Resumo: O presente trabalho pretende analisar as reflexões iniciais acerca da usucapião familiar, instituída no Brasil pela Lei nº 12.424/11, a qual acrescentou o artigo 1.240-A ao atual Código Civil Brasileiro, criando uma nova modalidade de usucapião, na qual o cônjuge ou companheiro adquire o direito de usucapir o bem comum do casal na hipótese em que o outro consorte abandona o lar, atendidos os demais requisitos legais. Assim sendo, ao longo desse estudo, far-se-á uma análise primária desse instituto, observando-se alguns reflexos da introdução dessa nova modalidade de usucapião na ordem jurídica vigente, levando-se em consideração determinados valores, tais como a questão relativa à justiça social, bem como o questionamento acerca da culpa.
Palavras-chave: Usucapião familiar. Implicações. Justiça social. Culpa.
Abstract: The present work intends to analyze the initial reflections concerning the family adverse possession, instituted in Brazil by the Law no. 12.424/11, which increased the article 1.240-A to the current Brazilian Civil Code, creating a new adverse possession modality, in the which the spouse or companion acquires the adverse possession right the very common of the couple in the hypothesis in that the other spouse abandons the home, assisted the other legal requirements. Like this being, to the long of that study, it will be made a primary analysis of that institute, being observed some reflexes of the introduction of that new adverse possession modality in the effective juridical order, being taken in consideration determined values, such as the relative subject to the social justice, as well as the question concerning the blame.
Keyword: Family Usucapião. Implications. Social justice. Blame.
Sumário: Introdução. 1. Conceito de usucapião. 2. Modalidades de usucapião. 3. Usucapião Social. Conclusão.
INTRODUÇÃO
O ordenamento jurídico brasileiro prevê várias modalidades de usucapião. Entre elas, a mais recente é a usucapião especial urbana familiar, a qual foi inserida no direito pátrio, no dia 16 de junho de 2011, pela Lei nº 12.424.
Essa espécie de usucapião possibilita ao ex-cônjuge ou ao ex-companheiro usucapir um bem imóvel de propriedade do casal, quando restar comprovado o abandono de lar por parte de um dos consortes, observados os demais requisitos exigidos pela lei.
Tem-se, pois, que o presente artigo, versará sobre o conceito e sobre as modalidades de usucapião existentes no Brasil, considerando, ainda, as reflexões doutrinárias iniciais acerca da inserção da usucapião familiar no ordenamento jurídico brasileiro.
1. CONCEITO DE USUCAPIÃO
A palavra usucapião advém do latim usu mais capere, ou seja, adquirir pelo uso, pela posse. Segundo Gomes (1999, p. 163), a usucapião é definida como "um modo de aquisição da propriedade, por via da qual o possuidor se torna proprietário". É também chamada de prescrição aquisitiva, pois extingue o direito do proprietário na medida em que o direito é adquirido pelo possuidor. Dessa forma, a posse prolongada durante um certo lapso de tempo e o atendimento dos demais requisitos legais dão ao possuidor a condição de proprietário.
De acordo com Gonçalves (2009, p. 237), “o fundamento da usucapião está assentado, no princípio da utilidade social, na conveniência de se dar segurança e estabilidade à propriedade, bem como de se consolidar as aquisições e facilitar a prova do domínio”.
2. MODALIDADES DE USUCAPIÃO
O ordenamento jurídico pátrio disciplina a usucapião de bens móveis e de bens imóveis. De acordo com Gomes (apud Diniz, 2009, p. 311), “seus conceitos são idênticos, exceto no que se refere aos prazos que, em relação às coisas móveis, são mais curtos, ante a dificuldade de sua individualização e facilidade de sua circulação”.
Para todas as espécies de usucapião há os requisitos genéricos, os quais são os seguintes: bem usucapível (móvel ou imóvel), posse mansa, pacífica e ininterrupta, animus domini e decurso do tempo.
Com relação aos bens móveis, a usucapião existe na modalidade ordinária, a qual está disciplinada no artigo 1.260 da Lei Civil, o qual estabelece que “aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade”.
Por outro lado, existem várias espécies de usucapião de bens imóveis, quais sejam: extraordinária, ordinária, especial urbana, especial rural, indígena, urbana coletiva, urbana individual e, recentemente, a usucapião social, a qual será objeto de análise no presente artigo.
