Até o final do ano passado, a legislação brasileira não continha qualquer previsão semelhante às regras conhecidas internacionalmente como thin capitalization rules[1], que estabelecem limites para a dedutibilidade dos juros pagos a pessoas vinculadas, quando o passivo supera uma determinada proporção em relação ao capital da devedora. Não havia, portanto, limites à capitalização de empresas brasileiras por meio de empréstimos dos sócios, quotistas ou acionistas[2]. Porém, as thin capitalization rules já existem em vários países da Europa, nos Estados Unidos e até mesmo na América Latina[3].
Ressalte-se que, apesar da inexistência de qualquer fundamento legal para justificar sua posição, a Receita Federal já vinha questionando, há algum tempo, as operações de mútuo contratadas entre empresas ligadas (intercompany loans), especialmente no que diz respeito à dedutibilidade dos juros na apuração do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL.
As autuações eram feitas sob a alegação de que tais juros não podem ser considerados despesas necessárias às atividades da empresa e, conseqüentemente, não são dedutíveis para fins de IRPJ e CSLL, principalmente nas hipóteses em que os empréstimos eram posteriormente convertidos em capital ou cujo prazo de vencimento era longo.
Recentemente a Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) proferiu decisão considerando que as despesas de juros e variações cambiais decorrentes de um empréstimo contraído por uma empresa brasileira junto ao sócio controlador seriam indedutíveis da base de cálculo do IRJP e da CSLL, relativamente aos anos-calendários de 1996 a 1998. Todavia, esse caso é bastante atípico, em função de suas próprias peculiaridades, pois o credor (mutuante) detinha 99,99% das quotas representativas do capital social da devedora (mutuaria) e dispunha de recursos para integralizar o capital. A devedora, por sua vez, serviu como um dos veículos para aquisição de outra empresa nacional em 1994, e possuía um capital simbólico de apenas R$ 100,00. Os recursos do empréstimo teriam sido repassados a outra empresa do mesmo grupo econômico, sediada no Uruguai, que então procedeu à aquisição do controle da empresa concorrente.
A partir de agora, a situação mudou completamente em decorrência da Medida Provisória nº 472, de 15 de dezembro de 2009 (MP 472/2009), que introduziu inúmeras modificações em matéria tributária[4], e incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro regras de thin capitalization, nos termos que serão descritas a seguir.
As novas regras passaram a ter aplicação imediata, a partir de 1º de janeiro de 2010 em relação ao IRPJ, mas no caso da CSLL somente deverão valer 90 dias após a data da publicação da MP 472/2009[5].
Antes de abordarmos as regras de thin capitalization propriamente ditas, convém conceituar o que se entende por “pessoa vinculada” para fins tributários[6]. Para isso é preciso primeiro definir o que significa “coligada”, “controladora” e “acionista controlador” na legislação societária[7].
Coligada é a sociedade na qual a investidora tenha influência significativa. Ocorre influência significativa quando a investidora detêm ou exerce o poder de participar nas decisões das políticas financeira ou operacional da investida, sem controlá-la. Presume-se influência significativa quando a investidora for titular de 20% ou mais do capital votante da investida, sem controlá-la.
Controlada, por sua vez, é a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores.
Entende-se por acionista controlador a pessoa física ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: (a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, permanentemente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e (b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.
Considera-se vinculada à pessoa jurídica domiciliada no Brasil:
(i) a matriz desta, quando domiciliada no exterior;
(ii) a sua filial ou sucursal, domiciliada no exterior;
(iii) a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, cuja participação societária no seu capital social a caracterize como sua controladora ou coligada;
(iv) a pessoa jurídica domiciliada no exterior que seja caracterizada como sua controladora ou coligada;
(v) a pessoa jurídica domiciliada no exterior, quando esta e a empresa domiciliada no Brasil estiverem sob controle societário ou administrativo comum ou quando pelo menos 10% do capital social de cada uma pertencer a uma mesma pessoa física ou jurídica;
(vi) a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que, em conjunto com a pessoa jurídica domiciliada no Brasil, tiver participação societária no capital social de uma terceira pessoa jurídica, cujas participações somadas as caracterizem como controladoras ou coligadas desta;
(vii) a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que seja sua associada, na forma de consórcio ou condomínio, conforme definido na legislação brasileira[8], em qualquer empreendimento;
(viii) a pessoa física residente no exterior que for parente ou afim até o terceiro grau, cônjuge ou companheiro de qualquer de seus diretores ou de seu sócio ou acionista controlador em participação direta ou indireta;
(ix) a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que goze de exclusividade, como seu agente, distribuidor ou concessionário, para a compra e venda de bens, serviços ou direitos;
(x) a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, em relação à qual a pessoa jurídica domiciliada no Brasil goze de exclusividade, como agente, distribuidora ou concessionária, para a compra e venda de bens, serviços ou direitos.
