A
autora comenta sobre principais conflitos internacionais e, os relaciona com a
perigosa expansão do fundamentalismo tanto no mundo como no Brasil. E, ainda
ousa defender a democracia que corresponde ainda o melhor dos regimes.
O princípio da tolerância ou de
laicidade é um dos princípios basilares e caracterizantes das democracia. Tal
princípio mais que tratar das liberdades, volta-se particularmente para a
liberdade de expressão.
Em pensar que agora mesmo estou
exatamente exercendo a liberdade de expressão… mesmo quando eu dou uma topada
com meu indefectível dedão nesta mesa de mármore…
Aliás, a liberdade é um estilo, um modus
vivendi, um tecido de existência humana. Na democracia, cada um, sendo por
definição livre, tem o direito de fazer, dizer e pensar o que quiser com a única condição de não infringir as leis.
Eis então que surge assim uma
multiplicidade de “liberdades”( a liberdade de ir e vir, de reunião, de
associação, de comércio, de opinião) que devem ser regulamentadas como são
todos os direitos.
É peculiar a liberdade de expressão
sendo mesmo, no dizer de Christian Delacampagne, a liberdade das
liberdades e que por sua própria natureza não tem regulamento.
Mas o que fazer, para que a
possibilidade de se expressar livremente seja dada igualmente a todos os
cidadãos?
De modo que alguns expressem tão
freqüentemente ou mais ruidosamente do que outros? Como deter a livre expressão
de opiniões hostis não acabe por fulmina-la mortalmente?
Este é o grande impasse que vive hoje a democracia.
O fim da guerra fria nos remeteu nos
remeteu a inevitável globalização, onde sem dúvida, há a hegemonia pacífica do
sistema capitalista que moldou brutalmente o Ocidente e até todos aqueles que,
até então, acreditaram poder escapar.
Diante tal “nouveau” imperialismo
surgiram também novas formas de resistência em toda parte, tanto nos países
emergentes como os do interior do Ocidente.
Tais resistências utilizaram um
discurso” de substituição”, recheado de dominação étnica(nacionalismo) ou
religiosa(fundamentalismo).
Aliás, como tais movimentos
nacionalistas e fundamentalistas são perigosos à democracia, o grande objetivo
de tais correntes é o total aniquilamento do sistema democrático, e são
correntes dotadas de peculiar virulência nos países árabes –muçulmanos.
E ainda temos o ressurgimento qual phênix
dos partidos de extrema direita.
O fenômeno religioso é um conjunto
de crenças e de comportamentos coletivos que visam manipular simbolicamente
essas forças para obter certos efeitos.
O religioso tende a ambicionar ser o
“laço” social por excelência(é como se cumprisse assim o seu vaticínio
etimológico do latim religio) desta forma o religioso e o social são até
certo ponto, co-extensivos.
As formas principais de coexistência
do religioso com o político geram as teocracias( como a monarquia lamaísta e o
Vaticano) além das ditaduras e autocracias. Nas demais sociedades, o poder
político na medida em que se distingue do poder religioso, deve resguardar sua
autonomia, deve negociar inteligentemente com o religioso e, conseguir dele
concessões e lutar enfim para preserva-las.
O que é universal deve ser
prioritário na ordem das razões. Em suma, o religioso fala de política o tempo
todo, mesmo que utilize de uma linguagem que a priori, não parece com a
linguagem política.
De qualquer modo, a tentativa
socialista soviética de tentar erradicar o religioso foi rotundamente
fracassada. Lembremos que desde do tempo de Robespierre sonhava –se com
a impossível sociedade de ateus, até porque esta seria mesmo ingovernável.
Apesar do rousseauísmo sincero de Robespierre,
somos forçados a constatar que todas as sociedades conhecidas têm ou tiveram
uma religião.A religião é quase um dado antropológico além de ser
fundamentalmente sociológico.
Então é curial que haja o divórcio
entre o político e o religioso. Toda religião instituída supõe um clero, um
corpo hierarquizado de “servidores do culto” cuja responsabilidade é garantir a
perenidade dos dogmas e dos rituais próprios de cada religião.
Tal corpo é investido de um saber e,
correlativamente , de um poder. Por toda a parte, o clero impõe a sua
influência, nos mais diversos âmbitos(cultural, político, histórico, social,
comportamental e, sobretudo psicológico).