A usucapião extraordinária encontra previsão no artigo 1.238 do Código Civil de 2002. Assim sendo, dispõe o aludido dispositivo legal que “aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé”, podendo esse prazo ser reduzido para dez anos, conforme previsão do parágrafo único do mesmo artigo, “se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo”.
Por sua vez, a usucapião ordinária esta prevista no artigo 1.242 do CC/02. Dessa forma, adquire “a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos”. Todavia esse prazo poderá ser reduzido para cinco anos, “se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico”, de acordo com o que estabelece o parágrafo único do mesmo dispositivo.
A usucapião na modalidade especial urbana, também conhecida como usucapião pro labore, está contemplada no artigo 1.240 do atual Código Civil e no artigo 183 da Carta Magna de 1988. Assim, “aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.
Por sua vez, a usucapião especial rural, também chamada de usucapião pro misero, está disciplinada no artigo 1.239 do Código Civil de 2002 e no artigo 191 da atual Constituição Federal. Nessa forma de usucapir, “aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”.
Existe, ainda, a usucapião indígena, prevista no Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73), cujo artigo 33 estabelece que “o índio integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trechos de terras inferior a cinqüenta hectares, adquirir-lhe-á propriedade plena”.
Disciplinada no artigo 10 do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), a usucapião urbana coletiva destina-se a população de baixa renda. Dessa forma, prevê a lei que “as áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural”.
O artigo 9º do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) disciplina a usucapião urbana individual, estabelecendo que “aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.
Por fim, a Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011, instituiu a usucapião familiar no ordenamento jurídico brasileiro, acrescentando o artigo 1.240-A ao Código Civil de 2002. Nessa modalidade de usucapião, “aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.
3. USUCAPIÃO SOCIAL
A usucapião familiar é aquela em que o cônjuge ou companheiro adquire o direito de usucapir o bem comum do casal quando o outro consorte abandona o lar, atendidos os demais requisitos legais, previstos no caput do artigo 1.240-A, quais sejam: posse direta, exclusiva, sem oposição, ininterrupta pelo período de dois anos, imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), bem utilizado para moradia ou de sua família. Além disso, a pessoa que pretende usucapir não pode ser proprietária de outro imóvel urbano ou rural. Nota-se que o legislador, ao elaborar a norma, não exigiu demonstração de boa-fé ou posse justa. O supracitado dispositivo, em seu parágrafo primeiro, estabelece, ainda, que “o direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez”.
Com relação à nomenclatura para esse nova modalidade de usucapião, de acordo com Simão (2011, online), é adequada a denominação usucapião familiar em razão de sua origem, qual seja, o imóvel pertence aos cônjuges ou companheiros, mas só é utilizado por um deles após o fim do casamento ou da união estável.
Acredita-se que o instituto origina-se do direito à moradia, previsto no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, visando garantir o aludido direito à população de baixa renda viabilizando, assim, a concretização da justiça social. Nesse sentido, importante mencionar a observação de Amorim (2011, online): “a Lei 12.424/11 tem precípua instrução de justiça social, já que teve por finalidade maior o regramento do Programa Minha Casa Minha Vida, direcionado ao direito social de moradia em sua vertente prestacional (art.6º, CF) e não a singela inclusão do art.1.240-A ao CC”. Além disso, observa Simão (2011, online) que “apenas o imóvel urbano pode ser objeto da usucapião familiar. É a moradia e não o trabalho que se privilegia.”
Uma das críticas que se faz a essa nova modalidade de usucapião é que, embora a lei possa criar novas modalidades de usucapião, essa espécie não parece se coaduna, numa perspectiva sistemática, com o ordenamento jurídico nacional, uma vez que traz uma forma de punição ao cônjuge ou ao companheiro que abandona o lar, revelando a marca de um conservadorismo injustificável, o qual, por muito tempo, perdurou na sociedade brasileira. Nesse sentido, aduz Amorim (2011, online):
“O abandono de lar tradicionalmente é indicativo de culpa pela dissolução do vínculo conjugal (art.1.573, IV, CC). Após décadas de críticas duríssimas da doutrina e da sociedade organizada brasileira (principalmente do IBDFAM) entrou em vigor a EC 66/10 com a explícita finalidade de encerrar a questão da culpa dos litígios familiares”.
