Sumário: 1 Introdução; 2 Estado democrático de direito 2.1 Dignidade da Pessoa Humana 2.2 Pluralismo 2.3 Participação; 3 Eficácia das normas constitucionais 3.1 A análise da norma sob uma ótica pós-positivista 3.2 Método concretista de Frederich Muller; 4 As normas relativas à filiação presentes na constituição da república e no estatuto da criança e do adolescente 4.1 Alterações axiológicas introduzidas pela Constituição da República de 1988 no Direito de Família 4.2 Direitos fundamentais relativos às crianças e aos adolescentes 4.3 O princípio da igualdade da filiação 4.4 Adoção 4.4.1 Intervenção judicial na adoção plena 4.4.2 Adoção por estrangeiros; 5 Conclusão; 6 Referências Bibliográficas.
1 Introdução
Este estudo objetiva realizar uma análise crítica sobre princípio da igualdade na filiação e aos direitos fundamentais específicos da criança e do adolescente a luz do paradigma do Estado Democrático de Direito.
A importância deste estudo assenta-se no fato de que o princípio da igualdade da filiação e a garantia dos direitos fundamentais específicos da criança e do adolescente, previstos na Constituição, permitem que eles se tornem sujeitos de direito e que se formem como cidadãos ativos e conscientes de seu papel na sociedade, possibilitando, assim, a concretização do Estado Democrático de Direito.
O marco teórico deste trabalho é o Estado Democrático de Direito. Sobre o paradigma do Estado Democrático de Direito, serão, primeiramente, analisados os conceitos de paradigma e paradigma do Direito, o que permitirá o estudo sobre as modificações nos paradigmas do Direito ao longo da história. Será também feita uma análise de como deve ser as decisões judiciais no paradigma do Estado Democrático de Direito.
Três princípios do Estado Democrático de Direito foram eleitos para serem estudados neste trabalho, por se relacionarem e se mostrarem relevantes com ele. São eles a dignidade da pessoa humana, o pluralismo e a participação.
A primeira dessas características a ser analisada é a dignidade da pessoa humana. A Constituição da República, art. 1º, inciso III, determina que é fundamento da República Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana. Os arts. 227 da Constituição da República e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem os direitos fundamentais específicos à criança e ao adolescente, todos eles aptos a assegurar o princípio da dignidade da pessoa humana. Além disso, os referidos diplomas expressamente asseguraram à criança e ao adolescente a dignidade. Por isso, a dignidade da pessoa humana mostra-se uma importante característica do Estado Democrático de Direito a ser estudada neste trabalho.
O pluralismo também se mostra um tema importante, porque a Constituição da República, em seu art. 227, § 6º, reza que terão os mesmos direitos e qualificações, os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. A norma denuncia a existência e, conseqüentemente, a proteção, de forma igualitária e não discriminatória, da pluralidade dos modelos de família e das formas de filiação presentes em uma sociedade plural e democrática.
A participação é um dos consectários de toda proteção garantida à criança e ao adolescente tanto na Constituição da República, como no Estatuto da Criança e do Adolescente. Os dois diplomas que se preocuparam em assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos fundamentais referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de todos os demais direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. Se essas normas tiverem eficácia, permitirão a formação de cidadãos ativos e participantes, próprios de Estado Democrático de Direito real e concreto.
É necessário que as normas constitucionais sejam eficazes, concretizem-se, transformem a realidade; permitindo, assim, que as crianças e os adolescentes cresçam em um centro formador que lhes forneça educação, cultura, saúde e afetividade, tratando-os como sujeitos de direito, para que, no futuro sejam cidadãos ativos e participativos. Para que as normas constitucionais tornem-se eficazes, será necessário abandonar os métodos positivistas de interpretação constitucional que não lograram êxito e adotar um novo método, uma nova hermenêutica, que confira a devida eficácia às normas constitucionais.
O método de interpretação eleito neste estudo foi o método concretista de inspiração tópica de Frederich Müller, por ser o mais apto e conciso, a alcançar seu objetivo: dar eficácia às normas constitucionais. Esse método de interpretação das normas permite que as decisões judiciais sejam adequadas e justas e que, ao mesmo tempo, assegurem a certeza ao Direito, conforme devem ser as decisões judiciais no paradigma do Estado Democrático de Direito.
Para o estudo da eficácia das normas constitucionais, será necessário, primeiramente, analisar a norma sob a ótica pós-positivista. Nessa ótica, a norma é um gênero, que contém como espécies preceitos ou regras e princípios. Para a melhor compreensão desta assertiva, será estudado o desenvolvimento que os princípios tiveram do positivismo ao pós-positivismo. Quando então, estar-se-á apto a diferenciar o preceito ou regra e o princípio. Sob a ótica pós-positivista, o princípio, deixa de ser apenas o alicerce do ordenamento jurídico ou meio de integração de possíveis lacunas legislativas, para se tornar norma jurídica cogente, fato que possibilita sua plena eficácia e concretude.
No tópico da análise crítica sobre as normas relativas à filiação presentes na Constituição da República e no Estatuto da Criança e do Adolescente, serão analisados os subtópicos: as alterações axiológicas introduzidas pela Constituição da República de 1988 no Direito de Família; os direitos fundamentais relativos à criança e ao adolescente; o princípio da igualdade da filiação; e, finalmente, a adoção.
O estudo das alterações axiológicas introduzidas pela Constituição da República de 1988 no Direito de Família, será feito na ótica da família, da filiação e do pátrio poder. Será realizada uma comparação da forma com que estes institutos foram tratados no paradigma do Código Civil de 1916 e no paradigma da Constituição da República de 1988.
Acerca dos direitos fundamentais relativos à criança e ao adolescente, serão feitas análises sobre: a importância da concretização dos direitos fundamentais para a democracia; os direitos fundamentais específicos da criança e do adolescente tanto na Constituição, como no Estatuto da Criança e do Adolescente e, por fim, abordar-se-á a eficácia das normas constitucionais e do Estatuto que prevêem esses direitos fundamentais.
Serão também estudadas, de forma pormenorizada, a respeito do princípio da igualdade da filiação, quais as modificações que o instituto da filiação sofreu após a promulgação da Constituição de 1988 e como estas modificações estão presentes no texto normativo do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Finalmente, relativamente à adoção, serão, inicialmente, analisadas as alterações sofridas no instituto da adoção com a promulgação da Constituição de 1988. Em seguida, será estudada a intervenção do Poder Público na adoção plena e na adoção por parte de estrangeiros, que são, exatamente, as determinações feitas pelo legislador constituinte no art. 227, §5º, da Constituição da República.
2 Estado democrático de direito
O estudo em tela tem como marco teórico o Estado Democrático de Direito. O paradigma do Estado Democrático de Direito é um consectário da superação dos demais paradigmas do Direito existentes ao longo da história. Antes de analisar as transformações dos paradigmas do Direito é necessário, como pressuposto lógico, analisar o conceito de paradigma.
Tomas Kuhn,[1] citado por Oliveira (2002, p.82), enuncia que “(…) paradigmas são realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticante de uma ciência”.
Ampliando o conceito de paradigma para o campo das ciências humanas e, em específico, para a Ciência do Direito, Habermas,[2] citado por Oliveira, assim redefine paradigma:
‘Por paradigmas do Direito, considero as visões exemplares de uma comunidade jurídica acerca de como o mesmo sistema de direitos e princípios constitucionais podem ser considerados no contexto percebido de uma dada sociedade’.
‘Um paradigma de Direito delineia um modelo de sociedade contemporânea para explicar como princípios e direitos constitucionais devem ser considerados e implementados para que cumpram num dado contexto as funções a eles normativamente atribuídas’. (OLIVEIRA, 2001, p.82)
Kuhn,[3] citado por Menelick de Carvalho Netto (2001), declara que o progresso do conhecimento não ocorre de forma evolutiva e pacífica, mas se dá por rupturas, por saltos, pela modificação de paradigmas. Não há como sair de um paradigma, sem trocar de paradigma. O que possibilita o troca de paradigmas é o advento de novas práticas sociais, esse será um filtro, um óculos que filtrará a visão, que moldará a maneira como percebemos a realidade; “(…) tudo o que vemos e a forma como vemos é condicionado por nossas vivências sociais concretas”. (CARVALHO NETTO, 2001, p.50)
Acerca das modificações dos paradigmas do Direito, Menelick de Carvalho Netto[4] (1999) afirma que há dois paradigmas do Direito: o pré-moderno e o da modernidade. O primeiro paradigma envolve a antiguidade e a idade média. Neste, o Direito era um conjunto normativo indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e costumes transcendentalmente justificados, que consagra os privilégios de cada uma das castas e suas facções. O juiz tinha a função de realizar a justiça, aplicando as normas concretas e individuais casuisticamente, pela ausência de normas gerais e abstratas válidas para todos.
O paradigma da modernidade se divide em três grandes paradigmas constitucionais: o do Estado de Direito, o do Estado de Bem-Estar Social e o do Estado Democrático de Direito. Segundo o doutrinador, esses três grandes paradigmas:
(…) que tendencialmente se sucedem, em processo de superação e subsunção (aufheben), muito embora aspectos relevantes dos paradigmas anteriores, inclusive o da antigüidade, ainda se possam encontrar, no nível fático, curso dentre nós, a condicionar leituras inadequadas dos textos constitucionais e legais. (CARVALHO NETTO, 1999, p.103)
Ainda segundo o autor (1999), no paradigma constitucional do Estado de Direito, o Direito deixou de ter uma justificativa transcendental que se baseava na hierarquia sociedade de castas, para se tornar um conjunto de leis elaboradas de forma racional e impostas universalmente a observância de todos.
