Sumário: 1. Familia. 2. Decisão judicial. 3. A evolução do conceito de família. 4. As transformações da família e a ética. 5. O sexo e a homoafetividade. 6. A família reconstruída e repersonalizada na individualidade de seus membros.7. O resgate do valor entre as pessoas. 8. A justiça conectada à modernidade e seus valores. A responsabilidade do julgamento. 9. O principio fundamental da igualdade entre as pessoas e a vedação de discriminação. 10. O compromisso do poder judiciário com a democracia e os direitos humanos. 11. A pessoa: valor-fonte fundamental do direito. 11. Em busca de um paradigma – a afetividade. 12. Considerações finais
1. Família
Sem descurar ou desconsiderar os avanços já experimentados na área do Direito de Família a partir da Constituição Federal de 1988, mas já demonstrando sinais de reação a partir da metade do século XX, a travessia para o novo milênio traz consigo valores diferentes e uma conquista impossível de continuar se ignorando:
“[A] família não é mais essencialmente um núcleo econômico e de reprodução, onde sempre esteve instalada a suposta superioridade masculina. Passou a ser – muito mais que isto – o espaço para o desenvolvimento do companheirismo, do amor e, acima de tudo, o núcleo formador da pessoa e elemento fundante do próprio sujeito.” (DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. VIII)
Isso já pregava Rudolf Von Ihering no longínquo ano de 1888. No prefácio da primeira edição de seu livro A luta pelo Direito, ele afirmou:
“Consciência do direito, convicção jurídica são abstração da ciência que o povo não compreende; a força do direito reside no sentimento, exatamente como a do amor; a razão e a inteligência não podem substituir o sentimento quando este falta.” (IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Tradução João Vasconcelos. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 38)
Esse mesmo amor – que atravessa os tempos, penetra a história, altera os destinos e determina os rumos de pessoas, povos, civilizações e impérios –veio a ser cantado na poesia refinada de Renato Russo: “ainda que eu falasse a língua dos anjos, sem amor, eu nada seria”.
Há, reconhece-se, uma imortalização na idéia de família. Mudam os costumes, mudam os homens, muda a história; só parece não mudar esta verdade:
“a atávica necessidade que cada um de nós sente de saber que, em algum lugar, encontra-se o seu porto e o seu refúgio, vale dizer, o seio de sua família, este locus que se renova sempre como ponto de referência central do indivíduo na sociedade; uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser substituída por qualquer outra forma de convivência social”. (TEPEDINO, Gustavo. Novas formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimônio. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 326)
Na idéia de família, o que mais importa – a cada um de seus membros e a todos, a um só tempo – é exatamente pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar seus sentimentos, esperanças e valores, permitindo que cada um se sinta a caminho da realização de seu projeto pessoal de felicidade. Isso, com toda a certeza, não se funda em lei, vínculo sangüíneo ou sexo.
Exatamente em função dessa importância, dessa relevância da família remodelada, reconfigurada, repersonalizada e humanizada, não pode o Poder Judiciário afastar os olhos e deixar de considerá-la como fator preponderante na construção e na formação da personalidade do homem e na eterna busca da felicidade. Neste texto tenta-se identificar traços que possam caracterizar a família do futuro, partindo do princípio que só haverá família, se ela for fundada em bases sólidas de afetividade e amor.
Essa realidade, no entanto, encontra obstáculos na legislação, que, a despeito de modernizada e oxigenada pela CRFB de 1988 e pelo novo Código Civil, ainda não se mostra suficiente para dar conta da flexibilidade desses relacionamentos. A título ilustrativo pode-se citar, por exemplo, a ausência de regulamentação dos direitos, deveres e conseqüências da relação homoafetiva, não só no que diz respeito ao patrimônio amealhado durante a constância desse vínculo, mas também à possibilidade de adoção, fixação de alimentos e tudo o mais que deve ser objeto de deliberação por ocasião da separação de um casal “casado”.
Julgamentos, não raramente, são fundamentados na vedação ao enriquecimento sem causa, que tem sua eficácia não na falta de causa, senão na presença de um prejuízo que vai contra os parâmetros da justiça e da moral e que lesiona, ademais, os interesses patrimoniais daqueles que, sozinhos, ou com outros, laboraram durante muitos anos para forjar um patrimônio. (GROSS, Alfonso Oramas. El enriquecimento sin causa como fuente de obligaciones. Buenos Aires: Edino Jurídicos, 1988, p. 74).
A esse respeito, parece que o ideal seria a tutela da família, não em função do patrimônio eventualmente amealhado, o qual pode inexistir, mas pelo simples fato de haverem, um dia, deliberado que se manteriam juntos, sem qualquer outro anseio que não fosse viver em paz e buscar a felicidade.
Todos esses aspectos legais e jurídicos sofreram a incidência de uma interpretação humanista, voltada à consecução dos objetivos comuns de pessoas que estejam e se mantenham juntas voluntariamente, uma hermenêutica atualizada e atualizável, flexível, progressista e permeável, de forma a acompanhar a evolução social, umbilicalmente conectada aos direitos humanos e fundamentais, alguns prescritos nas Constituições Federais, outros não, mas determinantes de todas as demais normas.
2. Decisão judicial
“O valor socioafetivo da família é uma realidade da existência. Ela se qualifica com o transcorrer dos tempos, não é um dado e sim um construído. (Luiz Edson Fachin)”
Assim, a questão da legitimidade da decisão judicial se apresenta com força total. Miguel Reale (REALE, Miguel. Lições preliminares do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 105) explica que a validade jurídica compreende os problemas da vigência, eficácia e fundamento (ou validade ética), que é entendido como a adequação do direito a valores e idéias aceitos pela comunidade.
Jürgen Habermas analisa a questão da legitimidade fazendo derivar a crença na legalidade a partir de uma crença na legitimidade que possa ser justificada (Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 223-224), de tal forma que a legitimidade forneceria à legalidade e à racionalidade procedimental teor moral, permitindo o entrelaçamento da moral com o direito. Há uma distinção entre legitimidade e legitimação. Em síntese, a legitimidade se apóia no consenso sobre a adequação entre o ordenamento positivo e os valores, ao passo que a legitimação consiste no próprio processo de justificação da Constituição e dos seus princípios fundamentais.
No entanto, não se pode olvidar que, numa sociedade de homens livres, a justiça tem de estar acima de tudo, sem justiça, não há liberdade.[1] A igualdade passa, então, a exercer o papel de harmonização, juntamente com os da ponderação, razoabilidade e transparência, os quais são princípios de legitimação que possibilitam o equilíbrio entre todos os princípios constitucionais. Robert Alexy afirma que a legitimação da decisão judicial só pode derivar da argumentação jurídica racional, que a idéia de racionalidade discursiva (ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático. “in” Revista de Direito Administrativo, São Paulo, n. 217, 1999, p. 55-66), ela apenas se realiza em um Estado democrático constitucional, o qual, sem discurso, é impossível existir.
Assim, o Poder Judiciário deverá também se mover segundo tais princípios legitimadores de suas decisões, abandonando o sistema hierarquizado de valores e adotando a ponderação e a proporcionalidade, segundo a igualdade formal entre os ditos valores, que devem ser subordinados aos princípios. Sobre os princípios, reformulando velhas posições positivistas, Gustav Radbruch, na sua obra Cinco minutos de filosofia do Direito, afirmou: Há, por isso, princípios fundamentais do direito que são mais fortes que cada regra jurídica, de tal forma que uma lei que lhe contravenha perde a sua validade (RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Trad. Cabral de Moncada, Coimbra: Armênio Armando, 1979, p. 189).
No texto constitucional, há o ideário de uma sociedade: seus valores, suas tradições e, em teor considerável, seus sonhos. Assim foi e assim será com todas as Constituições. Luís Roberto Barroso afirma:
Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. (Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 54, 2001 a, p. 47)
Entretanto, as Constituições determinam uma espécie de ruptura no imaginário coletivo. Elas assinalam a esperança no porvir e a possibilidade de sepultamento de um passado que incomoda, algema e angustia. Ao mesmo tempo, dão origem a um futuro radiante e promissor e incumbe a todos que atuam em consonância com as diretrizes constitucionais, notadamente as destinadas à concretização dos direitos humanos, a tarefa de fazê-las presentes e atuantes, a despeito do reconhecimento de que, em países de modernidade tardia, como o Brasil, há necessidade de uma Teoria da Constituição Dirigente, que, nas palavras de Gomes Canotilho, estará morta […] se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário, capaz de, por si só, operar transformações emancipatórias. (O Direito Constitucional na encruzilhada do milênio: de uma disciplina dirigente a uma disciplina dirigida. In: SORIANO, G. (Ed.). Constitución y constitucionalismo hoy. Caracas: Fundación Manuel Garcia-Pelayo, 2000, p. 217, 225).
Essa abordagem, segundo Lênio Luiz Streck,
“pode também ser entendida como uma Teoria da Constituinte Adequada a Países Periféricos, devendo tratar, assim, da construção das condições de possibilidade para o resgate das promessas da modernidade incumpridas, as quais, como se sabe, colocam em xeque os dois pilares que sustentam o próprio Estado Democrático de Direito. (STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica e concretização dos direitos fundamentais no Brasil.” In: ANDRADE, André (Org.). A constitucionalização do Direito – A Constituição como locus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 23)
O tempo é implacável e se faz presente, mesmo em modelos até então aceitos como paradigmas imutáveis. No entanto, os paradigmas concernentes aos laços familiares já não respondem aos questionamentos que se vão delineando e que impulsionam a busca de recriar (ou refigurar) a realidade. Às vezes, a insatisfação com o que é velho é produtiva e marca o efetivo encontro de soluções criadoras, como ocorreu, por exemplo, com a bossa nova e outros estilos musicais.
Importa a reflexão sobre a situação da pessoa em sociedade, como fruto e resultado da convivência familiar, de sua aceitação ou rejeição pela família e pela sociedade, dos estímulos recebidos com o intuito da formação de sua personalidade e voltando olhar diferenciado sobre esta instituição chamada “família”, que parece vir se moldando e se constituindo fundamentada em parâmetros de amor, afetividade, empatia e afinidade, restando ultrapassadas as normas legais que apenas a admitem se fundamentadas em laços de consangüinidade, adoção, casamento ou “união estável” entre pessoas de sexos diferentes.
Mantém-se a preocupação de clarificar o papel do Poder Judiciário como locus ideal a pensar e interpretar o direito voltado à compreensão dos relacionamentos entre pessoas que vêm propiciando e experimentando evolução, mas sempre em busca da felicidade. Esse direito há de ser democratizado e oxigenado para aproximá-lo do cidadão.
Em outras palavras, a intenção deste texto é deixar claro que, ao se distanciar dessa realidade, a Justiça estará descumprindo sua função constitucional e, talvez, ensejando pensar em sua desimportância como instrumento eficaz à consecução do objetivo maior a alcançar-se – a paz social.
Com esse raciocínio, chega-se à nítida conclusão de que as normas legais existem em função da pessoa, e não vice-versa, não podendo servir o positivismo de motivo para a negação de direitos. Porém, indicar-se-á, também, que há disponíveis sistemas hermenêuticos aptos e eficientes a amparar cientificamente posições e decisões que não mais se contentem com a repetição de velhos paradigmas que já não condizem com a realidade social e que, da mesma forma, dão conta de afastar as críticas daqueles que vêm no sistema composto por princípios, possibilidade exacerbada de subjetivismo do julgador.
O tema é desenvolvido de forma a se dar conta dos objetivos estabelecidos, o que será feito pelo método desconstrutivista, sem, contudo, esquecer que, para o aprimoramento do sistema judicial de forma a torná-lo verdadeiramente a caixa de ressonância dos anseios democráticos da sociedade, há muita coisa para ser desfeita, muita para ser refeita e muita para ser feita, como observou, a respeito do sistema de educação superior, a professora e filósofa Marilena Chauí (CHAUÍ, Marilena. Universidade. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 16 jun. 2004, Primeiro Caderno, p. A-10).[2]
Pelo debate acadêmico despido de vaidades e conservadorismos exacerbados, pela dialética, pelo pensamento voltado à junção de esforços oriundos das diversas áreas do conhecimento e pela ciência, é possível buscar a melhor forma de tratar as relações familiares, por vezes, tão íntimas e prazerosas e, por outras, portadoras de tantos dissabores, dores, frustrações e sentimentos de rejeição, na certeza de que, como já dito, apenas o afeto justifica sua permanência e constância.
“Interessa-nos, enquanto profissionais do Direito, pensar e repensar melhor a liberdade dos sujeitos, acima de conceitos estigmatizantes e moralizantes que servem de instrumento de expropriação da cidadania”. (Rodrigo da Cunha Pereira)
3. A evolução do conceito de família
Podem-se distinguir três grandes períodos na evolução da família. Numa primeira fase, a família dita “tradicional” servia, acima de tudo, para assegurar a transmissão de um patrimônio. Os casamentos eram, então, arranjados entre os pais, sem que se levasse em conta a dimensão afetiva dos futuros esposos, em geral unidos em idade precoce. Por essa ótica, a célula familiar repousava em uma ordem do mundo aparentemente imutável e inteiramente submetida a uma autoridade patriarcal, verdadeira transposição da monarquia de direito divino.
Numa segunda fase, a família dita “moderna” tornou-se o receptáculo de uma lógica afetiva, cujo modelo se impõe entre o fim do século XVIII e meado do século XX. Fundada no amor romântico, a família sanciona a reciprocidade dos sentimentos e os desejos carnais por intermédio do casamento. Mas valoriza também a divisão do trabalho entre os esposos e, ao mesmo tempo, faz do filho um sujeito cuja educação sua nação é encarregada de assegurar. A atribuição da autoridade torna-se, assim, motivo de uma divisão incessante entre o Estado e os pais, de um lado, e entre pais e mães, de outro.
Finalmente, a partir da década de 1960, impôs-se a família “contemporânea” ou “pós-moderna”, que une, ao longo de uma duração relativa, dois indivíduos em busca de relações íntimas ou de realização sexual. A transmissão da autoridade vem se tornando, então, cada vez mais problemática, à medida que divórcios, separações e recomposições conjugais aumentam.
Que esta organização familiar seja o sintoma da importância que o século XIX atribuía à vida privada, ou que esta seja imposta como objeto de estudo em função desse movimento, importando em verdadeira reviravolta que se produziu na sociedade ocidental em torno de 1850 na esfera do privado, como sublinha Michel Perrot (PERROT, Michel. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. (Volume IV: Da Revolução à Primeira Guerra), surgiu então uma zona obscura e maldita para se tornar o lugar de uma das experiências subjetivas mais importantes de nossa época.
A psicanálise foi, de certa maneira, o paradigma do advento da família afetiva contemporânea, uma vez que contemplava, ao fazer dessa família uma estrutura psíquica universal, um modo de relação conjugal entre os homens e as mulheres em que não repousava mais uma coerção ligada à vontade dos pais, mas sim uma livre escolha dos filhos. O romance familiar freudiano supunha, com efeito, que o amor e o desejo, o sexo e a paixão estivessem inscritos no cerne da instituição do casamento.
Com a evolução dos relacionamentos e, notadamente, da conquista feminina de um espaço na sociedade que caracteriza as mulheres como pessoas, independentes dos maridos, sem precisarem de um homem (marido ou pai) para chancelar seus atos, em 1970, na França, foi suprimida a expressão “chefe de família”. No Brasil, isso só ocorreu, de forma significativa, com a Constituição Federal de 1988, com a corroboração e a confirmação da absoluta igualdade entre os cônjuges, sejam eles casados ou não.
4. As transformações da família e a ética
De que ser humano estaremos falando até o fim do século? Atualmente, vê-se, cada vez mais perto e real, o problema da clonagem do ser humano. O mundo se debate entre as possibilidades científicas potencialmente existentes, a ética na prática de tal conduta e os eventuais resultados, havendo possibilidade também da criação de figuras monstruosas e condutas absolutamente desumanas.
Como exemplo, basta lembrar que, em 2002, um ginecologista italiano, Severino Antinori, ganhou celebridade, ao recorrer a todas essas técnicas para que mulheres na menopausa pudessem ser mães. Ao lado de Claude Vorilhon, guru da seita Raël, Antinori foi o primeiro a preconizar experimentos de clonagem reprodutiva. Em 2002 declarou:
“Confirmo que três mulheres encontram-se atualmente grávidas, duas na Rússia e a terceira em outro país, depois da implantação in utero de embriões humanos a partir da técnica da transferência nuclear, e que os nascimentos deverão ocorrer em dezembro de 2002 ou em janeiro de 2003.” (ROUDINESCO, Elizabeth. A família em desordem. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 174)
Esse fato, a despeito de não ter sido confirmado real e cientificamente, atraiu as atenções e preocupações do mundo todo.
Durante muito tempo, assinalou François Jacob,[3] tentou-se ter prazer, sem filho. Com a fecundação in vitro, tiveram-se filhos, sem prazer. Agora, conseguem-se fazer filhos sem prazer, nem espermatozóides. E ele indagou: será que teremos paz no mundo (apud ROUDINESCO, 2003, p. 174). Esse comentário ácido ilustra perfeitamente como foi recebida pela opinião pública a grande questão da família do fim do século XX.
No início do século XXI, vivencia-se o dilema da incerteza e da complexidade, similar, talvez, àquele experimentado no período romano, quando se entendia que o homem, pela sua vontade, era o condutor e único propiciador da existência de filhos, para, posteriormente, no período cristão, atribuir isso unicamente a Deus. Convive-se, agora, com a possibilidade de ver a criação de pessoas e filhos depender da vontade já não mais de Deus ou dos pais, mas de terceiros, servindo-se de conhecimentos científicos que, obviamente, não são acessíveis à maioria da população, carreando sérios e fundados temores quanto ao futuro e à própria existência da raça humana como hoje ela é conhecida.
