União estável e a inconstitucionalidade material do inciso II do artigo 35 da Lei 9.250/95

Resumo: O artigo aborda a inconstitucionalidade da norma tributária que desconhece o instituto da união estável para fins de incidência do imposto de renda. Aborda aspectos teóricos fundamentos do Estado Democrático de direito para verificar a previsão acerca da união estável na norma constitucional e a possível inconstitucionalidade da norma infraconstitucional. Encerra com o entendimento de que o não reconhecimento da norma constitucional seria um gravame à concretização dos fundamentos e objetivos estabelecidos no título I da Constituição da República e apresenta as razões pelas quais a norma em estudo poderia ser considerada inconstitucional.


Palavras-chave: União estável; imposto de renda; tributação; princípios constitucionais; inconstitucionalidade.


Sumário: 1 Introdução; 2 Os Fundamentos do Estado Democrático de Direito; 3 A Evolução da união estável no Brasil; 4 O reconhecimento da união estável pela lei civil e previdenciária; 5 Os princípios da justiça e do não-cerceamento de direitos constitucionais; 6 A legalidade à luz dos princípios da reserva legal e da segurança jurídica; 7 Considerações finais; Referências bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO


No presente estudo abordamos a incidência tributária para verificar a inconstitucionalidade do inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95 que prevê a necessidade de comprovação de cinco anos de convivência para declarar o companheiro ou a companheira como dependente para fins de dedução do imposto de renda.


Para isso, consideramos o interesse do fisco e o do cidadão. O Estado desrespeita limites constitucionais para ver concretizada essa sua vontade de arrecadar recursos para os cofres públicos. Sempre se escuta dizer que quem realmente é sacrificado nesta ânsia arrecadatória é o trabalhador assalariado. Isso porque o assalariado é quem tem deixado boa parte de seus salários, antes mesmo de recebê-los, nas mãos do tesouro.


Por outro lado, a pós-modernidade não está fundada nos mesmos princípios da modernidade. Se no passado, para garantir o estado patrimonial de duas pessoas que tinham vida em comum era necessário o casamento civil, hoje o estado tem reconhecido meios alternativos, como é o caso da união estável, que pela Constituição da República, não apresenta nenhum requisito para sua configuração.


Esta afirmação decorre da evolução do matrimônio para a união estável, assegurada no artigo 226, § 3o, da Constituição da República e regulamentado pela Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996, que regulamenta a união estável, ou ainda, pelo Código Civil de 2002, no Título III do Livro IV, que estabelecem normas reconhecendo a união estável como entidade familiar.


A partir destas previsões legais, podemos afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro estabelece as condições para que a partir do momento em que duas pessoas de sexo oposto resolverem partilhar a vida em conjunto, estará constituída a união estável, para todos os efeitos da vida civil, de modo que, perante o fisco, não haveria necessidade de comprovar a convivência em comum por cinco anos, bastando que se comprovasse a intenção de vida em comum.


É a partir deste entendimento, que desenvolvemos o estudo da possível inconstitucionalidade da norma jurídica que estabelece o prazo de cinco anos para que o(a) contribuinte declare como dependente o(a) seu(sua) companheiro(a). Embora a Constituição reconheça a existência da união estável, o próprio Estado que estabelece que o reconhecimento da união estável, ao olhar os conviventes sob o aspecto de contribuintes do fisco, nega esta condição ao exigir mais de cinco anos de convivência comum, salvo se da união resultou filho.


Assim, desenvolvemos o estudo abordando os fundamentos do Estado Democrático de Direito, da união estável e alguns aspectos da tributação para arrecadação do imposto sobre a renda e alguns princípios essenciais para a concretização do Estado Democrático de direito.


2 OS FUNDAMENTOS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO


A República Federativa do Brasil estabelece como princípios fundamentais, dentre outros estabelecidos no art. 1o da Constituição Federal de 1988, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. No seu art. 4o está previsto como objetivo fundamental da República, “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.


A Constituição, a partir dos fundamentos estabelecidos, deve estar vinculada à realidade social estabelecendo uma conexão de sentido que envolve um conjunto de valores. O conjunto de normas jurídicas que forma a Constituição deve ser entendido como a positivação de um conjunto de regras de conduta que devem ser adequadas à concretização do interesse público, respeitadas pelo cidadão e pelo próprio Estado. Em outras palavras, o Estado Democrático de Direito deve ser expressão da vontade da cidadania e, assim, deve estabelecer os mecanismos para a concretização dos fundamentos constitucionais.


