A família reconstruída e o reconhecimento jurídico da pluriparentalidade

Resumo: A família, como instituto núcleo da sociedade, passou por numerosas modificações no decorrer dos anos, deixou sua face patriarcal e assumiu seu caráter plural, postas as novas onjunturas de entidades familiares que se formaram. Famílias informais, anaparentais, extensas, homoafetivas etc., todas com suas peculiaridades. Dentre elas, a família reconstruída, orientada pela união de duas famílias monoparentais, passou a apresentar grande importância ao mundo do Direito, especialmente por seus efeitos, geradores, inclusive, da possibilidade de pluriparentalidade dos filhos, com base nos princípios do melhor interesse da criança, da afetividade e da convivência familiar. É sobre a família mosaico e a pluriparentalidade que esse estudo apresentará suas considerações, essencialmente quanto ao reconhecimento dos mesmos pelo Direito.

Palavras-chave: Família reconstruída. Pluriparentalidade. Reconhecimento.

Abstract: The family as institute group unit of society, has undergone numerous changes over the years, it left its patriarchal face and took its plural character, put the new situations of family entities that have formed. Unformal families, anaparentals, extensive, homoaffectives etc., all with their quirks. Among them, the reconstructed family, guided by the union of two single parents, began to show great importance to the world of law, especially its effects, generators, including the possibility of pluriparenthood children, on the basis of the child's best interest, affectivity and family life. It's about mosaic family and pluriparenthood that this study will present its considerations, primarily the recognition of them by law.

Keywords: Reconstructed family. Pluriparenthood. Recognition.

Sumário: Introdução. 1 Do Direito das Famílias. 1.1 Noções Gerais. 1.2 Princípios do Direito das Famílias. 1.2.1 Princípio da dignidade da pessoa. 1.2.2 Princípio da convivência familiar. 1.2.3 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. 1.2.4 Princípio da isonomia entre os filhos. 1.2.5 Princípio do pluralismo das entidades familiares. 1.2.6 Princípio da afetividade. 1.3 Direitos da Personalidade. 1.4 Relações de Parentesco. 2 Da Filiação. 2.1 A Filiação na Nova Ordem Constitucional. 2.2 Poder Familiar. 2.3 Critérios para a Filiação. 2.4 Efeitos Jurídicos da Filiação. 2.5 Reconhecimento da Filiação. 3 Da Pluriparentalidade 3.1 Delineamentos Gerais. 3.2 Família Reconstruída. 3.2.1 Filhos pluriparentais. 3.3 Reconhecimento e Efeitos Jurídicos da Pluriparentalidade na Família Reconstruída. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Instituto considerado célula-mãe da sociedade e força motriz das relações interpessoais, a família, no decorrer dos anos, sofreu consideráveis modificações e adaptações, tudo em prol da evolução social.

Antes admitida sua formação somente estruturada por pai, mãe e filhos, baseada no matrimônio e gerida pelo pátrio poder, signo de uma comunidade machista e de ideologia discriminatória, a qual encontrou guarida no Código Civil de 1916, a entidade familiar ganhou nova roupagem, recebendo do constituinte de 1988 compreensão e caráter inovadores.

A antiquada família patriarcal adotou a característica de família plural, orientada agora pelo poder familiar e sob a égide do princípio da afetividade, relegando à segundo plano a verificação primeira da consanguinidade como forma de constituição do vínculo de parentesco.

Novas formações de famílias surgiram, aquelas preenchidas por pais de mesmo sexo; somente irmãos e amigos; um dos pais e os filhos; duas famílias de pais separados; enfim, todo vínculo que se considerasse afetivo e fundado no amor, no qual seus componentes estivessem pautados na convivência diária foi considerado entidade familiar.

Nesse contexto surgiram as famílias reconstruídas, entidades formadas pela união de duas famílias monoparentais e com elas o conceito de pluriparentalidade, filho que passa a deter dois pais ou duas mães, em decorrência do vínculo de afetividade formado pela união do pai/mãe biológico com o padrasto/madrasta.

Este ensaio analisará os institutos da família reconstruída e da multiparentalidade na sociedade hodierna, indicando os pontos nevrálgicos das discussões a respeito das famílias contemporâneas e demonstrando as relevâncias daquelas espécies e seus efeitos no mundo jurídico, sobretudo quanto à problemática do reconhecimento ou não pela ciência do Direito da pluriparentalidade.

1 DO DIREITO DAS FAMÍLIAS

1.1 NOÇÕES GERAIS

Os indivíduos, seres sociáveis em essência, buscaram desde o primórdio de suas existências organizarem-se em grupos que lhes garantissem não só integração, como também a perpetuação dos clãs aos quais pertenciam e de sua descendência; a essa união de pessoas com mesma origem sanguínea convencionou-se chamar “família”.

