Uma introdução à teoria geral do direito.

É certo que haveria hoje uma Teoria
Geral do Direito? Existem concepções sobre o Direito que seriam comuns a todos
os ramos do Direito? É possível reconstruírem-se princípios gerais que se
aplicariam a todos esses direitos?

Ou cada ramo de Direito é tão específico
e insulado que chegam a ser, antes que Direito, ser Civil, Penal ou
Administrativo?

Bem, seria como subverter as normas
de gramática, da classe de palavras, invertendo, fazendo do substantivo (que é
o Direito) o adjetivo, e do adjetivo (civil, penal, tributário ou
administrativo) o substantivo.

Qual é em verdade a qualidade
fundamental dessa ciência que é o Direito? Que é ciência humana, social e
normativa. Toda essa discussão remonta da tradição positivista enquanto Teoria
Geral semântica do Direito.

A velha, ultrapassada e macróbia
noção positivista de Teoria Geral do Direito e que se liga inicialmente à
chamada jurisprudência pandectista dos conceitos onde a Teoria Geral do Direito
seria um sistema de conceitos fundamentais subjacentes à Dogmática Jurídica.

A Dogmática Geral do Direito
positivo de qualquer direito positivo ou ramo desse Direito Positivo quer seja
então chamado Direito do Estado (Staatsrecht),
quer seja do Direito Privado (romano atual).

Embora fosse antes de tudo,
romântico, conservador e, até mesmo reacionário, em face da Grande Revolução, a
Escola Histórica, romano-germânica (de início e meados do século XIX), não
escapara à concepção típica do Iluminismo, do conhecimento científico redutível
a um sistema de conceitos abstratos.

Se bem que perde um pouco seu
peculiar lado abstrato por ser o Direito, uma ciência social, comportamental e
política. A Teoria Geral do Direito de raiz positivista conflita-se,
contrasta-se com o enfoque analítico da chamada Enciclopédia Jurídica que buscava
especificidades dos diversos ramos, áreas ou classes do Direito.

São esforços antagônicos pois
enquanto a TGD esmera-se para construir um sistema de conceitos comuns, de
lógica e dialética comuns a todo o Direito.

A Enciclopédia Jurídica procurava
classificar, erigir distinções, identificar peculiaridades e diferenciações no
interior do Direito. Enquanto que a TGD operaria por condensação, por amalgama
enquanto que a Enciclopédia Jurídica operaria por desmembramento, dispersão.

Como cenário há a crítica transição
das sociedades liberais do século XIX para as chamadas sociedades de massa dos
Estados Sociais do século XX. E, nisso reside uma mudança de paradigmas
causando profundas releituras de institutos e relações jurídicas típicas do
Direito.

Paradigma segundo o Dicionário
Básico de Filosofia de autoria Hilton
Japiassú
e Danilo Marcondes, da Jorge Zahar Editor “vem
do grego (paradeigma), segundo
Platão, as formas ou idéias são paradigmas, ou seja, arquétipos, modelos
perfeitos, eternos imutáveis dos objetos existente no mundo natural que são
cópias desses modelos e que de algum modo participam deles. As noções de
paradigma e participação, ou seja, de relação entre modelo e a cópia levam, no
entanto, a vários impasses que são discutidos por Platão  sobretudo no diálogo Parmênides.”

O proprietário não pode tudo, a
empresa em prol da livre iniciativa e do lucro também não pode tudo, os
contratantes também não podem pactuar tudo ao seu bel prazer. A família e as
entidades familiares concebem novas uniões, interesses e tutelas (família
monoparental, união estável, união dos homossexuais, família adotiva e família
afetiva).

O Estado também não mais é o
todo-poderoso! Conhece limitações que devem existir no Estado Democrático de
Direito que pauta a cidadania principalmente no princípio da dignidade da
pessoa humana.

Kelsen esclarece que pretende construir uma TGD, uma
Teoria Geral de Direito Positivo, e de qualquer direito positivo, refutando
criticamente a tradição do chamado positivismo jurídico.

Perdoem-me pela metáfora chula, mas
o positivismo jurídico mais se parece com aquele velho jargão do jogo do bicho:
“só vale o escrito”.

