eles concretamente atribuem àqueles consumidores ou habitantes”. O que não ocorre na hipótese de interesses públicos.
O interesse público, sendo um interesse geral, se consubstancia como interesse próprio do Estado e apresenta uma conflituosidade mínima, posto pressupor consenso coletivo. Havendo conflito, este se expressa na perspectiva clássica do indivíduo contra o Estado.
Podemos exemplificar como interesses públicos ou gerais os seguintes: as garantias individuais e sociais fundamentais, a segurança pública, a moralidade administrativa, a qualidade de vida, a harmonia da família, o pleno emprego, a educação, a paz, etc. [27]
Vários autores nos brindam com claras explicações acerca das características dos interesses difusos. Vejamos as principais identificadas pelos autores[28]:
A primeira característica é a pluralidade de titulares em um número tal que não possibilita a identificação de todos individualmente. A inexistência de vinculação jurídica entre os titulares dos interesses difusos impossibilita a individualização e identificação daqueles.
Outra característica é a indivisibilidade do bem jurídico difuso, pois o objeto da realidade que o constitui não comporta partilha entre os seus titulares, pertencendo como um todo a todos eles em igual medida, mas não comportando atribuição exclusiva a nenhum de seus titulares. No dizer de Cappelletti, interesse difuso é aquele que “pertence a todos e a ninguém”[29].
As duas características seguintes são de todo complementares. Uma delas é a ausência de vínculo associativo que aglutine os titulares do interesse difuso. A segunda característica é a existência de vínculo fático a unir os titulares do direito difuso. Assim, apesar de não existir uma vinculação jurídica que unifique os inumeráveis titulares de um interesse difuso, conglomerando-os em uma massa identificável de indivíduos, entre eles existe uma vinculação fática, consistente no simples fato de que todos o são do mesmo bem jurídico (EX: propaganda que não seja enganosa).
Quinta característica é a potencial e abrangente conflituosidade. Como o direito difuso possui uma titularidade plúrima, a sua lesão leva ao surgimento de uma desavença envolvendo um número por vezes indeterminável de indivíduos, não raro contrapondo interesses de massa ou de grupos sociais diversos. Assim, por vezes a solução do litígio pressupõe uma escolha política.
A sexta e última característica é a ocorrência de lesões disseminadas em massa. Ou seja, diante da realidade massificada em que vivemos, também os direitos assumem uma dimensão de massa, donde a sua violação, por vezes praticada por grupos sociais, atingir a um número sequer determinável de lesados.
4. Bem Jurídico Penal Difuso
Tudo o quanto dito acima acerca dos bens jurídicos penais se aplica, com algumas ressalvas concernentes às suas peculiaridades, ao denominados bens jurídico penais difusos.
A existência de bens jurídicos de dimensão coletiva no campo penal é reconhecida pela doutrina desde o início dos debates sobre a conceituação de bens jurídicos. E a tendência atual é cada vez mais o Direito Penal transcender ao individualismo para reconhecer a importância da tutela do sistema social, posto ser ali onde os membros de uma sociedade se desenvolvem e se realizam como indivíduos. Com isto não estamos, todavia, a pregar o abandono da tutela dos interesses individuais, mas apenas que o Direito Penal deve estender sua proteção a interesses “menos individuais porém de grande importância para amplos setores da população”[30].
Doutrinadores nacionais, que se debruçam sobre questões penais, como Miguel Reale Júnior e Ivete Senise Ferreira, vêm reconhecendo a existência de bens jurídicos penais difusos. [31]
Para Gianpaolo P. Smanio[32] bens jurídicos penais difusos são aqueles concernentes à sociedade como um todo, dos quais os seus membros, individualmente considerados, não possuem disponibilidade, e que são indivisíveis e traduzem uma conflituosidade social. Como exemplo temos: a proteção do meio ambiente, a proteção das relações de consumo, a proteção da saúde pública, a proteção da economia popular, da infância e juventude, dos idosos, etc.
O que nos indica se aqueles bens listados são tidos por bens jurídicos penais difusos ou não é a sua análise no caso concreto, ou seja, através da análise da conduta praticada contra aqueles bens jurídicos. Assim, conforme a gravidade da lesão ou ameaça de lesão sofrida por aqueles bens, identificamos a sua qualificação como bens jurídicos penais difusos ou bens jurídicos difusos concernentes a outros ramos do direito.
O mesmo procedimento acima nos possibilita ainda identificar quando uma mesma conduta criminosa atinge concomitantemente mais de um bem jurídico penal: individual, coletivo e difuso.
Ao buscarmos identificar quais bens jurídicos difusos possuem relevância (dignidade) penal e carecem de tutela penal, devemos utilizar como filtro os princípios acima abordados, tendo sempre em vista as peculiaridades do caráter difuso do bem jurídico estudado.
Assim temos que, para o atendimento do princípio da lesividade, é necessário que haja lesão ao bem jurídico para que este seja passível de tutela penal. Todavia, a proteção penal dos bens jurídicos de maior relevância social (difusos) vem se dando, na grande maioria das vezes, por meio da criação de crimes de perigo, principalmente abstrato. Assim, como seria possível o atendimento àquele princípio?