Toda religião aspira ditar normas
capazes de reger nosso cotidiano( daí ser mesmo um controle social como o
direito também é) que regula desde da alimentação, roupa, trabalho, relações
sexuais até as interações de um modo em geral.Em todo o lugar onde o poder
religioso ascende, o poder político resta prejudicado.
No entanto, a sociedade não é uma
pirâmide hierarquizada contendo “uma ordem natural” mas, sim, um sistema de
forças divergentes, e cada um, o seu interesse próprio.Em síntese, o político,
se quiser sobreviver, deve livrar-se da tutela do religioso.
No mundo ocidental, há alguns séculos,
a estratégia do poder político consistiu, por um lado, em subtrair-se à
influência de uma Igreja particular, concedendo o mesmo status a todas
elas.
E de forma idêntica, proibir as
Igrejas o direito de ingerir-se nos assuntos civis, públicos ou políticos. A
tolerância(nome clássico) ou laicidade(nos países francófonos) ou de
secularização (nos países anglófonos).
A tolerância é mais que a possibilidade de conviverem. O
Estado diz às diversas Igrejas: “prosperem em paz, não me ocupo de vocês”, e em
seguida: “deixem-me viver, não se ocupem do que é assunto meu”.
A tolerância e a laicidade são duas
faces da mesma moeda e surgiu tal processo no fim da Idade Média, com a
finalidade de delimitar a esfera privada caracterizada pela consciência
individual separada da esfera pública( da sociedade civil ou Estado).
A tolerância defendida inicialmente
pelos intelectuais, na querela medieval do papa contra o imperador, tendo Dante
e Marsílio de Pádua se definido a favor do imperador.
Depois outros grupos ideológicos
como o da Reforma Protestante, eruditos e humanistas do renascimento( de Maquiavel
a Galileu passando por Erasmo, More, Montaigne)
e, reforçados pelos racionalistas
engajados como Locke, Bayle, Spinoza e ainda os
materialistas do século das Luzes e, por fim, os revolucionários de 1789
teceram o sedimento ideológico indispensável ao florescimento do Estado
moderno.
Cada um a seu estilo, procurou a
autonomia da esfera privada e, simultaneamente dar a extensão mais vasta
possível à esfera pública(incluindo progressivamente nela a maioria a
subtraí-las à influência da religião).
Locke interrogou-se sempre sobre as relações do poder
temporal com o poder espiritual. O seu texto chamado “Carta de tolerância”
redigida em 1685 , mas só publicada em 1689 na Holanda e sem o nome do autor.
Ao invés de procurar, como Bayle,
justificar o direito à liberdade de consciência, Locke parte da concreta
análise da autoridade política.
É importante distinguir claramente
os papéis distintos e respectivos da Igreja e do estado.
O Estado, segundo Locke, é
uma sociedade de homens, instituída com o único fim do estabelecimento, da
conservação e do progresso de seus interesses civis.
A autoridade estatal não se estende,
de modo algum, “até salvação das almas”. O Estado deve limitar-se a cuidar das
coisas terrenas e deixar as coisas do além.
Já, inversamente, a Igreja se
consagra em ser uma sociedade de homens que se reúnem voluntariamente para
servir a Deus em público, e prestar-lhe o culto que julgam ser-lhe agradável e
próprio a fazer-lhes conquistar a salvação.
A Igreja deve ser separada e
totalmente distinta do Estado, gerando deveres recíprocos: dever de tolerância
por parte do Estado, obrigação de reserva por parte da Igreja.
Sublinha Locke que “os
limites são fixos e imutáveis de ambas
as partes” pois seria “confundir o céu com a terra, querer unir essas duas
sociedades, que são absolutamente, distintas e inteiramente diferentes uma da
outra, seja em relação às suas origens, seja em relação aos seus objetivos ou
aos seus interesses.
Locke foi assim um ferrenho defensor da tolerância
aliás, o referido texto da Carta reconhece que nenhum cidadão poderia ser
perseguido apenas pelo fato de aderir aos dogmas especulativos da religião
católica.
Mas a Carta não deixa de estipular
que, um Estado não-católico, as manifestações públicas e institucionais do
catolicismo deveriam ser proibidas.
Naquele contexto, a religião
católica significava perigo por dispensar seus adeptos da obrigação de
respeitar as promessas feitas aos heréticos; por professar que os príncipes
excomungados, não tendo mais direito à obediência de seus súditos, podendo
serem depostos ou mortos.