A mesma preocupação é explicitada por Jürgen Habermas, quando indaga:
“Devemos considerar a possibilidade, categoricamente nova, de intervir no genoma humano como um aumento de liberdade, que precisa ser normativamente regulamentado, ou como a autopermissão para transformações que dependem de preferências e que não precisam de nenhuma autolimitação? Somente quando essa questão fundamental for resolvida em favor da primeira alternativa é que se poderão discutir os limites de uma eugenia negativa e inequivocamente voltada à eliminação de males” (HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 18)
Na atualidade, discute-se também a respeito da formação de famílias independentes do casamento, que existe no Brasil há muito tempo. Recentemente, essa formação foi oficializada pela legislação que reconheceu os vínculos do concubinato e da união estável, bem como, a despeito de ainda não ser objeto de regulamentação legislativa, aqueles grupos familiares (e não se poderia deixar de reconhecê-los como tal) formados por pessoas do mesmo sexo, como recentemente decidiu o Supremo Tribunal Federal, como bem preconiza Rodrigo da Cunha Pereira:
“As relações amorosas entre pessoas do mesmo sexo interessam à ciência jurídica, não só porque daí podem decorrer conseqüências patrimoniais e previdenciárias, mas também porque está ligado a isso o pilar que sustenta o Direito: Justiça. Associada à idéia de Justiça está a palavra de ordem da contemporaneidade: cidadania. Esse ideal democrático significa não à exclusão do laço social e aprender a conviver com as diferenças. Diferenças de raça, de classes, de religião, de pensamentos e de preferências sexuais diferentes das tradicionais ditas “normais”. A estigmatização das pessoas que estabelecem relação afetiva com outras do mesmo sexo já ocasionou muita injustiça ao longo da história. Não podemos permitir que o direito continue sustentando essas injustiças e, conseqüentemente, o sofrimento e a marginalização.” (Texto da contracapa. In: DIAS, Maria Berenice. União Homossexual – Preconceito e a justiça. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001)
Maria Berenice Dias (União homossexual: o preconceito & justiça. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001), quando comenta o fato de que o novo Código Civil não trata da questão da união de pessoas do mesmo sexo, nem no âmbito do Direito de Família, nem no das obrigações, esclarece que Miguel Reale (Visão geral do projeto de Código Civil. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 752, p. 26, jun. 1998), relator do projeto, rebateu as críticas recebidas pela omissão, chamando-as de “apressadas” e “absolutamente sem sentido”. Reale se justifica dizendo que essa matéria não é de Direito Civil, mas sim de Direito Constitucional, porque a Constituição criou a união estável entre um homem e uma mulher. Sustenta que, para cunhar-se a união estável dos homossexuais, em primeiro lugar é preciso mudar a Constituição. Não era essa tarefa da comissão de redação final do Código Civil e muito menos do Senado, concluiu Reale.
Em 18 de agosto de 2001, a Câmara dos Deputados aprovou o parecer do relator, deputado Ricardo Fiúza, que, no relatório final, no item “Algumas questões não tratadas”, discorre sobre “A questão da união civil” e justifica a sua ausência alegando impossibilidade técnica. Diz ele que é notório que as relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo provocam conflitos religiosos, diante de usos e costumes longamente sedimentados, muitas vezes apenas para efeitos públicos, ou seja, o legislador não se deu conta de viver num Estado Laico e, da mesma forma, não se dispôs a enfrentas a evidentes reações religiosas que se seguiriam preferindo, então, simplesmente ignorar as forças de um movimento social crescente a cada dia.
Certamente ainda com grande influência da escolástica,[4] é vedado às pessoas que sejam felizes, se o preço dessa felicidade significar o mínimo arranhão aos seus cânones religiosos, usos e costumes longamente sedimentados, muitas vezes apenas para efeitos públicos. É preciso, todavia, que se afastem as posturas ortodoxas e discriminatórias. Também é preciso atentar que, em todo o capítulo do Direito de Família, o novo Código Civil dá especial ênfase às relações afetivas. Nesse caso, dever-se-ia reconhecer que a busca da felicidade entre duas pessoas extrapolou a rigidez e o engessamento do direito positivo, até porque a Constituição Federal veda terminantemente qualquer espécie de preconceito em razão de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3o, inciso IV).
Depois de declarar que o Projeto de Lei 1.151, de 1995, de autoria da então deputada Marta Suplicy, no mínimo vem ao encontro de uma realidade fenomenológica que não é despercebida pelos operadores do Direito, afirma Miguel Reale que pelo menos a questão patrimonial entre parceiros civis deveria ter sido disciplinada no Direito das Sucessões.
Conclui Maria Berenice Dias:
“Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e respeito recíprocos, com o objeto de construir uma família, tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, constitui uma entidade familiar, nada impedindo que seja reconhecido o direito à adoção pelo par. Ante tais colocações, em apertada síntese, pode-se dizer: o Direito deve acompanhar o momento social. Assim como a sociedade não é estática, estando em constante transformação, o Direito não pode ficar estático à espera da lei. Se o fato social se antepõe ao jurídico, e a jurisprudência antecede a lei, devem os juízes ter coragem de quebrar preconceitos e não ter medo de fazer justiça. Nada justifica a verdadeira aversão em se fazer analogia com o casamento ou com a união estável, e não aplicar a mesma legislação aos relacionamentos homoafetivos. Conforme bem assevera Rodrigo da Cunha Pereira: Interessa-nos, enquanto profissionais do Direito, pensar e repensar melhor a liberdade dos sujeitos acima de conceitos estigmatizantes e moralizantes que servem de instrumento de expropriação da cidadania.” (União homossexual: o preconceito & justiça. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 176)
Não se pode desconsiderar que, durante muito tempo, o comportamento homossexual foi considerado doença, perversão, devassidão e desvio de conduta, que conduzia à obscuridade e à clandestinidade, fatores que culminaram com a dizimação de toda uma geração nascida entre 1945 e 1960, pelo advento abrupto e violento da Aids, no exato momento em que essa geração acabava de conquistar sua liberdade.[5]
Surgiu, então, de forma bem mais massificada, sobretudo para os homens, o desejo de gerar e de transmitir uma história. Sob esse aspecto, os homossexuais adaptaram-se à conservadora ideologia familiar de sua época: uma estrutura desconstruída, medicalizada, esfacelada, periciada, entregue ao poder materno. Além disso, essa estrutura já escapara à antiga autoridade patriarcal que se buscava – no entanto, em vão – não revalorizar, mas restabelecer, fazendo com que ela passasse pela quintessência de uma ordem simbólica imutável.
A respeito desse relacionamento homossexual ou homoerótico e do projeto de lei existente no Congresso Nacional, de autoria da então deputada Marta Suplicy, assevera o ínclito magistrado fluminense Antônio Carlos Esteves Torres (TORRES, Antônio Carlos Esteves. União Civil – O projeto. 2003. Inédito):
“[…] a matéria é excessivamente complexa para permitir conclusões definitivas e lineares. Por enquanto, não será ousado se trouxermos, a título de subtotal, os seguintes dados: a) enquanto estiver nas entrelinhas da Constituição o conceito ortodoxo de casamento, união entre seres de sexo diferente, o projeto não terá vida. É absolutamente inconstitucional; b) a hipótese, além de ter de suplantar o impeditivo constitucional, em termos biossociológicos, está longe de ser conceituada com clareza indiscutível; c) os temores expostos nas justificativas da proposta bem poderiam ser debelados via de procedimentos já existentes para a preservação dos interesses comuns dos parceiros, testamento, participação nas aquisições, doações, para efeitos patrimoniais, sendo certo que, apenas com a atuação no setor moral, psicológico, social, podem-se obter resultados no setor da aceitação e do respeito, ainda longe, a nosso ver, a possibilidade de, via legislativa somente, produzirem-se efeitos preservadores desses objetivos.”
Costuma-se objetar que a relação homoerótica não se constitui em espécie de união estável, pois a regra constitucional e as Leis 8.971/94 e 9.278/96 exigem a diversidade de sexo.
Nesse sentido, argumenta-se que a relação sexual entre duas pessoas capazes do mesmo sexo é um irrelevante jurídico, pois a relação homossexual voluntária, em si, não interessa ao Direito, em linha de princípio, já que a opção e a prática são aspectos do exercício do direito à intimidade, garantia constitucional de todo o indivíduo (art. 5o, X), escolha que não deve gerar qualquer discriminação, em vista do preceito da isonomia.
O amor e o afeto independem de sexo, cor ou raça. É preciso que se enfrente o problema e se encare uma realidade que bate à porta da hodiernidade. Mesmo que a situação não se enquadre nos moldes da relação estável padronizada, não é possível abdicar de atribuir à união homossexual os efeitos e natureza dela, até porque a Constituição Federal veda, de forma categórica e definitiva, qualquer forma de preconceito,[6] além de Lei 8.081, de 21 de setembro de 1990, ter estabelecido que quaisquer atos disasccriminatórios ou de preconceito em relação a raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional, veiculados pelos meios de comunicação ou por publicação de qualquer natureza, são considerados crime.
Assim, como se pode aceitar o gritante preconceito – ainda estabelecido, exercido e defendido de forma majoritária – contra a preferência sexual, que, muitas vezes, sequer opção existe? Talvez seja uma norma constitucional inconstitucional, pois, quando se limitam o casamento e a união estável a pessoas de sexos diferentes, a Constituição Federal volta-se contra o princípio norteador insculpido no artigo 3o, inciso IV.
Cabe destacar, desde logo, que a permanência de uma Constituição depende, em primeira linha, da medida em que ela for adequada à missão integradora que lhe cabe diante da comunidade que ela mesma constitui. Os princípios informam todo o sistema jurídico. Eles são normas, e as normas compreendem as regras e os princípios.
Os princípios, além de atuarem normativamente, podem ser relevantes, em caso de conflito, para um determinado problema legal, mas não estipulam uma solução particular. Na feliz síntese do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto (Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 61), os princípios são abstrações de segundo grau, normas de normas, em que se buscam exprimir proposições comuns a um determinado sistema de leis. Eles dispõem de maior grau de abstração e menor densidade normativa. “Como enunciados genéricos que são, estão a meio passo entre os valores e as normas na escala da concretização do Direito e com eles não se confundem”, observa Ricardo Lobo Torres (Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 79).
Não resta alternativa, senão recorrer à técnica da ponderação de valores, na busca de compor esses pontos de tensão principiológica. Luís Roberto Barroso (Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, p. 185) entende que se trata de uma linha de raciocínio que procura identificar o bem jurídico tutelado por cada uma das normas, associá-lo a determinado valor, isto é, ao princípio constitucional ao qual se reconduz, para, então, traçar o âmbito de incidência de cada norma, sempre tendo como referências máximas as decisões fundamentais do constituinte.
Essa técnica faz-se mister quando, de fato, estiver caracterizada a colisão entre, pelo menos, dois princípios constitucionais incidentes sobre um caso concreto. Há de prevalecer aquele de maior peso para a solução do caso concreto, tema que será mais bem desenvolvido nos próximos capítulos.
5. O sexo e a homoafetividade
Nas culturas ocidentais contemporâneas, a homossexualidade tem sido, até então, a marca de um estigma, pois se relegam à marginalidade aqueles que não têm sua orientação sexual de acordo com padrões de moralidade dominantes. Isso não diz respeito apenas à homossexualidade e à heterossexualidade, mas a qualquer comportamento sexual definido como anormal, como se isso pudesse ser controlado e colocado dentro de um padrão normal (PEREIRA, Rodrigo, 1997, Direito de família: uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 43) ou como se pudesse afirmar que existem padrões de normalidade legítimos.
Ao se manter tais posicionamentos, escancaradamente preconceituosos, estar-se-á relegando a Constituição Federal a uma norma meramente programática, sem eficácia, aplicabilidade e, em última instância, sem valor, pois, desse modo, é desvinculada e desconectada da realidade e de valores sociais latentes e presentes. Como assinala Hermann Heller, “se se prescinde da normalidade social positivamente valorada, a Constituição, como mera formação normativa de sentido, diz sempre muito pouco” (Teoria del Estado. 4ª ed. Tradução e prólogo de Gerhart Niemeyer. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1961, p. 276). O sistema jurídico pode ser um sistema de exclusão, já que a atribuição de determinada posição jurídica depende do ingresso da pessoa no universo de titularidades que o sistema define. Opera-se a exclusão quando se negam às pessoas ou situações as portas de entrada da moldura das titularidades de direitos e deveres. Diz Luiz Edson Fachin:
“Tal negativa, emergente de força preconceituosa dos valores culturais dominantes em cada época, alicerça-se em juízo de valor depreciativo, historicamente atrasado e equivocado, mas este medievo jurídico deve sucumbir à visão mais abrangente da realidade, examinando e debatendo os diversos aspectos que emanam das parcerias de convívio e afeto”. (Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo. In: BARRETO, Vicente (Org.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 114)
Com fundamento nesse afeto, alçado e reconhecido, agora, como elemento jurídico importante no relacionamento entre pessoas, a Egrégia Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por meio do Provimento 6/4 de 17 de fevereiro de 2004, acrescentou um parágrafo ao artigo 215 da Consolidação Normativa Notarial Registral, para prever que:
“As pessoas plenamente capazes, independente da identidade ou posição de sexo, que vivam uma relação de fato duradoura, em comunhão afetiva, com ou sem compromisso patrimonial, poderão registrar documentos que digam respeito a tal relação. As pessoas que pretendam constituir uma união afetiva na forma anteriormente referida também poderão registrar os documentos que a isso digam respeito.” (Sem destaque no original)
Sobre essa inovação, Maria Berenice Dias (Afeto registrado. Disponível em: <http://www.espacovital.com.br/asmaisnovas24052004x.htm>. Acesso em: 24 maio 2004) afirma que as serventias vinham se recusando a proceder ao registro de documentos declaratórios dessas relações, sob alegação da ausência de lei que as previsse. Considerando tal procedimento como discriminatório, a autora afirma que a “negativa, às claras, encobria postura preconceituosa e discriminatória, já que não há ilicitude ou ilegalidade nas uniões que agora são nominadas de homoafetivas”. E ela conclui:
“A omissão do Estado havia levado as organizações de defesa da livre orientação sexual a proceder ao registro das uniões estáveis homossexuais em livro próprio da entidade. O fato de tais registros carecerem de reconhecimento jurídico não impediu que uma infinidade de casais buscasse consolidar suas uniões.
Resgata assim o Estado do Rio Grande do Sul sua função registral e certificatória dos atos e contratos firmados pelos cidadãos, garantindo o direito fundamental à obtenção de certidões, o qual tem assento constitucional (CRFB, art. 5o, inc. XXXIV, b).
Não bastasse isso, o fato de um provimento do Poder Judiciário chamar de união estável a relação afetiva entre pessoas do mesmo sexo é um importante marco na luta pela visibilidade do afeto que – como qualquer outro – não deve ter vergonha de dizer seu nome.”
Porém, esse é um ato isolado, que se justifica pelo pioneirismo já tradicional que vem dos pampas e se alastra, com algum custo, para as demais regiões do país, impulsionado pela força e perseverança do “minuano”. Nesse ponto, já não se está afirmando apenas a exclusão de pessoas em razão de terem procedimentos, comportamentos e opções sexuais que apenas a elas dizem respeito, mas negando vigência à própria Constituição Federal, transformando-a em papelucho despido de significado, sentido e força motriz de construção e progresso social.
No entanto, o Desembargador Rui Portanova, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, argutamente observou que “o sistema jurídico como um todo permite a adoção por homossexuais” (Família possível: desembargador defende adoção de crianças por homossexuais. Disponível em: < http://conjur.uol.com.br/textos/27435/>. Acesso em: 22 maio 2004). Segundo ele, não há norma que proíba homossexuais de adotarem uma criança, o que é juridicamente possível. Para pessoas solteiras, não há problema algum, apenas quanto à idade (de acordo com o artigo 1,618 do novo Código Civil, somente os maiores de 18 anos podem adotar uma criança). Também em relação a casais de homossexuais não existe norma alguma, de cunho permissivo ou proibitivo, a respeito. Não há, portanto, fundamento para a vedação que não seja a forma do preconceito.
Segundo Portanova, quando há uma lacuna na lei, o juiz deve decidir usando analogia. Alguns magistrados consideram que o mais próximo de uma união de homossexuais seria a sociedade de fato. Mas, para o desembargador, como é uma relação que envolve amor, o que seria mais semelhante na lei é a união estável.
Conforme observa o desembargador, o conceito de união estável viabiliza juridicamente esse tipo de adoção. O artigo 1.622 do novo Código Civil dispõe que “ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher ou se viverem em união estável”. O artigo ainda lembra que o direito não é composto somente pelas leis, “o direito é fato, valor e norma, é a conjugação dessas três dimensões”. Para Portanova, no caso da adoção, o que deve sempre prevalecer é o princípio do melhor interesse da criança.
O assunto ainda carece de análise e estudo mais aprofundados, principalmente sob o enfoque da sociologia, da psicologia e do direito. Mas há de se louvar a coragem da afirmação de Portanova, ainda que em sede acadêmica, de se buscar a aproximação da Justiça com a realidade dos fatos da sociedade e do respeito ao princípio fundamental da não discriminação.
Busca-se, o que parece válido e legítimo, a sociologização da norma constitucional da qual, ensina José Afonso da Silva (Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 23), Lassale é seu exímio representante. Quando este questiona sobre a verdadeira essência do conceito de Constituição, conclui que o conceito jurídico, normativo, apenas diz como se formam as constituições, o que fazem. Entretanto, não diz o que uma Constituição é, não dá critérios para reconhecê-la exterior e juridicamente e não diz qual é o conceito de toda Constituição, a essência constitucional.
“Para ele [Lassale], a constituição de um país é, em essência, a soma dos fatores reais do poder que regem nesse país e esses fatores reais do poder constituem a força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em questão, fazendo com que não possam ser, em substância, mais que tal e como são”. (SILVA, José Afonso, 1998, p. 23)
Os valores da realidade do poder que “emana do povo”[7] convertem-se em fatores jurídicos quando são transportados para uma folha de papel. A partir desse momento, deixam a situação de simples fatores ou valores reais de poder e assumem feição de direito, de instituições jurídicas. Para Lassale, “relacionam-se as duas constituições de um país: a real e a efetiva, formada pela soma dos fatores reais e efetivos que regem na sociedade, e a escrita, a que, para distinguir daquela, ele denomina folha de papel” (LASSALE, Ferdinand. Que es una constitución?. Tradução W. Roces. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1946, p. 62). “Esta – a constituição escrita – só é boa e durável quando corresponde à constituição real” (SILVA, 1998, p. 32), àquela que tem suas raízes nos fatores de poder que regem no país.
Em países nos quais a Constituição escrita não corresponde à real, instala-se inevitavelmente um conflito que não há maneira de se manter simulado. Cedo ou tarde, a Constituição escrita, a folha de papel, tem necessariamente que sucumbir ante o empuxo da Constituição real, das verdadeiras forças vigentes no país. Esse conflito irredutível importará sempre o desrespeito e o descumprimento da Constituição escrita e somente se resolverá se esta for modificada para ajustar-se à Constituição real ou, então, mediante a transformação dos fatores reais do poder.
Rechaçando essa lógica vertida no modismo apressado e aprofundando um debate que não seja circunstancial e passageiro, reúnem-se militantes da realidade, todos aqueles tomados por uma densa inquietude, os mesmos que, todos os dias, entre a angústia e a esperança, celebram um certo fim e, ao mesmo tempo, uma espécie de eterno recomeço. Esses militantes proferem palavras que não conseguem encontrar com nitidez o ponto onde as trevas se separam da luz e repetem a lição secular para ficar apenas na tentativa de aclarar, quanto muito, pequenas obscuridades (COSTA, Jurandir Freire. Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo. In. NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992).
