Resumo: Esta pesquisa trata da crítica da permanência do elemento culpa na dissolução da sociedade conjugal. Da necessidade de se quebrar paradigmas e vencer pensamentos arcaicos para que as relações familiares sejam vistas pela sociedade e pelo Estado sob uma nova ótica, a do afeto. Inverter a lógica posta no Código Civil brasileiro em se tratando de separações judiciais ou de divórcios: do desafeto (culpa) para o afeto. Nossa Lei Maior ampliou o conceito de família, abrangendo a diversidade dos relacionamentos humanos perfilada pelos princípios da liberdade, da intimidade, do afeto e da dignidade humana. Terminando com as guerras judiciais entre os casais que não se amam mais, estaremos valorando a dignidade suprimida pelos longos processos judiciais de dissolução da sociedade conjugal, por uma ética embasada na alteridade e no amor, contrária àquela antes constituída. Sabe-se da complexidade do cotidiano familiar. Imputar culpa a um ou outro cônjuge pelo fim do relacionamento conjugal, não traz benefício ou praticidade alguma para a família, para a sociedade e até mesmo para o Estado.
Palavras-chave: Culpa. Dissolução. Família.
Riassunto: Questa ricerca tratta della critica della permanenza dell’elemento colpa nella dissoluzione della società coniugale. Della necessità di rompersi i paradigma e pensieri arcaici per fare in modo che relazioni famigliari siano viste dalla società e dallo Stato sotto una nuova ottica, quella dell’affetto. Invertire la logica imposta dal Codice Civile brasiliano quando si tratta di separazioni giudiziali o divorzi: dal colpevole (colpa) al non colpevole. La nostra Carta Magna ha ampliato il concetto di famiglia, includendo la diversità delle relazioni umane modellata sui principi della libertà, dell’intimità, dell’affetto e della dignità umana. Terminando con le guerre giudiziale tra le coppie che non si amano più, valorizzeremo la dignità soppressa dai lungi processi giudiziali di dissoluzioni della società coniugale, per un’etica basata sull’alterità e sull’amore, contraria a quella precedentemente costituita. Si è a conoscenza della complessità della quotidianità famigliare, imputare la colpa a uno o all’altro coniuge della fine della relazione coniugale, non porta benefici o alcuna praticità alla famiglia, alla società e neanche allo Stato.
Parole chiave: Colpa. Dissoluzione. Famiglia.
Sumário: Introdução 1. A família no desenrolar da história 1.1. Diversidade familiar 1.2. Família patriarcal e a formação do conceito de culpa – uma perspectiva social sob o comando da igreja católica 1.3. Culpa e dissolução da sociedade conjugal na leitura do Código Civil de 1916 1.4. A Constituição Federal brasileira de 1988. 2. A permanência da culpa na dissolução da sociedade conjugal no novo Código Civil de 2002. 2.1. Percorrendo o caminho da culpa no Código Civil atual. 2.1.1 Do Nome 9 2.1.2 Dos Alimentos 9 2.1.2.1. Quando o de cujus é o “culpado”. 2.2. Mais empecilhos 2.2.1 prazos 2.2.2.separação judicial x divórcio. 3. Muito barulho por nada. Bibliografia
Introdução
Este trabalho objetiva analisar a (ir)relevância e a violência de se provar a culpa quando da dissolução da sociedade conjugal no âmbito familiar. Em nosso atual ordenamento jurídico, a culpa permanece como uma das principais motivações à dissolução da sociedade conjugal.
O pensamento jurídico embasado em princípios gerais e preocupado com a alteridade é indispensável para se preencher as lacunas legais e garantir direitos pessoais. Questionar até que ponto ao Estado é permitido invadir a intimidade das pessoas, por que imputar culpa ao outro quando o afeto acaba, ou por que é culpado quem busca ser feliz, faz parte de um grande processo de aprendizagem que o meio acadêmico permite de forma singular, graças à diversidade de opiniões e de pesquisa.
Após a constitucionalização da família envolta pelo afeto, pela liberdade, pela solidariedade, pela dignidade da pessoa humana não há que se falar em culpa, mas na efetividade destes princípios nas relações familiares. Mudar uma ótica imposta desde a Idade Média pela ética cristã há séculos constituída e presente até hoje no senso comum do Ocidente é um processo moroso, mas que se faz necessário e oportuno.