Enfim, porque os católicos
extremamente obedientes ao papa( vigário de Deus sobre a terra) não poderiam
ser cidadãos “seguros” em um
Estado que não tivesse abraçado oficialmente a causa
católica.
Com razão, Locke opina que ao
ateísmo é tal ameaçador quanto o catolicismo e não se deve permitir sua
expressão pública.
Segundo o filósofo inglês, o ateísmo
radical é por completo incompatível com o respeito as virtudes e, por isto
mesmo, também ofensivo à ordem pública.
Quaisquer que sejam os limites da
tolerância lockiana, esta caminha lado a lado com a teoria da laicidade,
evidenciando a ligação lógica entre esses dois conceitos.
Há uma certa defasagem na laicidade
apregoada pela democracia contemporânea, está lá na poderosa cédula verde: “In
God we trust”(ou seja, em Deus , nós confiamos). O ressurgimento do
fundamentalismo constitui um fato grave pois que defende a restauração da ordem
teocrática, ou seja, um sistema político e socialmente esvaziado e
determinantemente dominado pelo religioso.
È como voltássemos na máquina do
tempo e pousássemos em plena Idade Média novamente… Voltaríamos as
ordálias e as provas da fé…
Por outro lado, a concepção
estreitamente positiva, por trás dos vários fundamentalismos provam a ascensão
de um verdadeiro fanatismo em escala universal.
E, aqui, entre nós, em solo pátrio,
podemos evidenciar tal obsessão religiosa gramando espaço, como a conduta de
certas seitas reformistas e protestantes( que também se expande mundialmente).
A doutrina que manda o retorno aos
“fundamentos” da fé, visa reconstituir em sua integridade primitiva um
fundamentalismo, a própria essência que não é exterior à religião.
Também a voga fundamentalista não é
inédita, ciclicamente se repete tais sanhas radicais no mundo. Apesar do
fundamentalismo ser inaceitável por violar todas as regras do jogo democrático
e, por isto, deve a democracia combatê-lo.
A legítima e verdadeira separação
entre o político e o religioso não pode ser um pilar derrubado pelo
fundamentalismo.É preciso que o Estado seja a única instância capaz de
determinar aquilo que, no interior do espaço público, é ou não é legítimo, deve
ser dotado da mais ampla tolerância.
Parece que a origem de tanto ódio e
censura religiosa e cultural tem começo na formação no chamado Estado Absoluto
ou moderno que se apóia em povo, em etnia.
Mas, a partir deste momento, é o
Estado Moderno a causa do aparecimento da criminalidade coletiva e temível. No
Ocidente medieval, as primeiras vítimas das ditas higienes étnicas foram os
judeus.
Acusados de envenenar as fontes de
água ou de matar crianças católicas a fim de beber-lhe o sangue. Os judeus se
tornaram rapidamente marcados por todo mal em torno deles.No século XI, uma
comunidade situada na Renânia foi objeto de um pogrom.
Tal ódio anti-semita conheceu seu
ápice com o III Reich, onde foi realizado maior extermínio massa concebido e
planejado pelo homem.O genocídio só teve sua prática incriminada depois da II
Grande Guerra Mundial.
Mas os judeus não calaram e
protestaram contra a injustiça com que eram tratados principalmente após a
sua”emancipação” cívica e política.
E foi só por ocasião do caso Dreyfus
que se viu, pela primeira vez, um grupo de intelectuais decidir-se a reagir
contra a difusão pública de teses anti-semitas.
Outra comunidade que também sofreu
bastante pelo ódio étnico, foi a dos negros. Que recentemente recebeu no
Brasil, uma cota- tapeação aos bancos
universitários como forma de compensar anos de discriminação e
intolerância.Sinceramente, não acredito em tal indenização demagógica.
Mesmo no Século das Luzes, poucas
vozes no Ocidente,se levantaram para censurar a prática da escravatura. E ainda
menos numerosas foram as vezes de denunciaram o racismo antinegro que
sobreviveria à abolição de escravatura e, mesmo nos EUA , ao civil rights.
Em 1683, uma lei promulgada por Luís
XIV que condenava com a multa de 500 libras (grande e expressiva quantia de
dinheiro) toda pessoa que tratasse alguém do cagot com intenção injuriosa. É
sem dúvida, a primeira lei anti-racista do mundo.