Os limites podem ser morais, éticos, jurídicos e, evidentemente, religiosos. Moral, ética e religião, não estando dissociadas, dizem respeito a um conjunto de concepções atribuídas a um grupo social ou a um de seus segmentos. No tocante à inseminação artificial, por exemplo, nem todas as religiões têm a mesma opinião sobre o assunto.
A problemática do sexo dos indivíduos é um questionamento latente e discutido no Brasil há algum tempo até com sérias divergências jurisprudenciais. Durante longo tempo, tratado sob os aspectos anatômicos, parecia não apresentar problemas. Atualmente, a medicina considera outros aspectos, devendo-se ao sexo anatômico acrescer o sexo genético ou cromossômico, o sexo hormonal e o sexo psicológico ou psicossocial, que é a consciência do sujeito de pertencer a um sexo que é seu e determinar seu comportamento social.[8]
O transexualismo se caracteriza por uma contradição entre o sexo físico aparente, determinado geneticamente, e o sexo psicológico. Não se confunde, portanto, com o intersexualismo – constituído por anomalias físicas, hormonais ou genéticas que conduzem a um sexo falso – ou com o homossexualismo. Nesse sentido, esclarece Antônio Chaves que
“a definição do sexo de um indivíduo obedece a critérios estabelecidos, que inclui o sexo genético que irá informar a constituição cromossômica, mas que além disso há influências psicológicas, socioculturais e ambientais que da mesma forma são responsáveis não só pelo estabelecimento do seu sexo de criação, como pelo seu comportamento e identificação sexuais, concluindo que a formação e a determinação do sexo de um indivíduo normal é fruto de inúmeros fatores e determinantes que constituem um universo inexplorado”. (Direito à vida e ao próprio corpo. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 128)
Tem-se, por vezes, a tendência de associar a ética ao comportamento sexual. A ética aplicar-se-ia essencialmente ao comportamento sexual, deixando à Justiça o cuidado de gerir os outros tantos aspectos do comportamento humano. Simplificando, se a ética só se aplica à sexualidade, e se ela é a única ética existente, haveria então uma ética sexual sui generis. Freudianos e não-freudianos sugerem que a personalidade sexual é o centro da personalidade moral e que a maneira como percebemos nosso parceiro sexual e como nos comportarmos para com ele reflete e influencia nossa percepção e nosso comportamento geral em relação ao outro.
Tomemos, como exemplo, o coito heterossexual acompanhado de meios contraceptivos, tais como o diafragma ou o preservativo. Pode-se alegar, com argumentos kantianos, o que fez, em 1960, Karol Wojtyla, Papa João Paulo II, em Amor e responsabilidade (WOJTYLA, Karol. Amor e responsabilidade. Lisboa: Rei dos Livros, 1999, p. 45), que o ato sexual com contracepção é um mal moral, pois, como busca unicamente o prazer (e, assim, reduz o parceiro a um meio), ele é degradante e leva à exploração. Portanto, o ato sexual com contracepção, que, por essas razões, é um mal, não o é em virtude de seu caráter sexual. Com efeito, se Tomás de Aquino tem razão ao afirmar que o fim natural da emissão de esperma é a procriação, depreende-se de tal afirmação que o ato sexual com contracepção é imoral porque contraria o propósito da natureza.
O mal provém do fato de tratar-se de uma atividade sexual oposta ao fim natural da sexualidade, e não da atividade sexual propriamente dita. Da mesma forma, o estupro é geralmente condenado por comportar aspectos condenáveis, tais como ameaças e constrangimentos. Numerosos exemplos similares permitem chegar à seguinte conclusão: Não é nunca o fato de um ato ser sexual que o torna um mal ou que acentua seu caráter moral, se o ato é imoral por outros aspectos. (SOBLE, Alan. Sexualidade. In: CANTO-SPERBER, Monique (Org.). Dicionário de ética e filosofia moral. Tradução Maria Vitória Kesler. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2003, p. 577).
Mas, ainda que de forma, por assim dizer, recatada, o próprio Papa João Paulo II exorta, em sua encíclica Esplendor da Verdade, algumas tendências da teologia moral hodierna. Sob a influência das correntes subjetivistas e individualistas agora lembradas, essas tendências interpretam, de um modo novo, a relação da liberdade com a lei moral, com a natureza humana e com a consciência e propõem critérios inovadores de avaliação moral dos atos. São tendências que, em sua verdade, coincidem no fato de atenuar ou mesmo negar a dependência da liberdade da verdade (GARCEZ FILHO, Martinho. Direito de Família. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1932. (Vol. 1. p. 59).
Assim, a situação ainda está longe de ser suficientemente esclarecida. Faz-se necessário o estudo mais aprofundado, o debate menos apaixonado e mais aberto a horizontes ainda não percorridos, o descortinar de teses, teorias, reflexões ainda muito incipientes, sem descurar da ética que há de prevalecer. Por outro lado, é preciso ter cuidado, a fim de que o argumento ético não passe a ser o instrumento de moralização anticientífico.
Com esse objetivo, avança-se à verificação real do panorama legal-constitucional da família brasileira, sua função e importância a partir de uma abordagem construtivo-desconstrutivista, alçando a pessoa como valor-fonte fundamental do Direito e de todo o sistema jurídico norteado à concretização e à tutela de seus direitos fundamentais consagrados constitucionalmente.
Nessa linha de raciocínio, com acentuada percepção, Heloisa Helena Barboza questionou o novo papel da família no mundo contemporâneo:
“Qual a função atual da família? Se é certo que ela é a base da sociedade, qual o papel que a ela cumpre desempenhar, já que não tem mais funções precipuamente religiosa, econômica ou política como outrora? Qual a base que se deve dar à comunidade familiar para que alcance a tão almejada estabilidade, tornando-a duradoura? Devemos reunir todas essas funções ou simplesmente considerar o seu verdadeiro e talvez único fundamento: a comunhão de afetos?” (BARBOZA, Heloísa Helena. Novas tendências do direito de família. Revista da Faculdade de Direito da Uerj, Rio de Janeiro, n. 2, 1994, p. 232)
A família só continuará existindo se fundamentada no princípio da afetividade e do amor, posto que os valores que anteriormente a engessavam, aprisionavam e algemavam só produziram o nefasto efeito de causar desagregação, lides, violência e desassossego. Se não houvesse uma ruptura definitiva com elos ultrapassados e de nenhuma significação às pessoas, seu fim estaria muito próximo.
Nesse sentido, as estatísticas demonstram o decréscimo esmagador do número de casamentos, ao passo que se avolumam as separações e os divórcios. É inerente à natureza humana a busca da liberdade, notadamente quando algo a está sufocando e aprisionando. Às vezes, o custo dessa liberdade pode ser a própria vida, como indicam os muitos suicídios e homicídios ditos “passionais” aos quais se assiste no decorrer da história policial e judiciária.
As relações familiares, portanto, passaram a ser fundamentadas em razão da dignidade de cada partícipe. A efetividade das normas constitucionais implica a defesa das instituições sociais que cumprem o seu papel maior. A dignidade da pessoa humana, colocada no ápice do ordenamento jurídico, encontra na família o solo apropriado para o enraizamento e desenvolvimento, daí a ordem constitucional dirigida ao Estado no sentido de dar especial e efetiva proteção à família, independentemente de sua espécie. Propõe-se, por intermédio da repersonalização das entidades familiares, preservar e desenvolver o que é mais relevante entre os familiares: o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe, com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas. Como observa Perlingieri:
“A família é valor constitucionalmente garantido nos limites de sua conformação e de não contraditoriedade aos valores que caracterizam as relações civis, especialmente a dignidade humana: ainda que diversas possam ser as suas modalidades de organização, ela é finalizada à educação e à promoção daqueles que a ela pertencem”. (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil e Constitucional. Tradução Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 243)
Respondendo àqueles que temem mais uma vez sua destruição ou dissolução, objeta-se que a família contemporânea, horizontal e em redes, vem se comportando bem e garantindo corretamente a reprodução das gerações. Despojado dos ornamentos de sua antiga sacralidade, o casamento, em constante declínio, tornou-se um modo de conjugalidade afetiva pelo qual os cônjuges se protegem dos eventuais atos perniciosos de suas respectivas famílias ou das desordens do mundo exterior. É tardio, reflexivo, festivo ou útil e, freqüentemente, precedido de um período de união livre, de concubinato ou de experiências múltiplas de vida comum ou solitária.
Aos utopistas que acreditam que a procriação será um dia a tal ponto diferenciada do ato carnal que os filhos serão fecundados fora do corpo da mãe biológica, em um útero de empréstimo e com a ajuda de um sêmen que não será do pai, argumenta-se que, para além de todas as distinções que podem ser feitas entre o gênero e o sexo, o materno e o feminino, a sexualidade psíquica e o corpo biológico, o desejo de se ter um filho sempre terá algo a ver com a diferença dos sexos. Demonstram isso as declarações dos homossexuais que sentem a necessidade de dar aos filhos por eles criados uma representação real da diferença sexual, e não apenas duas mães (uma das quais desempenharia o papel de pai) ou dois pais (um dos quais se disfarçaria de mãe).
Finalmente, para os pessimistas que pensam que a civilização corre risco de ser engolida por clones, bárbaros, bissexuais ou delinqüentes da periferia, concebidos por pais desvairados e mães errantes, observa-se que essas desordens não são novas – mesmo que se manifestem de forma inédita – e, sobretudo, que não impedem que a família seja atualmente reivindicada como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. Ela é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições.
É claro, porém, que o próprio princípio da autoridade e do ser “separador”, sobre o qual ela sempre se baseou, encontra-se atualmente em crise no seio da sociedade ocidental. Por um lado, esse princípio se opõe, pela afirmação majestosa de sua soberania decaída, à realidade de um mundo unificado que elimina as fronteiras e condena o ser humano à horizontalidade de uma economia de mercado cada vez mais devastadora, mas, por outro, incita incessantemente a restauração, na sociedade, da figura perdida de Deus pai, sob a forma de uma tirania. Confrontada com esse duplo movimento, a família aparece como a única instância capaz, para o sujeito, de assumir esse conflito e favorecer o surgimento de uma nova ordem simbólica. Sobre a família, comenta Elizabeth Roudinesco:
“Eis por que ela suscita tal desejo atualmente, diante do grande cemitério de referências patriárquicas desafetadas que são o exército, a Igreja, a nação, a pátria, o partido. Do fundo de seu desespero, ela parece em condições de se tornar um lugar de resistência à tribalização orgânica da sociedade globalizada. E, provavelmente, alcançará isso – sob a condição, todavia, de que saiba manter, como princípio fundador, o equilíbrio entre o um e o múltiplo de que todo sujeito precisa para construir sua identidade. A família do futuro deve ser mais uma vez reinventada.”( ROUDINESCO, Elizabeth. A família em desordem. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 199)
Na contramão do tempo, da história e das previsões dos menos afeitos à constante alteração do comportamento social, vê-se que as pessoas buscam a aproximação da normalização de suas relações sociais, familiares e sexuais, aconchegando-se nos ninhos familiares, não necessariamente sob o mesmo teto (FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil – Elementos críticos do Direito de Família. Coord. Ricardo Pereira Lira, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 60), nem, por isso, deixando de se constituir em verdadeiro núcleo familiar.
Esse núcleo não tem mais, como paradigma ou motivo fundamental, a hierarquia paterna, o poder estatal, a submissão à Igreja ou qualquer outro referencial constatado através dos tempos. Apenas, tão-somente, tem o amor, a afetividade e a vontade de as pessoas permanecerem juntas, criarem seus filhos, sejam eles oriundos de vínculos anteriores (matrimoniais ou não), de adoção ou, simplesmente, do chamamento de pessoas estranhas ao corpo familiar sangüíneo, para a convivência pacífica e voltada à realização plena de cada membro daquele grupo, firmando-se como pessoas únicas, dotadas dos direitos subjetivos da personalidade, individualizadas e cada qual com suas características próprias. Nada mais há – e, talvez, não haverá – que possa manter pessoas unidas, coesas, juntas, que não seja o amor e o afeto.
Essa afirmação ecoa das palavras proferidas, em 1991, pelo então Desembargador e posteriormente Ministro do STJ e do STF Carlos Alberto Menezes Direito: “Tenho para mim que o que se deve buscar é o abrigo da proteção jurídica da vida em comum. Não se pretende robustecer a união ilegítima, mas sim criar condições jurídicas para proteger a constituição da família, independente de sua origem no ato civil do casamento” (DIREITO, Carlos Alberto Menezes. Da união estável como entidade familiar. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 667, maio 1991, p. 17).
Não há como se negar que o Direito privado – notadamente, o Direito Civil e, mais particularmente, o Direito de Família – é “um sistema em construção”, recheado de cláusulas gerais, que deverão se interpretar, aplicar e complementar de conformidade com as alterações e evoluções sociais e humanas, como assevera Judith Hofmeister Martins-Costa (O Direito Privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 15, p. 129-154, 1998).
Entretanto, a sua construção só se oportunizará se houver, antes, abertura para a “desconstrução”, entendida no sentido que lhe atribuiu Jacques Derrida: “Desfazer sem nunca destruir um sistema de pensamento hegemônico ou dominante, resistir à tirania do Um, resultante da força natural de mudança do ser humano” (DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã…. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 9). Além disso, não é possível ignorar a notável dificuldade de se perseguir tal objetivo, como já afirmava Glória Steinem: “O primeiro problema para todos, homens e mulheres, não é aprender, mas desaprender” (STEINEM, Glória. A revolução interior. Tradução Myriam Campelo. Rio de Janeiro: Objetiva, 1992, p. 78). Afinal:
“Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar, previamente, resposta a todos os problemas da realidade, uma vez que essas respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência. […] Conquanto tenha a cláusula geral a vantagem de criar aberturas do direito legislado à dinamicidade da vida social, tem, em contrapartida, a desvantagem de provocar – até que consolidada a jurisprudência – certa incerteza acerca da efetiva dimensão dos seus contornos”. (MARTINS COSTA, 1998)
Não se ignora, também, que, para estruturar o direito com cláusulas abertas e gerais, faz-se necessário um Poder Judiciário atento às vicissitudes da população e conectado às alterações da malha social e, principalmente às alterações comportamentais que acarretam a modificação da própria noção de certo e errado das pessoas.
Parece que não restam dúvidas de que, em termos de direitos fundamentais, ao menos enfocados sob a ótica de sua respeitabilidade efetiva e concreta, ainda estamos engatinhando. Mas, a despeito disso, afirmou Paulo Mota Pinto, juiz do Tribunal Constitucional de Portugal e docente da Faculdade de Direito de Coimbra:
“[…] o reconhecimento a todo o ser humano do valor de pessoa é hoje um verdadeiro postulado axiológico do jurídico, que não deve sofrer contestação relevante, pelos menos ao nível das proclamações. A personalidade do Homem é para o direito um prius, que o Direito encontra (não cria) e que deve ser reconhecido e tutelado pela ordem jurídica – pode mesmo dizer-se que o imperativo de respeito em todos os homens da sua dignidade de pessoa, através da atribuição de personalidade jurídica, resulta da consideração de um conteúdo mínimo de direito natural (no sentido de Hart), ou integra uma idéia de direito constitutivo do universo jurídico. A pessoa humana deve ser o centro das preocupações dos juristas, e o apelo que a estes é dirigido para a sua tutela jurídica emana do mais fundo substracto axiológico que constitui o direito como tal. Importa, pois, tratar dessa tutela.” (PINTO, Paulo Mota. Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos de personalidade no direito português. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição concretizada – Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 61)
A lei fundamental, então, é que positiva os direitos concernentes à justiça, segurança, liberdade, igualdade, propriedade, herança etc. Antes, eles estavam no Código Civil ou, como diz Pietro Perlingieri,
“o direito civil constitucional parece estar em busca de um fundamento ético, que não exclua o homem e seus interesses não-patrimoniais, da regulação patrimonial que sempre pretendeu ser – não se projetam a expulsão e a redução quantitativa do conteúdo patrimonial no sistema jurídico e naquele civilístico em especial. O momento econômico, como aspecto da realidade social organizada, não é eliminável. A divergência, não certamente de natureza técnica, concerne à avaliação quantitativa do momento econômico e à disposição de encontrar, na existência da tutela do homem, um aspecto idôneo, não a humilhar a aspiração econômica, mas, pelo menos, a atribuir-lhe uma justificativa institucional de suporte ao livre desenvolvimento da pessoa”. (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil e Constitucional. Tradução Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 33)
Não há, por assim dizer, qualquer possibilidade de simplesmente se ignorar, diante da notável evolução do Direito como instrumento de tutela da pessoa humana, o seu valor matricial e fundamental na ordem existencial do mundo, as origens biológicas e afetivas da pessoa, seu reconhecimento interno e externo perante a sociedade, o mundo e as demais pessoas e a necessária convivência com outras pessoas, num microssistema constituído pela família, berço, amparo, reduto seguro, ponto de partida e chegada, porto seguro de todos nós.
O Direito Civil, portanto, há de ser mutável, flexível, poroso, permitindo que seja oxigenado e atualizado pelas mutações sociais resultantes da própria natureza humana de buscar, inovar e descobrir. A estagnação e a renúncia à mudanças conduzem à abdicação ao desenvolvimento, ao progresso e à aprendizagem.
O que é a aprendizagem, senão o movimento entre aquilo que foi há instantes e aquilo que ainda não é? Aprender é um embate, é um ranger de espadas. Aprender é um risco atraente, é o risco de estarmos novamente – e a cada instante – além de nós mesmos, do que é conhecido, do que já fomos, do que somos. Aprender é contar com o tempo a nosso favor, ter desprendimento suficiente para se afastar dos chamados “portos seguros” em busca do desconhecido. Somente assim se cresce. Afinal, como diz Cora Coralina, “todos estamos matriculados na escola da vida, onde o mestre é o tempo e o que vale na vida não é ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher”.
Faz-se vivo o ensinamento de Michel Serres:
‘Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo à parte que permanece aderente à margem do nascimento, à vizinhança do parentesco, à casa e à idéia dos usuários, à cultura da língua e à rigidez dos hábitos. Quem não se mexe nada aprende. Sim, parte, divide-se em partes. Teus semelhantes talvez te condenem como um irmão desgarrado. Eras único e reverenciado. Tornar-te-ás vários, às vezes incoerente como o universo que, no início, explodiu-se, diz-se, com enorme estrondo. Parte, e tudo então começa. Partir, sair. Deixar-se um dia seduzir. Tornar-se vários, desbravar o exterior, bifurcar em algum lugar. Eis as três primeiras estranhezas, as três variedades de alteridade, os três primeiros modos de ser e expor. Porque não há aprendizagem sem exposição” (SERRES, Michel. Filosofia mestiça. Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 27)
Pensar, refletir, conhecer, partir, ficar e aprender são questões que se colocam com a crise dos nossos padrões de valor, que não é apenas a da fragilidade dos códigos até então vigentes, mas os riscos de um modo de se conduzir segundo regras prévias e externas que retiram daquele que age a prerrogativa de pensar para decidir o que fazer em cada situação que se apresenta. Busca-se, assim, tornar concreta a afirmação de Heráclito de que “a todos os homens é compartilhado o conhecer-se a si mesmo e pensar sensatamente” (HERÁCLITO. Fragmentos. In: Os pré-socráticos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1978, p. 62 (B-116). (Coleção Os Pensadores).