As leis passaram a conter idéias gerais e abstratas tomadas como Direito Natural pelo jusracionalismo. São exemplos destas idéias abstratas a igualdade perante a lei, a liberdade individual de se fazer tudo o que a lei não proíbe e a propriedade, no mínimo, do próprio corpo.
O ordenamento jurídico era baseado nas idéias liberais, que tinham o homem como o centro do mundo e capaz de ordená-lo através de sua razão e vontade. O Estado tornou-se limitado à legalidade, com um ordenamento jurídico que estabelece limites negativos, delimitando uso das liberdades pelos indivíduos, para, com isso, assegurar aos mesmos o livre exercício da autonomia da vontade. Assim, surgem os direitos individuais ou direitos de 1ª geração[5], que são direitos contra o Estado.
No paradigma do Estado de Direito, a lei deveria ser universal, geral, clara, precisa e, tanto o quanto possível, completa. A função do juiz se limitava à tarefa mecânica de interpretação gramatical. O juiz era um autômato. O juiz, na linguagem de Montesquieu, era chamado de juiz “boca de lei”.
No paradigma constitucional de Estado de Bem-Estar Social surgem os direitos sociais e coletivos ou direitos de 2ª geração. Mas é importante ressaltar que não houve apenas um acréscimo dos direitos de 2ª geração, mas também uma redefinição dos de 1ª geração, que teve como consectário a preocupação na materialização dos direitos individuais, que anteriormente eram apenas formais. As leis sociais e coletivas objetivavam o tratamento privilegiado do indivíduo social ou economicamente mais fraco. É o abandono da ótica individualista dos liberais. Com as exigências de materialização do Direito, houve uma grande ampliação das funções do Estado, este se torna intervencionista. “Assim, a cada nova geração, o certo seria que os direitos não são simplesmente alargados, mas sim redefinidos a cada novo paradigma”. (OLIVEIRA, 2001, p.105)
Diferente do paradigma do Estado de Direito, neste paradigma a lei deveria ter conceitos jurídicos indeterminados, permitindo ao juiz maior liberdade de decisão, ampliando a atividade hermenêutica do juiz, que passou a ter outros métodos de interpretação além do gramatical, como o teológico, sistemático, histórico, etc.
Finalmente, no paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito surgem os direitos difusos ou direitos de 3ª geração[6], que têm como exemplo o direito da criança e do adolescente, o biodireito, o direito ambiental, o direito do consumidor, etc. O Estado deixa de ser intervencionista para se posicionar como uma empresa acima de outras empresas.
Oliveira (2001) declara que a utilização da noção de paradigma jurídico objetiva estabilizar a tensão existente entre o real e o ideal, ao postular que haveria um horizonte histórico de sentido para a prática jurídica, ainda que mutável, que pressuporia uma certa noção do contexto social do Direito, com o objetivo de se compreender a perspectiva em que os problemas jurídicos deveriam ser interpretados para que o Direito possa cumprir a sua função de integração social.
O Direito, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, conforme afirma Oliveira, demanda uma reflexão sobre os paradigmas que informam e conformam a decisão judicial. Habermas,[7] citado por Oliveira, afirma que:
(…) a tensão imanente no Direito entre facticidade e validade manifesta-se no exercício da jurisdição (“adjudication”) como uma tensão entre o princípio da certeza do Direito e a pretensão de se tomar decisões justas. (OLIVEIRA, 2001, p.80)
Habermas,[8] citado por Oliveira (2002), soluciona a tensão entre certeza e justiça afirmando que a tarefa de julgar deve cumprir, simultaneamente, as condições de uma decisão consistente a da aceitabilidade racional. Assim, pode-se dizer que por um lado o princípio da certeza cobra decisões que podem ser tomadas de forma consistente no quadro do Direito vigente; por outro lado, a pretensão de legitimidade da ordem jurídico-democrática demanda não só decisões consistentes com o sistema de norma vigente e com o tratamento de casos análogos, como também que elas sejam racionalmente fundadas nos fatos do caso, de forma que os cidadãos possam aceitá-las como racionais.
Destarte, conforme Habermas[9] citado por Oliveira pondera:
(…) o problema da racionalidade consiste, pois, em como a aplicação de um Direito contingencialmente emergente pode ser realizada de modo internamente consistente e externamente fundado de forma racional no sentido de se garantir a certeza do Direito e sua justiça, sua correição. (OLIVEIRA, 2001, p.81)
Sobre a imparcialidade do juiz no paradigma do Estado Democrático de Direito, Günter,[10] citado por Menelick de Carvalho Netto (1999), declara que a imparcialidade se traduz na capacidade do julgador considerar a reconstrução fática feita por todos os afetados pela decisão e, dessa forma, fazer com que o ordenamento jurídico como um todo, enquanto uma pluralidade de normas que competem entre si para reger situações, faça-se presente, procurando a norma mais adequada à situação; qual a norma que, em decorrência das peculiaridades do caso concreto, produz justiça para as partes, isenta de resquícios de injustiça provenientes de uma aplicação cega à situação fática.
Neste tópico, serão analisadas, como já mencionado na introdução, as características do Estado Democrático de Direito que mais se relacionam com o tema deste estudo: a dignidade da pessoa humana, o pluralismo e participação.
2.1 Dignidade da Pessoa Humana
“De conceito filosófico que é, em sua fonte e em sua concepção moral, a princípio jurídico, a dignidade da pessoa humana tornou-se uma forma nova de o Direito considerar o homem e o que dele, com ele e por ele se pode fazer numa sociedade política”. (ROCHA, 2001, p. 56)
O princípio da dignidade da pessoa humana está expressamente positivado tanto no caput do art. 227 da Constituição da República, que possui sua redação praticamente repetida no art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto nos arts. 3º, 18, 124, inciso V, 178, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Conforme postula José Afonso da Silva (1998), a positivação do princípio da dignidade da pessoa humana pelo legislador constituinte de 1988 teve como causa os desrespeitos à pessoa humana praticados no regime militar.
A filosofia kantiana traz uma grande contribuição no esclarecimento desse conceito. Ela revela que o homem, como ser racional, existe como fim em si mesmo, enquanto os seres não racionais têm valor de meio, que é um valor relativo e condicionado e não é por outro motivo que são chamados de coisa.
Kant[11], citado por Silva (1998), esclarece melhor o tema afirmando que os seres racionais são chamados de pessoas, porque sua natureza já os designa como fim em si, ou seja, como algo que não pode ser usado simplesmente como meio e que, por conseqüência, limita na mesma proporção o arbítrio, por dever ser respeitado. Se a natureza racional existe como um fim em si mesma e o homem representa, igualmente e necessariamente, a sua própria existência, então, por conseguinte, o princípio racional vale para toda pessoa humana.
Daí o imperativo categórico prático kantiano: “age de tal sorte que considere a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. (SILVA, 2998, p. 90) Conclui-se, portanto, que os homens, seres racionais por excelência, devem, cada qual, tratarem-se sempre e simultaneamente como fim, nunca como meio.
Na filosofia kantiana distingui-se dignidade de preço. O preço é algo que pode ser substituído por outra coisa equivalente, porque tem um valor relativo, condicionado, existindo apenas como meio. Já a dignidade é um valor supremo e interno, que não admite substituição por outro equivalente. Assim, a dignidade é um atributo da essência da pessoa humana, ser racional, que possui um valor intrínseco, devendo ser considerado como um fim em si mesmo e não como meio, que não admite substituição por equivalente.
Carmem Lúcia Antunes Rocha estabelece uma interdependência entre a democracia e o princípio da dignidade da pessoa humana:
O Estado somente é democrático em sua concepção, constitucionalização e atuação, quando respeita o princípio da dignidade da pessoa humana. Não há verbo constitucional, não há verba governamental que se façam legítimos quando não se voltam ao atendimento daquele princípio. Não há verdade constitucional, não há suporte institucional para políticas públicas que não sejam destinadas ao pleno cumprimento daquele valor maior transformado em princípio constitucional. (ROCHA, 2001, p. 56)
Silva (1998) determina que a dignidade da pessoa humana compreende todos os direitos fundamentais do homem, sejam eles de primeira, segunda, terceira ou quarta geração.
2.2 Pluralismo
Segundo Bobbio (1986), a democracia surge de uma concepção individualista de sociedade, na qual qualquer forma de sociedade e, especialmente, a sociedade política é fruto de um produto artificial da vontade dos indivíduos singulares, livres e iguais.
Tendo como ponto de partida o indivíduo como soberano, que entra em acordo com outros indivíduos igualmente soberanos, para criar uma sociedade política, que lhes seja capaz de assegurar a vida, a liberdade e a probidade, comenta Bobbio (1986) que os doutrinadores democráticos, como Montesquieu, haviam imaginado um estado sem corpos intermediários, como, por exemplo, era característico das sociedades coorporativas das cidades medievais.
