Resumo: Análise da não necessidade de convivência sob o mesmo teto para caracterizar a união estável, assim como análise da súmula nº 382 do STF.
1. UNIÃO ESTÁVEL.
No ordenamento jurídico brasileiro o instituto da união estável tem previsão legal na constituição, art. 226, §3º, no Código Civil, artigos nº 1.723 a 1.727 e leis nº. 8.971 de 1994 e nº 9.278 de 1996. As leis e os entendimentos jurisprudenciais tratam dos requisitos para o reconhecimento da união estável e o presente estudo tem o propósito de averiguar a possibilidade de não convivência sob o mesmo teto para configurar a união estável.
Antes de iniciar o estudo a respeito da provável prescindibilidade de convivência sob o mesmo teto entre os casais para caracterizar a união estável, é importante demonstrar todos os requisitos necessários para o reconhecimento deste instituto.
As condições para caracterizar a união estável são descritas na lei nº 9.278 de 1996, sendo elas: convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Não há mais a necessidade de convivência por período igual ou superior a 05 anos, ou mesmo a existência de filhos na relação, e necessário se faz que não haja impedimento legal. O requisito fundamental para caracterizar a união estável, com diversas citações jurisprudenciais, é que haja vida more uxório. Este termo é derivado do latim e seu significado etimológico é: segundo os costumes matrimoniais, como marido e mulher.
Esta vida more uxório, aliada aos requisitos legais acima descritos, é fundamental para caracterizar a união estável. O suposto dilema que ainda é visto nos tribunais brasileiros é a necessidade ou não de convivência sob o mesmo teto para caracterizar a união estável.
Não será fonte de estudo neste artigo os requisitos acima citados, pois apresentam já grande consenso doutrinário e jurisprudencial no mundo jurídico. O foco aqui é apurar a prescindibilidade de convivência sob o mesmo teto para caracterizar a união estável.
Fonte de fundamentação de grande parte das decisões judiciais atuais que envolvem reconhecimento de união estável é a súmula nº 382 do STF. Assim é o texto da citada súmula: “a vida em comum sob o mesmo teto more uxorio, não é indispensável a caraterização do concubinato.”
Neste sentido, segue decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Paraná, ao utilizar a súmula nº 382 do STF:
“Prossegue o ilustre Ministro que diante da alteração dos costumes, além das profundas mudanças pelas quais tem passado a sociedade, não é raro encontrar cônjuges ou companheiros residindo em locais diferentes, quando arremata que o que se mostra indispensável é que a união se revista de estabilidade, ou seja, que haja aparência de casamento, como no caso entendeu o acórdão impugnado. Seria indispensável nova análise do acervo fático-probatório para concluir que o envolvimento entre os interessados se tratava de mero passatempo, ou namoro, não havendo a intenção de constituir família. Ou seja, de acordo com o recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça, corroborando a Súmula 382 do STF a determinar que “A vida em comum sob o mesmo teto ‘more uxorio’, não é indispensável à caracterização do concubinato., há que estarem presentes outros requisitos autorizadores à validação do relacionamento afetivo como união estável, tal como a intenção inequívoca de constituição de família, de vida comum, com aparência de casamento perante terceiros ou de posse de estado de casado”. (Recurso Apelação 0162773-6, grifo nosso)
Ainda, ao utilizar a súmula nº 382, decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justuça:
A rápida leitura da súmula poderia induzir ao pensamento de ser grande sua utilidade para dirimir dúvidas e fundamentar decisões judicias, porém não é o caso. Em um estudo apurado, é possível constatar que a súmula foi aprovada em plenário no ano de 1964 pelo STF e foi criada após decisões dos procesos do ano de 1932 e 1962.
Ao ser constatada essa situação inusitada, importante dedicar leitura nos processos que deram origem à súmula para entender o posicionamento naquela época e, assim, saber se é o mesmo contexto da atualidade.
A leitura dos dois processos que deram origem à súmula nº 382 do STF, indica uma distorção de interpretação ao utilizar o contexto da época para fundamentar decisões atuais. Os dois processos versam sobre pretensão de investigação de paternidade, com diretrizes traçadas no Código Civil do ano de 1916.