E esse pensamento reflexivo há de ser compartilhado, democratizado, para que possa ganhar adeptos, opositores para o necessário tensionamento, para firmar-se, ou não, sendo, portanto importante que seja textualizado e exteriorizado.
E o que é fundamental para Hannah Arendt é que:
“Os pensamentos, para acontecer, não precisam ser comunicados; mas não podem ocorrer sem ser falados – silenciosa ou sonoramente, em um diálogo, conforme o caso […] e a razão – não porque o homem seja um ser pensante, mas porque ele só existe no plural – também quer a comunicação e tende a perder-se caso dela não tenha que privar; pois a razão, como observou Kant, não é de fato “talhada para isolar-se, para comunicar-se”. A função desse discurso silencioso […] é entrar em acordo com o que quer que possa ser dado aos nossos sentidos nas aparências do dia-a-dia; a necessidade da razão é dar conta […] de qualquer coisa que possa ser ou ter sido. Isso é proporcionado não pela sede do conhecimento […], mas pela busca do significado. O puro nomear das coisas, a criação das palavras é a maneira humana de apropriação e, por assim dizer, de desalienação do mundo no qual, afinal, cada um de nós nasce, como um recém-chegado, como um estranho.” (ARENDT, Hannah, A vida do espírito. Tradução A. Abranches, C. A. R. Almeida e H. Martins. 3ª ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 187)
Assim, neste início de século, com rompimento de barreiras, obstáculos, preconceitos, e no desfraldar de novos ares, novos conhecimentos e experiências, respaldados agora pela notável abertura semântica impulsionada pelo Código Civil e suas cláusulas e normas abertas, busca-se o conceito de família, a verdadeira face da filiação, da paternidade, da familia e dos motivos e fundamentos que conduzem as pessoas a permanecerem umas ao lado das outras, em pequenos núcleos de convivência ou ninhos de afetividade, como dito antes, sem qualquer outro tipo de imposição legal ou moral que assim o determine.
Esse porvir vem sendo descoberto e desvelado paulatinamente, com o amadurecimento dos relacionamentos e das próprias pessoas, penetradas e influenciadas pela sensibilidade e afetividade que permeiam toda e qualquer relação entre duas ou mais delas e que são as únicas verdadeiras condicionantes que fazem com que, ligadas ou não por vínculo sangüíneo, jurídico ou sexual, estejam e permaneçam juntas e felizes.
No entanto, a busca dessa nova e diferente fisionomia das relações familiares e filiais, fundamentada no afeto, há de ser feita em conjunto com sensíveis valores éticos, sob pena de se estar condenando à morte um novo e belo filho que ainda sequer nasceu.
Outra não pode ser a postura ética da jurisprudência diante de situações similares. Ainda que sejam alvo do preconceito ou se originem de atitudes havidas por reprováveis, o juiz não pode afastar-se do princípio ético que deve nortear todas as decisões. O distanciamento dos parâmetros comportamentais majoritários ou socialmente aceitáveis não pode ser fonte geradora de favorecimentos, preconceitos e discriminações. Não ver fatos que estão diante dos olhos é manter a imagem da Justiça cega. Condenar à invisibilidade situações existentes é produzir irresponsabilidades: é olvidar que a ética condiciona todo o Direito e, principalmente, o Direito de Família.
Afinal, renunciar a tudo isso, ao porvir, ao prazer da descoberta, à adrenalina do novo, é simplesmente renunciar à própria vida, como expressado na letra poética da canção “Cuide bem do seu amor”, de Herbert Viana:
“Cuide bem do seu amor
Seja quem for
E cada segundo, cada momento, cada instante
É quase eterno, passa devagar
Se seu mundo for o mundo inteiro
Sua vida, seu amor, seu lar
Cuide tudo que for verdadeiro
Deixe tudo que não for passar!”
Mas, para assim cuidar, exigem-se um cuidado, uma atenção e uma dedicação que são ingredientes certos e necessários ao espocar imorredouro do novo, do amanhã, das promessas da modernidade e, enfim, do sonho imaginado, existente, por certo, na parte mais íntima de cada um de nós: viver ao lado de quem se ama, para dividir os dias, as horas, os momentos bons e ruins, dedicando a vida a essa pessoa por um único e exclusivo argumento justificador – o amor.
6. A família reconstruída e repersonalizada na individualidade de seus membros
“Proteger a dignidade do ser humano é, possivelmente, a mais nobre função do Direito.” (Pietro Perlingieri)
A família migrou da configuração de um modelo hierarquizado matrimonial e patriarcal, com seu ápice no liberalismo, para um modelo típico da sociedade pós-industrial, que, da mesma forma, também não mais atende a uma perspectiva democrática e humana, tal como reivindicada na atualidade. Configura-se, dessa forma, a crise consubstanciada exatamente no fato de que os modelos existentes já não atendem às necessidades jurídicas, filosóficas e ideológicas dos tempos atuais, mas, por outro lado, ainda não se dispõe de outra configuração consagrada e aceita socialmente.
De qualquer forma, faz-se mister enfocar a família como instância de transmissão de valores formativos do indivíduo, na construção de sua organização subjetiva, em prol da realização do pressuposto de dignidade humana. Desse modo, supera-se o modelo clássico que entendia a família como ente a ser defendido e a família se encaminha para uma nova visão resultante da miscigenação do público e o privado, que só existe em função dos indivíduos que a compõem.
Essa proposta desfigura a função contratual do matrimônio como forma de construção de um núcleo familiar, priorizando outro paradigma respaldado exatamente na socioafetividade. Em outras palavras, “começam a surgir os sentimentos de igualdade, o que sinaliza um movimento gradual da família-casa em direção à família-sentimental moderna. Tendia-se agora a atribuir à afeição dos pais e dos filhos, sem dúvida tão antiga quanto o próprio mundo, um valor novo: passou-se a basear na afeição toda a realidade familiar” (ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2ª ed. Tradução Dora Flaksman. Rio de Janeiro: LTC, 1981, p. 235).
O estudo da família processa-se atualmente sob o signo da perplexidade, ante as surpreendentes transformações por que tem passado a estrutura familiar na contemporaneidade. De instituição assentada em valores tradicionais e conservadores, hoje é influenciada pela revolução sexual, pelo questionamento dos papéis do homem e da mulher em sociedade, pela desvinculação do ato sexual da função de procriar, pelos avanços tecnológicos que propiciam o prolongamento da vida humana e, principalmente, pelo avanço substancial da tutela das prerrogativas inerentes ao próprio ser humano no plano mundial e pela valorização da individualidade existencial que pretende caracterizá-la como o ninho acolhedor de todas as horas.
A doutrina mais conectada com essa realidade vem observando que:
“Ressignificar a família na função balizadora do périplo existencial é um imperativo nos dias que correm; reposicioná-la como guardiã de nossas identidades pessoais é condição sine qua non para a superação das ansiedades confusionais a que se está sujeito pelas características competitivas do mundo de hoje; revitalizá-las com o aporte de novas e mais satisfatórias modalidades de relacionamento entre seus membros é indispensável para se seguir aperfeiçoando a convivência humana; por fim, repensá-la é tarefa a ser por todos compartida, por sua transcendência com a condição humana”. (ZAMBERLAM, Cristina de Oliveira. Os novos paradigmas da família contemporânea: uma perspectiva interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 150).
Mesmo admitindo que o indivíduo, pela importância transcendental, deve ser considerado e valorizado consigo próprio, independentemente de estar envolvido em qualquer relacionamento (de ordem familiar, de negócios, profissional etc.) com outro, não se pode negar, no entanto, que é exatamente no contexto da socialidade que surgem os conflitos de interesses. Mas se pretende demonstrar que, independentemente desse relacionamento, o homem existe e compete consigo mesmo, no sentido de estar permanentemente em crescimento como pessoa.
A busca pelo aperfeiçoamento e aprimoramento da individualidade se constitui na razão básica da existência dos direitos da personalidade. É o homem evoluindo num processo de mudança permanente rumo a si mesmo, movimento incessante de transformação e evolução. Exatamente por isso, uma das características dos direitos da personalidade é sua vitaliciedade e, quando os direitos de personalidade alcançam o status de estarem inseridos na Constituição Federal, passam à categoria de liberdades públicas e recebem todo o sistema de proteção próprio.
Para superar essa aparente dificuldade, ensina Luís Roberto Barroso que “o princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo” (Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 54, 2001, p. 47). No entanto, isso não justifica a permanência das previsões constitucionais principiológicas apenas no campo abstrato, mas é preciso sua concretização, o que é obra, como dito anteriormente, de todos: de governantes ou não e, principalmente, do intérprete. Como acentua Konrad Hesse:
“Toda Constituição, ainda que considerada como simples construção teórica, deve encontrar um germe de sua força material no tempo, nas circunstâncias, no caráter nacional, necessitando apenas de desenvolvimento […] a Constituição, entendida aqui como Constituição jurídica, não deve procurar construir o Estado de forma abstrata. Ela não logra produzir nada que já não esteja assente na natureza singular do presente. Quanto mais o conteúdo de uma Constituição lograr corresponder à natureza singular do presente, tanto mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa.” (HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 17, 18 e 20)
Nessa linha de raciocínio, encontrar-se-á o princípio da dignidade da pessoa humana fortalecido e amparado pela Constituição Brasileira. Na ponderação de que todos os princípios devem estar a ele submetidos, esse princípio sobreleva-se a outros, de forma que a existência digna da pessoa como valor indispensável para a pacífica vida em sociedade (contrato social) está a indicar o caminho para que seja preservada a identidade e o direito à personalidade de cada pessoa, sob pena de se estar amesquinhando e diminuindo o valor maior sobre o qual se constrói uma sociedade justa e humana, qual seja o próprio direito à vida.
E, se assim o é, a ascensão do Direito Constitucional no Brasil e da própria Constituição a elemento central de todo o sistema jurídico, ao incluir o direito à dignidade humana entre os direitos fundamentais, subordinou e condicionou todo o restante das normas legais, pré ou pós-existentes à “filtragem”, de forma que a Constituição passa a ser, assim, não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Esse fenômeno, identificado por alguns autores como “filtragem constitucional”, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. A constitucionalização do direito infraconstitucional não identifica apenas a inclusão da Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.[9]
O direito de personalidade, como direito fundamental, buscará suas origens no cristianismo, visto que na Grécia, conhecida como o berço da civilização e da democracia, esse direito sequer era considerado. Segundo informa Maurício Beuchot (La persona y la subjetividad en la filología y la filosofía. Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, México, n. 16, 1996, p. 20), a filosofia grega não conhece o homem como ser de subjetividade por completo, visto que o pensamento dos filósofos helênicos acabou por sempre atrelar o homem ao destino ou ao objetivismo, não se alcançando uma noção de pessoa como indivíduo racional e possuidor de uma vontade atuante no mundo fático.
Fundada, então, essa concepção de pessoa, abriu-se o campo para a fomentação de seus direitos, inicialmente por meio do pensamento cristão, ao determinar este a dessacralização da natureza e da sociedade, libertando o homem de ser objeto para o transformar em sujeito, portador de valores (pessoa). Para a doutrina cristã, o fiel é aquele que está em relação com Deus, que fez o homem à sua imagem e semelhança. Contudo, o ser humano é dotado de livre-arbítrio e deve conduzir, na vida terrena, suas ações de acordo com essa liberdade. Permite, assim, um juízo de apreciação meritória na ação do indivíduo, pois, agindo de forma correta, encontrará o fiel a salvação.
A pluralidade humana, afirma Hannah Arendt, “tem esse duplo aspecto: o da igualdade e o da diferença” (A condição humana. 10ª ed. Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 188).
Exatamente essa diferença pode se constituir no sucesso ou no fracasso da experiência da passagem do ser humano pela terra, em razão e em conseqüência direta da efetiva disposição de nos ajudarmos mutuamente, na aplicação diuturna do princípio da solidariedade como forma de consecução de objetivos comuns de felicidade e plenitude e, em última análise, da própria preservação da espécie humana, densificada e mesmo condicionada à qualidade do relacionamento com seus iguais. Afinal, já afirmava Karl Marx que:
“Se se pressupõe o homem como homem e sua relação com o mundo, como uma relação humana, só se pode trocar amor por amor, confiança por confiança, etc. Se se quiser gozar da arte, deve-se ser um homem artisticamente educado; se se quer exercer influência sobre outro homem, deve-se ser um homem que atue sobre os outros de modo realmente estimulante e encorajador… Se amas sem despertar amor, isto é, se teu amor, enquanto amor, não produz amor recíproco, se mediante tua exteriorização de vida como homem amante não te convertes em homem amado, teu amor é impotente e um infortúnio”. (MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Ed. José Arthur Gianotti, tradução de José Carlos Bruni, José Arthur Gianotti e Edgard Malagodi. 4ª, ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 198)
Numa sensível progressão, vem o Direito, um tanto a reboque de outras ciências que lhe são afins, como a Sociologia e a Psicologia, resgatar o valor da relação afetiva entre pessoas.
7. O resgate do valor entre as pessoas
O que se pretende e se deve buscar, frenética e incessantemente, é a aproximação da Justiça com a justiça (ou seja, o Poder Judiciário com a equidade), resguardados os direitos e as prerrogativas individuais considerados como inatos a toda e qualquer pessoa. John Rawls, procurando dar conta da afirmação inicial de que cada pessoa tem a inviolabilidade fundada na Justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade pode anular, de forma que, numa sociedade justa, os direitos assegurados pela Justiça não estejam sujeitos à barganha política ou ao cálculo de interesses sociais, escreve:
“A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior compartilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto, numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual, são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais. Sendo virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça são indisponíveis.” (RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 3)
É essa Justiça que se anseia, humanizada, voltada à realização do ser humano e de seus direitos fundamentais. Contudo, e exatamente por ser feita e aplicada por humanos, é passível de erros e equívocos, que, se por um lado, não podem ser extirpados, devem ser, por outro lado, utilizados para o aprimoramento do sistema, para questionamento dos métodos utilizados e objetivos almejados, pois, afinal, como afirmou Platão, “uma vida não questionada não merece ser vivida”. A plenitude dessa vivência só poderá ser atingida se buscada com liberdade, que inclui a liberdade de errar para se ter a possibilidade de recomeçar, pois, como declarou Mahatma Gandhi, “A liberdade não tem qualquer valor se não inclui a liberdade de errar”.
Afinal, se, de acordo com Schopenhauer (apud ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2001, p. 43), o clássico representante do pessimismo filosófico em geral, todo prazer da Terra consiste em manter afastado o desprazer, segundo a teoria imperativista parece que tudo o que de positivo o Direito concede apenas consiste em não estar vinculado por imperativos, em estar liberto da penosa exigência do rigoroso dever-ser. Assim, como só nos apercebemos da meramente negativa libertação do desprazer quando a perdemos, assim como só aprendemos a apreciar o frescor da juventude, a saúde e a energia para o trabalho quando gradualmente desaparecem, também só damos conta da benção que representa a concessão de direitos quando os imperativos cada vez mais nos limitam a liberdade. Apenas sob o jugo do Estado totalitário, aprende o homem a apreciar de novo os perdidos direitos e liberdades fundamentais.
Sobre o tema, Ovídio A. Baptista da Silva desenvolve o seguinte raciocínio:
“Vivemos um tempo singular, que alguém qualificou de “a era da incerteza”. Além do “fim das certezas”, como disse Ilya Prigogine, um dos mais respeitados físicos contemporâneos, nossa era notabiliza-se por uma compulsiva e cada vez mais ampla destruição do que fora, na véspera, acolhido com entusiasmo. Como já dissera Karl Marx, numa frase que se tornou célebre, a modernidade faz com que “tudo o que seja sólido desmanche no ar”. As coisas que pareciam perenes, mesmo as coisas sagradas, ou aquelas tidas como naturais, como a família, acabam desfazendo-se, ante a voracidade das transformações culturais.” (SILVA, Ovídio A. Baptista da. Coisa julgada relativa?. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 93, vol. 821, 2004, p. 29)
Não obstante as inúmeras divergências entre as diversas teorias formuladas sobre o tema, as clássicas idéias do dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere) e do tratar os iguais na medida de suas desigualdades constituem cerne fixo de quase todas elas. A diferença básica entre os diversos conceitos de justiça consiste no preenchimento do espaço deixado por essas fórmulas, nos parâmetros determinadores do que é o de cada um e na delimitação das desigualdades relevantes.[10] Nas palavras de Luis Recaséns Siches: “El problema capital sobre la justicia no radica en la teoría de ella, sino el la medida de estimación que ella postula” (Introducción al estudio del derecho. México: Porruá, 1970, p. 387).
Em contrapartida, para Hans Kelsen, “o anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade” (O que é Justiça? Tradução Luis Carlos Borges e Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 2). Como o alcance da felicidade pelos seres humanos não é proporcionado pelos mesmos bens da vida, a justiça seria um valor relativo, dependente da concepção particular de cada indivíduo, o que impediria a construção de uma ordem social considerada justa por todos. Entre os diversos valores que informam a conduta humana em busca da felicidade, alguns são eleitos pelo legislador como fundamentais.
Tais valores são consubstanciados em normas jurídicas positivas, as quais, para o jurista austríaco, são o único parâmetro de que se dispõe para avaliar, de modo objetivo e seguro, a justiça de um evento. Sob esse prisma, o conceito de justiça transforma-se de princípio que garante a felicidade individual de todos em ordem social que protege determinados interesses, ou seja, aqueles que são reconhecidos como dignos dessa proteção pela maioria dos subordinados a essa ordem. Sendo o direito posto o parâmetro para a aferição do justo, a única solução injusta seria aquela que afastasse a aplicação do direito positivo.
