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Um brinde à ineficácia

Pois
é, aconteceu de novo. O bom texto de Tarso Araújo numa revista nacional de
respaldo científico, do mês de fevereiro, traz o seguinte título: “Deu água na
lei seca”. Como seu próprio enunciado sugere, a reportagem se refere ao fracasso
da lei que aumentou o rigor das sanções para os que dirigem embriagados.
Tolerância zero, “broken windows theory”, direito
penal máximo, direito penal como “prima ratio”, enfim, de certa forma, uma “dose”
de cada.


mais ou menos sete meses, essa mesma lei – “sedenta” em ser aplicada – trouxe
para os jornais impressos e televisivos toda uma gama de informações referente
ao assunto, um total frenesi. Junto com eles, como geralmente ocorre, alguns
conhecidos e amigos caíram na tentação de proclamar com a maior exclamação
possível: “É isso mesmo! Tem que prender! Nos Estados Unidos é assim!”.
Definitivamente, preciso me afastar de algumas pessoas.

Constatou-se
que todos aqueles números do início da vigência dessa lei (exatamente 20 de
junho de 2008) estavam indo água abaixo. Para se ter uma idéia, em São Paulo, o
número de atendimentos às vítimas de trânsito caiu 22% no primeiro mês de
vigência da lei quando comparado com o mesmo período de 2007, mas, já em
dezembro de 2008 a estatística desaponta os bem intencionados ao relatar que o
número de atendimentos foi 39% maior que no mesmo período de 2007.

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Confesso
que não fiquei em nada surpreso. Não disse “já sabia” ou, como é mania do povo
brasileiro que torce para que as coisas dêem erradas, soltei um “bem feito, sabia
que não ia pegar”. Vamos ver: supondo-se que houvesse a devida fiscalização,
supondo-se que não existisse corrupção na polícia brasileira, supondo-se que
fosse legítimo o uso do Direito Penal como meio pedagógico e, enfim, mesmo se supondo
diversas outras aberrações sociais, políticas e jurídicas, essa lei seca jamais
seria aplicada, desde o momento em que “ninguém está obrigado a produzir prova
contra si mesmo”.

Duas
hipóteses. A primeira delas é a de que essa é uma lei produzida por quem não
entende de leis, de processo penal garantista e de políticas efetivas, uma possibilidade que ameaça se confundir
com probabilidade. A segunda é a de
que é uma lei simbólica que vem deixar a maioria da população da mãe gentil
tranqüila. “Tranqüila” porque grande parte dos “filhos dessa mãe” é ignorante,
mas não porque querem e sim porque, dentre outras questões, somos exemplo
mundial de desigualdade social.

Enquanto
isso, interesses econômicos vão se sobrepondo à vida de centenas de milhares de
pessoas ao se permitir publicidade que vincula saúde, beleza e sucesso na vida
à virada de um copo de bebida alcoólica. No final de todo o espetáculo aparece
uma frase com uma voz dizendo: “sber nõ rija”. Como que é?! Traduzo: “se beber,
não dirija”. Acontece que a frase é tão insignificante, tão rápida, em nada impactante,
“chata” perto daquela beleza toda do espetáculo anterior, “feia” demais com seu
fundo azul careta, enfim, tão efêmera que sua assimilação só é possível para
quem já tem um ouvido pré-disposto em captar aquela mensagem.

E quanto
aos anúncios trazidos pelo governo federal em rede televisiva declarando a
desgraça que pode ser a mistura entre bebida alcoólica e direção de veículo automotor?
Bons, mas apenas bons.

Dizer
“se beber, não dirija” é tão eficaz quanto dizer “não use drogas” a um viciado
em crack. É tão eficaz quanto vestir uma camisa na Faixa de Gaza com os dizeres
“faça paz, não faça guerra”. Não duvido da boa intenção e até mesmo da
importância de tais frases como “lembretes”, mas meros lembretes.

Mostrar
que o veículo utilizado de forma irregular traz uma probabilidade muito maior
em causar mortes ou lesões corporais que a chamada violência “comum”
(latrocínio, homicídio etc.), ou seja, uma verdadeira arma; disseminar, por
exemplo, que 61% dos acidentes de trânsito ocorridos no ano de 2006 tinham
relação com o álcool, segundo dados da Associação Brasileira de Medicina do
Tráfego; repetir mais e mais vezes que o consumo normal (estado de euforia) do
álcool duplica a possibilidade de um acidente, que o consumo tido como
“anormal” (alteração dos reflexos) aumenta em seis vezes essa chance e que o
consumo exagerado (confusão mental e visão dupla) aumenta em 25 vezes essa
mesma possibilidade; permitir uma fiscalização ou impor multas (administrativas!)
aos donos de bares que servem bebidas àqueles que sabem estarem guiando algum
veículo; enfim, ensinar, educar, avisar e repetir que o consumo imoderado é uma
questão de liberdade humana, mas que o consumo irresponsável é símbolo de falta
de civilidade, devendo os autores de danos ou perigos concretos se submeterem à
responsabilização criminal.

E
onde quero chegar com isso? No correto e já cansativo discurso de que devemos
prezar por uma intervenção mínima com o Direito Penal? No polêmico, mas
acertadamente aceito, argumento de que a criminalização de perigo abstrato não
encontra simetria constitucional? Que o Direito Penal encontra dificílimas
possibilidades de aplicação prática para esses casos? Não, nada disso. Quero
chegar ao ponto da hipocrisia, da falta de políticas racionais e efetivas de
educação no trânsito, enfim, quero chegar ao ponto da ganância econômica se
sobrepondo à vida humana.

Venho
apenas lembrar-lhe, leitor, daquilo que temo como conseqüência mais drástica do
uso do Direito Penal carregado de politicagem simbólica e estúpida: o descrédito social. Quem sabe um dia
ainda explique isso de maneira satisfatória, da forma que merece o conhecimento
científico sério. Por enquanto, trago não como conclusão, pois raciocínio
lógico não houve, mas como que um jargão deduzido da Teoria da Justiça de
Rawls: a ineficácia gera descrédito, o
descrédito gera desordem
.

E
nunca se esqueça: “sber nõ rija”.


Informações Sobre o Autor

Marcel Figueiredo Gonçalves

Advogado criminalista e Professor de Direito Penal em São Paulo. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.


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Equipe Âmbito Jurídico

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