Resumo: Considerações acerca do instituto da prisão civil do depositário infiel, desde de sua polêmica até a decisão que pacificou o assunto no ambito do STF.
Sumário: I. Introdução. II. O conceito constitucional de depositário infiel e as figuras equiparadas. III. A prisão do depositário infiel após a incorporação do Pacto de San José da Costa Rica. IV. Conclusão. V. Bibliografia
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva analisar a evolução do tema referente à prisão civil do depositário infiel na jurisprudência do STF.
O assunto sempre foi tormentoso pela quantidade de posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais.
A matéria possui alta relevância, pois envolve discussão em torno do alcance e precedência dos direitos fundamentais da pessoa humana.
A CF/88, no art. 5º, inciso LXVII, proibiu expressamente a prisão civil por dívida, ressalvando a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel, eis o inteiro teor:
“Não haverá prisão civil por divida, salvo responsabilidade pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.”
Desse modo, em regra não haverá prisão civil por dívida. Excepcionalmente, porém, em dois caso será permitida a prisão civil por dívida: a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. E, por muito tempo, a jurisprudência e a doutrina pátria, inclusive, ampliaram a interpretação de quem figuraria como depositário sujeito à sanção cominada.
Não existem maiores controvérsias sobre a prisão civil do devedor de alimentos, o contrário ocorre em relação à prisão civil do depositário infiel.
Com a incorporação do Pacto de São Jose da Costa Rica no ordenamento jurídico brasileiro, que prevê a prisão exclusivamente paro o devedor de alimentos, a polêmica girou em torno da relação hierárquico-normativa entre os tratados internacionais e a Constituição.
O posicionamento do STF sempre foi no sentido da admissibilidade da prisão civil do depositário infiel, uma vez que em sua maioria entendia que os tratados ocupavam o papel de leis ordinárias, não podendo derrogar a constituição.
Dessa forma, surgiram duas questões principais. Primeiro se a legislação infraconstitucional poderia estender a figura do depositário infiel para os casos de contratos de depósito atípico. A segunda seria sobre a possibilidade da prisão civil do depositário infiel oriundo do contrato de depósito puro, propriamente dito, conforme permitido excepcionalmente pela CF/88, uma vez que de acordo com o Pacto de San José da Costa Rica somente permitia a prisão civil por dívidas do inadimplente de obrigação alimentar.
2. O CONCEITO CONSTITUCIONAL DE DEPOSITÁRIO INFIEL E AS FIGURAS EQUIPARADAS
Primeiramente temos que esclarecer o que seja “depositário infiel.”
Temos que distinguir três situações que foram identificadas pela doutrina e jurisprudência:
a) a prisão do depositário infiel decorrente dos contratos de depósito.
b) a prisão do depositário infiel resultante dos contratos de alienação fiduciária
c) a prisão do depositário infiel judicial.
Iniciaremos, explicando o conceito constitucional de depositário infiel.
A constituição ao estabelecer como exceção a hipótese de prisão do depositário infiel considerou a noção de depósito como a tradicionalmente construída. Entendimento em sentido contrário dizimaria o caráter de garantia da vedação a prisão civil. Se a constituição estipulou duas hipóteses taxativas e exaustivas em que cabe a prisão civil não é possível que a legislação infraconstitucional altere o alcance dessas exceções ampliando-o. Não se concebe que a mera aposição do nome “depósito” a situações que não veiculam o elemento nuclear desse instituto, com o objetivo de estender-lhe mecanismos de tutela que a constituição excepcionalmente havia deferido em caráter excepcional.
O contrato de depósito típico e o conceito de depositário infiel estão previstos, respectivamente, nos seguintes artigos do Código Civil:
“Art. 627. Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame.
Art. 652. Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos.”
Portanto, depositário é aquele que recebe coisa móvel para guardá-la e mantê-la assumindo a obrigação de devolvê-la quando isto lhe for determinado. Se não o devolve é considerado infiel.
O problema surge quando leis infraconstitucionais qualificam de depósito hipóteses que não correspondem perfeitamente aquele núcleo conceitual.
Por isso considero inconstitucionais leis que pretendem ampliar o conceito de depositário infiel para burlar os limites que a constituição impôs a prisão civil.
A Lei 8.866/94 que previu a figura do depositário de valores pertencentes à Fazenda Pública foi objeto de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 1055-7), tendo alguns de seus artigos suspensos.
Do mesmo modo, há anos vinha sendo discutida a constitucionalidade da prisão civil do devedor no contrato de alienação fiduciária (Decreto Lei 911/69).
Na alienação fiduciária em garantia não se tem um contrato de depósito propriamente dito, o devedor fiduciante não está na situação jurídica de depositário, o credor fiduciário não tem o direito de exigir dele a entrega do bem, nem mesmo de proprietário deve ser rotulado, pois nem sequer pode ficar com a coisa, mas apenas com o produto de sua venda deduzido o montante já pago pelo devedor.