Só depois da revelação pública da
Shoar(holocausto em hebraico), em 1945, que o mundo assumiu verdadeira
consciência da necessidade de se coibir a expressão de determinados discursos
racistas ou anti-semitas até por serem capazes de provocar atrocidades.
Passou-se então para a maioria as
democracias ocidentais dotadas de um arsenal legislativo que lhes permite punir
não apenas a injúria ou a difamação e a incitação ao ódio racial.
Aliás, este mesmo ódio racial ou
religioso não tardou a recomeçar em diversas partes do mundo a partir dos anos
70. Nos países onde a democracia não está firme, um certo nacionalismo étnico
particularmente violento, a pretexto de reivindicações políticas ou
territoriais dedicou-se a reanimar os velhos demônios racistas e anti-semitas.
Com seu mórbido desejo de
purificação, tal nacionalismo acabou precipitado, como na ex-Iuguslávia, os
sérvios apoiados pela Igreja Ortodoxa contra os bósnios e, depois contra os
albaneses de Kosovo e, ainda em Ruanda, os Hutu contra os tutsi(que nem são
etnias diferentes).
O mesmo insano nacionalismo foi
hábil a alimentar a agressividade dos russos contra os chechenos, a dos talibãs
afegãos contra os hazara, ou dos regimes turco e iraquiano contra as minorias
curdas.
Nas democracias ocidentais há também
grupos de extrema direita apoiando-se no fundamentalismo cristão, alimenta seu
ódios contra as comunidades judaicas ou muçulmanas.
Aliás, nunca o ódio racial ou
religioso dispôs de tanta mídia e de tanto instrumento político como no atual
mundo contemporâneo. A eficácia das leis que existem para deter o ódio racial
ou religioso esbarram na lentidão da Justiça, e ainda numa segunda corrente
ideológica segundo a qual qualquer limite jurídico imposto à liberdade de
expressão significaria a uma insuportável censura.
O negacionismo traduziu-se no fim da
década de 70 como sendo uma ideologia com o fito de negar a realidade do
Shoah(holocausto). Elaborava logo depois da II Grande Guerra Mundial por Paul
Rassinier que era adepto declarado do fascismo.
Três décadas depois, os mesmos
delírios retornam agora por Robert Faurisson e difundido pelo seu
editor, ex-trostkista Pierre Guillaume com relativo sucesso junto a
opinião pública francesa e, depois, no resto do mundo e mais particularmente
nos países árabe-muçulmanos.
As teses negacionistas não se
fulcram em nenhum argumento sério, sendo mesmo uma retomada ao macróbio
anti-semitismo seja de extrema direita ou de esquerda. Constitui assim uma nova
incitação ao ódio religioso e racial. Daí, porque surgiu na França a Lei Gayssot(em
1990) com efeitos excelentes, combatendo os negacionistas e infligindo-lhes
pesadas multas aos seus divulgadores.
Alguns intelectuais taxaram a lei de
censura odiosa e perigosa . Sendo mesmo ridículo que o Judiciário tenha a
missão de definir o que vem a ser verdade histórica.
Enfim, ao condenar os negacionistas
à clandestinidade é conceder-lhes inutilmente a aura de popularidade que se atribui em geral, os
“mártires”.
O grande perigo é cair no mesmo erro
da intolerância dos regimes totalitários ou fundamentalistas( tais como o de
Khomeini) pois a democracia verdadeira não admite nenhuma forma de censura.
Não vivemos num mundo de abstrações puras
e, sim , lotado de seres imperfeitos que podem ser cruéis e não se vê hesitar
em coibi-los.
As teses negacionistas são em
verdade um apelo ao crime daí manda a prudência que sejam reprimidas
adequadamente. A Lei Gayssot define genericamente crimes contra a humanidade que figuram como objeto do
Tribunal Militar de Nuremberg de 1945 e não efetivamente recai sobre os
genocídios já praticados.
E tal lacuna deve o legislador
superar tendo em vista que a campanha negacionista contínua muito ativa pelo
mundo inclusive nos meios universitários. Certamente, novamente, os santos ,
gurus, poetas e românticos protestarão veementes novamente contra esse atentado
à liberdade.
Mas o interesse da verdade e o da
justiça não deveriam pesar mais que qualquer outro bem jurídico. Para o bem da
diversidade, para o bem da autentica liberdade de expressão e por fim pela
sobrevivência da democracia que continua a ser o melhor dos regimes apesar dos pesares…
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
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