Evidentemente, a Constituição deve ser vista segundo a “concepção estrutural” proposta por José Afonso da Silva (2005, p. 39), “não como norma pura, mas como norma em sua conexão com a realidade social, que lhe dá o conteúdo fático e o sentido axiológico”. Do ordenamento jurídico deve desprender um olhar sistêmico que visa, em última instância, a concretização do interesse público. Neste sentido, é necessário olhar para a Constituição como o fundamento de um ordenamento jurídico que tenha como fim último a realização de valores que apontam para o existir da coletividade como um todo. Esta realização de valores é o fundamento que utilizamos como baliza para a defesa da tese de inconstitucionalidade do inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95 – lei do imposto de renda.


Buscar o “sentido jurídico de constituição” pressupõe a análise conjugada com a totalidade da vida social em conexão com o conjunto da comunidade. A norma jurídica não deve ser entendida como norma pura, mas em conexão com a realidade social que lhe dá conteúdo fático e axiológico. Ou seja, uma norma jurídica somente se justifica se analisada sob um viés valorativo de concretização da dignidade do ser humano. A Constituição é um sistema, um todo unitário construído a partir de condutas humanas valoradas historicamente, constituindo o próprio fundamento do existir comunitário.


Quando a Constituição da República estabelece em seu artigo 226, que a família é a base da sociedade e assim tem especial proteção do Estado, e em seu § 3o, que para efeitos de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento, está demonstrando que o existir comunitário decorre também desta nova unidade familiar reconhecida.


Na esteira de José Afonso da Silva (2005, p. 848), a Constituição afirma a família como base da sociedade e lhe estabelece especial proteção do Estado, mediante assistência na pessoa de cada um dos que a integram. Não é o casamento a única forma constitutiva da entidade familiar pois resta ampliada sua interpretação. Nesta ampliação, entre outras formas, está a união estável entre homem e mulher, cumprindo à lei facilitar sua conversão em casamento, o que resta estabelecido na Lei 9.278, de 10 de maio de 1996.


Como afirma José Afonso da Silva (2005, p. 39), a Constituição deve ser vista como um complexo,


“não de partes que se adicionam ou se somam, mas de elementos e membros que se enlaçam num todo unitário. O sentido jurídico da constituição não se obterá, se a apreciarmos desgarrada da totalidade da vida social, sem conexão com o conjunto da comunidade. Pois bem, certos modos de agir em sociedade transformam-se em condutas humanas valoradas historicamente e constituem-se em fundamentos do existir comunitário, formando os elementos constitucionais do grupo social, que o constituinte intui e revela como preceitos normativos fundamentais: a constituição” (grifos do autor).


Por outro lado, é importante acrescentar que segundo a interpretação evolutiva proposta por Luiz Roberto Barroso, poderíamos afirmar que sem dimensionar o conceito não há como interpretar a Constituição. Deve-se utilizar um conceito evolutivo. Para a verificação da possibilidade de o contribuinte declarar como dependente a companheira na união estável, basta que exista o ânimus de convivência. Não é possível a exigência de prova de convivência duradoura por cinco anos como estabelece a lei infraconstitucional. A interpretação evolutiva possibilita este posicionamento, já que demonstra a compreensão do sistema jurídico como um todo, mediante um processo interpretativo informal que atribui novos entendimentos sem modificação do texto da lei.


A interpretação evolutiva nos demonstra que todas as palavras do texto legal têm função e sentidos próprios. Entretanto, mesmo que assim seja, deve preponderar o valor sistêmico da Constituição. Deve o jurista considerar o ordenamento jurídico um todo harmônico segundo o correlacionamento de diversos institutos e normas. A união estável é um novo instituto jurídico protegido pela Constituição. É a Constituição da República que estabelece o fundamento onde as normas infraconstitucionais se alicerçam, não podendo ser interpretadas isoladamente, mas sempre em consonância com o sistema constitucional. Como tal, a união estável tem seu fundamento na Constituição impondo ao Estado o dever de reconhecê-la, como expressão constitucional, e respeitá-la.