No entanto, o que ocorreu nos Estados democráticos foi exatamente o contrário. Os sujeitos politicamente relevantes tornaram-se menos os indivíduos e mais os grupos, grandes organizações, sindicatos das mais diferentes profissões, associações das mais diversas naturezas, partidos das mais variadas ideologias.
Os grupos e não os indivíduos são protagonistas da vida política numa sociedade democrática, na qual não existe mais um soberano, o povo ou a nação, composto por indivíduos que adquiriram o direito de participar direta ou indiretamente do governo, na qual não existe mais o povo como uma unidade ideal (ou mística), mas apenas o povo dividido de fato em grupos contrapostos e concorrentes, com a sua relativa autonomia diante do governo central (autonomia que os indivíduos singulares perderam ou só tiveram num modelo ideal de governo democrático sempre desmentido pelos fatos). (BOBBIO, 1986, p.23)
Bobbio (1986) afirma que o modelo ideal de sociedade democrática para os doutrinadores democráticos era o de uma sociedade centrípeta, enquanto o que se concretizou foi o de uma sociedade centrífuga, que possui vários centros de poder.
Atualmente, pode-se dizer que no paradigma do Estado Democrático de Direito, tanto os indivíduos quanto os grupos, heterogêneos e diversificados, contrapostos e concorrentes, são essenciais na vida política de uma sociedade democrática pluralista.
José Alfredo de Oliveira Baracho ressalta a importância do pluralismo social:
O pluralismo conduz ao reconhecimento da necessidade de um processo de equilíbrio entre as múltiplas tensões na ordem social. (…) O poder do Estado não deve estar assentado em base unitária e homogênea, mas no equilíbrio plural das forças que compõe a sociedade, muitas vezes, elas próprias rivais e cúmplices. (BARACHO, 1996, p. 6)
Galuppo (2001) afirma que uma Constituição democrática não pode apagar do seu interior os projetos dos minoritários que se conciliam com o pluralismo. A Constituição pode, no máximo, determinar regras jurídico-práticas dos variados projetos presentes na sociedade e na própria Constituição, prevendo condições e limites para este debate no plano fático. “É um equívoco, portanto e um anacronismo, aplicar conceitos tais com ‘harmonia’ e ‘sistema’, de uma sociedade de forma absoluta e rigorosa, a um texto constitucional como o nosso”. (GALUPPO, 2001, p. 55)
2.3 Participação
Canotilho (1999) descreve as premissas antropológico-políticas de participação: o homem só se transforma em homem por meio da autodeterminação e esta, por sua vez, reside primariamente na participação política.
Segundo Silva (1994), a democracia requer a participação ampla do povo e de suas organizações de base no processo político e na ação governamental. Torres (2001) ressalta que, hodiernamente, tornou-se indispensável o aumento das modalidades de participação que exceda a clássica participação representativa, que embora seja essencial para o sistema político democrático, falta-lhe um controle popular das decisões políticas e administrativas.
Destarte, é urgente que ao modelo representativo se acresçam novos institutos, que possam obter as manifestações de vontade dos indivíduos, dos grupos e de entidades que, conquanto não sejam parte do Governo, são interessadas nas decisões que serão tomadas. Deve-se salientar que essa expansão das modalidades de participação popular coaduna-se com a vontade do legislador constituinte, que não fechou as portas para a criação e evolução dos institutos de participação.
Canotilho muito bem ressalta a importância dos institutos de participação efetiva e eficaz para a democracia:
(…), o princípio democrático implica democracia participativa, isto é, a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efectivas possibilidades de aprender democracia, participar dos processos de decisão, exercer o controlo crítico na divergência de opiniões, produzir inputs políticos democráticos. (CANOTILHO, 1999, P. 282)
Moreira Neto,[12] citado por Torres (2001), descreve os institutos de participação presentes nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A participação na função legislativa ocorre informalmente, pela informação que os canais de publicidade concedem ao processo legislativo e pelas diversas modalidades de influência que sobre o processo legislativo são exercidas; formalmente, se expressa no instituto da representação política que é assegurada pelo direito de voto e pelos institutos como o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular e o recall.
A participação na função administrativa pode ser informativa, pela execução pela consulta ou na decisão. A participação informativa é realizada a partir da publicidade que se confere aos atos estatais. A participação efetiva-se pela execução, quando esta se abri à colaboração dos entes privados na satisfação dos interesses públicos e à adesão do administrado à execução dos planejamentos governamentais nos seus aspectos dispositivos. A participação também se efetiva pela consulta, quando a Administração ouve os indivíduos e entidades interessadas antes de tomar a decisão, como ocorre nas audiências públicas, nos debates públicos, na coleta de opiniões e na integração de administrados em colegiados mistos. Finalmente, há a participação nas decisões, desde que instituída exclusivamente por lei e firmada sobre a simples provocação da administração para que tome uma decisão.
Deve-se também mencionar a participação na função administrativa exercida no controle orçamentário, presente nos arts. 31, §3º e 74, §2º da Constituição da República. As contas dos Municípios são disponibilizadas a qualquer contribuinte, durante sessenta dias, anualmente, para exame e apreciação, o qual poderá ser questionada a legitimidade delas. Sobre as contas da União, legitima-se a qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades nelas presente perante o Tribunal de Contas da União.
Por fim, a participação na função jurisdicional manifesta-se por meio de direito de ação ou repercute sobre a legalidade e legitimidade dos atos estatais, pela participação ocasional ou permanente em órgãos de jurisdição. Ressalta-se, nessa modalidade de participação, institutos como ação de inconstitucionalidade, a queixa-crime com suspensão das funções do Presidente da República, mandado de segurança coletivo, ação popular, ação civil pública, ação de impugnação de mandato eletivo, acesso da advocacia às magistraturas togadas, a legitimação extraordinária das comunidades e organizações indígenas, o júri e o escabinado.
Torres ressalta que “(…), a Constituição de 1988 expandiu o rol de instrumentos de participação, valorizando sensivelmente, sob as formas mais variadas por que se pode operar o instituto, a democracia participativa, (..)”. (TORRES, 2001, P.140)
3 Eficácia das normas constitucionais
3.1 A análise da norma sob uma ótica pós-positivista
Flórez-Valdés,[13] citado por Bonavides (2001), afirma que a concepção positivista sustenta basicamente que os princípios gerais do Direito equivalem aos princípios que informam e servem de fundamento ao Direito Positivo. Segue o autor dizendo que o juspositivismo, ao tornar os princípios na ordem constitucional meras pautas programáticas supralegais, em regra, tem assinalado, a sua carência de normatividade e, conseqüentemente, sua irrelevância jurídica. Os princípios, como lembra Menelick de Carvalho Netto (1999), também serviam como meios de integração das lacunas legislativas.
Bonavides (2001) ressalta, que, nas últimas décadas do século passado, novas Constituições foram promulgadas acentuando a hegemonia dos princípios, tornando-se base dos novos sistemas constitucionais. A construção doutrinária da normatividade dos princípios teve como fonte, em grande parte, o empenho da Filosofia e da Teoria Geral do Direito na busca da superação da antinomia entre o Direito Natural e Positivo. O passo decisivo desta reviravolta doutrinária foi dado por Frederich Müller e Ronald Dworkin. O princípio tornou-se, então, uma norma com positividade maior na Constituição do que nos Códigos; passaram a ser no sistema jurídico uma norma de eficácia suprema.
Se no pós-positivismo a norma é um gênero, que tem como espécies as regras ou preceitos e os princípios, é necessário analisar a diferença entre regras e princípios. Dworkin,[14] citado por Bonavides (2001), é o autor que melhor diferencia regra de princípio:
As regras, segundo ele, são aplicáveis à maneira do tudo ou nada (an all or nothing). Se ocorrerem os fatos por ela estipulados, averba ele, então a regra será válida e, nesse caso, a resposta a que der deverá ser aceita; se tal, porém, não acontecer, aí a regra nada contribuirá para decisão.
Sempre que se tratar de regra, para torná-la mais precisa e completa, faz-se mister enumerar-lhe todas as exceções. O conceito de validade da regra é tudo ou nada apropriado para a mesma, mas incompatível com a dimensão de peso, que pertence à natureza do princípio. Entenda-se bem: peso ou valor[15].
A dimensão de peso, importância ou valor (obviamente valor numa acepção particular ou especial) só os princípios possuem, as regras não, sendo este, talvez, o mais seguro critério para distinguir tais normas. A escolha ou hierarquia dos princípios é a de sua relevância. (BONAVIDES, 2001, p.253)
Continuando a citação de Dworkin, Bonavides (2001) menciona que, num dado caso concreto, o princípio pode ser relevante para a resolução do problema, sem, contudo, estipular uma solução particular. O juiz, por sua vez, deve levar em conta, todos os princípios que têm relevância para a resolução do conflito, dever-se-á entre eles escolher o princípio que soluciona o caso concreto de forma mais justa, sem que isso signifique identificá-lo como válido.
Galuppo (1999), assevera que a concorrência entre princípios constitucionais revela uma particularidade importante da sociedade em que existe um Estado Democrático de Direito, que consiste na impossibilidade de hierarquizar princípios, pois todos eles são igualmente valiosos para a auto-identificação de uma sociedade pluralista. “A concorrência de princípios deriva do fato de que nossa identidade é uma identidade pluralista”. (GALUPPO, 1999, p. 205)
Assim, pode-se afirmar que sob a ótica pós-positivista, o princípio deixa de ser apenas o alicerce do ordenamento jurídico ou meio de integração das lacunas legislativas, para se tornar norma jurídica cogente, de observação obrigatória pelos órgãos jurídicos. Essa ótica torna factível a eficácia dos princípios constitucionais, possibilitando, em última análise, a plena eficácia da Constituição de 1988, cujas normas são repletas de princípios.