8. A justiça conectada à modernidade e seus valores. A responsabilidade do julgamento
“O julgamento é uma, se não a mais importante atividade em que ocorre esse compartilhar-o-mundo.” (Hannah Arendt)
A justiça é muito mais utilizada para manter as minorias dominantes com a conivência de um poder tirado da classe média do que para servir de embate entre o máximo e o mínimo. Nessa liturgia, realmente, saem prejudicadas as categorias inferiores.[11]
Vê-se, sem grandes dificuldades, que a busca da justiça como equidade funda-se numa base filosófica e moral aceitável para as instituições democráticas. Para responder à questão de como atender às exigências da liberdade e da igualdade que têm como pressuposto a existência de uma sociedade formada por pessoas livres e iguais, afirma John Rawls:
“Para a justiça como equidade os cidadãos estão envolvidos na cooperação social, e, portanto são plenamente capazes de fazer isso durante toda a vida. Pessoas assim consideradas têm aquilo que poderíamos chamar de “as duas faculdades morais”, descritas como segue: I – Uma dessas faculdades é a capacidade de ter um senso de justiça: é a capacidade de compreender e aplicar os princípios de justiça política que determinam os termos eqüitativos de cooperação social, e de agir a partir deles (e não apenas de acordo com eles). II – A outra faculdade moral é a capacidade de formar uma concepção do bem: é a capacidade de ter, revisar e buscar atingir de modo racional uma concepção do bem. Tal concepção é uma família ordenada de fins últimos que determinam a concepção que uma pessoa tem do que tem valor, na vida humana ou, em outras palavras, do que se considera uma vida digna de ser vivida. Os elementos dessa concepção costumam fazer parte de, e ser interpretados por, certas doutrinas religiosas, filosóficas ou morais abrangentes à luz das quais os vários fins são ordenados e compreendidos.” (RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Organização de Erin Kelly. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 26)
O juiz não pode prostrar-se diante do caso concreto como uma máquina insensível. Sua atividade desenvolve-se com o objetivo de pacificar com justiça o conflito de interesses submetido à sua apreciação. Para tanto, não pode o julgador acomodar-se. Sob os influxos da lógica de lo razonable,[12] o juiz moderno é desafiado a assumir, cada vez mais, um papel ativo e criativo na interpretação da lei, adaptando-a, em nome da justiça, aos princípios e valores de seu tempo.
É este homem do direito atual que relê o que efetivamente restou de perene, após o desmoronamento de uma secular estrutura de dogmas, afastando de si a segurança da fossilização e da estagnação de conceitos e de normas, para admitir a abertura de castelos – ou de prisões – em prol da atenção às transformações geradoras da crise, em prol da vivificação dos valores da vida e dos anseios atuais.
É deste ser de incansável movimento e de infinitos sonhos que se está a falar. Fala-se de sua vivacidade, sua inteligência ímpar, sua aguda percepção dos fenômenos, sua supremacia na escala biológica. Tudo isso que o colocou em pé, uma primeira vez, prossegue agigantando-se em seu espírito, não lhe conferindo paz, serenidade ou repouso, mas, antes, incitando-o eternamente a caminhar além, a esmiuçar segredos e a constranger costumes ancestrais.
Esse caminhar desvenda-lhe outros mistérios, inova-lhe o espírito, estabelece novos horizontes de contemplação de sua ambientação jurídica. Fá-lo novo e faz novos os seus projetos. Por isso, novo há de ser também o direito que dimensiona e organiza a sua vida privada. O desafio, profetiza Luiz Edson Fachin, consiste em trocar práticas de medievo pelos saberes construídos às portas do terceiro milênio. E este é apenas o singelo ponto de partida rumo ao que abre o terceiro milênio. (Teoria crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 5).
Não se há, contudo, de destruir, mas sim desconstruir[13] o que se tem até agora, para que outro modelo possa emergir, possibilitando-se lançar um novo olhar a partir da perspectiva de se colocar, como centro de todo o sistema, o próprio ser humano, e não mais a propriedade, o contrato, o patrimônio ou qualquer outro valor típico do liberalismo e do individualismo que, não se duvida nem se questiona, teve seu momento e seu valor histórico, mas não pode ainda ser aceito num mundo moderno, globalizado e, acima de tudo, que se quer solidário e humano.
A função primordial do intérprete no Direito atual é essencial para explicar por que determinadas palavras podem fazer várias coisas, e não outras. Nas palavras de Karl Larenz, interpretar é uma atividade de mediação, pela qual o intérprete traz à compreensão o sentido de um texto que se lhe torna problemático. (LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997, p. 439).
Para essa atividade, o saber jurídico ocupa papel de relevo e não se restringe a um conjunto de códigos, mas tem de ser concebido como um processo de diálogo, de troca entre o ser e o mundo, necessariamente entendido como uma reação ao positivismo. A própria norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade, a sua essência reside no fato de que a relação por ela regulada venha a ser concretizada na realidade. E ela se complementa com a idéia de interpretação, trazida por Peter Häberle, de que “não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada” (Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – Contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997, p. 55).
Para ele, interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo à realidade pública, mesmo com espaço para participação das potências públicas pluralistas, concretizando-se uma interpretação democrática.
Fica-se aqui, com o primado de Paulo Bonavides (Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 399) para quem a interpretação jurídica, em si, é a reconstrução do conteúdo da lei, sua elucidação, de modo a operar-se uma restituição do sentido do texto viciado, obscuro ou não condizente com a realidade temporal-geográfica. Em verdade, a interpretação mostra o Direito vivendo plenamente a fase concreta e integrativa, objetivando-se na realidade. Observa Rogério Gesta Leal:
“se é verdade que a Modernidade não cumpriu com suas promessas emancipatórias à civilização ocidental, cumpre verificar como podemos conviver e solucionar os impasses que se apresentam no âmbito das demandas sociais emergentes, todas dizendo respeito à necessidade de concretização dos direitos assegurados pelas Cartas Políticas vigentes”. (Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 156)
Faz-se forte a responsabilidade dos intérpretes e aplicadores do Direito para que, num Estado democrático constitucional de direito, se adote o sistema de cláusulas abertas[14] como feito na Constituição e no Código Civil, por exemplo, com os conceitos como “pessoa”, “direito subjetivo”, “bem jurídico” e “regular funcionamento das instituições democráticas”.
Esse sistema permite modificar os significados sem necessidade de se alterar a lei “positiva” e, dessa forma, proceder à adequação de seus textos à realidade atual e histórica vivenciada pela sociedade no momento e por ocasião de sua aplicação.
Exatamente nesse contexto, John Rawls avança com a distinção entre um conceito de justiça e as diversas concepções de justiça. Ele afirma que as regras jurídicas
“tanto podem conter preceitos bem precisos, que não requerem nenhuma interpretação especial, posto que o seu significado é sempre o mesmo, as chamadas “concepções”, que o legislador quis que perdurassem como decisões globais de sistema, como podem incorporar ainda temas vagos, referências a padrões ou condutas, cuja concretização depende essencialmente das idéias do momento, os chamados “conceitos”, que reclamam dos juizes e dos tribunais uma complementação ou concretização posteriores.” (Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 22)
Afinal, não se está aqui mencionando acesso ou direito patrimonial ou que possa determinar a riqueza ou a miséria de uma pessoa, mas sim valor muito maior, muito mais elevado e essencial, que se relaciona com a própria vida da pessoa, com seu próprio significado no universo: a identidade do sujeito, seu reconhecimento como pessoa.
Talvez esteja aí o caminho e o fundamento mais íntimo da afirmação de que o elo maior que pode unir duas pessoas não é o legal, o contratual ou o biológico, mas sim o afetivo, que produz efeitos duradouros e plenos.
A Constituição, ao abandonar o casamento como único tipo de família juridicamente tutelada, abdicou dos valores que justificavam a norma de exclusão e passou a privilegiar o fundamento comum a todas as entidades, ou seja, o afeto, que é necessário para realização pessoal de seus integrantes. O advento do divórcio direto (ou a livre dissolução na união estável) demonstrou que apenas a afetividade, e não a lei, mantém unidas essas entidades familiares.
A afetividade é construção cultural que se dá na convivência, sem interesses materiais, os quais apenas secundariamente emergem quando ela se extingue. Ela se revela em ambiente de solidariedade e responsabilidade. Como todo princípio, ostenta fraca densidade semântica, que se determina pela mediação concretizadora do intérprete, ante cada situação real.
Paulo Luiz Netto Lobo (Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. 2004 a. Disponível em: <http://www.ibdfam.com.br/inf_geral.asp?codInf=297&CodTema=54&Tipo=1>. acesso em: 1 abr. 2004) afirma que a Constituição Federal abandonou a idéia clássica de que a família só se constitui pelo casamento. O autor vai mais longe quando conclui que, mesmo as demais formas de constituição familiar previstas na Constituição, não encerram em si as únicas possibilidades de construção do núcleo familiar e a exclusão de modelos familiares não expressamente previstos, não estaria na Constituição, mas sim no olhar vesgo e retrógrado do intérprete, que não acompanhou, na prática, a ideologia libertária e libertadora do legislador constituinte. Conclui Lobo:
“No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação, no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução “constituída pelo casamento” (art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas conseqüências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução “a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos”.
Mais uma vez, é fundamental o papel do intérprete como elemento determinante da realização e concretização das normas e princípios constitucionais consagradores dos direitos do ser humano.
Essa interação, esse ajudar mútuo, solidário e recíproco constitui-se, em verdade, num ponto de contato e similitude até mesmo entre duas formas de governo absolutamente diversas, e mesmo antagônicas, como são o liberalismo e o socialismo, que, na visão atualizadíssima de John Rawls, consiste no fato de que:
“A idéia de utopia realista reconcilia-nos com o nosso mundo social, mostrando que é possível uma democracia constitucional razoavelmente justa, existindo como membro de uma Sociedade dos Povos razoavelmente justa. Ela estabelece que tal mundo pode existir em algum lugar e em algum tempo, mas não que tem de existir ou que existirá. Ainda assim, podemos sentir que a possibilidade de tal ordem política e social, liberal e decente, é inteiramente irrelevante enquanto essa possibilidade não é concretizada.
Embora a concretização, não seja, naturalmente, destituída de importância, creio que a própria possibilidade de tal ordem social pode, ela própria, reconciliar-nos com o mundo social. Ela não é uma mera possibilidade lógica, mas uma possibilidade que se liga às tendências e inclinações profundas do mundo social. Enquanto acreditarmos, por boas razões, que é possível uma ordem política e social razoavelmente justa e capaz de sustentar a si mesma, dentro do país e no exterior, poderemos ter esperança razoável de que nós ou outros, algum dia, em algum lugar, a conquistaremos.” (O direito dos povos. Tradução de Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 167)
Esse é o desafio lançado ao Direito na modernidade. A sociedade exige dele atuação eficaz na concretização dos direitos humanos fundamentais, entre os quais está o direito à plenitude da personalidade, como inserido na Constituição Federal de 1988.
Para se entender o espírito que se pode considerar como ideal na leitura, interpretação e aplicação do Direito como instrumento de convivência social pacífica, convoca-se mais uma vez, e sempre, a lição de Miguel Reale, que, ao tentar esclarecer a relação entre o Direito e a felicidade, diz:
“Se os homens fossem iguais como igual é a natural inclinação que nos leva à felicidade, não haveria Direito Positivo e nem mesmo necessidade de Justiça. A Justiça é um valor que só se revela na vida social, sendo conhecida a lição que Santo Tomás de Aquino nos deixou ao observar com admirável precisão que a virtude de justiça se concretiza pela sua objetividade, implicando uma proposição “ad alterum”.” (Fundamentos do Direito. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 306).
Engendrando-se e acomodando-se o sistema jurídico à realidade, com os olhos sempre voltados ao valor precípuo e objetivo impostergável do Direito, que é a garantia efetiva dos direitos fundamentais, chega-se à conclusão de que tal valor passa pela consecução da felicidade, da plenitude e da realização pessoal e familiar, sem as quais haverá sempre um vazio a ser preenchido, um ponto obscuro de incerteza a acompanhar a pessoa durante toda a vida. Essa completude só se fará possível através da superação de obstáculos e dogmas ligados, normalmente, ao preconceito, ao prejulgamento e à discriminação, permitindo-se pensar num valor maior ligado ao afeto, à relação social entre as pessoas, o qual haverá de ser utilizado como parâmetro ao julgamento das lides e à solução dos conflitos.
Amor daqueles que unem pessoas de forma definitiva, ainda que um dia possa vir a não mais existir, mas que tenha valido a pena, eterno enquanto dure, que tenha sido daqueles que nos completa e nos mostra quanta beleza há a ser vivida, amor daqueles descritos pelo poeta dom Marcos Barbosa, que, de forma significativa, mostra que o princípio da vida é a felicidade e, como os princípios se interpenetram, o princípio da felicidade é o princípio do amor:
“Nossos caminhos são agora um só caminho, nossas almas uma só alma, os mesmos pássaros cantarão para nós, os mesmos anjos desdobrarão sobre nós as suas invisibilidades. Temos agora no espelho os nossos olhos, o teu riso dirá a minha alegria e o teu pranto a minha tristeza, se eu fechar os olhos, tu estarás presente e serás ao despertar, o sol que desponta. Iremos depois nos descobrindo nos filhos que crescem, e não mais saberemos distinguir em cada um, os teus e os meus traços, o teu e o meu gesto, e, então, nos tornaremos parecidos, e nem o mundo e nem a guerra e nem a morte poderá separar-nos. Que eu não tenha outro amparo da tua mão nem outro alimento do teu sorriso nem outro repouso do teu peito e, quando eu fechar os olhos para a grande noite, que sejam tuas as mãos que hão de cerrá-los, para quando os abrir para a visão de Deus possa contemplar-te como o caminho que me levou, dia após dia, à fonte de todo amor.” (BARBOSA, Dom Marcos. Cântico de núpcias. Disponível em: <www.secrel.com.br/jpoesia/mbarbosa1.html>. Acesso em: 4 jun. 2003)
9. O principio fundamental da igualdade entre as pessoas e a vedação de discriminação.
“A utopia está no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte se distancia dez passos mais além. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.” (Eduardo Galeano)
Para Hannah Arendt, “a igualdade não é um dado, mas um construído” (Entre o passado e o futuro: o conceito de história antigo e moderno. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 123), de forma que a todos cabe enfatizar a busca da aplicação e da concretização dos direitos humanos, notadamente quando alçados ao status constitucional que, num regime democrático de direito, impõe, possibilita e conta com a participação ativa e efetiva de todos.
É absolutamente atual a lição de Rousseau, quando perquire, no prefácio do “Discurso sobre a desigualdade dos homens”: “Como conhecer, pois, a origem da desigualdade entre os homens, a não ser começando por conhecer o próprio homem?” (apud DELBOSIN, Victor. A filosofia prática de Kant. Rio de Janeiro: Zahar, 1989, p. 99).
Há um sem-número de conceitos propostos por doutrinadores pátrios e estrangeiros para o que possa vir a ser direitos humanos. Mas é possível concluir que são aqueles inerentes à pessoa, que visam resguardar a sua integridade física e psicológica perante seus semelhantes e perante o Estado em geral, de forma a limitar os poderes das autoridades. Assim, garante-se o bem-estar social pela igualdade, fraternidade e proibição de qualquer espécie de discriminação. Como ressaltou Flávia Piovesan,
“[Discriminação] significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Logo, a discriminação significa sempre desigualdade.” (PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 206)
Uma análise, ainda que por demais sucinta, da nossa conformação constitucional, revelará que o sistema difuso é um mecanismo de controle de constitucionalidade que já fixou firmes raízes na prática institucional brasileira. Na atualidade, ele se densificou essencialmente por meio do recurso extraordinário (art. 102, III, CRFB) e demonstrou ser um valioso instrumento processual de dinâmica constitucional, por meio do qual os cidadãos podem levantar as suas pretensões e seus questionamentos. Ele contribui para a formação do que Häberle chamou de uma “sociedade aberta de intérpretes da Constituição” (Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – Contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997, p. 55), sendo possível afirmar que:
“Assim, no País, nosso controle de constitucionalidade pode dar-se como preliminar de mérito em qualquer processo, cível ou penal, de tal forma que todo cidadão tem o direito de se opor ou de argüir uma inconstitucionalidade e todo juiz ou tribunal, da primeira à última instância, não só pode, mas deve, como atividade típica e função intrínseca à jurisdição brasileira, apreciar a constitucionalidade de lei ou ato normativo de qualquer espécie, negando a aplicação de ‘comando’ eivado de inconstitucionalidade”. (CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 208)
No sentido inverso, uma forte corrente capitaneada por Gilmar Ferreira Mendes pugna pela ampliação e predomínio do controle concentrado. Para tanto, emprega um sofisticado arsenal teórico para restringir o controle difuso e pretende demonstrar que o modelo concentrado propicia maior segurança jurídica, pois é mais célere e uniforme em termos processuais. Afirma Gilmar Mendes que a Constituição Federal de 1988, ao aumentar o número dos que possuem legitimidade ativa para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, como exposto anteriormente, reduziu sensivelmente o alcance do controle incidental/difuso, “permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas” (MENDES, Gilmar Ferreira Mendes. O Poder Executivo e o Poder Legislativo no controle de constitucionalidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 134, abr./jun., 1997, p. 17).
As abordagens jurídicas que fortalecem demasiadamente o controle jurisdicional concentrado, em detrimento do tipo difuso ou incidental, se revelam discriminatórias.
Essa última espécie de sistema de controle de constitucionalidade, em razão de sua maior abertura e proximidade com a coletividade, permite uma constante e salutar atualização interpretativa do texto constitucional, que, em um paradigma democrático de direito, como o consubstanciado na Constituição de 1988, deve estar sempre apto a ser relido e tematizado por todos os seus interessados e destinatários.
A inserção dessa forma de controle, inserida no campo paradigmático do Estado democrático de direito na Constituição “cidadã” de 1988, marca uma profunda ruptura com as concepções jurídicas anteriores, já que, à luz dos princípios consagrados constitucionalmente, tomam enorme vulto garantias fundamentais e, por isso mesmo, inafastáveis de participação dos cidadãos, na esfera política ou jurisdicional, revelando que todos estamos autorizados a sermos intérpretes do texto constitucional, respaldando a nossa tradição de controle difuso.
Em outros termos, como ensina Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, “há muito tempo questões jurídicas deixaram de ser tão-somente um problema de experts para se tornarem questões de cidadania” (Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 165).
Verifica-se a dificuldade em se admitir que a sociedade civil, como um todo, seja co-intérprete necessária do texto maior, além da crença iluminista em que um método ou racionalidade infalível, no caso em questão, a Ação Direita de Constitucionalidade, seria capaz de produzir, ontologicamente, certeza e segurança jurídicas, na ilusão de que uma decisão, por si só, apenas por se fundamentar no argumento da “autoridade qualificada”,[15] se impusesse, em uma inútil tentativa de se exorcizar o risco da divergência, não reconhecendo que a democracia requer esse potencial dissenso em um consenso.
Como disse Peter Häberle:
“Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição”. (Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – Contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997, p. 15)
Assim, a possibilidade de uma participação/interpretação o mais difusa possível é considerada requisito essencial para se ter um sujeito constitucional democrático.