Partindo desta perspectiva
doutrinária, analisa Kelsen como
sendo autoritária, anticientífica e ideológica da Escola Histórica. Pretendeu Kelsen isolar matematicamente o
fenômeno jurídico, e como herdeiro de Laband
e Jellinek buscou superar toda
Teoria Geral do Estado de cunho ético-político, organicista ou mesmo
sociológica, baseada inclusive numa divisão de trabalho científico segundo a
qual o Direito se poderia diferenciar em Público e Privado.

Nada mais artificial! E que é apenas
tolerável para fins meramente didáticos.

Na perspectiva kelsiana de Teoria
Pura, todo o Direito é público, todo Estado é de Direito e todo Direito é
Estado, e toda Teoria do Estado é Teoria do Direito.

Com a Teoria Pura haveria uma
redefinição dos conceitos laborados pela jurisprudência tradicional do século
XIX, apresentando-se: norma, norma jurídica, licitude e ilicitude, sanção,
imputação, fato e atos jurídicos, direito subjetivo, dever jurídico, relação
jurídica e pessoa.

Além da caracterização dinâmica do
ordenamento jurídico, do escalonamento de normas, a produção e aplicação
normativas, da coincidência Estado/Direito,
Legislativo/Jurisdição/Administração, Direito/Processo.

Onde todas as antigas distinções
laboradas pela teoria geral, ao longo do século XIX, vão sendo suprimidas e
condensadas em torno de uma concepção paradoxalmente normativista (estática
jurídica) em face da dinâmica jurídica.

A norma de direito material e a
norma de direito processual não se antagonizam, pelo contrário se complementam
e, se influenciam mutuamente.

Bobbio irá dividir sua Teoria Geral
do Direito em Teoria da Norma Jurídica, e Teoria do Ordenamento Jurídico. Ou
seja, a teoria “da parte” e a teoria “do todo”.

Também Herbert Adolphus L. Hart, no direito anglo-americano irá propor um
conceito de Direito, com o propósito de reconstruir a tradição da Escola
Analítica.

Pensar numa teoria geral de direito,
é sobretudo ponderar sobre questionamentos que ainda hoje perambulam pelas
cabeças dos principais doutrinadores da matéria.

Qual a similitude existente entre a
norma matemática e a norma jurídica? Qual a exatidão ou precisão dos juízos
produzidos pela Ciência do Direito? Certeza científica é fenômeno encontrado em
ramos de conhecimento como Direito?

Enfim, quais as verdades que
alimentam a Dogmática Jurídica?

Curial é nitidamente distinguir o
que é regra, capaz de disciplinar, reger, do que é norma que se traduz pela
soma do preceito com a sanção, princípio que é norma em abstrato, e se traduz
como vetor axiológico (valor) e vetor ideológico (filosofia).

Bobbio
baseado em sua visão
neopositivista de ciência, com discurso rigoroso passa a exigir a precisão das
regras do uso dos termos da linguagem técnica, como forma de redução da
discricionariedade jurídica.

Hart ao propor a regra de reconhecimento como critério
de distinção das regras jurídicas das demais normas sociais e a assumir a tese
da textura aberta da linguagem como forma de justificação de uma pretensa
discricionariedade judicial, àquela correlata.

Isso nos faz identificar a origem de
nossas “cláusulas gerais” inseridas no ordenamento jurídico brasileiro e,
particularmente, no C.C. de 2002. Na verdade nem Kelsen, nem Bobbio, nem Hart romperam decisivamente com a
jurisprudência tradicional, mas empreenderam teorias semânticas do Direito
(segundo a dicção de Ronald Dworkin).
Após apresentarem critérios epistemológicos fortes para a conceptualização do
que seja o Direito, sua dinâmica e constroem suas Teorias Gerais.

A TGD teoria semântica do direito
revela-se como sistema de conceitos fundamentais à Dogmática Jurídica do
Direito positivo, de qualquer direito positivo. Ainda que reconheçamos seu
caráter interpretativo às convenções de toda as correntes do Positivismo
Jurídico.

A Teoria do Direito e mesmo o
neopositivismo pressupõe uma determinada compreensão paradigmática do
conhecimento jurídico, uma TGD onde a teoria e a práxis mais uma vez cindidas,
não assumem atitude auto-reflexiva, mas que uma pudesse iluminar a outra. Uma
pudesse mostrar o caminho ou os caminhos à outra.