Em seguida, é indispensável definir os conceitos de país ou dependência “com tributação favorecida” ou “sob regime fiscal privilegiado”[9].
País ou dependência com tributação favorecida é:
I. aquele que não tribute a renda ou que a tribute à alíquota máxima inferior a 20%, considerando-se a legislação tributária do referido país ou dependência aplicável à pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no exterior, conforme a natureza do ente com o qual houver sido praticada a operação; e também
II. aquele cuja legislação não permita o acesso a informações relativas à composição societária de pessoas jurídicas, à sua titularidade ou à identificação do beneficiário efetivo de rendimentos atribuídos a não-residentes.
Regime fiscal privilegiado é aquele que apresentar uma ou mais das seguintes características:
(a) não tribute a renda ou a tribute à alíquota máxima inferior a 20%;
(b) conceda vantagem de natureza fiscal a pessoa física ou jurídica não-residente sem exigência de realização de atividade econômica no país ou dependência ou condicionada ao não exercício de atividade econômica substantiva no país ou dependência;
(c) não tribute, ou o faça em alíquota máxima inferior a 20%, os rendimentos auferidos fora de seu território;
(d) não permita o acesso a informações relativas à composição societária, titularidade de bens ou direitos ou às operações econômicas realizadas.
A título de simplificação, esclarecemos ainda que a expressão “não-residente” utilizada no contexto do presente artigo significa qualquer pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no exterior.
Também cumpre mencionar que a legislação fiscal já determinava limites para a dedutibilidade de juros, diferenciando os contratos de mútuo registrados no Banco Central do Brasil (Bacen) daqueles não registrados[10].
Os juros pagos ou creditados a pessoa vinculada, quando decorrentes de contrato não registrado no Bacen, somente serão dedutíveis para fins de determinação do lucro real até o montante que não exceda o valor calculado com base na taxa London Interbank Offered Rate (Libor), para depósitos em dólares dos Estados Unidos da América pelo prazo de seis meses, acrescida de uma margem (spread) de 3% ao ano, na proporção do período a que se referirem os juros.
Para contratos registrados no Bacen, serão permitidos juros determinados com base na taxa que na ocasião vier a ser acordada entre as partes e admitida para fins de registro (taxa registrada). No caso de mútuo com pessoa vinculada, a pessoa jurídica mutuante domiciliada no Brasil deverá reconhecer, como receita financeira correspondente à operação, no mínimo o valor apurado segundo o critério ora especificado.
Para efeito do limite de dedutibilidade, os juros serão calculados com base no valor da obrigação ou do direito, expresso na moeda objeto do contrato de mútuo e convertida em Reais pela taxa de câmbio divulgada pelo Bacen para a data do termo final do cálculo dos juros. O valor dos encargos que exceder esse limite e a diferença de receita apurada na forma acima mencionada serão adicionados à base de cálculo do IRPJ[11].
As regras de thin capitalization que agora foram introduzidas em nosso ordenamento jurídico estão reproduzidas nos artigos 24 e 25 da MP 472/2009.
O artigo 24 da MP 472/2009 aplica-se exclusivamente à pessoa vinculada não-residente desde que essa pessoa não tenha sido constituída em país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado (ou seja, que adote tributação normal, com uma alíquota igual ou superior a 20% e que admita o acesso às informações relativas à composição societária da pessoa jurídica, à sua titularidade e à identificação do efetivo beneficiário dos rendimentos atribuídos ao não-residente).
Ocorrida essa hipótese, os juros pagos ou creditados por empresa brasileira[12] à pessoa vinculada não-residente somente serão dedutíveis, para fins de determinação do lucro real (IRPJ) e da base de cálculo do CSLL, quando se verifique constituírem despesa necessária à atividade da empresa[13], no respectivo período de apuração, atendendo cumulativamente determinados limites. Nesse sentido, a nova legislação estabeleceu um índice de endividamento em relação ao capital de 2:1, pois são exigidos dois requisitos cumulativos, a saber:
(i) o valor do endividamento, verificado na data da apropriação dos juros, não poderá ultrapassar duas vezes o valor da participação da pessoa vinculada no patrimônio líquido da empresa brasileira (endividamento individual para cada pessoa vinculada); e
(ii) o valor total do somatório dos endividamentos, verificados na data da apropriação dos juros, também não poderá ser superior a duas vezes o valor do somatório das participações de todas as pessoas vinculadas no patrimônio líquido da empresa brasileira (endividamento global, considerando todas as pessoas vinculadas).