Estando os fundamentos do ordenamento jurídico na Constituição, que estabelece as balizas a serem observadas pelo legislador infraconstitucional, desrespeitar seus fundamentos é desrespeitar a ordem constitucional. Importante ressaltar ainda que, por um lado, a lei pode apresentar inúmeras falhas e incorreções e por outro, o jurista não deve se conformar com a vontade do legislador que, muitas vezes, apresenta um texto com contradições, imperfeições e cuja vontade pode não prevalecer no tempo. Assim, nada mais correto do que conferir ao jurista um sentido prático de existir.


Paulo de Barros Carvalho (2003, p. 112) nos diz que para conhecer o direito, não basta conhecer o signos que compõem a lei. É necessário “compreendê-lo, interpretá-lo, construindo o conteúdo, sentido e alcance da comunicação legislada”. Esta compreensão exige que o intérprete se envolva e conheça todo o ordenamento e a partir das normas superiores, a partir de um juízo axiológico, faça a leitura das normas inferiores. Tal interpretação, leva em conta os princípios estabelecidos.


Fica claro que a interpretação da norma deve decorrer da análise do todo, e não de forma isolada. Significa que a interpretação não ocorre norma por norma, mas as normas inferiores devem ser compatíveis com as normas superiores, tal como sustentado por Hans Kelsen.


Carvalho (2003, p. 113) afirma que


“a norma jurídica é uma estrutura categorial, construída, epistemologicamente, pelo intérprete, a partir das significações que a leitura dos documentos do direito positivo desperta em seu espírito. É por isso que, quase sempre, não coincidem com os sentidos imediatos dos enunciados em que o legislador distribui a matéria no corpo físico da lei. Provém daí que, na maioria das vezes, a leitura de um único artigo será insuficiente para a compreensão da regra jurídica. E quando isso acontece o exegeta vê-se na contingência de consultar outros preceitos do mesmo diploma e, até, a sair dele, fazendo incursões pelo sistema.”


Tal como citado por Barroso, o legislador introduz modificações no ordenamento jurídico através de formulações literais. Este entendimento, entretanto, não impede que ocorram outras modificações, decorrendo a transformação do sistema. Usualmente, a alteração textual é a forma utilizada para a produção do direito. Entretanto,


“ninguém pode prever, com visos de racionalidade, o rumo que os utentes da linguagem do direito, num dado momento histórico, vão imprimir às significações de certas palavras. Quem, por exemplo, poderia antecipar que o vocábulo ‘casamento’, sempre ajustado a situações tradicionalmente configuradas, pudesse assumir, como nos dias atuais, a amplitude de significações que vem adquirindo? (…) Com o sensível aumento na velocidade das informações, os processos de alteração significativa dos termos jurídicos vêm se desenvolvendo em intervalos cada vez mais curtos, o que valoriza a pesquisa da dimensão pragmática, na busca do reconhecimento das mudanças por que passam os sistemas jurídico-positivos. Mesmo assim, porém, não chega ao ponto de roubar a primazia da plataforma física das formulações literais, com o locus mais adequado para que o legislador faça inserir, no sistema, as modificações que lhe parecem mais convenientes. Afinal de contas, matérias sociais novas reivindicam, a todo instante, sua absorção pelas hipóteses normativas, passando a ser reguladas pelo direito. Isso se faz, regularmente, mobilizando-se as fontes produtoras de normas jurídicas, que se assentam por meio de enunciados expressos, em documentos formalmente concebidos para exprimi-las em linguagem técnica” (CARVALHO, 2003, p. 117).


Portanto, a afirmativa de que o reconhecimento da união estável constitui-se concretização dos fundamentos da República Federativa do Brasil é evento que não pode ser negado. Isso porque a evolução tem demonstrado e a sociedade e os tribunais pátrios têm reconhecido a sua constituição, que é hoje protegida pela lei, para todos os efeitos.


3 A EVOLUÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL NO BRASIL


A família é a célula mater da sociedade. O direito, como mecanismo de regulação das relações humanas, acompanha a evolução da espécie humana. É um fenômeno social. Toda produção legislativa guarda relação com a realidade social de modo que, embora não deva haver um excessivo apego à norma, é ela que deve assegurar os direitos mínimos necessários à vida com dignidade. Significa que por um lado, a norma jurídica estabelece regras de conduta para que os sujeitos se adecuem a ela. Por outro lado, é necessário ressaltar que inúmeras vezes ocorrem alterações das condutas humanas e a lei se adecua a elas. É o caso da união estável.