Naquelas pretensões a intenção era provar a paternidade após relação de concubinato, sem a possibilidade do exame de DNA, pois esse exame somente foi criado em 1985. Para comprovar a parternidade, o Código Civil de 1916 trazia alguns requisitos no artigo nº. 363, a saber:
“Os filhos ilegítimos de pessoas que não caibam no Art. 183, I a VI, têm ação contra os pais, ou seus herdeiros, para demandar o reconhecimento da filiação:
I – se ao tempo da concepção a mãe estava concubinada com o pretendido pai;
II – se a concepção do filho reclamante coincidiu com o rapto da mãe pelo suposto pai, ou suas relações sexuais com ela;
III – se existir escrito daquele a quem se atribui a paternidade, reconhecendo-a expressamente”.
Diante da impossibilidade de provar a paternidade por meio do exame de DNA, era preciso fazer a análise de alguns requisitos, dentre eles, e o mais importante para este estudo, a relação de concubinato.
Não havia naquela época conceitos claros de união estável e concubinato. A prova do concubinato era necessária como requisito para a investigação de paternidade. A intenção de provar o concubinato nos processos que deram origem à súmula, era para cumprir o requisito do artigo nº 363 do Código Civil de 1916 e, assim, reconhecer a paternidade.
Os casos citados para fundamentar a súmula nº 382 do STF são inusitados e não refletem mais os comportamentos e compreensões atuais. A discussão nos processos que deram origem à súmula era para comprovar se a relação do concubinato se dava apenas com a convivência do casal sob o mesmo teto.
Com a leitura das decisões dos processos disponibilizados no STF, conclui-se que poderia haver concubinato entre casais solteiros, com mulher casada e homem solteiro, homem casado e mulher solteira, ou, por fim, ambos casados com terceiros.
Observa-se a divergência doutrinária da época ao ler o corpo do acórdão do processo disponibilizado no site do STF, ano 1932, o qual trata do conceito de concubinato entre solteiros, da necessidade ou não de convivência sob o mesmo teto e a condição more uxorio:
“A autora, porém, não funda a sua acção na posse do estado, mas no facto de haver sido concebida e nascida durante o concubinato de seus paes Manoel Alves do valle Quaresma Junior e Catharina Carolina Amelia Lambert, e sendo ambos solteiros, por occasião de sua concepção, não incidindo no art. 183, ns 1 a 6, do Código Civil. (…)
É verdade que alguns civilistas, dando ao concubinato uma significação profundamente restricta, sustentam que só há concubinato quando duas pessoas de sxo differente vivem e habitam juntas ou sob o mesmo tecto materialmente, sem que a sua união haja sido legalisada com as formalidades do casamento, vivendo maritamente, ou more uxorio, apparecento ao publico com as signaes exteriores do casamento.
Esta, porém, não é a signiicação que se deve dar á expressão “concubinato”, nem o Código Civil a suffraga, tanto que é o próprio Codigo que, no art. 1.1173, proibe o homem casado de fazer doação á concubina.
Donde se conclue que o homem casado pode ter concubina, se estabelecer o lar conjugal; e, portanto, concubinarios não são só os que vivem more uxorio. E até muito commum ver-se amantes solterios em concubinato, tendo domicílios differentes.” (Publicação: DJ de 6/9/1932)
Ainda neste sentido, de grande valia é a leitura do outro processo de referência para a súmula nº 382 do STF, do acórdão proferido no ano de 1962. Naquele processo, conclui-se que é possível haver concubinato sem a necessidade de existência de vida em comum, bastando apenas relações íntimas e frequentes, a saber:
“Em torno de conceituação do concubinato, não existe um tratado de paz entre quantos hão versado o assunto, já no campo da doutrina, como no do direito aplicado.
Para uns, êle se caracteriza em decorrência da vida comum sob o mesmo teto, num verdadeiro estado de casados, é dizer, more uxorio; enquanto, para outros, basta que haja relações carnais seguidas e constantes.(…)
A jurisprudência dos pretórios pátrios, inclusive o S. Trib. Fed. (Ver. De Direito, vol. 109, pág. 166), porém, há dado uma significação mais ampla ao concubinato, adotando, por bem dizer, o entendimento de que, para sua existência, não é necessária vida em comum, sob as mesmas telhas, como marido e mulher, senão se reclamam, apenas, as relações íntimas e frenquentes.” (Publicação: DJ de 19/7/1962)
A preocupação das decisões dos processos acima citados não é apurar a intenção more uxorio ou convivência pública do casal, delimita-se apenas em apurar se houve relações sexuais contínuas e, assim, reconhecer a paternidade.