Passando da estrutura à função,
mesmo os neopositivistas apresentam-se como ápice e crise de uma Teoria Geral,
semântica do Direito.

Questiona-se novamente: “O
Estado-juiz só deve intervir mediante o conflito, e mediante provocação? Ou
deve, mesmo preveni-lo?”

A Teoria Jurídica enquanto Teoria
semântica do Direito passa a ser profundamente questionada com o
desenvolvimento da Tópica Jurídica, quanto da Hermenêutica Jurídica e, mais
ainda pelas Teorias de Argumentação Jurídica, marcando um giro lingüístico,
hermenêutico e pragmático na Teoria do Direito.

E ainda, sem mencionar as correntes
neo-realistas (de Holmes, Frank, Kenedy, Ross e Unger) e institucionalistas como
Hauriou, cabendo apresentar teorias ou compreensões diferentes do direito,
rompendo com o positivismo clássico ou com neopositivismo jurídico.

A Tópica Jurídica se apresenta como
conhecimento problemático, problematizante, assistemático das questões
jurídicas. Onde as categorias e conceitos são, grosso modo substituídos por topoi e ganham sentido particular nos
problemas jurídicos concretos. É a valorização do caso concreto!

Enquanto que a hermenêutica
considera que o Direito e as questões jurídicas só ganham sentido à luz de
contextos culturais, históricos e sociológicos que informam os operadores
jurídicos.

O Direito é prática social,
interpretativa. E a norma jurídica é a chave de poder a ordenar valores e
práxis. Já a Teoria da Argumentação Jurídica, a chamada “Nova Retórica”
(Perelman) dá versões discursivas às argumentações jurídicas e, pressupõe a
complexidade das questões jurídicas que passam a elaborar a reabilitação da
racionalidade prática.

O Direito ressurge como prática
social argumentativa apropriando-se de uma forma crítica de suas tradições e de
seus contextos interpretativos. Para aonde não faz sentido uma teoria geral
eivada de positivismo ou da estática ou dinâmica.

A Teoria Geral do Direito
pós-positivista calca-se na própria unidade do sistema jurídico, fulcrando
princípios aplicáveis á teoria do discurso e ao atual paradigma de ciência.

Vivenciamos essa reconstrução
paradigmática onde é necessário reaprender os conceitos fundamentais do direito
e a nova dinâmica da lógica jurídica contemporânea.

Os problemas relativos ao caráter
científico da teoria geral do Direito. Muitos negam a cientificidade ao Direito
sob a argumentação de que bastaria a aprovação de uma nova lei para que
bibliotecas inteiras ruíssem abaixo, perdendo seu valor.

Isto é em verdade um problema de
perspectiva e que a Ciência do Direito não pode ser entendida como uma autodescrição
do Direito. Ao trabalhar com o sistema de regras, Kelsen não conseguiu a almejada pureza, até por causa da indagação
sobre a legitimidade do Direito.

Na verdade conhecimento, fenômeno e
questões do pensamento jurídico são padrões valorativos e, fazem parte da
teoria. Já a fundamentação, classificação e hierarquias incorporam a Dogmática
normativa compondo a práxis.

Outra tormentosa questão é a
identificação do fenômeno jurídico, para alguns é a relação jurídica, para
outros é a normatização. De qualquer maneira, a normatização é subseqüente à
relação social e jurídica. O socius
no plano jurídico é pungente de forma, que não se pode ignorá-lo a bem de se
propiciar a convivência social.

Outra discussão acirrada é a relação
entre indivíduo/ sociedade e, sociedade/Estado, pois precisamos medir até aonde
a lei enquanto vontade do Estado o transforma em arbitrário e, não
discricionário. O panteão do Estado de Direito é delicado pois os contornos
contemporâneos de cidadania  e sujeito de
direito se pautam predominantemente pelo princípio da dignidade da pessoa
humana, por vezes em sacrifício de outros valores e princípios como a livre
iniciativa, da autonomia da vontade e, da proteção constitucional a propriedade
em geral.