3.2 Método Concretista de Frederich Müller
O método concretista de Frederich Müller teve a tópica como base para a sua teoria. O método tópico de interpretação constitucional tem autoria de Theodor Viehweg. Viehweg,[16] citado por Bonavides (2001), caracterizou “a tópica como uma ‘técnica de pensar o problema’, ou seja, técnica mental que se orienta para o problema”. (BONAVIDES, 2001. p. 449)
Müller,[17] citado por Bonavides (2001), fez uma severa crítica aos métodos positivistas de interpretação da norma. A norma jurídica concebida pelos positivistas como uma premissa maior, lógico-formal, que se formaliza, é a essência da teoria normativa do positivismo. Essa concepção criou um dualismo entre a norma e a realidade normativa, como se fossem duas categorias justapostas e incomunicáveis, que só se encontrariam na subsunção do fato (premissa menor) com a norma (premissa maior).
É também uma característica criticável dos métodos positivistas de interpretação da norma, o estabelecimento de uma identidade entre a norma e o texto normativo, fato que teve como consectário a caracterização da hermenêutica constitucional em mera interpretação dos textos de linguagem, com recurso as regras artificiais de interpretação, recolhidas da herança romanista de Savigny. Nessa perspectiva, a norma não passa de uma expressão idiomática, em que a sua interpretação exaure-se na interpretação do texto. Esta metodologia interpretativa foi prisioneira do formalismo e do juspositivismo.
Canotilho (1999) analisou, os postulados básicos da metódica construtivista de Frederich Müller. São eles: tem como tarefa identificar as diversas funções de realizações do Direito Constitucional (legislativa, executiva e judiciária); liga-se à resolução de problemas práticos; preocupa-se com a estrutura da norma e do texto normativo, com a concretização normativa e com as funções jurídico-práticas; tem como elemento fundamental para compreensão da estrutura normativa a teoria hermenêutica da norma jurídica que parte da não identificação entre norma e texto normativo; a norma compreende o texto normativo que é apenas à parte da norma, correspondendo, em regra, ao programa normativo (comando jurídico na doutrina tradicional); e, inclui, também, o domínio normativo, que se conforma a uma parte da realidade fática, que o programa normativo só parcialmente contempla.
Após a enumeração dos postulados básicos da metódica positivista, torna-se necessário aprofundar um pouco mais sobre o estudo de cada um destes postulados, para que haja uma melhor compreensão desta temática. Müller,[18] citado por Bonavides (2001), afirma que são igualmente importantes para a concretização da norma a Ciência Jurídica, a jurisprudência, o Legislativo, a Administração e o Governo. O trabalho de todos, sem exceção, deve se direcionar a norma, tanto na sua interpretação, quanto no seu cumprimento.
Para transcender à hermenêutica positivista, a nova hermenêutica terá que extrair seus fundamentos na observação do trabalho jurídico tanto na ciência, como na práxis, pois o texto da norma não contém a normatividade e sua estrutura, matéria concreta, por isso o texto só passa a ter sentido quando posto numa operação de concretização da norma.
Deve-se ressaltar que a metódica construtivista é aperfeiçoadora e criativa, o que evita que o jurista busque o Direito onde ele não mais existe: na vontade subjetiva do legislador ou a mesma quando se objetiva no texto da norma e se nele torna desatualizada e imobilizada. Entram em jogo na teoria de Müller os seguintes elementos de concretização da norma: os elementos metodológicos numa acepção estrita (os da interpretação gramatical, histórica, genética, sistemática e ‘teleológica’, a par de alguns princípios isolados de interpretação constitucional), os elementos do âmbito da norma, os elementos dogmáticos, os elementos teóricos ou de uma teoria da Constituição, os elementos técnicos de solução e os elementos político-jurídicos ou político-constitucionais. Desses elementos, alguns se relacionam diretamente com a norma, outros só fazem de modo indireto e mediato. (BONAVIDES, 2001, p. 464)
Bonavides (2001) segue a citação, explicando a metódica de Müller, afirmando que os elementos metodológicos, os do âmbito da norma e os elementos dogmáticos estão em relação direta com a norma. Os demais elementos, que não têm relação direta com a norma, desempenham funções auxiliares, limitadas a concretização da norma.
Os mencionados elementos do âmbito da norma[19], são aferidos do conteúdo fático da esfera regulativa da prescrição. “O âmbito da norma é um fator que fundamenta a normatividade. Não é simples soma dos fatos, mas o conjunto de elementos estruturais retirados da realidade social”. (BONAVIDES, 2001, p. 463)
Há uma hierarquia entre os elementos de concretização da norma. Em caso de conflito – resultados parciais contraditórios – deve-se aplicar as seguintes regras: os elementos imediatamente relacionados com a norma prevalecem sobre os demais, e, dentre os elementos imediatamente vinculados à norma, prevalece os elementos gramaticais e sistemáticos, pois eles se relacionam de forma imediata com o texto da norma. Em suma, os elementos ligados ao texto normativo, prevalecem sobre os elementos provenientes dos resultados empíricos ligados ao âmbito da norma. Os juízes não estão habilitados a decidir livremente conforme o seu arbítrio, pois o texto da norma “funciona como diretiva e limite da concretização possível”. (BONAVIDES, 2001, p. 463)
A metódica construtivista de Müller permite que a eficácia as normas não fique presa ao texto normativo, abrangendo também a esfera fática e material da prescrição normativa.
Assim, a metódica, depois se abrir para a realidade, fixa uma estrutura jurídica limitativa, proveniente da hierarquia dos elementos de concretização da norma, em que os elementos mais técnicos prevalecem sobre os axiológicos.
Esse método coaduna-se com o paradigma de Estado Democrático de Direito que busca decisões judiciais adequadas e justas e que, ao mesmo tempo, asseguram a certeza ao Direito.
4 As normas relativas à filiação presentes na constituição da república e no estatuto da criança e do adolescente
4.1 Alterações axiológicas introduzidas pela Constituição da República de 1988 no Direito de Família
Fachin (1999) declara que as normas do Código Civil[20] relativas ao Direito de Família tinham como base um paradigma de família existente no século XIX, que era patriarcal, heterossexual, hierarquizado e matrimonializado. Uma família que o Estado se preocupava, mas não intervinha. Essa família possuía as funções de procriação, de formação de mão-de-obra, de transmitir patrimônio e de fornecer uma primeira base de aprendizado.
Tepedino (s.d.) afirma que as profundas modificações ocorridas nas últimas décadas no âmbito do Direito de Família revelam, do ponto de vista fenomenológico, uma transformação na estrutura familiar, reconhecida amplamente pela doutrina e particularmente pelos cientistas sociais. No entanto, é do ponto de vista axiológico que ocorreu uma intensa alteração no vértice do ordenamento a impor uma radical reformulação dos critérios interpretativos adotados em matéria de família. Para Fachin (1999), com a Constituição de 1988, os conceitos gerais e abstratos presentes nas normas referentes ao Direito de Família contidos no Código Civil devem, quando muito, representarem conceitos historicamente válidos.
A Constituição da República de 1988, segundo Tepedino (s.d.), tornou-se o centro unificador do Direito Privado, que estava disperso numa, cada vez mais numerosa, proliferação da legislação especial, devido à perda da centralidade do Código Civil, consagrando, definitivamente, uma nova tábua de valores.
Ao analisar os arts. 226 a 230 da Constituição da República, constata-se que o centro da tutela constitucional se desloca do casamento – mas não somente dele – para as relações familiares decorrentes; e que a proteção milenar da família como instituição, unidade de produção e reprodução de valores sociais, econômicos, éticos, culturais e religiosos, cede lugar à tutela da dignidade de seus membros, em particular no que se refere ao desenvolvimento da personalidade dos filhos.
A hostilidade do legislador pré-constitucional às interferências exteriores na estrutura familiar e a escancarada proteção do vínculo conjugal e da proteção da família, justificava-se em prol da paz doméstica, ainda que em detrimento da realização pessoal de seus integrantes, especialmente no que se relacionava à mulher e aos filhos, que eram inteiramente subjugados à figura do pater familias. Por maior razão, a estrutura da família nunca poderia ter sido afetada pela proteção dos filhos extraconjugais. Na ótica daquele sistema, o sacrifício individual era largamente compensado, em todas as hipóteses, pela preservação da célula mater da sociedade, a família constituída pelo matrimônio, instituição essencial à ordem pública e modelada sob o paradigma patriarcal.
Nessa ótica, Adorno e Horkheimer[21] citados por Fachin (1999), observam que a crise da família adquire um papel de prestação de contas, não apenas pela opressão brutal que sofreu a mulher e os filhos, por parte do pater famililias, até o início dos novos tempos, mas também, pela injustiça econômica que se realizava e pela exploração do trabalho doméstico, numa sociedade que, em tudo mais, seguia as leis da economia de mercado.