Conceitos de concubinato são confundidos com as considerações atuais sobre a união estável. Não há nenhuma alusão às características hoje conhecidas de união estável ou a possibilidade de existência de união estável nos acórdãos acimas proferidos.
O atual posicionamento doutrinário e a previsão legal trata com clareza a distinção entre união estável e concubinato. A primeira tem previsão legal constitucional e no Código Civil (CF art. 226, §3º e CCB/02, artigo 1.723 a 1.727). A segunda, tem previsão legal no CCB/02, no artigo nº 1727. Em suma, todas as relações com impedimentos legais são tratadas como concubinato.
Na atualidade, as distinções práticas entre os institutos são visíveis na partilha de bens e eventuais sucessões, além de outras peculiaridades, as quais não serão apresentadas de forma pormenorizada, pois o objetivo neste momento é apurar a necessidade ou não de convivência sob o mesmo teto para configurar a união estável. (STJ, REsp 968572, REsp 650826)
A linha de pensamento ao demonstrar que a súmula nº 382 do STF não condiz com a realidade e não deve ser fundamento para decisões judiciais, não implica concordar que é necessária a comprovação da convivência sob o mesmo teto para provar a união estável.
Os requisitos necessários para comprovar a união estável, como já mencionados, são: convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher estabelecida com o objetivo de constituição de família, e esses requisitos são traduzidos como intenção more uxorio. O intuito de conviver de forma more uxorio, com o objetivo de constutição de família é fundamental para caracterizar a união estável e fazer distinção entre um namoro.
Percebe-se que o texto legal, tanto as leis citadas e a constituição, não trazem a necessidade de convivência sob o mesmo teto para caracterizar a união estável. Pode o casal viver com as características more uxorio, de forma pública e duradoura, sem residirem na mesma casa.
O conceito de família sofreu grandes alterações com o passar do tempo e isto foi incorporado no sistema jurídico brasileiro, fato é que de forma quase unânime, as decisões dos tribunais superiores têm acatado a possibilidade de configurar união estável em casais que não conviviam sob o mesmo teto.
Não há mais um conceito pronto de família, fácil de ser descrito e unânime por todos. Há diversas formas de convivência, de relacionamentos, e o direito, de forma sensível e por meio de seus operadores, deve compreender essa nova sistemática.
O próprio texto constitucional, em seu artigo nº 226, §3º, determina que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento. Deve apurar o operador do direito a real existência de intenção de relacionamento de forma duradoura, pública, com o objetivo de constituir família, e ter a sensibilidade e compreensão dos novos conceitos de núcleo familiar.
Diante da intenção more uxorio e dos requisitos acima presentes, que não devem ser encarados de forma taxativa, é possível após a análise do caso paticular, sem convivência do casal sob o mesmo teto, ser configurada a união estável.
2 CONCLUSÃO
Os institutos da união estável e concubinato têm previsão legal e são termos distintos. Na união estável é possível a conversão em casamento, enquanto no concubinato há impedimentos legais para sua conversão.
Apesar de vigente a súmula nº 382 do STF, aparenta esta um descompaso com a realidade, inclusive com aspectos que inclinam para sua revogação. No ano de aprovação desta súmula, 1964, os conceitos de concubinato eram diversos dos atuais e a possibilidade de união estável ainda não existia.
A súmula nº 382 do STF não apresenta conexão com a atualidade, porém várias decisões judicias são fundamentadas com interpretações dela extraídas.
Embora a súmula não apresente coerência, a lei não determina a necessidade de convivência sob o mesmo teto para configurar a união estável. Este é o pacífico entendimento jurisprudencial dos tribuniais superiores e está alinhada aos novos padrões de comportamento da sociedade.
O conceito da família sofreu grandes alterações com o decorrer do tempo e os operadores do direito parecem acompanhar essa nova sistemática, atendento a determinação legal que não exige a convivência sob o mesmo teto e, assim, reconhecendo a união estável nestas situações.
Mestrando em Direito Negocial pela UEL. Pós-graduado em Processo Civil IDCC. Pós-graduado em Filosofia Jurídica e Política UEL/PR. Advogado. Professor na UNOPAR
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