A evolução social do vínculo familiar no Brasil parte de um casamento religioso em virtude da imposição cristã, passando para um casamento civil com o nascimento da República. Isso, em virtude de que o Estado brasileiro é um estado laico, apartado do poder da igreja. Atualmente, a Constituição da República estabelece o reconhecimento da união estável como unidade familiar. Contribuição muito importante para este reconhecimento teve a jurisprudência brasileira, eis que a própria Lei de Introdução ao Código Civil, no seu art. 5o, estabelece que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. De acordo com a própria evolução social, a lei possibilita que o judiciário interprete os fatos sociais para adequar o sentido das normas jurídicas à finalidade social, de acordo com a própria evolução das relações sociais.


O reconhecimento de situações fáticas pelo Judiciário impulsiona o Poder Legislativo a editar normas jurídicas que se conformem à realidade social, de forma que os diplomas jurídicos ultrapassados sejam revistos.


A união estável, como exemplo clássico da evolução das relações sociais e jurídicas, está reconhecida constitucionalmente como célula mater da sociedade, a ser protegida pelo Estado.


Esta evolução ocorre no caso brasileiro. O Código Civil de 1916 dá ao casamento civil uma natureza exclusivamente contratual que o difere do sacramento religioso de cunho moral. Este casamento civil perdura por aproximadamente sete décadas, passando a ser reconhecida a união estável, constitucionalmente. Da mesma forma que no início do século XX ocorre a evolução do casamento religioso para o civil, no final do século XX a união estável passa a ter o mesmo sentido contratual do casamento civil, embora seja um contrato verbal reconhecido pelo Estado. Portanto, quando o Estado estabelece em sua Constituição que a união estável é reconhecida como “entidade familiar”, este Estado está estabelecendo o dever constitucional e legal de respeitar esta relação jurídica como tal. Se o Estado deve dispensar tratamento isonômico aos cidadãos, a legislação infraconstitucional deste Estado deve dar o mesmo tratamento a todas as relações jurídicas que constituam uma entidade familiar: isso vale para o casamento civil, o casamento religioso e a união estável, a partir de sua Constituição como tal.


4 O RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL PELA LEI CIVIL E PREVIDENCIÁRIA


Ponto importante a ser considerado, diz respeito ao reconhecimento pelo Estado quando se trata de convivência para fins de previdência social. A contribuição previdenciária, todavia, consiste em uma espécie tributária imposta ao contribuinte para que, algum dia, ele ou seus dependentes possam vir a ter uma assistência previdenciária por parte do Estado.


Para reconhecimento do dependente do segurado falecido, a lei previdenciária estabelece a regra prevista nos art. 16, I e 4o, da Lei no 8.213/91:


Art.16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado”:


I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, o menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido.(…)


§ 4º A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida e a das demais deve ser comprovada”. (grifos nossos).


A lei previdenciária estabelece a dependência presumida em face de que está regulamentando a previsão do § 3o, do art. 226, da Constituição da República, reconhecida igualmente pelo art. 1º, da Lei no 9.278/96, como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, não mais diferenciando o concubinato puro do impuro como o fez a Lei no 8.971/94.


Logo, o direito da companheira à obtenção de pensão por morte decorre apenas da comprovada existência de relação que caracterize a união estável com o segurado falecido, presumindo-se a sua dependência econômica, na forma do art. 16, I e § 4o, da Lei no 8.213/91. É necessário apenas que as provas produzidas não deixem dúvidas acerca da união estável, caracterizada apenas pela convivência independentemente de tempo.


A interpretação que os tribunais pátrios vêm dando à união estável, principalmente quando o assunto trata-se de convivência para fins previdenciários, não pode ser afastado em virtude de que em ambos os casos, de certo modo, existe uma contribuição tributária para o fisco, portanto, compulsória.


5 OS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA E DO NÃO-CERCEAMENTO DE DIREITOS CONSTITUCIONAIS


Segundo Paulo de Barros Carvalho (2003, p. 147-148) o princípio da justiça é uma diretriz suprema. Está implícito em todas as unidades normativas do ordenamento jurídico, se prestando para justificar interesses antagônicos e até desconcertantes, como fundamento de todos os preceitos.


A concretização de outros princípios vai concretizar o primado da justiça, razão porque alguns afirmam ser verdadeiro sobreprincípio. A concretização dos princípios constitucionais pelo Estado devem objetivar um estado de justiça, no qual ninguém seja preterido em função de outrem.