Não que tais valores ou princípios
tenham sido revogados, ao revés, são mitigados diante do peso axiológico da
dignidade da pessoa humana. Curial, é deduzir que para ser plenamente cidadão,
é indispensável antes ser, ente humano e ter suas necessidades basilares
ortodoxamente respeitadas.

A Teoria Geral do Direito vem pouco
a pouco fornecendo o perfil do Estado Social onde o princípio da função social
irradia-se em todos os ramos do Direito indistintamente, homogeneizando os
principais conceitos de direito positivo. É verdade que a ditadura na norma
jurídica arrefeceu, e a doutrina e jurisprudência como fontes de direito vem
ganhando terreno, colmatando as principais lacunas, dubiedades e contradições
que trafegam no sistema jurídico.

Também o grande impasse ideológico e
filosófico do direito positivo brasileiro é ser de origem francesa, filhote
espúrio do Código de Napoleão, e ser amante inveterado do BGB (Código Alemão).
Somos desejosos em ter a preciosa técnica alemã, sintética e pragmática com o
conteúdo avantajado do código francês eivado de suas descendências romanas e
canônicas.

Atingir esse meio-termo tem sido o
desafio diário de todos, sejam doutrinadores, sejam magistrados, sejam
advogados e seja o Estado.

Atingir esse meio-termo é uma
proposta constante do direito contemporâneo.

Há temas jurídicos comuns tanto à
parte geral do direito civil como à teoria geral do direito e, em geral
estudados nos cursos de graduação  na disciplina
de “Introdução ao Estudo do Direito, ou à Ciência do Direito”. Fábio Ulhoa Coelho nos ensina que
assuntos como lacuna, conflitos de normas, sujeitos de direito e outros são o
objeto de direito. Essas duas disciplinas contudo não são redundantes e nem há
superposição, posto que o enfoque e os objetivos são diferentes.

Enquanto o direito civil, em razão
de sua natureza de conhecimento tecnológico, deve oferecer meios para solução
de conflitos sociais, a teoria geral do direito pode-se permitir reflexões
descompromissadas, de natureza filosófica.

O art. 4º da LICC nos aponta que há
instrumentos conferidos ao julgador ante o caso de omissão da lei e são estes:
analogia, costumes, princípios gerais de direito. No entanto, a teoria geral de
direito problematiza a questão, e chega identificar a lacuna de lei não
exatamente com a falta, mas revés com a abundância de normas jurídicas (Bobbio,
1960:148/157).

O Direito Civil não pode perder-se
em reflexões filosóficas pois se espera que a técnica jurídica ofereça as
soluções hábeis a superação dos conflitos de interesses. Já a teoria geral do
direito se mantém mais afastada da técnica jurídica e procura refletir sobre os
limites e as características do complexo mecanismo de solução dos conflitos
sociais. É óbvio que a tecnologia civilista deve abarcar em sua essência as
elucubrações da teoria geral do direito, até para manter a evolução do direito
viva e atual, capaz mesmo de não perder a historicidade de seu tempo e nem a
praticidade dos meios capazes de perpetuar e propiciar a convivência pacífica e
construtiva dos homens.

 

Bibliografia:

COELHO, Fábio Ulhoa.  Curso de direito civil, volume 1(um). São
Paulo, Editora Saraiva, 2003.

DE FARIAS, Cristiano Chaves e Nelson
Rosenvald. Direito Civil – Teoria Geral, 6ª edição, Rio de Janeiro, Editora
Lumen Juris, 2008.

ADEODATO, João Maurício e Alexandre
da Maia. Dogmática Jurídica e Direito Subdesenvolvido. Rio de Janeiro, Editora
Lumen Juris.

GIORDANI, José Acir. Curso Básico de
Direito Civil. 4ª edição, 2ª tiragem. Rio de Janeiro, 2008.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica
de Direito Civil. Rio de Janeiro, Editora Renovar.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do
Direito. São Paulo. Editora Martins Fontes.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil Série
Concursos Públicos (volumes 1,2,3,4,5, e 6) Editora Método, São Paulo.

CHAMON JUNIOR, Lucio Antônio. Teoria
Geral do Direito Moderno. Por uma Reconstrução Crítico Discursiva na Alta
Modernidade. Editora Lumen Juris.


Informações Sobre o Autor

Gisele Leite

Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.


Equipe Âmbito Jurídico

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