Salienta-se que todas essas afirmações possuem, como pano de fundo, o paradigma do Estado democrático de direito, no qual se deve buscar o reforço constante da tolerância com a diferença, com o outro, aferindo que a democracia é um projeto em contínua construção. Na democracia, a sociedade civil organizada é compreendida, em si mesma, como esfera pública, possuindo, dessa maneira, a tarefa de estar em vigília contra essa reiterada possibilidade de privatização.
Em outras palavras, em um Estado democrático de direito plural, no qual convivem projetos de vida os mais diversos possíveis, uma saída possível para se lidar com a complexidade que a modernidade impõe é ampliar e reforçar o modelo de controle de constitucionalidade difuso, tornando plausível que quaisquer temas ou interesses sejam nele levantados e discutidos e visualizando a democracia como um processo interminável, sem exigir uma segurança definitiva, no qual os membros desse mesmo Estado democrático de direito consigam se reconhecer como autores do ordenamento jurídico ao qual se submetem, em uma efetiva autolegislação.[16]
Na esteira de tais ensinamentos, faz-se vivo o tecido jurídico-social, composto por pessoas, instituições e representatividades das mais diversas ordens, na busca constante do aperfeiçoamento, otimização e humanização do Direito como instrumento hábil e eficaz à concretização e tutela plena dos direitos humanos e fundamentais.
Mas, de qualquer forma, mudanças não haveria nunca, não fossem os obstinados, não fossem os que, embora de forma inconsciente, seguem a lição do Corão: “Vá em busca do que o estiver inspirado e seja paciente”. É necessário continuar aprendendo, desfrutar os desafios e tolerar a ambigüidade, pois, em definitivo, não existem certezas. E o que estiver sendo feito com convicção, com dedicação, com seriedade, ética e desprendimento será muito mais importante do que aquilo que efetivamente for conseguido. Pelo simples fato de o estar fazendo, já será suficiente para a sensação de se estar participando do desenvolvimento do direito, visto como ciência da humanidade, voltada a atender às necessidades e expectativas do ser humano.
Basta, por ora, a certeza da necessidade do caminhar, do descobrir, do porvir para evitar a assertiva de Thomas A. Edison: A nossa maior fraqueza reside em que temos a tendência a abandonar. A maneira mais segura de conseguir os objetivos é sempre: tenta uma vez mais. (apud RIBA, RIBA, Lídia Maria. Nunca se renda. São Paulo: Vergara e Riba, 2002, p. 28).
Manter-se em vigília, permitir-se ser invadido por novas idéias e novos ideais, dar-se o direito de refletir, pensar, questionar e eventualmente mudar de opinião – esse parece o papel do jurista da modernidade, despido de conceitos preconcebidos, de feições imodificáveis, de verdades absolutas.
Não há qualquer valor científico, cultural e humano em manter-se alienado, alheio e de olhos vendados para as significativas mudanças que vêm sendo verificadas em todo o mundo e, principalmente, nas relações familiares e afetivas.
A sociedade como um todo está ansiando por um Judiciário forte o suficiente para não se deixar corromper pelas forças financeira e política, altaneiro o necessário para não se rebaixar ou se deixar levar pela vontade de agradar ou se pautar por interesses e valores outros, que não seja a busca de sua função precípua de distribuição de justiça de forma eqüitativa, equilibrada e isonômica, realizadora da Constituição Federal e dos projetos nela inseridos.
E este Poder Judiciário se quer cada vez mais distante daquele que foi herdado dos tempos de força, de épocas em que representava nada mais do que o “braço armado” do Poder Executivo, servil, submisso, dependente e sem a estatura moral que o caracterizasse como verdadeiro poder.
É deste Judiciário frágil, estigmatizado pelo privilégio, vergado pela decadência de escândalos envolvendo seus membros, em episódios, felizmente, minoritários, que o cidadão já está por demais enfastiado. O cidadão, agora, pugna veementemente por reforma, até para que possa ver o resultado final de seus processos ainda durante sua vida, ao contrário do que ocorre atualmente.
Nesse ambiente fragilizado, correntes menos interessadas na justiça se aproveitam para lançar teses que, no fundo, representam o engessamento do Poder Judiciário, transformando-o em mera instituição ou órgão como são a súmula vinculante, o controle externo e outros. É certo que:
“Muitos paises estão colocando as reformas legais e judiciais como parte de seus programas de desenvolvimento. Isso é resultado do crescente reconhecimento de que o progresso econômico e social não é atingível de forma sustentável sem respeito às regras fixadas nas leis e à consolidação democrática, e sem uma efetiva proteção dos direitos humanos amplamente definida; cada um desses pontos requer um bom funcionamento do Judiciário, que interprete e dê força às leis, equânime e eficientemente. Um Judiciário efetivo é previsível, resolve casos em um tempo razoável e é acessível ao público”. (BANCO MUNDIAL. Court performance around the world: a comparative perspective. 1999. (World Bank Technical Paper, n. 430).
Assim, não parece restar dúvidas de que a justiça se alcança por meio da tutela dos direitos constitucionalmente amparados e da legitimidade de suas decisões.
A legitimidade (ou legitimação) se alcança pela justificação, necessariamente ligada aos fundamentos dos direitos que, na lição de Ricardo Lobo Torres é um tema geral que se abre a diferentes respostas, inclusive positivistas (A Legitimação dos Direitos Humanos e os Princípios da Ponderação e da Razoabilidade. In: (Org.). Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 400) e, mencionando Luis Roberto Barroso – para quem parece derivar do Estudo do fundamento para o da legitimação: A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. (Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 54, 2001) –, afirma que a legitimidade do Estado moderno tem que ser vista, sobretudo, a partir do equilíbrio e harmonia entre valores e princípios jurídicos afirmados por consenso.
Ricardo Lobo Torres menciona Miguel Reale, para quem a questão da legitimidade está vinculada à própria validade ética, a qual é entendida como a “adequação do direito a valores e idéias aceitos pela comunidade”. Citando Habermas (Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 223-224), conclui que “a distinção entre legitimidade e legitimação, em síntese, está em que aquela se apóia no consenso sobre a adequação entre o ordenamento positivo e os valores, enquanto a legitimação consiste no próprio processo de justificação da Constituição e de seus princípios fundamentais”.
Após analisar os modelos de legitimação teológico, teleológico e contratual, este vinculando à liberdade, igualdade e fraternidade, Ricardo Lobo Torres explica que o Estado legitima-se por intermédio da manifestação da vontade geral e do contrato social, desde que prevaleça a tríade da Revolução Francesa. O autor informa que a legitimação do Estado advém, ainda, da liberdade, da justiça e da segurança dos direitos e que a doutrina da legitimação do Estado é desenvolvida por Hobbes, Locke, Rousseau e Kant da seguinte forma:
“Na teoria de Hobbes [Leviathan] a idéia central é a segurança dos direitos. O homem no Estado de Natureza era inimigo do homem e vivia permanentemente em guerra. Pelo contrato social abdica de uma parte de sua liberdade em favor do Estado, que, por seu turno, lhe garante a preservação dos direitos. […]
Com Locke há mudança de argumentação, e a liberdade ganha espaço na legitimação do Estado. A finalidade da união dos homens sob o Estado é a preservação da propriedade, que deve ser obtida pela legislação promulgada e conhecida pelo povo e dirigida à garantia da paz, segurança e bem público das pessoas.
Rousseau assenta a idéia de contrato social na liberdade com afirmar que “o que o homem perde pelo contrato social é a sua liberdade natural e um direito limitado a tudo que almeja e pode obter; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui”.
Na Filosofia de Kant a liberdade ocupa também lugar de destaque… É fruto do dever ser em que se constitui a máxima de que cada qual deve transformar o seu agir em regra universal de conduta. A partir daí há uma certa concordância entre liberdade e lei, o que se faz com que o Estado se legitime através de suas leis obtidas em liberdade”. (TORRES, 2002, p. 42.)
A segurança jurídica fundamentada apenas na força da lei acabou por perder sua credibilidade quando se realçou o Estado social, no qual preponderava a segurança social, e não a individual. Lobo Torres informa:
“A liberdade já se confunde com a só legalidade, senão que vai se abrir também para o diálogo com a justiça e a segurança. A justiça perde o conteúdo que se acreditou ter por intermédio de regras de ouro e passa a ser procedimental, aberta a regras que fundamentam a democracia. A segurança jurídica compreende também a segurança social que, através de princípios como os da dignidade humana e da cidadania, vai ganhar seu lugar na Constituição”. (2002, p. 445)
Nesse ponto, o autor propõe que mesmo os princípios da dignidade, da liberdade e da justiça devam sofrer a influência da ponderação, da razoabilidade, da transparência e da igualdade. Invocando Robert Alexy, diz que a legitimação da decisão judicial só pode derivar da argumentação jurídica racional, que a idéia de racionalidade discursiva apenas se realiza em um Estado Democrático Constitucional e que é impossível um Estado Democrático Constitucional sem discurso. (2002, p. 446).
Assim, as decisões emanadas do Poder Judiciário devem ser suficientemente justificadas, segundo os princípios da ponderação e da razoabilidade, para que possam ser consideradas legítimas – situação que se antagoniza com a simples técnica da subsunção, eminentemente positivista e despreocupada com os direitos fundamentais da pessoa humana.
Há de se manter conexão do caso em julgamento com a realidade fática e histórica, sujeitando-o ao teste de razoabilidade que procura a adequação entre meios e fins, sopesando as situações particulares diante de princípios constitucionais.
De que justiça se fala, que justiça se quer, quais são os instrumentos para buscá-la? A essas indagações responde o magistrado Antônio Ventura de forma absolutamente poética, mas pessimista:
“Um dia, minha bela, te disse que falaria da justiça. Olha que bela, com os cabelos desgrenhados que bem conhecemos. Mulher desfalecida, dos desalentos. Deveria ser dos ventos. Dos justos. Dos injustos. Mandar em todos. E não ser servil nem ao maltrapilho, nem ao Príncipe. A voz que diria, como acalanto, à criança nascida: criança, posso não lhe oferecer sempre o vento e os caminhos, mas acredita. Não darei para ti o direito dos poderosos. Por isso, fechei os meus olhos. Me deram uma venda para que não se corrompessem meus olhos. Mas estou cega. Me deram balanças bem pesadas, confundiram minha cabeça. A balança está desgovernada, pobre criança assustada por balas perdidas, assustada com o terror maior, num estado democrático, já não terás teu direito adquirido. Portanto, esqueças, ó criança, da justiça dos falíveis, homens das cavernas. Busque apenas o arco-íris, o pôr-do-sol. O mar, e se jogue no mar. Longe, no arco-íris, na areia… Porque a justiça foi dormir com os animais selvagens… Porque o resto, além do arco-íris e do mar e da areia, é o denso silêncio”.[17]
Tal justiça certamente se faz com uma série de qualidades e valores, até com o respeito ao processo dialético argumentativo que permite ao julgador manter-se eqüidistante em relação às partes.
Conforme acentua Otto Bachoff (Normas constitucionais inconstitucionais?. Tradução e nota prévia de José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994, p. 39-41), os direitos fundamentais deixaram de ser vazios ou outorgados por concessão do Estado, tornando-se direitos diretamente aplicáveis. Antes, os direitos fundamentais só valiam no âmbito da lei; hoje, as leis só valem no âmbito dos direitos fundamentais.
Como a ordem jurídica é formada de modo lento e gradual, encontrando-se na evolução histórica influência de correntes axiológicas diversas e conflitantes, os princípios básicos do ordenamento jurídico podem entrar em conflito quando analisados perante uma situação concreta.[18]
10. O compromisso do poder judiciário com a democracia e os direitos humanos
“O Direito deve ser sempre uma tentativa de Direito Justo, por visar à realização de valores ou fins essenciais ao homem e à coletividade.” (Miguel Reale)
A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito. Embora às vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo ou de espírito mais vivo que outro, ainda assim, quando tudo é considerado em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é tão considerável para que um deles possa, por causa disso, reivindicar para si algum benefício ao qual outro não possa aspirar, tal como ele. No que tange à força do corpo, o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, por maquinação secreta ou pela aliança com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.
Quanto às faculdades do espírito, encontra-se igualdade ainda maior entre os homens. O que talvez possa tornar essa igualdade incrível é apenas a concepção presunçosa da própria sabedoria, que quase todos os homens acreditam possuir em maior grau do que os outros, isto é, em maior grau do que todos os homens menos ele próprio e alguns outros poucos que, pela fama ou por concordarem com ele, mereceram sua aprovação. Mas isso prova que os homens são iguais também nesse ponto, e não desiguais. Não há, em geral, maior sinal de distribuição igual de alguma coisa do que o fato de cada homem estar contente com a sua parte. Dessa igualdade de capacidade, origina-se a igualdade de esperança de atingirmos nossos fins (HOBBES, Thomas. Da condição natural da humanidade, no que diz respeito à sua felicidade e desgraça. In: MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002).
Como, então, negar a uma pessoa o direito de saber e descobrir quem é ela, qual sua real e verdadeira identidade, podendo ser diversa daquela que lhe informaram, que se exterioriza como única?
Impõe-se, assim, ao juiz de nossos tempos adequar os instrumentos processuais antigos e, às vezes, anacrônicos às necessidades do direito material de hoje, já que, reconhecidamente, o direito processual não é um fim em si mesmo e só se justifica como instrumento de acesso e garantia da realização plena dos direitos que emergem da ordem jurídica material, de forma a buscar a concretização do direito maior de igualdade, pelo menos na possibilidade de que todos conheçam e possam desfrutar da convivência familiar.
Nessa perspectiva de estar vivenciando uma verdadeira revolução na aplicação do Direito, no aprimoramento da Justiça, busca-se aproximá-la do homem como centro de irradiação de todas as forças universais e a quem devem ser dedicados todos os esforços e dirigidas todas as ações para garantir a efetiva concretização de seus direitos fundamentais.
11. A pessoa: valor-fonte fundamental do direito
“Garantir a liberdade dentro de uma sociedade solidária é o desafio que se coloca. Liberdade para todos e não apenas para alguns. Liberdade que sirva aos anseios mais profundos da pessoa humana. De modo algum a liberdade que seja instrumento para qualquer espécie de opressão” (João Batista Herkenhoff)
Diante de tantas incertezas, revela-se fundamental a necessidade de uma reflexão crítico-construtivo desconstrutivista mais aprofundada em direção a um sistema jurídico liberto de distorções preconceituosas e estigmatizantes que, muitas vezes, impede-nos de pensar e de ver o que está diante de nós.
Essa necessidade se revela mais forte e premente quando esses sistemas dizem sobre as relações pessoais consistentes na união de pessoas (sem qualquer preconceito como homem/mulher, casamento etc.) não só originadas na natural necessidade gregária do ser humano, mas também na propensão humana a socializar-se, unindo-se a seus iguais.
Ao longo do tempo, o homem vem incorporando esses valores de importância transcendental, deixando para trás a época em que era considerado apenas e tão-somente como força de trabalho, quando seu valor era maior ou menor, conforme seu potencial de produção.
A sociedade evoluiu, o homem se modernizou e galgou atingir o status central na ordem jurídica mundial, a despeito de uma série de situações em que se configuram o desrespeito, a agressão a seus direitos mínimos existenciais. Essas situações talvez sejam fruto de uma política globalizante, fundamentada no lucro e no consumo. De qualquer forma, a sociedade vem experimentando, ainda que a duras penas, a força preceptiva da Constituição Federal em seu objetivo de garantia dos direitos fundamentais, ainda que mínimos.
De qualquer forma, os movimentos internacionais voltados à preservação e à proteção dos direitos humanos vêm ganhando força e prestígio, a ponto de que, em diversos países, inclusive o Brasil, os tratados que contem com a adesão formal são incorporados pela ordem jurídica com status de norma constitucional. Da mesma forma, tais direitos vêm sendo reconhecidos e incluídos nos textos constitucionais de diversos países. Se, por um lado, tal fato pode pouco representar diante de forças atuantes que inviabilizam, impedem e dificultam sua concretização, de outro, rende ensejo a que movimentos organizados a partir da força popular exerçam pressão política cada vez mais eficaz.
A atuação eficaz do Poder Público se mostra fundamental para a plenitude do exercício e a preservação da democracia, que tem como elemento primordial o homem, e o Poder Judiciário, que deve atuar com independência e consciência de sua importância, de forma a tornar real, palpável e concreta a norma até então prevista apenas no plano da abstração.
A força da hermenêutica se faz presente no sentido de buscar a interpretação das normas legais e constitucionais de forma que propicie e possibilite o respeito aos direitos humanos e fundamentais, até mesmo como forma de tornar concreto o mandamento de que todo o poder emana do povo, que, em certos momentos, vem sendo solapado pelo que se passou a denominar de “reserva do possível”.
Ao juiz incumbe a tarefa de efetivação dos direitos fundamentais, ainda que dele não seja exclusiva, preservando sempre os princípios da unidade da Constituição, sob o postulado da proporcionalidade. Alguns argumentam que, em tempos de crise, até mesmo a garantia de direitos sociais mínimos poderia colocar em risco a necessária estabilidade econômica, impondo-se o “embalsamamento” do Poder Judiciário. No entanto, é importante salientar, com Alexy, que, justamente em tais circunstâncias, uma proteção de posições jurídicas fundamentais na esfera social, por menor que seja, revela-se indispensável. Talvez seja uma tarefa que melhor caberia a Deus, visto que:
“Desde que Deus se retirou da vida política (e se despediu da história), seu cargo na estrutura funcional não foi declarado vago.
Assim como outrora ELE, o povo foi desde então usado da boca para fora e conduzido aos campos de batalha por todos os interessados no poder ou no poder-violência, sem que antes lhe tivessem perguntado. A diferença reside no fato de que o povo poderia ter sido perfeitamente consultado. Mas nesse caso os donos do poder deveriam ter se contentado com a população real, e nesse caso resultariam sempre desejos distintos, o caráter heteróclito das necessidades, a contraditoriedade dos interesses, a incompatibilidade das intenções, em suma, a situação real. Em vez disso, e provavelmente também por causa disso, a despedida de Deus não foi aceita sem ambigüidades. E o dono do poder (juntamente com os seus adversários que queriam tornar-se donos do poder) criou o povo conforme a sua imagem; conforme as suas necessidades e o seu gosto ele o criou.