A exigência de comprovação de cinco anos de união estável para o seu reconhecimento pela norma tributária acarreta uma desigualdade entre os sujeitos passivos da obrigação tributária no caso do imposto de renda afrontando o princípio fundamental que estabelece a justiça social.


O competência tributária expressa através da norma jurídica deve ter finalidade arrecadatória para a concretização do interesse público. Entretanto, a competência tributária diante de determinados casos, deve limitar esta atuação estatal, visando evitar que a capacidade tributária seja exercida de moldes a configurar injustiça. Deste modo, a partir dos princípios e objetivos fundamentais estabelecidos no Título I da Constituição da República, a justiça deve ser um atributo da ação do Estado, concretizado através de outros princípios constitucionais.


Neste sentido, Regina Helena Costa (2007) enuncia o princípio do não-cerceamento de direitos constitucionalmente estabelecidos, ao abordar a questão dos limites à progressão fiscal. Creio que é oportuno afirmar que o direito dos conviventes terem reconhecida a união estável, é direito constitucional, como acima afirmado.


Segundo a autora citada,


“Assim como o direito de propriedade não pode ser indevidamente restringido ou aniquilado pela tributação, outros direitos constitucionais, igualmente, não podem ser cerceados, tais como o direito à educação, o direito à saúde, a liberdade de iniciativa e a liberdade de profissão, pois, se de um lado o ordenamento constitucional os incentiva e ampara, não pode, ao mesmo tempo, compactuar com a obstância ao seu exercício por uma atividade tributante desvirtuada.”


Pelo prisma dos direitos constitucionais a serem preservados, é possível afirmar que sendo o direito à convivência em união estável um direito constitucionalizado, não pode a norma tributária e a tributação aniquilar o patrimônio a ser construído durante a convivência através do não reconhecimento do vínculo de dependência em razão da falta de transcurso de tempo, que no caso, é estabelecido em cinco anos pelo inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95.


6 A LEGALIDADE À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA RESERVA LEGAL E DA SEGURANÇA JURÍDICA


Para a análise de uma possível inconstitucionalidade no caso da tributação da renda de conviventes em período inferior a cinco anos, importante o entendimento da abrangência do princípio da legalidade tributária no sistema constitucional das prestações pecuniárias compulsórias.


Segundo Edvaldo Brito (2007), o princípio da legalidade deve ser visto na integralidade, ou seja, inclusive quanto aos requisitos estabelecidos constitucionalmente. A segurança jurídica decorre de uma visão sistêmica da Constituição da República. Além dos caracteres específicos a respeito da competência para criar e cobrar um determinado tributo, deve estabelecer a possibilidade de caracterizar ou não o indivíduo como um provável contribuinte. Significa dizer que o exercício da competência tributária deverá ser exercido unicamente visando à concretização das finalidades estatais, respeitados os limites e instituições previstos constitucionalmente.


O princípio da segurança jurídica, nas palavras de Bandeira de Mello (2001, p. 92), “não pode ser radicado em qualquer dispositivo constitucional específico. É, porém, da essência do próprio Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional como um todo”. Portanto, embora não esteja estabelecido em alguma norma jurídica especificamente, é princípio implícito do ordenamento jurídico.


O princípio da legalidade estabelece que o Estado somente poderá agir quando for autorizado por lei. Entretanto, mesmo em caso de previsão legal, deve-se analisar a constitucionalidade da lei autorizadora. Isso porque, segundo Hugo de Brito Machado (2007), o poder estatal de tributar tem na legalidade uma limitação. Em decorrência desse entendimento, é possível afirmar que a própria Constituição limita esta vontade estatal e apresenta os remédios jurídicos para retirar do ordenamento jurídico a norma que a desrespeita. Isso se dá pela declaração de inconstitucionalidade da norma jurídica viciada.


Para Edvaldo Brito (2007), a segurança jurídica tem força muito grande que pressupõe que a exteriorização da previsão normativa deve estabelecer a conjuntura esperada pelo sistema. Inclusive, que em determinados casos, os próprios órgãos jurisdicionais não garantem a segurança jurídica quando simplesmente derrubam súmulas já estabelecidas, por razões de interesse do Estado. Uma norma que contraria o sistema constitucional, fere o princípio da segurança jurídica.


Se a ordem jurídica é preestabelecida a garantir estabilidade na regência da vida social, em caso de norma que não respeite os princípios constitucionais há uma flagrante inconstitucionalidade material.