Conforme adverte Tepedino (s.d.), com a Constituição de 1988, a família ampliou seu prestígio constitucional, mas deixou de ter um valor intrínseco, como instituição capaz de merecer tutela jurídica por si mesma, pelo simples fato de existir, passando a ser valorada de forma instrumental, tutelada na medida em que seja um núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade dos filhos e da dignidade de seus integrantes.
Destarte, o conceito de unidade familiar antes esboçado como o agrupamento formal de pais e filhos legítimos baseados no casamento, tornou-se um conceito flexível e instrumental, que tem como objetivo a ligação substancial pelo menos de um dos pais com seus filhos – tendo por origem não somente o casamento – e direcionado inteiramente para a realização espiritual e o desenvolvimento da personalidade de seus membros.
Em suma, pode-se dizer que há atualmente dois paradigmas de família: o do Código Civil e o da Constituição da República de 1988. No primeiro, havia uma família matrimonializada, patriarcal, hierarquizada e transpessoal. “Na Constituição, outra família é apreendida, pluralidade familiar (não apenas a matrimonialização define a família), igualdade substancial (e não apenas formal), direção diárquica e de tipo eudemonista”. (Fachin, 1999, p. 51)
Com relação à alteração axiológica que houve, especificamente com relação ao pátrio poder, Perlingieri (1999) menciona que o instituto do pátrio poder, visto como poder-sujeição está em crise, porque a concepção de igualdade existente hodiernamente numa comunidade familiar – participativa e democrática – impede que a sujeição continue a realizar o mesmo papel. A relação educativa deixa de ser entre sujeito e objeto, para torna-se uma relação entre pessoas, em que não é possível figurar um sujeito de direito submetido a outro. O pátrio poder dos pais deixa de ser uma propriamente gestão patrimonial, para assumir uma função educativa, que objetiva o incentivo das potencialidades criativas dos filhos.
O pátrio poder, no paradigma do Código Civil de 1916, de acordo com Tepedino (s.d.), era exercido somente pelo marido, concedendo a este poderes excessivos, que estabeleciam um processo educacional extremamente autoritário. O filho apenas sujeitava-se ao poder paterno que, não raro, expressava-se em severas punições e castigos corporais. Esse paradigma impedia qualquer distúrbio originário da contestação da autoridade paterna, embora em sacrifício dos filhos. Nele havia a manutenção do grupo e da paz doméstica, mesmo que sejam apenas aparentes. O instituto do pátrio poder somente foi alterado com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, na esteira principiológica da Constituição de 1988. Nos mencionados diplomas o filho tornou-se o protagonista de seu processo educacional.
Ao longo do século XX, analisa Lôbo (2001), o instituto do pátrio poder sofreu substancial modificação, afastando-se de sua função originária que consistia no exercício de poder do pai sobre os filhos, para se tornar um múnus, em que se ressaltam os deveres dos pais para com os filhos. O novo Código Civil adotou o termo poder familiar para o instituto que no Código Civil de 1916 é denominado de pátrio poder. A denominação do novo Código Civil ainda não é a mais apropriada, pois mantém a ênfase no poder. “Todavia, é melhor que a resistente expressão ‘pátrio poder’ mantida, inexplicavelmente, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (…)”. (LÔBO, 2001, P.140-141)
O conjunto de direitos fundamentais da criança e do adolescente previstos no caput, do art. 227, da Constituição é, ao mesmo tempo, um conjunto de deveres para os pais, o que deixa pouco espaço para o poder.
4.2 Direitos fundamentais relativos às crianças e aos adolescentes
O art. 5º, §2º, da Constituição da República determina que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Assim, segundo Tânia Pereira (2001), o constituinte não teve a intenção de limitar os direitos fundamentais àqueles enumerados no art. 5º da Constituição, caso contrário, ele não teria permitido a expansão e atualização desses direitos ao longo do tempo em que viger a Constituição.
Destarte, os direitos fundamentais podem estar presentes em outras partes do texto normativo constitucional ou em outros textos legais, nacionais e estrangeiros. Por isso, os direitos fundamentais da criança e do adolescente, previstos no art. 227, caput, da Constituição, têm a mesma hierarquia dos previstos no art. 5º da mesma. Nessa mesma hierarquia estão os direitos fundamentais relativos à criança e ao adolescente celebrados nos diplomas internacionais, nos quais o Brasil for signatário. Como exemplo, pode-se citar o princípio do melhor interesse da criança, assente no art. 3º da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança.
Ressalta, Canotilho (1999), que os direitos fundamentais são o elemento constitutivo do Estado de Direito e constituem o elemento básico para a realização do princípio da Democracia. Assim, os direitos fundamentais têm uma função democrática dado que o exercício democrático do poder significa a contribuição de todos os cidadãos para o seu exercício (princípio-direito da igualdade e participação política); importa na participação livre assente em relevantes garantias para a liberdade desse exercício (direito de liberdade de expressão, formação de partidos, associação, etc); engloba a abertura do processo político no sentido de criação de direitos sociais, econômicos e culturais, que consubstanciam uma democracia social, econômica e cultural.
José Afonso da Silva (1999) afirma que a Constituição de 1988 prevê para a criança e para o adolescente um dos mais expressivos textos consagradores de direitos fundamentais da pessoa humana, cujo conteúdo foi explicitado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O art. 227 da Constituição, por si só, já é uma carta de direitos fundamentais da criança e do adolescente. Assim, determina o caput do art. 227 da Constituição:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Os parágrafos que se seguem desse artigo estabelecem providências que objetivam conferir eficácia aos direitos prometidos no caput como a declaração solene de que os filhos terão os mesmos direitos e qualificações, sendo eles havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, ficando proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, a punição severa contra o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente e o direito a proteção especial à criança e ao adolescente que abrange os aspectos da garantia: de direitos previdenciários e trabalhistas; de acesso à escola do trabalhador adolescente; dos direitos processuais de conhecimento, pleno e formal, da atribuição de ato infracional, de igualdade na relação processual, de defesa técnica por profissional habilitado e de obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade; de estímulo do Poder Público ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei; e de programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.
Como mencionado anteriormente, os direitos fundamentais especificados no art. 227 da Constituição relativos à da criança e ao adolescente, não excluem os demais direitos fundamentais previstos na Constituição e os outros decorrentes dos tratados que a República Federativa do Brasil seja parte. Isso está estabelecido no art. 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, diploma fundado na doutrina da proteção integral – também consagrada pela Constituição –, que estabelece que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral positivadas no Estatuto da Criança e do Adolescente, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Não cabe, neste estudo, pormenorizar esses direitos fundamentais. Em uma abordagem ampla sobre esses direitos, Bastos e Martins (1998) afirmam que o direito à vida é o direito mais essencial do homem em sociedade. Os direitos à saúde e à alimentação são direitos de subsistência fundamentais. Já os direitos ao lazer, à profissionalização, à cultura e a educação são direitos relevantes para o desenvolvimento das potencialidades humanas em todas suas aptidões. Finalmente, os direitos à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária são direitos de singular importância para a realização plena do cidadão.
Silva (1999) declara que os direitos fundamentais estão especificados no Título II do Estatuto, em capítulos sobre o direito: à vida e a saúde; à liberdade, ao respeito e à dignidade; à convivência familiar e comunitária; à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer; e à profissionalização e a proteção do trabalho. Percebe-se que essa ordem dos capítulos não é acidental. Ela estabelece, na verdade, uma hierarquia entre os direitos fundamentais ao situar o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade imediatamente após o direito à vida e a saúde e antes dos direitos à convivência familiar e comunitária, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, à profissionalização e a proteção do trabalho. Assim, visa colocar os dois primeiros direitos fundamentais – direito à vida e à saúde – como direitos-fins, para os quais os demais serão direitos-meio.
Sobre a eficácia dos direitos fundamentais da criança e do adolescente Silva assevera:
Tudo isso mostra que os direitos humanos da criança e do adolescente estão formalmente muito bem assegurados. Tem ela nessas normas uma Carta de Direitos Fundamentais incomparável, onde se lhes garante tudo, mas a realidade não é tão pródiga para com eles como é a retórica jurídica, pois se olharmos em torno de nós veremos, sem qualquer dificuldade, um quadro negro e triste, onde por volta de 24 milhões de crianças vivem na miséria, 23 milhões na pobreza, 33% das famílias ganham menos do que o salário mínimo, e este fica no nível irrisório de 120 dólares mensais. (SILVA, 1999, p. 13)
Sobre o mesmo tema, Bastos e Martins (1998) declaram que a boa intenção do legislador constituinte e do infraconstitucional foi, até agora, insuficiente para ofertar as garantias expressas nos artigos, havendo pouca verba disponível para as atividades sociais do governo, devido ao notável desperdício de verba pública.
Tânia Pereira (2001) enuncia que o grande norteador para os intérpretes do novo sistema jurídico é que a convivência familiar – matrimonializada ou não, na família biológica ou substituta – e a vida em comunidade constituem uma primazia nas políticas públicas e programas governamentais. Se por determinação da Constituição de 1988 a criança e o adolescente são prioridade absoluta, cabe à família e à sociedade implantar esta prioridade por meio de medidas sociopolíticas concretas e imediatas.