1 A FAMÍLIA NO DESENROLAR DA HISTÓRIA
1.1. Diversidade familiar
A Antropologia, a Filosofia e a História nos mostram a imensa diversidade na formação familiar desde os primeiros passos da humanidade. Um olhar que estranha o costume da cultura ocidental. As pessoas se relacionam não só, como é senso comum, de forma monogâmica, mas, também, de forma poligâmica (ALCIDES DA SILVA, 2004).
A Antropologia descreve e compara os conceitos locais de família e casamento nas diversas culturas, influenciada pela necessidade da divisão de tarefas, da busca de um par para cuidar dos filhos, da alimentação, da defesa territorial, de uma mínima harmonia para viver, como questão de sobrevivência.
Apesar da liberalidade efetiva dos seus cidadãos em escolher entre o casamento clássico, contemplado há séculos, e as diversas formas de se relacionar, negando o que é fático, o Estado brasileiro conserva como ordem pública o princípio da monogamia entre casais heterossexuais.
1.2. Família patriarcal e a formação do conceito de culpa – uma perspectiva social sob o comando da igreja católica
A construção histórica de família, na cultura ocidental, imposta pela Europa ao resto do mundo em condição de dominante no período das revoluções, traz um modelo de família patriarcal, no qual o homem dirigia a sua família como meio de produção, hierarquicamente, como chefe: tem a propriedade da esposa, dos filhos e dos bens. Ele proprietário, seus filhos homens seus sócios e as mulheres, esposa e filhas, suas propriedades, como eram os escravos.
O patriarcalismo determinava a diminuição da condição feminina, a “coisificação” de seres humanos (mulheres e escravos), tratando-os como mercadorias. Constrói-se um padrão dos papéis masculinos e femininos. Este padrão era visto como se fosse natural (não inventado), “certo”. Padrões culturais diversos eram “errados” (PEREIRA, 2002).
O controle da centralização da riqueza e da defesa territorial se fez através de alianças entre membros da nobreza e burguesia de nações diferentes com casamentos arranjados. Cria-se a idéia de uma mínima intervenção do Estado, o paradigma público X privado, ante aos princípios iluministas da igualdade, individualidade, liberdade e propriedade. Transfere-se o modelo de poder monárquico para o oligárquico.
Neste contexto, é bom lembrar que a igreja católica, antes dominante ao lado do soberano, no fim da Idade Média e séculos XVIII e XIX, usou a educação como forma de manutenção do seu poder, como forma de controle social. Era ela quem formava os filhos da burguesia e impunha dogmas e tabus, seja pela catequização dos índios, dos “selvagens”, ou pela ideologia aplicada nos colégios então institucionalizados. Além dos colégios, a igreja criou mais dois “pré-conceitos”: a vergonha e a infância (ARIÈS, 1981).
Através desses dogmas estabelecidos, ensinava-se o que era “errado” à criança, pois inocente, pura, era um pecador em potencial. Paulatinamente, a educação era organizada de forma a ser também padronizada, estabelecendo-se a proibição dos filhos burgueses estudarem fora da escola, como quando seus pais contratavam pretores mais velhos para ensino domiciliar. A busca do saber, do conhecimento, da razão se faz ao mesmo tempo em que os valores morais são introduzidos de forma generalizada (ÁRIES,1981).
As idéias de fidelidade, de honra, de indissolução do casamento, de pudor, de rigor na educação (castigos físicos), de vergonha, de culpa consolidaram-se nesse estágio, quando os burgueses transformaram-se em legítimos adeptos à filosofia da igreja católica (ALCIDES DA SILVA, 2005).
Ter vergonha do seu próprio corpo, da sua sexualidade foi um conceito (de)formador da ideologia da sociedade moderna, inclusive, antagônico à antiguidade. Tornaram-se, então, todos estes conceitos hereditários com o passar dos tempos.
A vergonha remete-se a questão da honra da família. Num modelo patriarcal, se a mulher ou a filha são “sem” vergonha, não atuam como o modelo social estipulado, o marido e os filhos/irmãos sentem-se atingidos. A desonra é sinal de vergonha e controle das mulheres da família, o que, para a sociedade, ficou estipulado como “proteção”.
A desonra familiar era imputada a alguém, que se infiltrava no clã por descuido de quem tinha obrigação à dita “proteção” (pais/irmãos). Fazia-se, então, imperativo lavar a honra, fazer com que a pessoa que maculou a imagem do clã, que agira com culpa, pagasse com seu próprio sangue, ou fosse julgado criminalmente pelo Estado para que fosse punido. “Idéia de punição, de vingança” (CUNHA PEREIRA, 2001, p.327).