É o que se compreende quando Bandeira de Mello (2001, p. 93) afirma que a ordem jurídica deve garantir “um mínimo de certeza na regência da vida social”, o que ocorre através da garantia do princípio da segurança jurídica. Segurança jurídica que deve ser vista como “uma das mais profundas aspirações do Homem: a da segurança em si mesma, a da certeza possível em relação ao que o cerca, sendo esta uma busca permanente do ser humano”.


Assim, embora o direito apresente-se com constantes mutações, as mudanças ocorridas no ordenamento jurídico visam justamente ajustar-se para satisfazer o interesse público que se manifesta. É dentro deste quadro que a união estável passa a ser entendida como entidade familiar, e no qual, deve haver adequação da norma jurídica que limita a atuação tributária do Estado.


A segurança jurídica, portanto, tem como finalidade garantir que novas situações sociais decorrentes da própria evolução humana, sejam reconhecidas através da mudança da norma ou da interpretação da lei pelos Tribunais.


Por outro lado, segundo Rodrigo Spessato (2007), “o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ele não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura, ao particular, a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a lei”.


Portanto, o princípio citado estabelece que a única forma de impor conduta ao cidadão é através da lei.


Para José Afonso da Silva (2005), o princípio da legalidade implica que, sendo princípio basilar do Estado Democrático de Direito, seu conceito deve subordinar-se à Constituição da República e fundar-se na legalidade democrática. A sujeição implica o império da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça que vai materializar-se num regime de divisão de poderes, no qual sejam criados órgãos de representação popular, de acordo com o processo legislativo estabelecido constitucionalmente.


Portanto, nesta acepção, o princípio da legalidade deve ser entendido como algo integrado ao sistema constitucional, em decorrência do qual o Poder Público, especialmente a administração tributária, não poderá exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção ou proibição, senão em virtude da lei.


A partir do princípio da legalidade decorre que qualquer ação, abstenção ou proibição ao cidadão pelo Poder Público somente poderá decorrer de lei estabelecida dentro da esfera limitada pelo legislador constituinte.


Em decorrência do exposto, é possível analisar a constitucionalidade da norma que estabelece a necessidade de comprovação de cinco anos de convívio para que seja o companheiro reconhecido como dependente na relação jurídica de união estável. A norma constitucional estabelece que basta a intenção de vida em conjunto para que se configure a união estável. Desta forma, não pode a lei infraconstitucional estabelecer um gravame maior ao cidadão se a condição imposta para o reconhecimento da relação jurídica foi mais branda. Entendimento contrário é negar a segurança jurídica. Assim, seria possível afirmar que a Constituição e o ordenamento jurídico não garantem a segurança jurídica embora possam em determinados momentos reconhecer a união estável como “vontade” de constituição de unidade familiar. Desconhecer tal instituto, todavia, implica em contrariar a norma constitucional.


7 CONCLUSÃO


As reflexões acima expostas partem da observância da incidência do imposto de renda em decorrência do não reconhecimento da união estável antes de decorridos os cinco anos de convivência e impossibilidade de reconhecimento de um dos conviventes como dependente do outro para fins de declaração do imposto de renda, o que acarretaria a consideração de inconstitucionalidade do inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95 – lei do imposto de renda.


Verificamos que há uma constante evolução na convivência das pessoas, de modo que evoluímos de uma situação onde apenas a Igreja reconhecia o casamento e, portanto, a união visando à constituição de família, para o reconhecimento pela lei civil. No final do século passado, a lei maior da República Federativa do Brasil reconheceu que não há necessidade de que seja celebrado o reconhecimento da unidade familiar. Acompanhando a norma legal e até mesmo evoluindo na interpretação, os tribunais têm dito mais: que não há necessidade de observância de prazo mínimo de convivência para que se configure a união estável.


Resta claramente demonstrado que, segundo entendimento dos tribunais, basta a vontade dos conviventes para que se constitua a união estável, que ela seja duradoura e pública. Bem, se basta a vontade para constituir a união estável, ela será duradoura enquanto houver affectio maritalis. Se fizermos uma comparação, até mesmo o casamento civil vai durar enquanto houver esta afeição. Terminada ela, termina a relação, de regra. Portanto, totalmente descabida a concepção de que é necessário o lapso temporal de cinco anos para que seja reconhecida a união estável pelo Estado, para fins tributários, já que ela é efetivamente reconhecido e deve ser protegida, independentemente de prazo. Esta a norma estabelecida constitucionalmente.