A solução do aparente dilema está na compreensão de que a lesividade a que se refere o princípio não pode ser entendida naturalisticamente como “dano”[33], mas antes como “ofensa” aos bens jurídicos penais difusos, seja esta na forma de dano (lesão) efetivo ou de colocação em perigo[34].
Temos aí então a possibilidade de tutela penal dos interesses difusos por meio dos denominados crimes de perigo, sem que haja violação ao princípio da lesividade, que melhor seria se chamado mais explicativamente de princípio da ofensividade.
Grande cuidado deve ser tomado pelo legislador ao criar crimes de perigo quando da proteção dos interesses difusos, devendo restringi-los ao mínimo indispensável, sob pena de violação aos princípios fragmentário e da intervenção mínima. Para evitação de tal violação deve o legislador cuidar para evitar a mera formulação penal simbólica.
5. A Tutela Penal dos Interesses Penais Difusos
A tutela penal dos interesses difusos, devido às características típicas e diferenciadas destes, exige todo um tratamento também diferenciado da criminalidade, o que implica em mudanças adaptativas profundas no sistema penal.
Na sociedade globalizada em que vivemos observamos um aumento crescente de crimes de natureza econômica e ambiental praticados por empresas, sendo que estas, em face da presente realidade mundial, apresentam uma preocupante desnacionalização e despersonalização dos fenômenos que lhes concernem.
A fim de trabalhar com esta realidade, o Direito Penal teve de criar teorias quanto à responsabilidade penal da pessoa jurídica, dentre as quais traremos para este trabalho as três que entendemos principais.
A primeira teoria é a que não admite a responsabilização penal das pessoas jurídicas, posto que, se são elas pura ficção legal, não podem ser verdadeiramente responsabilizadas penalmente. Entende que tal responsabilidade penal deverá recair sobre os homens cuja vontade conjugada fez nascer a ficção legal pessoa jurídica.
Esta teoria se fundamenta no seguinte argumento: se as pessoas jurídicas somente podem atuar no mundo dos fatos através de seus órgãos humanos, nunca pessoalmente, então não podem elas ser apenadas, mas apenas aqueles que são seus órgãos. [35]
A segunda teoria ora estuda é a que prega a responsabilização da pessoa jurídica por meio de medidas especiais, não penais. Seus argumentos são praticamente os mesmos acima, todavia admitindo a existência de um meio termo entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, denominado Direito de Intervenção.
Para esta teoria, como não é possível a aplicação de sanções graves, tais como as privativas de liberdade, aos entes morais, a eles devem ser aplicadas, por via do Direito de Intervenção, que faça aquele meio termo, medidas especiais, tais como: dissolução da entidade, intervenção na empresa, fechamento desta, suspensão de atividades, proibição da realização daqueles no futuro, etc.[36]
A terceira teoria é a que reconhece a responsabilidade penal da pessoa jurídica, o que pressupõe a criação de todo um novo sistema teórico a possibilitar tal posicionamento.
Esta posição doutrinária se baseia na teoria da realidade da pessoa jurídica, donde possuir ela vontade própria, distinta e independente dos membros que a constituem, mas que, por possuir peculiaridades próprias distintas da ação humana, faz imprescindível uma análise diferenciada do dolo e tipicidade de sua conduta.[37]
Nossa Carta Magna prevê expressamente, no seu art. 225, § 3º, a possibilidade de aplicação de sanções penais a pessoas jurídicas, e assim o Direito Penal pátrio não pode se esquivar ao reconhecimento da capacidade penal daquelas pessoas.
6. Conclusão
Por tudo quanto dito acima, podemos observar que hoje ainda não existe questão fechada no que tange aos direitos penais difusos e a forma pela qual devam receber proteção jurídica. Todavia, não se questiona a necessidade premente de se buscar garantir tutela jurídica e jurisdicional àqueles direitos.
Mais uma vez convém ressaltar que, sendo função do Direito a regulamentação dos hábitos e atividades sociais, compete-lhe, diante da natural contínua evolução a que estão sujeitas as sociedades humanas, acompanhar-lhe os movimentos evolucionários através de alterações das regras jurídicas existentes ou da criação de novas interpretações para aquelas.
Se atualmente as sociedades, em decorrência das evoluções tecnológicas que minimizaram a interação tempo-espaço, passam a apresentar uma conflituosidade até então desconhecida do Ordenamento Jurídico, deverá este, indubitavelmente adaptar-se através da criação de novas regras jurídicas ou da adaptação das pré-existentes àquelas novas exigências.
Professora universitária na Faculdade de Direito UNIFEOB (http://portal.unifeob.edu.br/novoportal/index.php) nas disciplinas de Direito Processual Civil e Psicologia Aplicada ao Direito, Mestre em Processo Civil pela Universidade Paulista – UNIP, Mestre em Educação do Ensino Superior pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP, advogada.
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