O aspecto mais polêmico do Decreto-Lei nº. 911/69 refere-se à possibilidade ou não da prisão civil do devedor fiduciário quando, convertida a ação de busca e apreensão em depósito, o bem não é encontrado ou não se acha sob sua posse.
Existem incontáveis decisões jurisprudenciais dos tribunais estaduais e do STJ no sentido de rechaçar a possibilidade de equiparação do devedor fiduciário ao depositário infiel.
O STJ há muito tempo já pacificou o entendimento de que não cabe a prisão civil do devedor fiduciário por equiparação, sob o fundamento de que as hipóteses de depósito atípico não estão inseridas na exceção constitucional restritiva de liberdade, inadmitindo-se, dessa forma, a respectiva ampliação. Entende o STJ que a Lei nº. 4.728/65 e o Decreto-Lei nº. 911/69 não foram recepcionados pela CF/88, não mais estando autorizada a prisão civil no caso do depositário.
O STF, porém, sempre se posicionou no sentido de que a prisão civil do devedor fiduciante, nas condições em que prevista pelo DL 911/69 revestia-se de plena legitimidade constitucional, não transgredindo o sistema de proteção de direitos humanos, tendo em vista que os tratados internacionais estariam necessariamente subordinados à CF, não podendo legitimar interpretações que eventualmente restringissem a eficácia jurídica das normas constitucionais. Entendia, ainda, que mesmo na vigência do Pacto de San José da Costa Rica seria possível a prisão civil do depositário decorrente do contrato de alienação fiduciária em garantia.
3. A PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL APÓS A INCORPORAÇÃO DO PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA
Ocorre que a própria discussão sobre o sentido constitucional de depósito para a definição da extensão da prisão civil, tende a ficar superada, em virtude de novidade advinda do direito internacional.
O Brasil é um dos signatários do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, elaborado em 1966, que foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº. 226/91, ratificado por nosso país em 24 de janeiro de 1992, e adotado na legislação interna pelo Decreto Presidencial nº. 592/92.
Também é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, mais conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, ratificada pelo Brasil sem qualquer reserva, e que foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº. 27/92, e incorporada pelo Decreto Presidencial nº. 678/92.
O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos estabeleceu o seguinte: “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual” (art. 11). Por sua vez, o Pacto de San José da Costa Rica dispôs que: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente, expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar” (art. 7º, 7).
Note que este instrumento internacional só admite prisão civil por dívida no caso do devedor de pensão alimentícia, inadmitindo outras prisões civis da mesma natureza como, por exemplo, do depositário infiel.
A partir de então, discutia-se a própria possibilidade de prisão do depositário infiel, em qualquer hipótese.
Constata-se, então, que de acordo com os mencionados tratados, não seria cabível nem mesmo a prisão civil do depositário infiel do contrato de depósito puro, propriamente dito, conforme permitido excepcionalmente pela CF/88. E de acordo com o Pacto de San José da Costa Rica somente permaneceria vigente a permissão de prender o inadimplente de obrigação alimentar.
Surgiu a controvérsia, se a Constituição Federal permite a prisão civil do depositário infiel, poderia a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) invalidar as disposições infraconstitucionais sobre esta prisão (CC/02, CPC e outros)?
Discute-se, na doutrina e na jurisprudência, se esses tratados foram incorporados pelo ordenamento jurídico brasileiro com eficácia constitucional ou infraconstitucional. Resta saber, dessa forma, qual a força proporcionada aos tratados internacionais no sistema jurídico, e se podem prevalecer sobre as normas constitucionais e infraconstitucionais vigentes.
A doutrina então se dividiu, mais uma vez, no tocante ao status normativo dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos quando incorporado pelo ordenamento jurídico.
Observa-se que a discussão surgiu antes do advento da EC 45/04 que incluiu o § 3º no art. 5° da CF, que assim dispõe: “Art. 5° (…) § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, surgiram diversas interpretações que consagraram um tratamento diferenciado aos tratados relativos a direitos humanos, em razão do disposto no § 2º do art. 5º, o qual afirma que “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
A Posição antiga do STF era no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos entram no ordenamento jurídico brasileiro com status de lei ordinária. Diante desta interpretação, o entendimento majoritário vinha sendo no sentido de que a prisão civil do depositário infiel era constitucional, não tendo sido revogada pelo Pacto de San José da Costa Rica.