Assim, é necessário lembrar que há uma declaração constitucional no art. 226 de que o Estado reconhece a união estável, apontando os requisitos necessários para que a mesma seja reconhecida. Além disso, a matéria é regulada por lei infraconstitucional, deixando de estabelecer prazo mínimo para o seu reconhecimento, em razão de que revoga implicitamente lei anterior.


Está, portanto, estabelecido constitucionalmente um direito subjetivo público que pode ser reivindicado como uma proteção contra a ação do Estado, que deve proteger a entidade familiar. Além disso, esta entidade familiar não pode sofrer gravame tributário em razão do não reconhecimento, pelo Estado, de situação fática prevista constitucional e legalmente. Isso porque o vínculo obrigacional através do qual o fisco pode exigir o pagamento de tributo contradiz o artigo 226 da Constituição da República. Na realidade, o próprio desconhecimento da relação de dependência e exigência declaratória do dependente, no caso da união estável, deve ser entendida como coerção ilegal.


Portanto, uma análise do inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95 à luz da evolução da entidade familiar demonstra que o dispositivo contraria o sistema constitucional, pois ela impede que o(a) companheiro(a), na união estável com menos de cinco anos, seja reconhecido(a) como dependente para fins de tributação pelo imposto de renda. A norma citada contraria o sistema constitucional ao desprezar a previsão do § 3º do artigo 226 da Constituição da República. Ou seja, a norma infraconstitucional despreza a vontade para o reconhecimento da união estável, somente a considerando quando passados cinco anos de convivência ininterrupta.


Se entendermos a evolução da entidade familiar como demonstramos exaustivamente, veremos que não evoluiu unicamente a norma jurídica arrecadatória, já que até mesmo para fins previdenciários é aceita tal evolução das relações fáticas e jurídicas.


Por outro lado, a norma tributária ao desconsiderar, por decisão do legislador infraconstitucional, a igualdade das pessoas que convivem em união estável, a qualquer tempo, em relação às pessoas que contraíram matrimônio na forma civil, está preterindo os direitos dos convivente. Ocorre clara ofensa ao princípio da isonomia entre os contribuintes.


Finalmente, havendo a norma constitucional do art. 226 estabelecido que a união estável se equipara a entidade familiar, não estaria equiparando-a ao casamento? Acreditamos que não. Entretanto, ao estabelecer que deverá ser facilitada a sua conversão em casamento, está criando uma nova entidade familiar sem necessidade do vínculo legal denominado casamento.


Equiparar casamento e união estável, é tratar com eqüidade as pessoas que convivem sob uma relação jurídica ou outra. Entretanto, tratar com desigualdade para fins tributários, em decorrência da não revogação do inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95, é desconsiderar a evolução dos valores da sociedade, representados através da evolução das relações fáticas e dos avanços da norma constitucional.


Outro fator importante a ser considerado diz respeito aos efeitos da união estável. Não há dúvida de que a união estável gera efeitos patrimoniais aos conviventes.


A inconstitucionalidade da norma estabelecida no inciso II do art. 35 da Lei 9.250/95 estabelece um grande desrespeito ao sistema constitucional. Desrespeito, inicialmente, em face da inobservância dos princípios constitucionais que norteiam os próprios fundamentos e objetivos constitucionais para a construção da cidadania e da dignidade do ser humano. Finalmente, em razão de que a Constituição da República estabelece, dentre outras coisas, que constitui-se a família, celula mater da sociedade, reconhecendo a união estável como entidade familiar. E assim, de que compete ao Estado proteger a união estável em razão de reconhecer nela um valor fundamental para a concretização da dignidade do ser humano.


Portanto, o Estado, ao reconhecer a união estável como entidade familiar, e ao estabelecer que dentre os princípios do sistema constitucional estão, entre outros, os princípios da igualdade e da isonomia, tem o dever de dispensar tratamento semelhante a todas as pessoas que se enquadrarem sob um mesmo instituto jurídico. E, estabelecer a união estável como entidade familiar, pode não estar se afirmando juridicamente que a união estável é o mesmo instituto jurídico que o casamento, mas é estabelecer que de institutos jurídicos, embora distintos, decorrem os mesmos efeitos.


