Categories: CrônicasRevista 2

A crise no inquérito policial e a investigação controlada pelo Ministério Público

Com muito atraso, começa discutir-se no
âmbito dos Estados, a regulamentação do controle externo da atividade policial,
previsto pelo art. 129, VII da Constituição Federal. É um primeiro passo para
debater um grave problema do processo penal brasileiro: a crise do inquérito
policial e a necessidade do controle externo da atividade policial por parte do
MP. O problema é antigo e a necessidade de uma modificação há muito vem sendo
apontada pelos juristas. A investigação/instrução preliminar (no Brasil – inquérito
policial) é fundamental para o processo penal, pois não se deve julgar de
imediato. Primeiramente, deve-se preparar, investigar
e reunir elementos que justifiquem o processo ou o não-processo.

O Brasil é um dos poucos países que
ainda mantem o sistema de investigação preliminar
policial, sem o controle pelo MP. Este modelo está completamente falido. É
unânime o rechaço. Os juízes apontam para a demora e a pouca confiabilidade do
material produzido pela polícia, não servindo como elemento de prova na fase
processual. Os promotores reclamam da falta de coordenação entre a investigação
e as necessidades de quem, em juízo, vai acusar. O inquérito demora
excessivamente e nos casos mais complexos, é incompleto, necessitando novas
diligências, com evidente prejuízo à celeridade e à eficácia da persecução. Por
outro lado, os advogados insurgem-se, com muita propriedade, da forma
inquisitiva como a polícia comanda as investigações, negando um mínimo de
contraditório e direito de defesa, ainda que assegurados no art.5º, LV da
Constituição, mas desconhecidos em muitas delegacias brasileiras. No meio
policial, ainda domina o equivocado entendimento de que a Constituição é que
deve ser interpretada restritivamente, para adaptar-se ao modelo previsto no
CPP (de 1941), e não ao contrário, com o CPP adaptando-se a nova ordem
constitucional.

Afastado o sistema de investigação
policial, restam outros dois modelos: juiz instrutor e promotor investigador. O primeiro, ainda em vigor na Espanha e França, está sendo
gradativamente abandonado por ser um modelo superado e relacionado com a
histórica figura do juiz inquisidor. Concluiu-se, ao longo dos anos, que
é um grave inconveniente que uma mesma pessoa decida sobre a necessidade de um
ato de investigação e ainda valore a sua legalidade. Como diz a “Exposição de
Motivos” do Código-Modelo de Processo Penal para Iberoamérica,
o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o
inquisidor.

Chegamos assim ao modelo de instrução
preliminar mais aceito na atualidade: promotor investigador. A
investigação a cargo do MP vêm sendo adotada por países europeus com
êxito. A reforma alemã de 1974 suprimiu a figura do juiz instrutor para dar
lugar ao promotor investigador, sendo seguida por Itália (1988) e Portugal
(1987/1995). Espanha e França estão realizando mudanças gradativas no mesmo
sentido. Em todos eles, está claramente definida uma subordinação funcional da
polícia em relação ao MP.

Neste sistema, o promotor é o diretor
da investigação, podendo praticar por si mesmo as diligências, bem como
determinar que as realize a polícia, segundo os critérios que ele estabeleça.
Assim, formará sua convicção e decidirá entre formular a acusação ou solicitar
ao arquivamento. Continua dependendo (em maior ou menor grau, conforme o
país)  de autorização judicial (juiz de garantias) para realizar
determinadas medidas limitativas de direitos fundamentais, como as cautelares,
intervenção telefônica, etc.

As vantagens da atuação do MP são
patentes. A própria natureza da instrução preliminar, como atividade
preparatória ao exercício da ação penal deve estar, necessariamente, a cargo do
titular da ação penal. Por isso, deve ser uma atividade administrativa dirigida
por e para o Ministério Público, sendo ilógico que o juiz (ou a polícia em
descompasso com o MP) investigue para o promotor acusar. Em resumo, melhor
acusa quem, por si mesmo, investiga ou, ao menos, comanda a investigação.