Para efeito do cálculo do total de endividamento acima referido, serão consideradas todas as formas e prazos de financiamento, independentemente do contrato de mútuo estar registrado ou não no Bacen. As mesmas disposições aplicam-se às operações de mútuo em que o avalista, fiador, procurador ou qualquer interveniente, for pessoa vinculada sediada em país ou dependência de tributação normal, ou se a operação envolver pessoa vinculada ou não, quando domiciliada em país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado (na hipótese do artigo 25 da MP 472/2009).
A desobediência dos limites de juros fixados na nova legislação acarretará um efeito fiscal adverso à empresa brasileira, pois o valor excedente será considerado despesa não necessária à atividade da empresa e, conseqüentemente, indedutível para fins de IRPJ e CSLL.
O artigo 25 da MP 472/2009 trata especificamente do não-residente que tenha sido constituído em país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado, seja pessoa vinculada ou não à empresa brasileira. As regras para fins de dedutibilidade são basicamente as mesmas aplicáveis ao não-residente constituído em país com tributação normal. A única diferença é que nessa hipótese o limite dos juros é mais restrito e fica reduzido a 30% do valor do patrimônio líquido da empresa brasileira, tanto o endividamento individual quanto global.
Para complementar nossa análise das inovações trazidas pela MP 472/2009, salientamos que foram ainda disciplinadas as condições de dedutibilidade para importâncias de qualquer forma disponibilizadas por uma empresa brasileira a um não-residente e a questão dos efeitos fiscais da transferência de residência ou domicílio de uma pessoa física do Brasil para o exterior, que também merecem especial atenção.
Assim, o artigo 26 da MP 472/2009 estipula que, sem prejuízo das normas do IRPJ, são indedutíveis na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL as importâncias pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas a qualquer título, direta ou indiretamente, a não-residentes constituídos no exterior e submetidos a um tratamento de país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado. Todavia, essas importâncias poderão ser dedutíveis se a empresa brasileira atender cumulativamente aos seguintes requisitos:
(i) identificar o efetivo beneficiário da entidade no exterior, que será o destinatário dessas importâncias. Será considerado como efetivo beneficiário a pessoa física ou jurídica que auferir esses valores por sua própria conta, desde que tal pessoa não tenha sido constituída com o único ou principal objetivo de economia tributária, nem atue como agente, administrador fiduciário ou mandatário por conta de terceiro, ao invés de receber os recursos por conta própria;
(ii) comprovar a capacidade operacional do não-residente de realizar a operação; e
(iii) apresentar documentação que comprove o pagamento do preço respectivo e o recebimento dos bens, direitos ou a utilização de serviço.
Outro aspecto a ser ressaltado é que o artigo 28 da MP 472/2009 esclarece que a pessoa física residente ou domiciliada no Brasil que transferir a sua residência para país ou dependência com tributação favorecida ou regime fiscal privilegiado, será considerada também residente no Brasil para fins fiscais. O contribuinte somente perderá a condição de residente no Brasil a partir da data em que comprovar ser residente de fato, ou demonstrar que, em virtude da legislação do Estado estrangeiro, está sujeito ao imposto sobre a renda, considerando-se a tributação da totalidade dos rendimentos provenientes do trabalho e do capital e apresentando os documentos relativos ao efetivo pagamento do imposto sobre os rendimentos.
São residentes de fato em país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado as pessoas físicas que:
(a) tenham nele permanecido efetivamente mais de 183 dias, seguidos ou alternados[14], dentro de um período de até 12 meses; ou
(b) comprovem a residência habitual de sua família e presença física da maior parte de seu patrimônio no território desse país ou dependência.
Concluímos, portanto, que, com o advento da MP 472/2009:
1º O Brasil passou a ter regras de thin capitalization bastante claras, que deverão ser observadas pelos investidores estrangeiros quando decidirem contratar operações de mútuo com suas sociedades coligadas ou controladas domiciliadas no Brasil.
2º Também é preciso atentar ao cumprimento das condições que devem ser atendidas quando as empresas brasileiras vinculadas fizerem pagamentos de qualquer espécie a pessoas não-residentes, vinculadas ou não, constituídas em países ou dependências com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado.
3º Para renunciar à sua condição de contribuinte aqui no Brasil, os empresários brasileiros que decidirem transferir sua residência para o exterior, quando se tratar de pais ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado, precisarão comprovar que a mudança já ocorreu há pelo menos 183 dias (seguidos ou alternados) por um prazo de até 12 meses, ou que suas famílias lá residem e que a maior parte de seu patrimônio está fisicamente localizada no território desse país ou residência.
sócio fundador de Walter Stuber Consultoria Jurídica, atuando como advogado especializado em direito empresarial, societário, financeiro e mercado de capitais e autor de inúmeros artigos publicados nessa área em revistas jurídicas nacionais e internacionais.
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