1.3. Culpa e dissolução da sociedade conjugal na leitura do Código Civil de 1916
Seja pela bíblia, à época de Adão e Eva, seja pelos primeiros códigos, à mulher sempre era imputada a culpa por não ser (re)produtiva, ou por gerar somente outras mulheres, sem dar um varão ao “senhor seu marido”, ou por adultério, sinônimo de desonra social e religiosa (TEPEDINO, 2004).
Até matar as adúlteras era permitido ao marido traído, inclusive, para que sua honra fosse restituída. Pelas Ordenações Filipinas, além dos adúlteros, até mesmo o marido era punido. Carregavam símbolos de “cornos” e eram banidos para o Brasil e para a África (FARIAS, 2004).
Quando das Inquisições, a mulher considerada culpada por alguma má conduta estabelecida por regras legais/religiosas, era ridicularizada até seu “julgamento”, através de colares ou pingentes simbólicos apartados em suas vestes, para tornar pública sua ação/pecado. Após seu “julgamento”, poderia receber pena de cárcere, até ser queimada na fogueira, ou a forca (PEREIRA, 2002).
No Brasil, o Código civil de 1916, influenciado pelo Código napoleônico francês, condiz com esses mesmos valores sociais. Tem-se, à época, uma sociedade rural, recém liberta do período colonial, o que privilegia a condição masculina. A fim de se tutelar a instituição familiar, delega-se poderes ao patriarca, transpassando esse modelo da família para todo o sistema social (PEREIRA, 2002).
A família, contemplada pelo Direito das primeiras codificações, era fundada no matrimônio, no casamento monogâmico. A igreja católica criou e normatizou a monogamia como exemplo de virtude, rebaixando outras relações ao pecado. Não se concediam efeitos jurídicos a quem não formalizasse sua união.
No Código civil brasileiro de 1916, começa o vislumbramento da dissolução da sociedade conjugal. Pelo instituto do desquite, sempre com previsões legais, artigos 317 e 318, era possível desfazer o matrimônio pelas razões de adultério, tentativa de morte, sevícias ou injúrias graves e por abandono voluntário do lar, sendo o prazo maior de 02 anos para isso, além de mútuo consentimento dos cônjuges, também, considerando o mesmo prazo de casamento.
Sendo assim, o elemento culpa tornou-se a principal motivação para a dissolução da sociedade conjugal. À época, era inadmissível (como para muitos é até hoje), que se dissolvesse um casamento, senão por motivação gravosa. Só o cônjuge vitimado poderia pedir a separação. As causas separatórias consistiam todas em comportamentos culposos, violadores de deveres conjugais, como os citados acima.
Conforme o art. 231 da mesma lei civil, desatendendo a pelo menos um dos deveres do casamento, tem o cônjuge “inocente” acesso ao processo culposo de separação judicial, o que impedia o rompimento unilateral do matrimônio.
É letra posta da lei a fidelidade como expressão condicional da monogamia. Ser fiel tornou-se um dever legal. A infidelidade além de um desvalor moral da sociedade foi incluída como forte motivação às causas de separação.
Casamento, sexo e reprodução são idéias interdependentes no sistema jurídico de 1916, que perduram até hoje. É a contínua concepção do início da Modernidade: “lavar a honra” de um dos cônjuges, agora não mais com armas de fogo ou armas brancas (duelo), mas através da lei.
Não podem ainda os cônjuges resolverem por si só quanto à dissolução da sociedade conjugal. Após todas as “batalhas” que este processo remete, inclusive com a participação não só do casal, mas também de seus filhos, após um moroso e estigante desgaste das relações familiares, ainda é o juiz quem avalia a extensão do dano causado pelo “culpado” ao “inocente” subjetivamente.
O julgador, então, cumprindo a prestação jurisdicional do Estado, pune aplicando o “castigo” devido àquele que descumpriu a lei. Como num julgamento realizado pelo tribunal do júri, a pessoa considerada culpada era punida pelo Estado, seja pela perda da guarda dos filhos, pelo detrimento dos alimentos, perdendo o sobrenome de casado (a) ou por alterações na partilha dos bens. Quem ousasse romper com o casamento, sofreria duras penas.