4.3 O princípio da igualdade da filiação
O Código Civil de 1916, afirma Fachin (2000), foi a lei das desigualdades da família, estando nele prevista uma regulação diferenciada dos papéis familiares. Essa situação coaduna-se com o modelo patriarcal, hierarquizado e matrimonializado do Código. Nesse paradigma, os filhos ditos espúrios eram excluídos da proteção do Código, revelando-se nessa exclusão uma postura que é dogmática e, ao mesmo tempo, ideológica. Os filhos espúrios, explica Fachin (1999), foram excluídos da cidadania jurídica, pois embora fossem filhos biológicos, não tinham nenhum direito em nome da paz e da honra das famílias matrimonializadas. “Segredos conservavam uma decência aparente da família e instituíam a ‘mentira jurídica’”. (FACHIN, 1999, p.15)
A superação dessa situação só ocorreu com a consagração, na Constituição da República de 1988, do princípio da igualdade. Desde então, a matrimonialização deixou de ser uma condição para estatuir a legitimidade jurídica do filho, o que pôs fim à concepção excludente da definição a priori de filiação.
Antes da Constituição de 1988, os filhos eram classificados como legítimos, legitimados e ilegítimos. Os legítimos, esclarece Diniz (1999), eram os filhos de pessoas ligadas pelo matrimônio válido ao tempo da concepção ou de pessoas cuja união matrimonial veio, posteriormente, a ser anulada, independente dos cônjuges estarem ou não de boa fé. Os legitimados eram os filhos que, após o seu nascimento, seus genitores se cassaram. Os ilegítimos eram filhos que seus pais, ou eram impedidos de se casar, quando então eram chamados de espúrios (que eram os adulterinos e os incestuosos), ou os que seus pais não eram casados, mas também não eram impedidos de se casar, ocasião em que eram denominados naturais. Destarte, como supra mencionado, o princípio da igualdade da filiação fez desaparecer a ligação existente entre o casamento e a legitimidade e, conseqüentemente, também fez desaparecer com as antigas categorias de filhos acima mencionadas.
O princípio da igualdade da filiação está previsto no art. 227, § 6º, da Constituição que enuncia que os filhos terão os mesmos direitos e qualificações, sejam eles havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Moor (2001) declara que a necessidade de previsão expressa do princípio da igualdade da filiação no §6º, do art. 227, da Constituição denuncia que a regra era a desigualdade entre os filhos. Mas a previsão expressa do princípio, denuncia Fachin (2000), não bastou para o legislador infraconstitucional, uma vez que entrou em vigor a Lei nº 7.841, de 17 de outubro de 1989 revogando expressamente o art. 358 do Código Civil, cujo texto original previa que não poderiam ser reconhecidos os filhos incestuosos e os adulterinos. O entendimento do legislador sobre a necessidade de se reafirmar em lei ordinária um princípio constitucional é, sem dúvida alguma, uma redução da eficácia plena da Constituição. Esse fato “expõe como o legislador ordinário contribui para desmerecer o texto constitucional”. (FACHIN, 2000, p.273)
Os capítulos do Código Civil que continham as regras sobre filiação, afirma Fachin (1999), foram os mais afetados pela Constituição de 1988, pois o instituto da filiação tornou-se um instituto denso, amplo e elástico.
O princípio da igualdade da filiação influenciou o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente. O art. 20 do Estatuto da Criança e do Adolescente também traz a previsão expressa do princípio da igualdade da filiação, repetindo o mesmo texto normativo que está presente no art. 227, §6º da Constituição.
O reconhecimento dos filhos naturais, conforme esclarece Diniz (1999), era permitido pelo Código Civil, de acordo com seu art. 355 e reconhecimento dos filhos espúrios não era permitido, conforme o art. 358 do mesmo diploma. O Decreto-lei 4.737/42, abrandou o rigor deste artigo em prol dos filhos adulterinos ao autorizar, após o desquite, o reconhecimento de filho havido fora do matrimônio. A Lei nº 883, de 21 de outubro de 1949, que ampliou a possibilidade de reconhecimento voluntário ou judicial de filho adulterino ou de ação para que se lhe declare a filiação, quando houver a dissolução da sociedade conjugal, sem restringir a causa ao desquite. A Lei nº 6.515, de 26 de Dezembro de 1977, inovou ao prever que ainda na vigência do casamento, qualquer dos cônjuges poderia reconhecer o filho havido fora do matrimônio, em testamento cerrado, aprovado antes ou depois do nascimento do filho, e, nessa parte, o testamento era irrevogável. Outra inovação da referida lei foi à previsão de que independente da natureza da filiação, o direito à herança seria reconhecido em igualdade de condições. O reconhecimento do filho incestuoso, no entanto, só deixou de ser proibido com a promulgação da Constituição de 1988. Portanto, atualmente pode-se reconhecer os filhos naturais, adulterinos ou incestuosos, sem qualquer limitação.
Na esteira do §6º, do art. 227, da Constituição, o art. 26 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, qualquer que seja a origem da filiação, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público. O parágrafo único desse artigo estabelece que o reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou suceder-lhe ao falecimento, se deixar descendentes. Já o art. 27 do mesmo diploma prevê como direito personalíssimo, indisponível e imprescritível o reconhecimento do estado de filiação, que poderá ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, sendo observado o segredo de Justiça.
Rodrigo da Cunha Pereira faz uma interessante reflexão sobre o reconhecimento dos filhos extraconjugais:
A Constituição brasileira de 1988 desencadeou uma grande reforma no direito de família a partir da mudança de três eixos básicos: homens e mulheres são iguais perante a lei; o Estado passou a reconhecer outras formas de família além daquela constituída pelo casamento; e alterou o sistema de filiação, igualizando filhos havidos no casamento e fora dele, proibindo designações discriminatórias (art. 226).
Em relação à filiação, veio corrigir algumas injustiças pelas quais os filhos fora do casamento é quem acabavam pagando. Por exemplo, até 1988, os nascidos de uma relação extraconjugal não podiam ser registrados com o nome do pai, mesmo que este quisesse. Isso em nome da moral e bons costumes, pois se considerava que esse registro era uma afronta às famílias. Na verdade, era uma hipocrisia jurídica que sempre esteve a serviço de ocultar uma realidade e uma falsa moralidade. O filho existia no mundo real, mas não existia no mundo jurídico, já que não podia ser registrado em cartório com o nome do pai. (…).
É claro que a Constituição de 1988 não veio acabar com os filhos extraconjugais. Teria sido muito pretensiosa se assim tivesse estabelecido. Sabemos todos que, enquanto houver desejo sobre a face da Terra, continuarão nascendo filhos de relações extraconjugais de pais não-casados ou solteiros e de “produções independentes”.
A modificação constitucional visa proibir designações discriminatórias e torna iguais os direitos de todos os filhos.
Assim, desde 1988 não se pode mais, no campo jurídico, nomear os filhos como legítimos ou ilegítimos, naturais, espúrios ou adotivos. Filho é filho, e não comporta mais nenhuma adjetivação. (PEREIRA, s.d., p.1)
Houve a preocupação do legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente em prever a igualdade entre os filhos consangüíneos ou naturais e os provenientes do parentesco civil, ou seja, os adotivos. Nessa perspectiva, o art. 41 do Estatuto determina que a adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. O parágrafo segundo desse artigo estabelece que é recíproco o direito sucessório entre o adotado, seus descendentes, o adotante, seus ascendentes, descendentes e colaterais até o 4º grau, observada a ordem de vocação hereditária.
De acordo com Moor (2001), as alterações introduzidas pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente no âmbito da igualdade entre os filhos, não permitem mais qualquer forma discriminatória, o que leva a colocar o interesse da criança em primazia, com preponderância da questão afetiva, no sentido de possibilitar que a criança se realize nos seus aspectos físicos e psicológicos. O princípio da igualdade da filiação situa a pessoa humana no centro de toda a discussão jurídica, com a finalidade de concretizar o objetivo último da Constituição, que é garantir a dignidade da pessoa humana.
Sobre a concretização do princípio da igualdade da filiação, Moor assevera:
O importante é que há uma perspectiva crescente no sentido de valorização da pessoa, o que certamente é a mais importante medida para as desigualdades ou injustiças até muito pouco tempo expressamente legitimadas pela legislação. Na atualidade já há uma previsão expressa de igualdade, mas que ainda precisa ser reforçada por intermédio de uma conscientização geral, para que ela passe, de forma plena, do plano formal para o plano material. (MOOR, 2001, p. 67)
4.4 Adoção
Segundo Moor (2001), o modelo de família patriarcal cede lugar a um novo modelo de família, que surge a partir do momento que começam a modificar as relações entre pais e filhos. Destarte, hodiernamente, valoriza-se mais a questão da afetividade nas relações de filiação, especialmente no que se refere à adoção, em que se estabelece uma relação psíquica, com base essencialmente nos laços afetivos, que passam a determinar a relação de paternidade.
Assim, a paternidade, por ser uma questão precipuamente de função, deixa de ser um fato da natureza e se torna um fato cultural. Logo não basta mais a reunião de pais e filhos, tornando-se necessária à formação de um vínculo psíquico, que vai definir a família como uma estruturação psíquica.
No parentesco adotivo há uma desvinculação do eixo social e biológico, sendo instituídas esferas profundamente diferenciadas entre o gerar e o criar. É na esfera da criação que se encontra toda a importância da adoção, quando a função paterna, concretamente realizada, cria a relação com o adotado e não os laços de sangue.