Assim sendo, mostra-se incoerente tal previsão normativa, tendo em vista que está na contramão da evolução do Direito de Família brasileiro, não se contextualizando com os princípios que o regem, uma vez que a apuração da culpa deve ser evitada para a fixação de quaisquer efeitos jurídicos. Seguindo essa esteira de raciocínio, aduzem Stolze e Gagliano (2010, p. 90) que “a tendência observada no moderno Direito de Família tem sido, tanto quanto possível, o banimento da exigência da culpa para o fim de se extraírem determinados efeitos jurídicos pessoais ou patrimoniais”. No mesmo sentido, leciona Barros (2009, p. 111):
“Essa tendência do direito de família está em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), evitando uma devida intromissão estatal na vida privada das partes litigantes e o desgaste sentimental”.
Dessa forma, o fato de um cônjuge demonstrar que não há mais interesse em continuar vivendo com o outro, não deve ser usado para penalizá-lo na sua esfera patrimonial, uma vez que o seu direito de propriedade não pode ser afetado quando deixa de existir o objetivo de vida em comum entre o casal.
Assim, observa-se que a disposição instituiu uma forma de punir o consorte que saiu do imóvel adquirido pelo casal, estabelecendo que o abandono de lar pode resultar numa posterior punição para aquele que não mais aceita manter a união, influindo, assim, no seu direito de propriedade, independente do regime adotado no casamento e das regras de partilha de bens. Nesse sentido, observa Ehrhardt (2011, online):
“Considerando que não corre a prescrição na constância da sociedade conjugal (art. 197, inciso I), com a separação de fato (=abandono) iniciaria o prazo bienal para aquisição da propriedade pelo cônjuge que permanecesse no imóvel, afastando as regras da partilha de bens previstas no direito das famílias se os demais requisitos do dispositivo se configurassem”.
Registre-se, por fim, que a norma deve ser vista com certa cautela, uma vez que traz embutida em seu bojo o questionamento da culpa nas relações familiares, o que leva a um retrocesso legislativo e social.
CONCLUSÃO
Observou-se que a usucapião familiar tem sua importância e merece atenção por parte dos estudiosos. Todavia, vale ressaltar que, da forma pela qual foi instituída, ela vai de encontro ao moderno Direito de Família, uma vez que tenta ressuscitar a discussão acerca da culpa pela dissolução do vínculo afetivo, indo na contramão da evolução social.
Assim sendo, reviver o tormento da culpa para a indicação de reflexos patrimoniais acaba desvirtuando o próprio objetivo do legislador, o qual pretendeu garantir o direito de moradia, assegurado constitucionalmente, e a justiça social às famílias de baixa renda.
Dessa forma, parece anacrônico a imputação de qualquer fator subjetivo para a atribuição do direito de propriedade ao consorte que permaneceu na residência do casal, uma vez que esse raciocínio levaria o Direito de Família brasileiro a um verdadeiro retrocesso legislativo e social.
Referências
AMORIM, Ricardo Henriques Pereira. Primeiras impressões sobre a usucapião especial urbana familiar e suas implicações no Direito de Família. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2948, 28 jul. 2011. Disponível em:<http://jus.uol.com.br/revista/texto/19659>. Acesso em: 29 jul. 2011.
BARROS, André Borges de Carvalho. A mitigação da culpa na separação judicial e suas conseqüências. Direito de família e de sucessões. Coord.: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Flávio Tartuce e José Fernando Simão. São Paulo: Método, 2009.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2009. V.4.
EHRHARDT, Marcos. Ainda sobre o art. 1.240-A, na busca de uma interpretação mais adequada: usucapião familiar? Disponível em: < http://www.marcosehrhardt.adv.br/index.php/blog/2011/06/24/ainda-sobre-o-art-1240a-na-busca-de-uma-interpretacao-mais-adequada-usucapiao-familiar> Acesso em: 29 jul. 2011.
GOMES, Orlando. Direitos reais. 15.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Direito de família. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, V.6.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O novo divórcio. São Paulo: Saraiva, 2010.
SIMÃO, José Fernando. Usucapião familiar: problema ou solução? Disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br/index2.php?sec=artigosc&id=242> Acesso em: 28 jul. 2011
advogada, graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor
mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – Unifor, Professora do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza
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