Era como se a instituição matrimonial fosse mantida, além da lei, por preceitos de ordem pública e social da época e pelo próprio temor daqueles que descumpriam os deveres conjugais. Pelo medo daqueles que não estavam satisfeitos com suas uniões, mantinham-se casamentos infelizes, desestruturados, designando o mesmo destino para toda a família.
1.4 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988
Na história das constituições brasileiras, tinha-se como fundamento a família constituída pelo casamento indissolúvel protegida pelo Estado. Protegia-se o casamento para também proteger os valores morais da época e garantir a ordem pública.
Não é por mera coincidência que a Constituição Federal de 1988 inicia suas normas dando ênfase ao Estado democrático de direito. Este tem como pressuposto, garantir a dignidade da pessoa humana, que funciona como princípio norteador de todo o ordenamento jurídico.
Com isto, reverte-se a ótica no que dispõe o texto sobre a família, priorizando o afeto como integrante à própria condição humana, como um direito personalíssimo, ao invés da “instituição” casamento.
Segundo Arendt (2001, p.17), “a condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência”.
Quando a convivência entre o casal não é mais possível, torna-se fato a necessidade da dissolução do vínculo conjugal, já que o afeto não existe mais. Este último é a principal razão da existência deste vínculo. Ao se extinguir, extingui-se, também, a felicidade e o prazer que aquela relação permitia aos amantes e a família como um todo.
Sob a nova ótica constitucional, esta é a importância da família hoje, “a realização da personalidade de seus indivíduos” (TEPEDINO, 2004). O afeto tornou-se o valor jurídico central das relações familiares com o advento da Constituição Federal de 1988 (grifo nosso).
A ninguém pode ser imputado o desconforto e até mesmo a infelicidade de se conviver com quem não se ama mais. Ter uma vida digna, também, comporta em dividir sua intimidade com quem se tem afeto livremente.
O casamento não é mais o principal foco da Constituição Federal de 1988, mas sim a unidade familiar, propriamente dita que pode ser formada através deste ou de outros institutos jurídicos.
Outrossim, independentemente da forma ou do arranjo familiar as pessoas buscam a felicidade através da família, ligando-a visceralmente às idéias de realização pessoal e dignidade humana (TEPEDINO, 2004). Portanto, se esta se formou por laços afetivos, por amor, constrói-se o paradigma do desamor para que o respeito e a dignidade humana preponderem (ROSA, 2001, p. 129).
Contudo, na prática, sabe-se que grande parte dos relacionamentos não tem origem ou continuação na afetividade, mas, assim mesmo, a chamada racio affectio é o princípio que dá sustentação à sua constituição e manutenção.
2 A PERMANÊNCIA DA CULPA NA DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE CONJUGAL NO NOVO CÓDIGO CIVIL DE 2002
Apesar do novo olhar que a Constituição Federal de 1988 traz à família, da ênfase empregada nos princípios do afeto e da dignidade humana, mantem-se o exame judicial das causas da dissolução da sociedade conjugal. Mantem-se a culpa integrando privilégios a uma parte ou negando a outra.
Sob esta ótica constitucional, o direito de família não teria mais o fundamento da culpa para a dissolução do vínculo conjugal, mas os princípios da dignidade humana, do afeto e da liberdade. Não se tutelaria mais o desafeto na sociedade conjugal através da culpa, não fosse o ranço remanescente no Código civil brasileiro, que, apesar de ser atual pela sua data, posto que vigorou a partir de 2003 (inclusive após a Carta de 1988), seu projeto fora elaborado em momento precedente.
2.1 PERCORRENDO O CAMINHO DA CULPA NO CÓDIGO CIVIL ATUAL
O novo Código civil brasileiro contempla a permanência do elemento culpa em vários de seus dispositivos. A premissa judicial de se desnudar a intimidade do outro, culpando-o pela ruptura da sociedade conjugal é embasamento jurídico para se alegar sua inconstitucionalidade (grifo nosso).
O centro das relações familiares pela Constituição Federal de 1988 tornou-se a antítese da culpa: o afeto. Não pode o legislador condicionar a imputação da culpa ao fim do amor. Sabe-se que a convivência entre os que se amam é complexa, então, por que provocá-la entre os que já não se amam mais? Acaba-se por propiciar as batalhas judiciais, que serão transferidas também para a vida pessoal dos cônjuges, afetando não só a eles, mas os filhos e demais integrantes da família.