De início, tão somente se admitia a estrutura familiar composta de marido, esposa e filhos, decerto que, diante de uma sociedade patriarcal, não se concebia maneira diversa de estabelecer laços parentais senão por meio de tal estrutura. Foi a partir desse modelo que se inspirou o antigo Código Civil Brasileiro de 1916.

Sobre o assunto, Dias (2013, p. 30) aborda:

“O Código Civil, que datava de 1916, regulava a família do início do século passado, constituída unicamente pelo matrimônio. Em sua versão original, trazia uma estreita e discriminatória visão de família, limitando-a ao grupo originário do casamento. Impedia sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações. As referências feitas aos vínculos extramatrimoniais e aos filhos ilegítimos eram punitivas e serviam exclusivamente para excluir direitos, na vã tentativa da preservação do casamento”.

Entretanto, a evolução social trouxe consigo o aparecimento de novos arcabouços familiares, estruturas parentais essas que necessitavam de larga proteção do Estado.

É sabido que embora o Direito não acompanhe o rápido desenvolvimento social, as famílias multifacetadas (núcleos compostos não só de pai, mãe e filhos) passaram a ser objeto de estudo da ciência legal e iniciaram elevado processo de transformação jurídica.

A Constituição Federal Brasileira de 1988, acompanhada e ampliada, empós, pelo Código Civil de 2002, doutrina e jurisprudência pátrias, ao conferir em seu artigo 226 “especial proteção do Estado” às famílias, inserindo um rol de dispositivos protetores da entidade familiar e garantidores de direitos, elevou a status de norma fundamental a família, assegurando a todos os seus indivíduos igualdade e dissolvendo a antiga estrutura patriarcal do citado grupo.

Dias (2013, p. 30), em apontamentos sobre o tema, relata:

“A Constituição Federal de 1988, como diz Zeno Veloso, num único dispositivo, espancou séculos de hipocrisia e preconceito. Instaurou a igualdade entre homem e mulher e esgarçou o conceito de família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros. Estendeu igual proteção à família constituída pelo casamento, bem como à união estável entre o homem e a mulher e à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, que recebeu o nome de família monoparental. Consagrou a igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento ou por adoção, garantindo-lhes os mesmos direitos e qualificações […]”

Diante disso e das contínuas mudanças sociais, hodiernamente as estruturas das famílias possuem as mais diversas apresentações, formadas por pais de igual sexo, um só dos pais e os filhos, primos e amigos residentes em um mesmo imóvel, duas famílias de pais separados, enfim, começou-se a admitir a existência de núcleos familiares baseados tão somente na afetividade dos indivíduos, sem que para isso detenham igual vínculo consaguíneo, fato que permite o exercício dos princípios basilares do Direito das Famílias.

1.2 PRINCÍPIOS DO DIREITO DAS FAMÍLIAS

O Direito, na busca incessante pela maior proteção dos indivíduos e resguardo das garantias constitucionais fundamentais, sempre procurou estabelecer princípios que orientassem a atividade jurídica e social, atribuindo-se aos mesmos força normativa, sobretudo após a Carta Constitucional de 1988.

Nesse sentido, com o Direito das Famílias não poderia ser diferente. A proteção aos componentes do grupo familiar, bem assim a todas as constituições de família, fez com que tal ramo do Direito necessitasse também de diretrizes principiológicas que lhe dessem base.

Sendo assim, diante do quanto exposto, apesar de serem inúmeros os princípios que regem o Direito das Famílias, ao presente trabalho incumbe citar tão somente seis deles, quais sejam: princípios da dignidade da pessoa, da convivência familiar, do melhor interesse da criança e do adolescente, da isonomia entre os filhos, do pluralismo das entidades familiares e da afetividade.

1.2.1 Princípio da dignidade da pessoa

De sede constitucional, o princípio da dignidade da pessoa vem registrado no art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988, sendo considerado princípio fundamental da República.

Nos dizeres de Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 76), é a dignidade da pessoa:

“Princípio solar em nosso ordenamento, a sua definição é missão das mais árduas, muito embora arrisquemo-nos a dizer que a noção jurídica de dignidade traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais, afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca de sua felicidade.”

A partir do conceito acima exposado, vê-se que “dignidade da pessoa” nada mais é do que a garantia ao indivíduo de vida plena e não tão somente de sobrevivência, sendo-lhe outorgada a possibilidade de, diante dos ditames legais, assegurar-se o mínimo existencial necessário a salvaguardar suas realizações pessoais.

1.2.2 Princípio da convivência familiar

 Segundo orientações doutrinárias, trata-se o princípio da convivência familiar de uma das mais importantes diretrizes no estabelecimento dos novos modelos de famílias do século.

Conforme leciona Lôbo (2012, p. 74),

“A convivência familiar é a relação afetiva diuturna e duradoura entretecida pelas pessoas que compõem o grupo familiar, em virtude de laços de parentesco ou não, no ambiente comum […] É o ninho no qual as pessoas se sentem recíproca e solidariamente acolhidas e protegidas, especialmente as crianças […] a convivência familiar é substrato da verdade real da família socioafetiva, como fato social facilmente aferível por vários meios de prova. A posse do estado de filiação, por exemplo, nela se consolida. Portanto, há direito à convivência familiar e direito que dela resulta”.