No Brasil, o Ministério Público pode
participar do inquérito policial conduzido pela polícia judiciária, como um
assistente contingente, acompanhando a atividade. Ademais, poderá requerer a
instauração, acompanhar e requisitar diligências no curso de um inquérito
policial. Mas isso é pouco. É preciso definir claramente que o Ministério
Público exercerá o controle externo da atividade policial, dando instruções
gerais
e específicas para melhor condução do inquérito. Isso não
significa que o promotor deva ficar 24h por dia na delegacia. Caberá ao MP
definir instrumentos para um controle periódico das notícias-crimes recebidas,
estabelecendo os delitos – que por sua gravidade ou complexidade –  devam
ser imediatamente levados ao seu conhecimento, para que ab
initio
controle toda a investigação. Nestes
delitos graves, a presença do promotor será imprescindível e constante será a
intervenção e o estrito controle da atividade policial. Nos demais casos, o
promotor poderá definir uma espécie de procedimento padrão, estabelecendo que
diligências devem ser realizadas e de que forma, assim
como aquelas que não poderão ser realizadas sem a sua presença.

Desde um ponto de vista técnico,
deixando de lado interesses políticos e corporativistas, o controle externo da
atividade policial e do próprio inquérito, por parte do Ministério Público,
representa uma grande evolução no combate eficaz da criminalidade e também, na
proteção dos direitos e garantias individuais. A polícia judiciária deve ser um
imprescindível órgão técnico, a serviço da administração da justiça e não o
titular absoluto do poder de investigar. Afinal, se é uma “polícia judiciária”
é porque está a serviço deste poder.

No que se refere a
situação jurídica do sujeito passivo da investigação, entendemos que será
beneficiada, pois devemos esperar e exigir que o MP respeite as garantias
mínimas do suspeito, previstas na Constituição. Em última análise, como órgão
imparcial, o MP está comprometido com o dever público de combater a
criminalidade, mas também está obrigado a observar um outro dever igualmente
importante: o respeito aos direitos e garantias inviduais,
tarefa esta muitas vezes “esquecida” pela polícia judiciária. A função de
“filtro processual” do inquérito policial também será beneficiada, diminuindo
elevadas “cifras da injustiça”, representadas pelos graves casos em que a
denúncia é oferecida sem base suficiente. Nestes casos, ainda que no final o
inocente seja absolvido, fica no rastro do processo uma vida estigmatizada e
humilhada. A difamacio judicialis
e a estigmatização social prévia ao processo penal
tendem a diminuir com o comando pelo MP e a restrição da publicidade abusiva
que a polícia costuma dar aos atos de investigação.

Muito do que se fala contra o controle
externo da atividade policial está contaminado pelo verbo autoritário e interesses puramente corporativistas, revelando um medo por qualquer
forma de controle democrático em relação a um órgão que, mais que nenhum outro,
deve ser estritamente controlado.

Por fim, cumpre destacar, uma vez
definido o controle externo, muitos outros problemas do inquérito continuarão
intactos. Esperamos que a discussão continue aberta, para que se produzam
futuras e profundas modificações na própria estrutura do inquérito, visando
solucionar problemas como a duração da investigação e a necessidade de definir
uma pena de inutilizzabilità; valor probatório
e a produção antecipada de provas; forma dos atos (publicidade, segredo, etc.);
conteúdo e forma da intervenção do sujeito passivo; direitos e cargas que
assume com o indiciamento; momento e forma que deve revestir o indiciamento;
função e intervenção do juiz de garantias, etc.

Um primeiro passo está sendo dado e vai
ao encontro de um principio supremo da justiça: minimização do poder e
maximização do saber judicial. Esperamos que não seja o último.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Aury Lopes Jr

 

Doutor em Direito Processual Penal
Prof. Programa de Pós-Graduação em
Ciências Criminais da PUCRS
Pesquisador do CNPq

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

Recent Posts

Prejuízos causados por terceiros em acidentes de trânsito

Acidentes de trânsito podem resultar em diversos tipos de prejuízos, desde danos materiais até traumas…

4 dias ago

Regularize seu veículo: bloqueios de óbitos e suas implicações jurídicas

Bloqueios de óbitos em veículos são uma medida administrativa aplicada quando o proprietário de um…

4 dias ago

Os processos envolvidos em acidentes de trânsito: uma análise jurídica completa

Acidentes de trânsito são situações que podem gerar consequências graves para os envolvidos, tanto no…

4 dias ago

Regularize seu veículo: tudo sobre o RENAJUD

O Registro Nacional de Veículos Automotores Judicial (RENAJUD) é um sistema eletrônico que conecta o…

4 dias ago

Regularize seu veículo: como realizar baixas de restrições administrativas

Manter o veículo em conformidade com as exigências legais é essencial para garantir a sua…

4 dias ago

Bloqueios veiculares

Os bloqueios veiculares são medidas administrativas ou judiciais aplicadas a veículos para restringir ou impedir…

4 dias ago