O legislador fez um rol de motivos para que se quebre o matrimônio, a comunhão de vida, não possibilitando ao casal escolher sua própria motivação, o que esmaga o princípio da intimidade e da liberdade. A única ressalva que se criou, foi o parágrafo único desse artigo, possibilitando ao juiz, então, escolher outra motivação à dissolução da sociedade conjugal.
O simples (ou complexo) fato de deixar de amar nem mesmo é citado como uma das possíveis prerrogativas da quebra do vínculo conjugal. Um elemento objetivo – ruptura e não mais subjetivo – culpa. Fato derivado da vontade das partes, dos princípios da liberdade e da dignidade humana.
Entretanto, a quebra de paradigmas é morosa. Uma construção moral alicerçada na culpa como fundamento para a dissolução do vínculo conjugal, a qual é senso comum há séculos não se desfaz rapidamente.
As relações afetivas não se localizam em um ato único. Fazem parte de um processo contínuo, sucessivo, portanto, torna-se impossível, ou pelo menos arriscado, saber de quem é a culpa ou de como começou o desgaste do relacionamento. Como mensurar uma culpa inicial, uma culpa final, ou uma culpa recíproca durante a convivência?
O Poder Judiciário impõe a solução, punindo quem “errou” por último, desnudando somente a culpa final, sem prospectar o que deu ensejo a este ou outro ato durante o cotidiano conjugal.
2.1.1 Do nome
Após a vigência de um ordenamento jurídico pós Constituição Federal de 1988, basilado em novos princípios, como o do afeto, o da liberdade, da intimidade e da dignidade da pessoa humana é possível aos cônjuges, quando contraírem núpcias, usarem o nome um do outro. Antes prerrogativa só da mulher, hoje, também do homem.
Sendo assim, é incoerente e irrelevante a postulação do artigo 1.578 do Código civil brasileiro, vinculando o uso do sobrenome ao instituto da culpa após a separação. Se já existe a liberalidade da opção, não tem por que acoplar o uso do nome aos casos taxados nos incisos deste dispositivo legal. Além disso, não há finalidade prática, abrindo-se uma margem maior para agressões e discussões.
Não há mais que se considerar a perda do nome, mas a escolha que se faz do nome pelo qual a pessoa se identifica, aquele que se reconhece em si mesmo, contrariando o caráter punitivo associado à culpa pela dissolução do vínculo conjugal anteriormente empregado.
2.1.2 Dos alimentos
A questão dos alimentos incide no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (TEPEDINO, 2004). Para tanto, a legislação permite a troca de alimentos entre os parentes e cônjuges.
Erroneamente, o legislador impõe ao instituto da culpa o embasamento teórico para a obrigação alimentar, e não à dignidade da pessoa humana:
Artigo 1.702 – Na separação judicial litigiosa, sendo um dos cônjuges inocente e desprovido de recursos (grifo nosso), prestar-lhe-á o outro a pensão alimentícia que o juiz fixar, obedecidos os critérios estabelecidos no art. 1.694.
Novamente enfatiza-se a culpa para condicionar os alimentos, desconsiderando o principal: a solidariedade. Os ex-cônjuges que prestam ajuda mútua um ao outro quando desprovido um deles de recursos, deveriam embasar-se no afeto que despenderam enquanto conviviam e não numa obrigação legal condicionada à culpa.
O novo Código civil induz tal conduta, pois criou uma classificação para os alimentos, dividindo-os entre naturais e civis. Dá-se os alimentos naturais como o mínimo à sobrevivência aos culpados pela dissolução do vínculo conjugal, e se premia com os alimentos civis os inocentes, dando sustentabilidade ao seu modo de vida, sem que caia seu padrão social.
Porém, o fundamento jurídico dos alimentos é a subsistência, não a punição. Estando presente a necessidade alimentar de um dos cônjuges e a possibilidade do outro de prestá-la, não há mais o que ser apurado (FARIAS, 2004).
Neste mesmo sentido, Maria Berenice Dias:
“Ainda que sem o rigorismo anterior, continua sendo penalizado quem ousa afastar-se do casamento adotando atitudes inadequadas à vida em comum. Somente perceberá o quanto baste para sobreviver. […]
Basta aferir, tão só, a presença do binômio possibilidade-necessidade.” (DIAS, 2006, p.42-45).