Em outras palavras, o STF sempre sustentou que os tratados internacionais estariam no mesmo nível hierárquico e teriam o mesmo grau de eficácia das leis ordinárias, de forma que jamais poderiam prevalecer em detrimento da Constituição Federal. Dessa forma, nem o Pacto de San Jose da Costa Rica nem o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos poderiam sobrepor-se à CF/88 e revogar o dispositivo que permite a prisão civil do depositário infiel e por extensão a do alienante fiduciário a ele equiparado.
No HC 72.131/RJ pode-se constatar essa posição dominante que seguia no STF, ao considerar que tendo o Pacto de San José da Costa Rica natureza infraconstitucional, não pode prevalecer sobre a Constituição. O habeas corpus foi indeferido, tendo prevalecido à posição do Ministro Moreira Alves, sendo ele seguido pela maioria do plenário. Tiveram os votos vencidos os Ministros Marco Aurélio, Francisco Rezek, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence, que acompanharam o voto do Ministro relator Marco Aurélio, que defendeu a concessão do HC com base no Pacto de San José da Costa Rica.
Observa-se que apesar de a posição majoritária ter sido no sentido da possibilidade da prisão, havia uma divergência marcante, com argumentos importantes para ambos os lados.
No entanto, recentemente, o STF demonstrou forte tendência em rechaçar seu tradicional posicionamento.
O Recurso Extraordinário n° 466.343/SP interposto pelo Banco Bradesco S.A, contra Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, no julgamento de apelação, confirmou sentença de procedência de ação de depósito, fundada em alienação fiduciária em garantia, deixando de impor cominação de prisão civil ao devedor fiduciante, em caso de descumprimento da obrigação de entrega do bem, tal como o postulara o autor fiduciário, por entendê-la inconstitucional, teve como relator o Min. Cezar Peluso, tendo siso negado provimento, por entender o STF ser ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito, eis a redação da Ementa:
“EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.” (grifou-se)
Para o ministro Celso de Melo, os tratados que versem sobre direitos humanos, e dos quais o Brasil seja signatário, integram o ordenamento jurídico como norma de caráter constitucional. Segundo o ministro, a Constituição Federal (CF/1988) determina a prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, inciso II da CF/1988) sobre outras normas. Desta forma, os tratados de direito humanos, mesmo anteriores a Emenda Constitucional 45 (EC-45), são normas consideradas constitucionais.
Assim, a jurisprudência da Corte evoluiu no sentido de que a prisão civil por dívida é aplicável apenas ao responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.
A Posição “atual” do STF – tese já defendida pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes – os tratados internacionais de direitos humanos (quando não aprovados na forma do § 3º do art. 5.º da CF) ingressam no ordenamento jurídico com status supralegal, ou seja, acima das leis e abaixo da constituição. Essa corrente, no entanto, admite dar a eles status de constitucionalidade, se votados pela mesma sistemática das emendas constitucionais (ECs) pelo Congresso Nacional, ou seja: maioria de três quintos, em dois turnos de votação, conforme previsto no parágrafo 3º, acrescido pela pela Emenda Constitucional nº 45/2004 ao artigo 5º da Constituição Federal.
No caso da prisão civil do depositário infiel, embora as leis (Código Civil etc) que a prevêem estejam de acordo com a CF/88, estão em desacordo com o Pacto de San José da Costa Rica (que a proíbe). Por isso, as normas que versam sobre prisão civil do depositário infiel, embora vigentes no ordenamento, são inválidas.
Por todo o exposto, pode-se concluir que a antiga posição jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal foi alterada para impedir a prisão de depositário infiel, sobretudo nos casos de figura equiparada: a alienação fiduciária.
O STF revogou a Súmula 619, do STF, segundo a qual “a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”.
Em toda a discussão sobre o assunto prevaleceu o entendimento de que o direito à liberdade é um dos direitos humanos fundamentais priorizados pela Constituição Federal e que sua privação somente pode ocorrer em casos excepcionalíssimos. E, nesse sentido, não se enquadra a prisão civil por dívida.
O assunto, agora foi pacificado pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, com a publicação da Súmula Vinculante n° 25, eis o inteiro teor:
“É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.”
4. CONCLUSÃO
Durante muito tempo à prisão do depositário infiel foi assunto polêmico que dividia a doutrina e a jurisprudência.
O posicionamento majoritário tradicional do Supremo Tribunal Federal era no sentido da sua admissibilidade.
Já não era sem tempo de o STF rever seu posicionamento no tocante a prisão civil do depositário infiel.
Nos novos tempos, que vigora a supremacia do principio da dignidade da pessoa humana, os direitos e garantias como cláusula aberta e a globalização, não é possível entendimento que restrinja a proteção a um dos direitos mais relevantes para a sociedade, a liberdade.
O tema da legitimidade da prisão civil do depositário infiel foi pacificado pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, tendo como precedentes os REs 349.703 e 466.343, com a publicação da Súmula Vinculante n° 25, que considera ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.
Procuradora Federal
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