Além disso, o inciso II do art. 35 da Lei no 9.250/95, ao impor como pressuposto como condição para o reconhecimento da condição do(a) companheiro(a), para declaração de dependência para fins de imposto de renda, estabelece uma condição não prevista no texto constitucional. Estabelecer tal regramento é impor uma condição desigual, decorrente do não reconhecimento da união estável, impedindo reconhecimento da entidade familiar decorrente do objetivo de constituição de família independentemente do casamento. Só por isso, teria que se proclamá-la inconstitucional, posto que tal condição não é prevista na lei magna.


Assim, o reconhecimento da união estável decorre do poder, expressão política, enquanto a competência para tributar decorre da norma jurídica. Podemos, portanto, afirmar que a expressão política que reconhece a união estável tem maior prevalência do que a o poder legislativo exercido em decorrência da competência tributária. Embora Hugo de Brito Machado (2007) afirme que o poder de tributar constitui-se anteriormente à lei, a obrigação tributária é decorrente da lei e nestas condições o Estado deve concretizar sua competência, para impor a obrigatoriedade ao contribuinte.


Portanto, a norma constitucional que reconhece a união estável a partir da convivência de duas pessoas de sexo oposto com o intuito de constituição de unidade familiar, é uma norma de observância obrigatória pelo Estado. E assim, este Estado, através de seu poder legislativo, deve estabelecer um limite ao poder tributário. Quando a norma infralegal estabelece o prazo de convivência de cinco anos para o reconhecimento da união estável pelo Fisco, está desrespeitando a vontade política que estabeleceu o seu reconhecimento pela Constituição da República.


Embora a Constituição da República reconheça a união estável como entidade familiar e até mesmo a lei previdenciária assim a reconheça, a lei tributária não a reconhece para fins de dedução no pagamento do imposto de renda. Significa que o inciso II do art. 35 da Lei no 9.250/95 estabelece uma obrigação tributária contrariando a norma constitucional inscrita no art. 226. Em outras palavras, se a Constituição não estabelece um prazo para o reconhecimento da união estável, não pode a lei tributária instituir um fato gerador contrariando a lei maior.


Assim, podemos concluir dizendo que a obrigação tributária não se constitui pois não há previsão constitucional de prazo mínimo para constituir a união estável e a lei que regula o instituto é omissa neste sentido. Se o Estado dispensa a edição de ato administrativo para o reconhecimento da união estável, a lei não estabelece a obrigatoriedade de convivência mínima para ser reconhecida a relação. Deste modo, configurada a affectio maritalis e a vontade manifesta de constituir a unidade conjugal, deve o Estado reconhecer que existe esta unidade e assim, sendo comprovada unicamente a dependência de um dos conviventes, aceitar que poderá haver a inscrição de um pelo outro dos conviventes.


Isto resta claro também do entendimento de que o Direito não é estanque e que deve acompanhar a evolução das relações fáticas e jurídicas como anteriormente mencionamos. Assim, é plenamente passível de defesa o argumento de que é inconstitucional o inciso II do art. 35 da Lei no 9.250/95 por contrariar o sistema constitucional brasileiro.


 


Referencias

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da norma constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 103-146.

BRITO, Edvaldo. Princípio da legalidade. Comunicação verbal, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual de Direito Tributário – UNISUL – REDE LFG. 02 mai. 2007.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2003.

COSTA, Regina Helena. Imposto de Renda e Capacidade Contributiva. Disponível em: http://www.cjf.gov.br/revista/numero22/artigo04.pdf. Material da 4ª aula da Disciplina Sistema Constitucional Tributário: Princípios e Imunidades, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual de Direito Tributário – UNISUL – REDE LFG.

MACHADO, Hugo de Brito. Competência tributária. Comunicação verbal, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual de Direito Tributário – UNISUL – REDE LFG. 20 jun. 2007.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2005.

SPESSATO, Rodrigo. As medidas provisórias e o princípio da legalidade tributária. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5542. Material da 1ª aula da Disciplina Sistema Constitucional Tributário: Princípios e Imunidades, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual de Direito Tributário – UNISUL – REDE LFG. 2007.

Informações Sobre o Autor

Aldemir Berwig

Doutorando e Mestre em Educação nas Ciências Unijuí; Especialista em Direito Tributário Unisul; Graduado em Direito e Administração Unijuí; Professor do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí.


Equipe Âmbito Jurídico

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