2.1.2.1 Quando o de cujus é o “culpado”
Igualmente, transfere a permanência do elemento culpa para o Livro das Sucessões do mesmo diploma legal:
Artigo 1.830 – Somente é reconhecido o direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de 2 (dois) anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.
O codificador esquece novamente o novo olhar constitucional dispensado à família, fulcrado no afeto e na dignidade humana e continua legislando sob a ótica patrimonialista. A diversidade familiar da realidade brasileira está além do casamento, da união estável, da separação judicial e do divórcio, comporta, também, as separações de fato.
Quando libertos da união formal, os cônjuges acabam por se envolver em outras uniões, então informais, tornando-se estas estáveis ou não (ALCIDES DA SILVA, 2004). No caso de estabilidade destas novas uniões, está posta a problemática derivada deste dispositivo legal, qual seja a presença de outro cônjuge, que não o constante na certidão de casamento do de cujus. Tem-se, portanto, uma concorrência sucessória.
Outrossim, de novo o legislador insiste em determinar tempo certo para a dinâmica do comportamento humano (neste dispositivo, 02 anos). Como se fôssemos robôs programados para amar e desamar.
O caráter subjetivo do art. 1.830 é preocupante por causar uma insegurança jurídica, diferentemente de quando tratado de forma objetiva na especificidade da deserdação ou a exclusão do herdeiro por ato ilícito civil ou penal.
Na contramão do Estado democrático de direito, este dispositivo também viola uma das máximas do nosso ordenamento jurídico: a presunção de inocência. O cônjuge inocente arcará com o ônus de provar não ter sido o culpado pelo fim do matrimônio.
Afora as considerações de ordem teórico-filosóficas, têm-se as de ordem prática. Ou a culpa deverá ser sempre apurada quando da separação para que em morte posterior de um dos cônjuges já se tenha os direitos de herança pré-estabelecidos, como se fosse um título cambial, ou terá que se abrir a discussão da culpa após a morte do único interessado, que, quem sabe, jamais se sentiu traído e penalizado por alguma atitude do outro com quem convivia.
O ultraje de se discutir sobre a intimidade das relações afetivas em vida daquele que já morreu, é inegavelmente maior do que a lógica patrimonialista (ALCIDES DA SILVA, 2005).
2.2 MAIS EMPECILHOS
2.2.1 Prazos
Não bastasse todo esse entrave para que os que não se amam mais voltem a procurar sua felicidade, ainda se tem prazos a cumprir para solicitar a tutela do Judiciário para que se dissolva o vínculo conjugal. O Estado interfere na intimidade das pessoas de tal forma que determina a adequação a prazos à ruptura do vínculo conjugal reconhecida pelo Poder Judiciário.
Quando da decorrência de 01 ano de trânsito em julgado de sentença que decretou separação judicial, ou a separação de corpos, daí sim podem os ex-cônjuges solicitarem, juntos ou autonomamente, a conversão ao divórcio; nela não constando mais as causas, culpas e ressentimentos.
Portanto, qual o motivo que levou o legislador a optar primeiro pela briga, depois pela paz? Qual a lógica da inversão do afeto para o desafeto, se após o período estabelecido pelo próprio legislador, tudo “some”? Claro que tudo some no papel, pois as seqüelas que o “período de guerra” deixou, terá que ser tratado pela Psicologia ou pela Psiquiatria.
Notória conclusão a de Rolf Madaleno quando menciona “ora, se não sobreviveu o casamento no plano fático, não há nexo em estendê-lo por dois anos no plano jurídico” (MADALENO, 2006).
A dinâmica da vida não aceita a precisão do calendário. “As situações de fato, na seara do direito de família, às quais o ordenamento imputa efeitos jurídicos, não podem ficar afetas a lapsos temporais estritos” (ALVES DA SILVA, 2005).
A defesa do instituto casamento como o “castelo familiar”, fez com que o legislador criasse um lapso temporal para que os cônjuges reafirmem sua vontade de não mais mantê-lo. Em 01 ano ou 02, em 10 anos ou 20, em 01 mês ou 02, o amor pode acabar, ou ter se renovado em outra pessoa. O tempo não é medida para o amor (grifo nosso)!
2.2.2 Separação judicial X divórcio
É absurda a idéia de que tenhamos que afirmar e reafirmar não querer mais o vínculo conjugal, tendo dois institutos a cumprir: a separação e o divórcio. Alertando que o primeiro não termina com o vínculo completamente, pois apesar de não mais conviverem e não mais se amarem, os cônjuges que se separam não podem assumir novas núpcias.