E a democracia? Mesmo lá onde se pensou na população e se tentou instituir seu governo, a seletividade de cada invocação d”o” povo (e mesmo “d”a população) acabou por se impor diabolicamente: o deus evidenciou ser dificilmente exorcizável (diferenças de informação, de cultura, de camada, de classe, de linguagem; manipulação; estrutura de vigência jurídico-institucional). Por trás do lado vitrine do Uno Ponto de Convergência de todas as legitimações pel”o povo” pulula e atua o politeísmo real (i.é., dos constituent groups, das classes decisoras, dos que são capazes de articulação e poder-violência (poder) entre grupos).” (MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o poder constituinte do povo. Tradução de Peter Naumann. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 21-22)
Veja-se que, mesmo quando se cuida do soberano poder do povo, há que se voltar os olhos para o que existe por detrás, quais as forças que atuam e, eventualmente, se elas servem do povo apenas e tão-somente como massa de manobra. No entanto, com a evolução da espécie humana, com o maior acesso ás informações, com a conscientização de que o progresso de qualquer povo está a depender dele próprio, de sua força revitalizadora e, até mesmo, revolucionária, quando necessário, o que só ocorre com educação e cultura, buscar-se-á um sopro de esperança para a transformação do mundo, em definitivo, num lugar pacífico e apto à realização do sonho maior da humanidade de viver plenamente e em paz.
Neste clima de progresso e novos ares, a instituição familiar experimenta significativas e profundas mudanças, pugnando e vivenciando importante ruptura com os conceitos e parâmetros que a nortearam, ao longo dos séculos. Nesse processo, passou a ser vista e vivida como locus apropriado ao desenvolvimento do ser humano, quer sejam os filhos, quer os cônjuges, que, nesta versão moderna, romperam também com a necessidade do matrimônio formal, contratual e mesmo religioso, para que sejam considerados como verdadeiros parceiros, companheiros, enfim, pessoas que, de forma consciente e independente, resolveram viver juntas, dedicando suas atenções, carinhos e afetos, ao mesmo tempo em que dividem angústias, temores e decepções. Exatamente nesse terreno fértil de sentimento, de afetividade, de dedicação, busca-se o “enquadramento” do ser humano na condição de companheiro.
Inolvidável concluir-se, igualmente, que um novo conceito de união afetiva está sendo construído, fruto da crise caracterizada pelo fato de que os existentes já não mais atendem às características atuais dessa condição, nem dão conta de abarcá-las. Os conceitos existentes estão sendo desconstruídos, e há um questionamento das formas contemporâneas de surgimento. No dia-a-dia, uma vastíssima variedade de famílias está se constituindo pela união de pessoas que não necessariamente tenham vínculos jurídicos ou sanguineos, mas, mesmo assim, elas formam novos núcleos familiares – que têm como elo principal o afeto – e são passíveis, portanto de reconhecimento e tutela.
Diante das circunstâncias que passaram a regulamentar o matrimônio e sua desconstituição, com relativa facilidade, os segmentos mais conservadores da sociedade sentenciaram a desagregação total e completa da família, fruto da libertinagem, da liberdade sexual, da ânsia cada vez maior de buscar a tão propalada liberdade. Mas verificou-se exatamente o contrário. Após um primeiro momento em que esses receios podiam parecer justificados, passou-se a uma segunda fase, em que as famílias, já libertas das amarras do contrato, ou mesmo do receio de “queimarem no fogo do Inferno ou de serem excomungadas”, passaram a formar novos núcleos, ligados exclusivamente, ou principalmente, por força do amor, da fraternidade, da solidariedade e do afeto.
Porém, esse ingrediente, fundamental, importante, essencial para a manutenção de qualquer relacionamento, familiar, profissional, amoroso, contratual ou de qualquer outra ordem, é simplesmente ignorado quer pelo legislador ordinário, quer pelo constitucional. Na verdade o que se verifica é a tendência de o sistema positivado relegar ao plano da inexistência aquele que se apresenta como o mais forte e talvez o único elemento que possibilite a manutenção e o fortalecimento dos laços familiares.
No entanto, também respirando ares de modernidade, fruto do fortalecimento do regime democrático, alicerçado na Constituição Federal e na perseverança propulsora contida na efetividade dos princípios nela inseridos, demarca-se ordem jurídica que busca a Justiça, de forma constante e obstinada, alçando a pessoa humana à condição de fundamento e fim de todo o Direito, como professa Miguel Reale (A pessoa, valor-fonte fundamental do Direito. In: Nova fase do Direito Moderno. São Paulo: Saraiva, 1990)
Por esse motivo, toda a normatização legal e os princípios constitucionais encontram sua razão e origem no homem e na sua liberdade, daí o papel fundamental do Direito enquanto técnica de convivência indispensável para a manutenção e reforma, quando necessária, da sociedade, fundamentadas em procedimentos que, enquanto legalidade, conferem qualidade ao exercício do poder, sendo por isso mesmo, indispensáveis, dada a relevância entre meios e fins e o nexo estreito que existe entre procedimentos e resultados. Não se fala, aqui, da liberdade fundada no princípio da igualdade formal, segundo a concepção do liberalismo clássico, que entendia que o Estado deveria abster-se de quaisquer intervenções na vida econômica e na vida social. A partir do momento que foram abolidos os privilégios, desigualdades artificiais, cada cidadão poderia desenvolver livremente as suas aptidões segundo as suas qualidades pessoais.
Estaria, assim, garantida a igualdade de oportunidades – a igualdade verdadeira, aquela que consiste em tratar igualmente coisas iguais e desigualmente coisas desiguais –, idealizada na República de Weimar e em sua Constituição de 1919, que inaugurou, na Alemanha, o Estado social de direito.
Esses ares solidários e protetivos se fizeram sentir no Direito norte-americano por meio da jurisprudência que se formou em torno da V Emenda da Constituição (1791), resultando no due process of law e com a inclusão, em 1868, da XIV Emenda da cláusula equal protection of the law, que viria a ser o suporte do controle e respeito pela igualdade.
Escreve a respeito Carlos Roberto Siqueira Castro:
“O princípio da igualdade articula-se com o princípio da dignidade da pessoa humana, por seu significado emblemático e catalizador da interminável série de direitos individuais e coletivos sublimados pelas constituições abertas e democráticas da atualidade, acabou por exercer um papel de núcleo filosófico do constitucionalismo pós-moderno, comunitário e societário […]. Nesse contexto de novas ordens e novas desordens, os princípios e valores ético-sociais sublimados na Constituição, com a proeminência do princípio da dignidade de homens e mulheres, assumiram o papel de faróis de neblina a orientar o convívio e os embates humanos no nevoeiro civilizatório neste prólogo do novo milênio e de uma nova era. […] Afivelados estão os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, enquanto elementos de utopia concreta que atendem as perspectivas constitucional-humanitárias. Assim é que a dignidade da pessoa humana (art. 1o, inc. II da CRFB) consta do rol dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.” (apud ABREU, Sérgio. O princípio da igualdade: a (in)sensível desigualdade ou a isonomia matizada. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (Orgs.). Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 253-267).
Assim, no plano jurídico e em tudo o mais, o homem é a medida de todas as coisas. Nunca pareceu tão oportuna a célebre frase do sofista grego Protágoras: O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são. (FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997).
Esse homem, centro dos direitos, ainda carrega o fardo do passado carcomido, fruto de um liberalismo que pregou e conduziu ao capitalismo selvagem, que o manteve por muito tempo, apenas como valor enquanto ser produtivo e consumidor. Quando já não mais pudesse ser uma coisa ou outra, era tratado como de nenhuma serventia e simplesmente relegado ao abandono e descartado. Ainda que atualmente se experimente o crescimento da visão social do Direito, não raro se vêem filas de velhinhos nas portas de repartições públicas, praticamente esmolando os direitos pelos quais pagaram a vida toda; filas quilométricas de pessoas em busca de um emprego, ainda que de reduzida remuneração; crianças exploradas em sinais de trânsito, em busca de uma migalha para comer, longe da escola, da família e das mínimas condições de concretização do sonho dourado de formar uma personalidade sadia, não lhes restando outro caminho ou alternativa que não seja o único trabalho que lhes será oferecido – a criminalidade.
Não obstante, constitui a dignidade um valor universal. A despeito das diversidades socioculturais perversas e de todas as diferenças físicas, intelectuais, psicológicas, as pessoas são detentoras de igual dignidade, embora diferentes em suas individualidades. Elas apresentam, em função da humana condição, as mesmas necessidades e faculdades vitais, e o respeito não pode ser considerado como generosidade, mas sim como dever de solidariedade imposto a todos pela ética, e não necessariamente pelo direito, pela religião ou por outra qualquer força estruturante.
Schopenhauer, em Sobre o fundamento da moral, escreveu:
“[o] egoísmo humano é sem limites e comanda o mundo, pois o homem quer tudo dominar, o homem relacional pretende que tudo exista e gire em torno de seu interesse, ainda que esse interesse seja dirigido a uma recompensa a ser recebida fora deste mundo. A própria cordialidade entre homens nada mais é do que a mera hipocrisia reconhecida e convencional”. (SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 85)
Apesar dessa visão pessimista, não há de se perder a esperança no homem.
De qualquer forma, a dignidade humana constitui princípio fundamental. Por esse motivo, independe de previsão legal (e até mesmo constitucional, pois é valor da humanidade) para que seja respeitada, mas, quando inserida no texto constitucional, ganha visibilidade e possibilidade de aceitação, até mesmo por aqueles positivistas mais arraigados à caolha e insuficiente visão de Direito.
Nesse caminhar, sendo o Direito também integrado por princípios gerais, escritos ou não, que dão suporte a todo o ordenamento jurídico, vem sendo propagada a idéia de que o Direito é um sistema não apenas de regras, mas também de princípios que operam, já não mais como fontes subsidiárias, mas sim primárias e prevalentes, sobrepondo-se inclusive aos textos legais. Esse movimento convida ainda a que sejam interpretados de forma abrangente e expansiva, alçando o intérprete e aplicador da norma à condição de responsável pela concretização dos direitos humanos.
É interessante assinalar que essa tendência só passou a ser aceita com um pouco menos de reação muito recentemente, sendo por demais relevante a corajosa contribuição de estudiosos (no exterior, citam-se Ronald Dworkin, Robert Alexy, John Rawls e J. J. Canotilho; no Brasil, Paulo Bonavides, Luís Roberto Barroso, Daniel Sarmento, Miguel Reale, João Herkenhoff, Luiz Edson Fachin, Gustavo Tepedino, entre outros) de uma escola progressista, humanitária e voltada à efetiva valorização do ser humano que se dispõe a lançar o desafio à reflexão, como feito por Luiz Edson Fachin: Recusar essa direção e contribuir para a sua superação significa reconhecer que consciência social e mudança integram a formação jurídica. Representa, ainda, um compromisso com o chamamento à verdadeira finalidade do ensino e da pesquisa jurídica, um desafio que questiona. (Virada de Copérnico – Um convite à reflexão sobre o Direito Civil brasileiro contemporâneo. In: FACHIN, Luiz E. (Coord.). Repensando os fundamentos do Direito Civil Brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 319).ade do ensino e da pesquisa jur 00000000u a denominar de “adoxal, por proteger tanto a pobres como a ricos,
Considerando, portanto, sua aplicabilidade direta e imediata, os princípios impregnam, com toda sua carga valorativa, as normas jurídicas, relacionando-se de forma mais próxima com os direitos da personalidade e os direitos fundamentais.
Pari passu com essas idéias, ganharam força as normas legais de conteúdo aberto, o enfoque do ordenamento jurídico permeável, necessitando sempre da complementação, integração e atualização, que são funções do intérprete. Deve-se admitir também que essa mudança de paradigma não ocorre sem muita e forte reação de um segmento reacionário, mas ainda majoritário, que atua no Direito. Não raro, quando o tema é posto em debate, ouve-se o argumento de que essa visão supostamente abstracionista acarretaria insegurança na aplicação das normas, rendendo ensejo ao arbítrio do intérprete. Porém, refletindo responsavelmente sobre o assunto, não se pode esquecer o fundamento de que também para esse sistema há regras de hermenêutica.
Assim, a concretização dos direitos fundamentais, entre os quais o princípio da dignidade humana, vem ganhando, a duras penas, fôlego e respaldo da doutrina mais oxigenada, embora haja forte, porém decrescente, reação da jurisprudência, fruto do tradicionalismo que domina os tribunais, não raro avessos a mudanças.
Exatamente essa forma de pensar e de agir põe o Poder Judiciário em xeque, afastado da sociedade, desconhecedor do jurisdicionado, com procedimentos arcaicos e ineficientes, com rituais extremamente longos e demorados, que geram desconfiança da população e lhe solapam a credibilidade. Nesse contexto, já se faz tardia a oportunidade de profunda e sensível reforma, não só nos procedimentos, mas, principalmente, na forma de pensar de seus componentes.
Essa linha de argumentação indiscutivelmente demanda que se busquem e propiciem, cada vez mais, espaços de interlocução e possibilidade de pensamento dialético e inovador. Torna-se mister seguir os passos do legislador constitucional que iluminou e pavimentou o caminho posteriormente traçado pelo novo Código Civil, notadamente no que se refere à sua aplicação e interpretação, de forma a corresponder aos anseios dos cidadãos, servindo como sinalizador para a construção de uma sociedade mais igualitária, mais justa, menos preconceituosa e discriminatória, na qual a família seja um verdadeiro LAR: Lugar de Afeto e Respeito.
Esse debate inovador e, de certa forma, desafiador faz parte de uma forma diferente de pensar o Direito, não como conjunto de regras positivadas e impositivas, aplicadas pela fórmula da subsunção, mas como forma libertadora, resultante da educação continuada. Trazendo a lume as sábias palavras de Luiz Edson Fachin, cabe recordar que, “em todo campo do saber (daí a pertinência quiçá especial com a instância jurídica), há o desafio de conhecer para transformar, pois a educação que tão-só reproduz não liberta”.
É pertinente invocar ainda os ensinamentos de Paulo Freire: A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa. (FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 42).
Ácido, mas também, há que se reconhecer, absolutamente real e atual, é o posicionamento de Marilena Chaui:
“as leis, porque exprimem os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes, não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas. O poder Judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, por um lado, incompreensível e, por outro, ineficiente (a impunidade não reina livre e solta?) e que a única relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”). Como se observa, a democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada”. (op. cit. p. 408)
Talvez a contribuição do Direito seja exatamente propiciar, estimular e mesmo forçar o fortalecimento do regime democrático, transpondo-o da teoria à prática e fundando novos paradigmas originados na relação sincera e solidária entre as pessoas. O Direito deve se transformar num espaço de diálogo e interlocução dotado de respeito e ter, na prevalência do homem e na preponderância dos direitos a ele relativos, seu valor maior.
11. Em busca de um paradigma – a afetividade
“A tolerância e a liberdade na multiplicidade de formas e caminhos a seguir para os pesquisadores trouxe também uma nova intolerância e radicalismo daqueles que, com medo do outro, do novo, do diferente, ou mesmo com medo do antigo, do tradicional, do ainda francamente majoritário no cenário jurídico nacional, tentam impor uma só maneira de pensar, uma só forma “teoricamente científica” de pesquisar, uma só metodologia, um só discurso e linguagem, uma só linha de pensamento na academia”. (Cláudia Lima Marques)
Parece razoável, a esta altura do texto, e após tudo quanto se afirmou, questionou e discutiu, observar que os valores lançados nas leis e na própria Constituição Federal, como fundamentais para construção e existência de uma família (casamento ou união estável entre pessoas de sexos diferentes), já não atendem às necessidades da realidade atual.
As pessoas, já libertas de algemas apregoadas pelo moralismo exacerbado, por questões religiosas ou até por imposição da saúde pública (por exemplo, a necessidade de frear a epidemia da Aids), ligam-se e mantêm relacionamentos estáveis, duradouros, que frutificam e geram filhos, que são criados em clima que lhes é propício à formação da personalidade, apenas e tão-somente se assim o desejam, ou seja, se há um elo subjetivo, afetivo, sentimental e ético que seja suficientemente forte e capaz de assim mantê-los.
Este valor – a afetividade – está a merecer maior atenção de estudiosos do direito, da psicologia e da sociologia para que seja alçado ao status de relevância que atualmente representa, de extrema importância à felicidade e à plenitude da pessoa humana, reconhecida agora como destinatária e astro maior de todo o sistema jurídico constitucionalizado e calcado sobre a preponderância dos seus direitos fundamentais.
Não há mais como ignorar que o Direito Civil atual é outro, remodelado, com novos paradigmas, constitucionalizado e oxigenado por valores e fundamentos diversos daqueles que apoiavam e alicerçavam o Código Civil de 1916, fruto do liberalismo exacerbado que elegeu a propriedade e o patrimônio como forças centrais do ordenamento legal, pois
“Este Direito Civil “repersonalizado” que se ancora em princípios e fins para além da suposta autonomia e pretensa igualdade; sem carpir-se no futuro acontecido ontem, saudar o reconhecimento da pessoa e dos direitos da personalidade, mesmo que seja para prantear os não reconhecidos, os excluídos de todos os gêneros; no véu da liberdade contratual encontrar mais responsabilidade que propriedade, menos posse na formação epistemológica do núcleo familiar; e fotografar a legitimidade da herança e direito de testar na concessão que também outorga personalidade jurídica aos entes coletivos. E aí filmar o roteiro das tendências contemporâneas”.(FACHIN, 2000, p. 6)
Na mesma senda, pode-se colher o ensinamento de Orlando de Carvalho, que, explicando o significado de “repersonalização”, afirmou:
“É esta valorização do poder jurisgênico do homem comum – sensível quando, como no direito dos negócios, a sua vontade faz lei, mas ainda quando, como no direito das pessoas, a sua personalidade se defende, ou quando, como no direito das associações, a sua sociabilidade se reconhece, ou quando, como no direito de família, a sua afetividade se estrutura, ou quando, como no direito das coisas e no direito sucessório, a sua dominialidade e responsabilidade se potenciam – é esta centralização do regime em torno do homem e dos seus imediatos interesses que faz do Direito Civil o foyer da pessoa, do cidadão puro e simples.” (CARVALHO, Orlando. A teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Centelha, 1981, p. 92)
Como disse Vinícius de Moraes, “a vida é a arte do encontro, apesar de tantos desencontros”. É preciso permitir que o aconchego e a afetividade sejam as forças motrizes de uma construção constante do ser humano pleno, digno, realizador e concretizador dos anseios de modernidade, que resultará, finalmente, num homem feito à imagem e semelhança daquele que nos criou a todos, mas que, por tanto tempo, insistimos em ser exatamente o contrário do que nos foi ensinado.
No entanto, ao final e ao cabo, sempre buscando um recomeço, sem se deixar esmorecer pelas eventuais quedas, tropeços e objetivos não atingidos, mas, de qualquer forma, tirando lições dos erros, na busca constante da convivência pacífica, humanizada e afetiva entre os seres humanos de conformidade com a realidade social atual, plúrima, múltipla, flexível e em constante movimento.