O fato de as relações na atualidade seguirem um outro paradigma, bem mais profundo do que aquele de dar continuidade à descendência e a manutenção do grupo, tendo o objetivo de formar sujeitos que encontrem na família o amor, a solidariedade e a ajuda mútua, levou a uma substancial modificação do instituto da adoção. Nele, a principal preocupação passou a ser o cuidado para com o adotando, para que encontre na nova família tudo que sua família biológica não lhe proporcionou. Denota-se o sentido essencialmente assistencial da adoção, que existe precipuamente com o fim de beneficiar a pessoa do adotado.
A família, como base da sociedade, desempenha papel fundamental, sendo que a sua importância se reflete em todo o ordenamento jurídico, especialmente em institutos como a adoção, em que a criança é reintegrada numa família para que tenha efetivamente convivência familiar, que a Constituição lhe assegura. (MOOR, 2001, p. 66)
Tânia Pereira (2001) afirma que o grau de desenvolvimento de um Estado está relacionado com a capacidade de seu povo privilegiar a infância, assegurando, de maneira prática, o acesso a uma família que lhe permita a subsistência e o exercício dos direitos e garantias individuais.
Rodrigo da Cunha Pereira (s.d.), assinala que a Constituição de 1988, ao interferir no sistema de filiação, está a um passo do entendimento que a paternidade, em seu sentido mais profundo e concreto, é aquela que está além dos laços sanguíneos. A verdadeira paternidade é adotiva e está ligada à escolha. Isso porque, um pai, mesmo biológico, se não adotar seu filho, jamais será o pai.
Há, entretanto, no art. 12, inciso I, da Constituição da República uma norma em desarmonia com o princípio da igualdade da filiação. Essa norma faz um corte epistemológico no conceito de brasileiros natos quando enuncia que esses são: os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; e os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira. Assim, os adotados no estrangeiro, por pai brasileiro ou mãe brasileira, não serão brasileiros natos.
4.4.1 Intervenção judicial na adoção plena
Caio Mário (2001) define a adoção como “o ato jurídico pelo qual uma pessoa recebe outra como filho, independentemente de existir entre elas qualquer relação de parentesco consanguínio ou afim”. (PEREIRA, 2001, P. 213)
Segundo o renomado autor, há duas espécies de adoção: a adoção propriamente dita ou simples e a legitimação adotiva ou adoção plena. A primeira espécie está prevista no Código Civil de 1916, com as alterações da Lei nº 3.133, de 8 de maio de 1957. Essa espécie regula a adoção para maiores de 18 anos.
Já a legitimação adotiva surgiu com a Lei nº 4.655, de 2 de junho de 1965. Essa lei foi revogada pelo Código de Menores – Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979 – que passou a disciplinar a matéria. Essas leis objetivaram proporcionar uma relação jurídica de paternidade o mais próximo possível da biológica, concebida na constância do casamento. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que foi elaborado para regulamentar as normas constitucionais sobre o tema, revogou o Código de Menores.
A adoção plena refere-se à criança considerada, para os efeitos do Estatuto como a pessoa até doze anos de idade incompletos, e o adolescente considerado como pessoa entre doze e dezoito anos de idade. Excepcionalmente, o Estatuto será aplicado às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade, nos casos expressos em lei, conforme estabelece o art. 2º e seu parágrafo único do Estatuto. O art. 40 do mesmo diploma, que se refere à adoção, é um dos casos em que a lei excepciona a aplicação do Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. Conforme estabelece o artigo, na data do pedido da adoção, o adotando deve contar com, no máximo, dezoito anos, salvo se já estiver sob a guarda ou tutela dos adotantes.
O art. 227, §5º, da Constituição da República, determina que a adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei. O Estatuto da Criança e do Adolescente cumpriu com os ditames constitucionais ao prever que a intervenção judicial na adoção plena. Assim, ela “só se aperfeiçoa perante o juiz, em processo judicial, ao contrário da adoção simples[22] que se processa sem a fiscalização do poder público, uma vez que se efetiva por meio de mera escritura pública” (DINIZ, 1999, p. 362)
A civilista Maria Helena Diniz (1999) esclarece sobre o procedimento judicial. Segundo ela, a competência para conhecer de pedidos de adoção plena é da Justiça da Infância e da Juventude (art. 148, III). São exigidos além dos requisitos específicos para a concessão desse pedido: qualificação completa do requerente e de seu eventual cônjuge, ou companheiro, com expressa anuência deste; indicação de eventual parentesco do requerente e de seu cônjuge, ou companheiro, com a criança ou adolescente, especificando se possui ou não parente vivo; qualificação completa da criança ou adolescente e de seus pais, se forem conhecidos; indicação do cartório onde foi inscrito o nascimento, anexando, se possível, uma cópia da respectiva certidão; e declaração sobre a existência de bens, direitos ou rendimentos referentes à criança ou ao adolescente (art. 165, I a V, parágrafo único). Se os genitores forem falecidos, tiverem sido destituídos ou suspensos do pátrio poder, ou houverem aderido expressamente ao pedido de colocação em família substituta, o pedido de adoção poderá ser formulado diretamente em cartório, em petição assinada pelos próprios requerentes (art. 166), sendo vedada à adoção por procuração (art. 39, parágrafo único).
A autoridade judiciária, de ofício ou a requerimento das partes ou do Ministério Público, deverá determinar a realização de estudo social ou, se possível, perícia por equipe interprofissional, decidindo sobre o estágio de convivência (art. 167). Quando for apresentado o relatório social ou o laudo pericial, deverá ser ouvida, sempre que possível, a criança ou o adolescente, e pelo prazo de cinco dias será dada vista dos autos ao Ministério Público, ocasião em que a autoridade judiciária, no mesmo prazo, deverá decidir (art. 168).
Não se pode olvidar que o órgão judicante deverá manter, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção (art. 50), levando em conta que na apreciação do pedido o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as conseqüências decorrentes da medida (art. 28, §2º). Destarte, não será permitida a adoção à pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado (arts. 29 e 50, §2º) e deverá ser permitida a adoção quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos (art. 43). É possível ser deferida a adoção ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença (art. 42, §5º), ocasião em que a sentença constitutiva do vínculo da adoção terá força retroativa à data do óbito. (art. 47, §6º, 2ª parte).
A sentença judicial do vínculo da adoção terá efeito constitutivo e será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão. Será consignado na inscrição o nome dos adotantes como pais e o nome dos seus ascendentes. O mandado judicial, que será arquivado, irá cancelar o registro original do adotado. Nas certidões de registro não poderá ser feita nenhuma observação sobre a origem do ato, sendo possível o fornecimento da certidão, a critério da autoridade judiciária, para a salvaguarda de direitos. A sentença conferirá ao adotado o nome do adotante e, a pedido deste, será possível a modificação do prenome do adotado. A adoção produzirá seus efeitos a partir do trânsito em julgado da sentença (art. 47 e seus parágrafos).
Moor (2001) ressalta que atualmente a adoção é um gesto de amor, de solidariedade humana, de ajuda mútua, de compreensão e liberdade. Destarte, no momento de apreciação do pedido de adoção também deve verificar a relação de afinidade e afetividade entre o requerente e o adotando.
4.4.2 Adoção por estrangeiros
Caio Mário (2001) afirma que a adoção por estrangeiros é um problema grave e complexo. Há duas teses contrárias sobre a matéria uma contra e a outra a favor da adoção por estrangeiros. A primeira argumenta que a carência afetiva interna deve ser estimulada, para que os brasileiros que desejam adotar possam assim fazê-lo, o que possibilita a crianças e adolescente carentes encontrem no próprio país o amparo de um ambiente familiar adequado. Na tese aposta, há os que afirmam que se deve favorecer a adoção a estrangeiros, pois estes podem propiciar o amparo, afeição, carinho e assistência a menores necessitados. Diniz (1999) menciona um outro problema que fortalece a tese dos que são contra a adoção por estrangeiros: ela pode conduzir ao tráfico de menor ou fazer o menor se prestar à corrupção.
Sobre essa mesma matéria, Bastos e Martins (1998) declaram que o Brasil é um pais carente de um plano social adequado e que as crianças de rua são um infortúnio permanente. O Estado deveria, como sugere o art. 227, §5º da Constituição, estimular a adoção por estrangeiros. Isso porque, ela oferece à criança e ao adolescente sem lar e sem perspectiva um horizonte maior do que eles possuem. No entanto, o constituinte impôs, com a devida cautela, a assistência do poder público para que sejam evitadas adoções falsas.
Diniz (1999) adverte que muitos casais domiciliados no exterior , costumavam outorgar procuração para um brasileiro conhecido, e este, por sua vez, ajuizava o pedido de adoção. Esta prática ficou proibida pelo art. 39, parágrafo único, do Estatuto, que obsta a adoção por procuração.
Deve-se mencionar a ressalva do art. 31 do Estatuto, que determina que a colocação em família substituta estrangeira é medida excepcional, sendo admissível apenas na modalidade de adoção. “As cautelas começam com o pedido de adoção formulado por estrangeiro residente ou domiciliado fora do país, que é considerada medida excepcional”. (PEREIRA, 2001, p. 232)
O Caio Mário (2001) bem descreve o procedimento de adoção por estrangeiros. Segundo o autor, o requerente estrangeiro deverá apresentar, mediante documento expedido pela autoridade competente do respectivo domicílio, estar devidamente habilitado à adoção, consoante as leis do seu país. O requerente apresentará, também, um estudo psicossocial elaborado por agência especializada e credenciada no país de origem.