A separação judicial funciona, na lógica do codificador, como apertar a tecla pause de um aparelho doméstico, ou seja, parar um pouco para que os cônjuges pensem se realmente é este o seu propósito.
Já no processo de divórcio, pelo decorrer de um tempo maior, aceita o legislador que os que não convivem mais, comprovadamente há 02 anos, dissolvam a sociedade conjugal. Visualizando um exemplo, seria no mínimo estranho em uma audiência de divórcio, a escuta de testemunhas afirmando que as partes não convivem mais, quando a ex-cônjuge mulher aparece acompanhada já do seu atual marido e grávida!
Na vida dos cônjuges não se aplicam regras prontas e certas. No âmbito da família se lida com sentimentos e não com lógica (grifo nosso).
3 MUITO BARULHO POR NADA
“Muito barulho por nada”! A guerra judicial travada entre as pessoas que antes se amavam, entre réplicas e tréplicas sustenta exatamente o quê? Nada! Qual o benefício que esta batalha contempla? Pelo contrário, só traz relevantes prejuízos ao relacionamento entre os ex-cônjuges e entre estes e seus filhos e outros familiares.
A única causa dada à separação é o fim do amor! O simples fato de um dos cônjuges sugerir a quebra do vínculo conjugal, já importa em fundamentação suficiente para a tutela jurisdicional. Conservar a importância da culpa no direito de família é valorar princípios opostos ao fundamento republicano da dignidade da pessoa humana, como o da monogamia, da intolerância, da hipocrisia, do maniqueísmo, bem como o do próprio instituto culpa, contrariando o novo conceito de família extensivo estabelecido pela Constituição Federal de 1988.
“Muito barulho por nada”! Ora, se nada constará em sentença, qual a explicação racional de se trilhar a “guerra judicial”? Se para ser livre, o indivíduo terá que imputar culpa ao outro, estará ferindo o ordenamento jurídico atual em relação às suas normas mais abrangentes e universais: os princípios constitucionais, os direitos humanos e, conseqüentemente, o próprio Estado democrático de direito.
Não há mais que se falar em bipolaridade: os bons e os maus, os certos e os errados, os justos e os injustos. Há de se compreender o afeto em toda a sua amplitude, acolhendo a possibilidade, inclusive, do seu fim.
“Livrar os cônjuges ou conviventes da degradação de continuarem sendo infelizes” (MADALENO, 2006), é trazer ao mundo jurídico a dinâmica dos relacionamentos humanos atuais. O vínculo conjugal representado pela solenidade do casamento já não é mais o bastante para manter a convivência. Para isso, a exclusão da culpabilidade como forma de punição àqueles que desejam findar a convivência a dois, hoje, se faz imperativa.
Não obtendo êxito o relacionamento, é de muito maior importância manter a dignidade e o respeito entre os familiares, de forma pacífica e natural. O incentivo que o próprio Estado promove das “guerras e batalhas judiciais” é densamente inconstitucional (grifo nosso).
A inversão de valores de uma falsa moral que criou empecilhos para dificultar a dissolução da sociedade conjugal, tentando a todo e qualquer custo conservar a premissa sofista da paz social e da moralidade social, fez com que o instituto culpa permanecesse positivado no ordenamento jurídico brasileiro ainda nos dias de hoje.
Nenhuma verdade é absoluta! Ainda mais num relacionamento amoroso. A complexidade implícita nas condutas do casal em seu cotidiano, num vai-e-vem de ações e reações, de amor e de ódio, entre as funções de amante, de pai e de mãe, mais toda a bagagem cultural trazida por um e por outro ao mesmo palco, está sempre em fricção.
Saber quem provocou primeiro ou depois, ou de quem é a culpa inicial e a final, não trará benefícios aos cônjuges, nem à sua família, muito menos à sociedade e ao Estado. O Judiciário continuará entulhado de ódio, rancor e ressentimentos, de desafeto, contrariando a nova lógica constitucional: a lógica do afeto. “Muito barulho por nada”!
Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina
Professor das disciplinas de Direito de Família e Antropologia Jurídica da Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina, mestre e doutor pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina
Professor das disciplinas de Teoria Geral do Estado e Sociologia da Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina, mestre
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