Fatos marcados por êxitos e tropeços cunham o que se pode chamar de vida, como observou Lya Luft:
“A história mais difícil de escrever é a nossa própria, complexa, obscura, inocente ou perversa – bem mais do que são as narrativas ficcionais.
Brinquei muito tempo com a idéia de dizer “sim” ou “não” a nós mesmos, aos outros, à vida, aos deuses, como parte essencial dessa escrita de nosso destino – com os naturais intervalos de fatalidades que não se podem evitar, mas têm que ser enfrentadas.
Acredito em pegar o touro pelos chifres, mas vezes demais fiquei simplesmente deitada e ele me pisoteou com gosto. Afinal, a gente é apenas humano.
Nessa difícil história nossa, de dizer sim ao negativo, ao sombrio em lugar de dizer sim ao bom, ao positivo, é o desafio maior. Pois a questão é saber a hora de pronunciar uma ou outra palavra, de assumir uma ou outra postura.
O risco de errar pode significar inferno ou paraíso.
Também descobri (ou intentei?) isso de existir um ponto cego da perspectiva humana, em que não se enxerga o outro, mas apenas um lado dele: seu olho vazado, sua boca cerrada, seu coração amargo.
Sua alma árida, ah…
O ponto cego das nossas escolhas vitais é aquele onde a gente pode dizer “sim” ou “não”, e nossa ambivalência não nos permite enxergar direito o que seria melhor na hora: depressa, agora.
O ponto mais cego é onde a gente não sabe quem disse “não” primeiro. E todos, ou os dois, deviam naquele momento ter dito “sim”.
Viver é cada dia se repensar: feliz, infeliz, vitorioso, derrotado, audacioso ou com tanta pena de si mesmo. Não é preciso inventar algo novo. Inventar o real, o que já existe. Nosso drama é que às vezes a gente joga fora o certo e recolhe o errado.
Da acomodação brotam fantasmas que tomam a si as decisões: quando ficamos cegos não percebemos isso, e deixamos que a oportunidade escape porque tivemos medo de dizer o difícil “sim”.
O “não” também é um ponto cego por onde a gente escorre para o escuro da resignação.
O ponto mais cego de todos é onde a gente nunca mais poderá dizer “sim” para si mesmo. E aí tudo se apaga. Mas com o “sim” as luzes se acendem e tudo faz sentido.
Dizer “sim” a si mesmo pode ser mais difícil do que dizer “não” a uma pessoa amada: é sair da acomodação, pegar qualquer espada – que pode ser uma palavra, um gesto, ou uma transformação radical, que custe lágrimas e talvez sangue – e sair à luta.
Dizer “sim” para que o destino nos oferece significa acreditar que a gente merece algo parecido com crescer, iluminar-se, expandir-se, renovar-se, encontrar-se, e ser feliz.
Isto é: vencer a culpa, sair da sombra e expor-se a todos os riscos implicados, para finalmente assumir a vida”. (LUFT, Lya. Pensar é transgredir. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 15.)
Essas palavras, esse pensamento e, acima de tudo, esse sentimento de pacificar, de partilhar de forma fraterna e solidária os conhecimentos e direitos, hão de ser aplicados e interpretados na busca do consenso da convivência respeitosa dos contrários, como professa a ancestral sabedoria chinesa que se caracteriza pela insaciável busca de integração dos opostos e da harmonização das forças, principalmente psíquicas. Segundo informa o teólogo Leonardo Boff (2004):
“nós ocidentais, somos herdeiros de um pensamento linear que trabalha constantemente com o princípio da identidade e de contradição, tardiamente enriquecido pela dialética. Nossa postura antropológica nos fez imperialistas e dominadores de todas as diferenças. Ou elas são incorporadas na mesmice ocidental ou subalternizadas e até destruídas. A sabedoria procura sempre incluir os opostos. Tal postura vem expressa pelo famoso tai-ki, o círculo dentro do qual se entrelaçam como que duas cabeças de peixe. É a presença das duas forças universais – ying e yang (céu e terra, luz e sombra, masculino e feminino) que entram na composição de todos os seres. Ying e Yang concretizam o shi, a energia primordial e misteriosa que sustenta tudo, chamada de Tao. Tao é mais que caminho é a energia pela qual fazemos o caminho e que possibilita qualquer realidade”. (BOFF, Leonardo. Sabedoria chinesa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 maio 2004)
Talvez seja esse o sentimento a animar todos quantos se tenham dado conta de que o Direito existe em função do homem, e o homem é muito mais do que matéria e patrimônio, é alma, espírito e coração. Assim, há de se iniciar (ou continuar) a séria intenção de buscar caminhos que possam conduzir à efetiva concretização dos direitos fundamentais do ser humano no interior do sistema jurídico vigente.
Esse Direito mais humanizado deve ser observado com as lentes libertadoras da democracia, sem compromisso com a preservação do que se ponha como afronta à pessoa como centro do universo, fonte e destino de todas as forças catalisadoras voltadas à sua plena realização individual, familiar, coletiva e social.
Há que se buscar um paradigma que atenda a realidade inafastável e impossível de se ignorar que é representada por um valor maior que se faz forte, pujante e definitivo, que é a socioafetividade. Sem isso, continuará o sistema jurídico a gritar para surdos, a escrever na areia da praia, afastando-se cada vez mais da legitimidade necessária às decisões judiciais.
12. Considerações finais
A globalização comporta um fenômeno mais profundo que o econômico-financeiro, o qual marcou o liberalismo patrimonial e mercantilista. Implica, sim, a inauguração de uma nova fase da história da Terra e da humanidade. Estamos mudando de paradigma civilizacional, e isso significa que está nascendo um outro tipo de percepção da realidade, com novos valores, novos sonhos, nova forma de organizar os conhecimentos, novo tipo de relação social, nova forma de dialogar com a natureza e com o mundo e nova maneira de entender o ser humano no conjunto dos seres.
Esse paradigma nascente nos obriga a operar progressivas travessias: importa passar da parte para o todo, do simples para o complexo, do local para o global e do nacional para o planetário. Isso nos permite perceber que todos somos interdependentes. O destino comum foi globalizado. Agora há uma escolha: ou cuidamos da humanidade e do homem, ou não teremos mais futuro algum. Não nos é mais permitido pensar e viver como antes, sem preocupação com o amanhã, com o porvir e com o próximo, pelos quais, agora sabemos, somos todos responsáveis. Temos que mudar as formas de nos relacionarmos, com os outros e com o planeta, como condição de nossa própria sobrevivência.
Para a consolidação desse novo paradigma, é importante superar o fundamentalismo da cultura ocidental, hoje mundializada, que pretende deter a única visão das coisas, válida para todos. Por outra parte, o risco que corremos nos propicia a chance de reorganizarmos, de maneira mais justa e criativa, a humanidade e toda a cadeia da vida. Essa criatividade está inscrita em nosso código genético e cultural, pois só nós fomos criados criadores e co-pilotos do processo evolutivo.
O efeito final será uma Terra multicivilizacional, colorida por todo tipo de culturas, de modos de produção, de símbolos e de caminhos espirituais, todos eles acolhidos como legítima expressão do humano, com direito de cidadania na grande confederação das tribos e dos povos da Terra.
Por isso e para isso, há de se olhar para frente, recolher todos os sinais que nos apontam para um desfecho feliz de nossa perigosa travessia e gestar uma atmosfera de benquerença e de irmandade que nos permita viver minimamente felizes neste pequeno planeta, escondido num canto de uma galáxia média, no interior de um sistema solar de quinta grandeza, mas sob o arco-íris da boa vontade humana e da benevolência divina.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e o novo Código Civil Brasileiro trouxeram mudanças paradigmáticas[19] e impregnaram todo o sistema de direito privado com a preocupação social e ética, ensejando a releitura e a filtragem, não só do sistema legal positivado, mas também da doutrina, para adaptá-los aos novos valores, conceitos e princípios.
O Direito Civil já não mais pode ser tido, aplicado e lecionado com base nos modelos individualistas do século passado, alicerçados em velhos dogmas liberais. Deve, sim, permitir a construção da dignidade do homem e de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária.
Este texto se encerra. Mas espera-se que o diálogo sobre o tema esteja apenas no início, voltado sempre à compreensão da existência do homem no mundo, a facilitação e mesmo a criação de possibilidades de convivência plena, digna, fraterna e pacífica. Isso depende de sensível desenvolvimento das ciências ligadas ao comportamento humano, mesmo o Direito, que é responsável pela aplicação e interpretação das normas e princípios legais e constitucionais. A tarefa há de ser desempenhada em salutar compartilhar humilde, democrático e despido de vaidades que a nada conduzem, aproveitando as experiências e os saberes de outras ciências.
Não há como se esquecer que, em 5 de outubro de 1988, o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte, ladeado pelo Ministro Moreira Alves, presidente do Supremo Tribunal Federal, e por José Sarney, presidente da República, proclamou o nascimento da Constituição Cidadã, que encerrou um ciclo de 20 anos de chumbo, alçou o ser humano ao centro de todas as atenções e elevou os direitos da personalidade ao status de irrenunciáveis, imprescritíveis e inalienáveis.
Além disso, criou instrumentos de proteção contra agressões, violência ou ameaça a tais direitos e, exatamente nesse ponto, idealizou uma Justiça comprometida com a legitimidade de suas decisões, com a aproximação da população, imune a pressões, coações e vínculos com outros interesses que não sejam o da distribuição da jurisdição com equidade, equilíbrio e valorização da dignidade da pessoa humana, projetando o país para o futuro e nos impondo a responsabilidade da concretização dos sonhos da modernidade.
Em 11 de janeiro de 2003, entrou em vigor o Código Civil brasileiro, aclamado por Miguel Reale como a Constituição do Homem Comum, alçado à condição de valor-fonte fundamental de todo o direito e, em conseqüência, centro de todas as atenções, o que vem sendo chamado de repersonalização. Sonhando com os pés no chão e tendo os olhos no porvir, utilizou-se de cláusulas gerais, com nítida mitigação do positivismo, transformando o juiz de mera “boca da lei” a verdadeiro solucionador de conflitos e alçando-o à condição de responsável pelos resultados e pela sorte das pessoas cujos interesses estejam por ele sendo decididos.
Por isso e para isso, ele haverá de proceder de forma ética e humana. Assim, o Código o muniu de instrumentos poderosos, como, por exemplo, a utilização das mencionadas cláusulas gerais, trazendo consigo um modelo comprometido com a função social do Direito e do acesso das pessoas à ordem jurídica justa, na idealização e formação de uma sociedade solidária e fraterna, alicerce da preservação da dignidade humana.
Esse é o papel do Poder Judiciário moderno, cidadão, solidário, voltado à efetivação das tarefas que a Constituição lhe atribuiu, por meio da abertura de uma imensa janela voltada à dimensão ética, mergulhado nos direitos das partes a fim de desvelar o que há por detrás de tudo, em busca da verdadeira Justiça, fazendo desaparecer a figura do juiz inerte, descomprometido com o destino das partes e as conseqüências de suas decisões, satisfazendo-se com o fato de estarem elas de acordo com as regras procedimentais. Não há mais lugar para o juiz autômato, descompromissado, preocupado mais com o invólucro do que com o conteúdo.
De fato, a Constituição Federal desfez o mito de que só poderia ser a família fruto do casamento, o que se deve a uma revolução no relacionamento entre as pessoas e a um novo posicionamento da mulher na sociedade, ocupando espaços e exigindo respeito. A família dos nossos dias, aberta, plural, desvinculada de valores que determinem que as pessoas permaneçam juntas por outro motivo que não seja o benquerer e a afetividade, configura-se como o ambiente ideal para a formação sadia de seus componentes, convivência fraterna, solidária e digna do ser humano.
Com essa ruptura, afloraram-se núcleos formados por pessoas que não necessariamente mantinham entre si, vínculos previstos legalmente, vindo o reconhecimento do concubinato, da união estável e da convivência a reboque de uma realidade social que o direito fazia questão de ignorar.
Agora, mais uma vez, vê-se o direito atropelado pela evolução social e científica, desta feita pelas técnicas de inseminação artificial, clonagem do ser humano e enfrentamento pelos homossexuais do preconceito e da discriminação.
A legitimidade das decisões jurisdicionais depende dos vínculos com os valores sociais, temporal e geograficamente localizados, para que possam ser aceitas e não impostas de forma violenta. Para isso, tanto a Constituição Federal como o Código Civil e outras normas legais vêm adotando o sistema de utilização de cláusulas abertas, convocando os intérpretes à complementação e conformação da norma aos fatores concretos, permitindo a evolução e a adaptação sem que seja necessária a alteração de seu texto, mesmo pelo controle difuso de constitucionalidade, que parece mais aproximado dos valores da democracia, pois possibilita o argumento de que a Constituição Federal e os princípios nela inseridos estejam sendo violentados. É certo que os princípios devem merecer força normativa prevalente mesmo sobre as próprias normas legais ou constitucionais, pois refletem as perspectivas maiores que a sociedade deseja para seu país.
Mais uma vez a Constituição Federal incumbiu o Poder Judiciário de velar pelos direitos fundamentais da pessoa em qualquer hipótese de lesão, mesmo que originada do próprio Judiciário.
Assim, faz-se necessário que a atuação jurisdicional seja muito mais do que simples exercício de subsunção e que o julgamento seja acompanhado da profunda responsabilidade de decidir, muitas vezes, a própria vida de um número elevado de pessoas. Para isso, deve se pautar na preservação da dignidade da pessoa como valor-fonte fundamental do Direito.
Talvez seja esse o paradigma que se está a buscar e tenta-se alcançar. Um elemento que justifique e explique os motivos de pessoas estarem e permanecerem juntas, visto que, no momento de evolução social atual, nem a lei, nem as decisões judiciais, nem os padrões tidos como certos na sociedade e, muito menos, a definição sexual como homem e mulher se mostram suficientes para determinar que assim se mantenham. Talvez seja essa a chave para a construção de um novo tempo, deixando para trás a indiferença social, o desamor, a falta de responsabilidade e solidariedade com o próximo, buscando um ponto de equilíbrio a decifrar as mensagens que emanam do Código Civil e da Constituição. Não fazê-lo é uma omissão extremamente condenável.
A manutenção dos olhos voltados aos modelos do passado transformará o sonho da democracia social em pomposa inutilidade. Sejamos agentes da mudança, seus protagonistas, e não meros espectadores.
Não se ignora que é necessário um processo lento de mudança de paradigma, mas há que ser desfraldada a bandeira da solidariedade, à frente de todos os propósitos, que deve ser acompanhada, também, da bandeira do sonho, como construtora da utopia do possível, e da bandeira da luta na busca de um país melhor.
Na Constituição, estão os valores eleitos pela sociedade como fundamentais, os princípios que dimensionarão o justo. Uma vez nela inseridos, transformam-se na chave de todo o sistema, determinando o viés a ser seguido pelo intérprete na tomada de decisões dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Havendo conflito e tensão entre princípios constitucionais, cumpre ao intérprete encontrar um compromisso, pelo qual se destine, a cada princípio, um determinado âmbito de aplicação, não se devendo, de modo algum, eliminar algum deles. A missão do intérprete é buscar uma solução conciliadora, definir a área de atuação de cada um dos princípios. Não havendo uma única solução para todas as hipóteses, prevalecerá sempre aquele que, especificamente no caso concreto, tiver maior força. Tal prevalência não implica restrição em abstrato da força impositiva do princípio afastado. Em outras circunstâncias, diante de novos fatores relevantes, o princípio antes afastado está pronto para ser aplicado.
O processo deve ser o instrumento para garantia de que a justiça seja aflorada e que venha à superfície o que realmente esteja camuflado nos recônditos direitos alegados pelas partes.
O direito e as relações humanas demandam abertura dialética, capilaridade, contato com os demais ramos do saber, sendo necessária a discussão desprovida de preconceitos arraigados num positivismo que cega e que parece já não mais ter espaço no Direito e que deve ser submetido, sempre, aos princípios constitucionais e aos direitos fundamentais, afrouxando os nós que transformam o jurista num autômato e retirando a venda colocada na deusa Têmis – muitas vezes, pretende-se que ela seja cega para não ver as atrocidades que são cometidas em seu nome.
A Justiça não é cega. Tem os olhos abertos, é ágil, acessível, altiva, democrática e efetiva. Tirando-lhe a venda, resta ela liberta para que possa ver e, com olhos despertos, há de ser justa, prudente e imparcial, há de ver a impunidade, a pobreza, o choro, o sofrimento, a tortura, os gritos de dor e a desesperança dos necessitados que lhe batem à porta. E conhece, com seus olhos espertos, de onde partem os gritos e as lamúrias, o lugar das injustiças, onde mora o desespero. Mas não só vê e conhece. Ela age. Essa é a Justiça que reclama, chora, grita, sofre e se faz presente sempre que necessário para garantir a igualdade dos direitos e a efetiva garantia quando violentados. Uma Justiça que se emociona. E de seus olhos vertem lágrimas. Não por ser cega, mas pela angústia de não poder ser mais justa.
Não há de ser uma utopia inatingível imaginar-se e buscar-se um mundo melhor, um mundo onde prevaleça o direito voltado à satisfação plena das necessidades do ser humano, das quais a maior é a felicidade. Para isso, haverá que prevalecer a força dos sentimentos que unem as pessoas apenas pelo fato de terem seus atos guiados pelo coração, pela afetividade, pelo benquerer, talvez o paradigma que esteja à espera de ser desvelado, o elemento justificador das decisões judiciais e do relacionamento entre as pessoas.
Afinal, parafraseando Ricardo Pereira Lira, enquanto exista um par de olhos chorando as lágrimas da irresignação, enquanto mentes e corações busquem o igual acesso de todos os bens essenciais a uma vida digna, sistemas políticos podem ser extintos, estátuas derrubadas, mitos varridos, mas o socialismo democrático não perecerá, o que está a depender do proceder de cada um de nós em relação aos outros e conosco, com solidariedade e boa-fé, de forma ética, humana e desprovida de valores menos nobres que em nada contribuem para a concretização dos objetivos maiores da nação, estabelecidos na Constituição Federal. (in FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil – Elementos críticos do Direito de Família. Coord. Ricardo Pereira Lira, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, prefácio)
Apenas procedendo dessa forma, permitindo, enfim, a junção de razão e emoção que integram, indissociáveis, a condição humana e a subjetividade ineliminável na busca constante de um canto de esperança mesmo que haja tanta desesperança, estaremos vergando as bandeiras da solidariedade, do sonho e da luta de forma a entender a mensagem da poetisa curitibana Helena Kolody: “Deus dá a todos uma estrela. Uns fazem da estrela um sol. Outros nem conseguem vê-la”
Juiz de Direito, Mestre em Direito Público e Evolução Social, Professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Cândido Mendes e professor palestrante da EMERJ-Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
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