Além disso, poderá ser exigida pela autoridade judiciária, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, a apresentação do texto pertinente à legislação estrangeira, acompanhado de prova da respectiva vigência. Os documentos em língua estrangeira que forem juntados aos autos, deverão ser devidamente autenticados pela autoridade consular, observando-se os tratados e convenções internacionais, e acompanhados da respectiva tradução, por tradutor público juramentado.
Processado o pedido, o juiz determinará o estágio de convivência, que deverá ser cumprido no território nacional. Esse estágio será de no mínimo quinze dias para crianças de até dois anos de idade, e de no mínimo trinta dias quando se tratar de adotando acima de dois anos de idade. Não será permitida a saída do adotando do território nacional antes de consumada a adoção. Diniz (1999) adverte que o prazo de permanência do estrangeiro no Brasil fica a critério da autoridade judicante – a lei estabelece somente o prazo mínimo de permanência – , que pode dificultar a adoção, pois sua exigência poderá trazer ao estrangeiro prejuízos de ordem econômica e trabalhista, pelo tempo em que se quedar no Brasil.
A adoção internacional poderá ser condicionada a um estudo prévio e análise de uma Comissão Estadual Judiciária de Adoção, que deverá fornecer o respectivo laudo de habilitação para instruir o processo competente. Essa comissão deverá manter um registro centralizado de estrangeiros interessados em adoção.
Se houver a ratificação da Convenção de Haia sobre a Adoção Internacional de 1993, que prevê uma Autoridade Central, que exigirá, pelo menos nos dois anos seguintes da consumação da adoção, que o adotante, diretamente ou por meio de agência especializada, dê notícia pormenorizada das condições do adotado, relativamente à sua saúde e, especialmente, sobre suas condições de adaptação na família substituta.
5 Conclusão
Conclui-se, que segundo o princípio da dignidade da pessoa humana, a dignidade é um atributo da essência da pessoa humana, ser racional por excelência, que possui um valor intrínseco, devendo ser considerado como um fim em si mesmo e não como meio, que não admite substituição por equivalente. A dignidade da pessoa humana é um valor supremo que compreende todos os direitos fundamentais do homem, sejam eles de primeira, segunda, terceira ou quarta geração.
O paradigma de Direito delimita um modelo de sociedade contemporânea para explicar como princípios e direitos constitucionais devem ser considerados e aplicados para que efetivem, num dado contexto, as funções a eles normativamente atribuídas.
Sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, o Direito requer uma reflexão sobre os paradigmas que informam e conformam a decisão judicial. Assim, a tensão entre certeza e justiça é resolvida na medida em que o julgamento cumpra, simultaneamente, as condições de uma decisão consistente a da aceitabilidade racional. Destarte, pode-se dizer que por um lado o princípio da certeza cobra decisões que podem ser tomadas de maneira consistente no quadro do Direito vigente; por outro lado, a pretensão de legitimidade da ordem jurídico-democrática requer não apenas decisões consistentes com o sistema de norma vigente e com o tratamento de casos análogos, como também que elas sejam racionalmente baseadas nos fatos do caso, de forma que os cidadãos possam aceitá-las como racionais.
Sobre o pluralismo, ficou assentado que tanto os grupos e como os indivíduos são protagonistas da vida política numa sociedade democrática. Os grupos são compostos por indivíduos que adquiriram o direito de participar direta ou indiretamente do governo. Na sociedade democrática não existe mais o povo como uma unidade ideal ou mística, mas apenas o povo dividido de fato em grupos contrapostos e concorrentes, com a sua relativa autonomia perante o governo central. O pluralismo leva ao reconhecimento da necessidade de um processo de equilíbrio entre as múltiplas tensões presentes na ordem social. O poder do Estado não deve ter uma base unitária e homogênea, mas um equilíbrio plural das forças que constituem a sociedade.
Como analisado, o princípio democrático pressupõe a democracia participativa, ou seja, a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efetivas possibilidades de aprender democracia, participar dos processos de decisão e exercer o controle crítico na divergência de opiniões. A Constituição da República de 1988 ampliou o rol de instrumentos de participação, valorizando a democracia participativa, sob as mais diversas formas por que se pode operar o instituto.
Ficou estabelecido, com relação à diferenciação entre regras e princípios na ótica pós-positivista, que conceito de aplicabilidade da regra baseia-se na maneira do tudo ou nada. Se ocorrerem os fatos estipulados pela regra, ela será válida e, nesse caso, a resposta a que der deverá ser aceita; no entanto, se tal não ocorrer, a regra em nada contribuirá para decisão. Já os princípios possuem uma dimensão de peso ou importância. A escolha ou hierarquia dos princípios será de acordo com a sua relevância.
A metódica construtivista de Muller, como supra analisado, possibilita que a eficácia as normas não fique presa ao texto normativo, abrangendo também a esfera fática e material da prescrição normativa. Assim, a metódica, depois de se abrir para a realidade, fixa uma estrutura jurídica limitativa, proveniente da hierarquia dos elementos de concretização da norma, em que os elementos mais técnicos prevalecem sobre os axiológicos. Esse método de interpretação das normas permite que as decisões judiciais sejam adequadas e justas e que, simultaneamente, assegurem a certeza ao Direito, conforme devem ser as decisões judiciais no paradigma do Estado Democrático de Direito.
Foi mencionado que há atualmente dois paradigmas de família: o do Código Civil e o da Constituição da República de 1988. No primeiro, havia uma família matrimonializada, patriarcal, hierarquizada e transpessoal. No segundo, há pluralidade familiar – não apenas a matrimonialização define a família –, igualdade substancial e não apenas formal, direção diárquica e de tipo eudemonista.
A Constituição de 1988 prevê para a criança e para o adolescente um dos mais expressivos textos consagradores de direitos fundamentais da pessoa humana, cujo conteúdo foi explicitado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Os direitos fundamentais especificados no art. 227 da Constituição, não excluem os demais direitos fundamentais previstos na Constituição e os outros decorrentes dos tratados em que a República Federativa do Brasil seja parte. Como exemplo de direito fundamental relativo à criança e ao adolescente celebrado em diploma internacional em que o Brasil foi signatário, pode-se citar o princípio do melhor interesse da criança, assente no art. 3º da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. É preciso ressaltar, que o art. 227 da Constituição, por si só, já é uma carta de direitos fundamentais da criança e do adolescente.
O Código Civil de 1916 foi a lei das desigualdades da família, estando nele prevista uma regulação desigual dos papéis familiares. Essa situação coaduna-se com o modelo patriarcal, hierarquizado e matrimonializado do Código. Nesse paradigma, a matrimonialização era uma condição para estatuir a legitimidade jurídica dos filhos. A superação dessa situação só ocorreu com a consagração na Constituição da República de 1988 do princípio da igualdade. Desde então, pôs-se fim à concepção excludente da definição a priori de filiação. O princípio da igualdade da filiação está previsto no art. 227, §6º, da Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que enuncia que os filhos terão os mesmos direitos e qualificações, sejam eles havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. O princípio da igualdade da filiação situa a pessoa humana no centro de toda a discussão jurídica, com o objetivo de concretizar o fim último da Constituição, que é garantir a dignidade da pessoa humana.
O princípio da igualdade da filiação coloca o interesse da criança em primazia, com preponderância da questão afetiva, no sentido de possibilitar que a criança se realize nos seus aspectos físicos e psicológicos. Destarte, hodiernamente, valoriza-se mais a questão da afetividade nas relações de filiação, especialmente no que se refere à adoção, em que se estabelece uma relação psíquica, com base essencialmente nos laços afetivos, que passam a determinar a relação de paternidade.
Nesse paradigma, o objetivo da família tornou-se o de formar sujeitos que nela encontrem o amor, a solidariedade e a ajuda mútua, fato que alterou substancialmente o instituto da adoção. Nele, a principal preocupação passou a ser o cuidado para com o adotando, para que encontre na nova família tudo que sua família biológica não lhe proporcionou. Denota-se o sentido essencialmente assistencial da adoção, que existe precipuamente com o fim de beneficiar a pessoa do adotado.
A adoção foi definida como o ato jurídico pelo qual uma pessoa recebe outra como filho sem haver entre elas qualquer relação de parentesco consangüíneo ou afim. O art. 227, §5º, da Constituição da República, determina que a adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei. O Estatuto da Criança e do Adolescente cumpriu com os ditames constitucionais ao prever que a intervenção judicial na adoção plena. Assim, ela só se aperfeiçoa perante o juiz, em processo judicial, ao contrário da adoção simples, prevista no Código Civil, que se efetiva sem a fiscalização do poder público, por meio de mera escritura pública.
O art. 227, §5º, da Constituição determina que o Estado deve estimular a adoção por estrangeiros para oferecer, à criança e ao adolescente sem lar e sem perspectiva, um horizonte maior do que eles possuem. O constituinte, no entanto, com a devida cautela, impôs a assistência do poder público para que sejam evitadas adoções falsas. O art. 31 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que a colocação em família substituta estrangeira é medida excepcional, sendo admissível apenas na modalidade de adoção.
Bacharel em Direito pela PUC-MG.
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