Posto isto, analisa-se que o princípio supramencionado nada mais é do que diretriz na conceituação de núcleo familiar e, sobretudo, de família plural. Por meio dele se infere que família é toda entidade que convive e cria laços afetivos em ninho comum (lar), possua ela qualquer tipo de constituição.

1.2.3 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente

Reflexo do princípio da dignidade da pessoa, o melhor interesse das crianças e adolescentes espelha a moderna conjuntura social e familiar, essencialmente porque eleva a figura do menor à condição de sujeito de direitos, sob proteção do poder familiar (poder exercido pelos chefes de família em conjunto) e não do pátrio poder (poder exercido unicamente pelo pai).

Nesse sentido, o princípio em análise traduz a necessidade constante de realização de atos de vida que assegurem a satisfação dos direitos das crianças e adolescentes, visando ao pleno desenvolvimento dos mesmos.

Segundo ensina Lôbo (2012, p. 75-76),

“O princípio do melhor interesse significa que a criança – incluído o adolescente, segundo a Convenção Internacional dos Direitos da Criança – deve ter seus interesses tratados com prioridade, pelo Estado, pela sociedade e pela família, tanto na elaboração quanto na aplicação dos direitos que lhe digam respeito, notadamente nas relações familiares, como pessoa em desenvolvimento e dotada de dignidade […] O princípio do melhor interesse ilumina a investigação das paternidades e filiações socioafetivas […] O juiz deve sempre, na colisão da verdade biológica com a verdade socioafetiva, apurar qual delas contempla o melhor interesse dos filhos, em cada caso, tendo em conta a pessoa em formação.”

Tem-se, pois, que o melhor interesse da criança orienta, em todo caso, o reconhecimento jurídico das famílias, em especial as multifacetadas, nas quais a criança ou adolescente se insere como ser em desenvolvimento, devendo receber especial atenção.

1.2.4 Princípio da isonomia entre os filhos

A multiplicidade das formas de constituição de família, mormente após o advento do instituto da adoção, bem assim os números crescentes de crianças havidas fora da relação conjugal, revelaram ao Direito a necessidade de assegurar a todos os filhos, consanguíneos ou não, idênticos direitos.

Dispõe o art. 227, § 6º, da Constituição Federal de 1988, cuja redação se repete no art. 1.569, do Código Civil, que “os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

No sentido do acima transcrito, a nova ordem constitucional brasileira, ante a inserção do mencionado dispositivo, trouxe à baila o princípio da isonomia entre os filhos como vetor de garantias da prole, direitos estes tanto de título pessoal (nome, registro…), quanto de título patrimonial (sucessão, bens, alimentos…).

Sobre o tema expõem Farias e Rosenvald (2012, p. 133):

“[…] a incidência da isonomia tem o condão de impedir distinções entre filhos fundadas na natureza do vínculo que une os genitores (se casados ou em união estável ou em união homoafetiva), além de obstar diferenciações em razão de sua origem biológica ou não […] A partir dessas ideias, vale afirmar que todo e qualquer filho gozará dos mesmos direitos e proteção, seja em nível patrimonial, seja mesmo na esfera pessoal.”

Sendo assim, o princípio da isonomia entre os filhos, afirmando a proteção integral à criança e adolescente no seio familiar, possibilitou que a prole, mesmo aquela decorrente de vínculo afetivo, possuísse igual direito à contraída biologicamente e dentro de relação conjugal.

1.2.5 Princípio do pluralismo das entidades familiares

Reiteradas vezes já se disse aqui que a evolução social acarretou o surgimento de novas estruturas de famílias, estruturas estas que passaram a comportar diversas denominações: monoparentais, homoafetivas, paralelas, informais, recompostas, enfim, a sociedade começou a conviver com as mais variadas instituições familiares.

A partir daí, o Direito se viu obrigado a reconhecer tais laços afetivos como família e considerar o pluralismo das entidades familiares princípio orientador das relações sociais.

Dias (2013, p. 70) anota que

“Desde a Constituição Federal, as estruturas familiares adquiriram novos contornos. Nas codificações anteriores, somente o casamento merecia reconhecimento e proteção. Os demais vínculos familiares eram condenados à invisibilidade. A partir do momento em que as uniões matrimonializadas deixaram de ser reconhecidas como a única base da sociedade, aumentou o espectro da família. O princípio do pluralismo das entidades familiares é encarado como o reconhecimento pelo Estado da existência de várias possibilidades de arranjos familiares […] Excluir do âmbito da juridicidade entidades familiares que se compõem a partir de um elo de afetividade e que geram comprometimento mútuo e envolvimento pessoal e patrimonial é simplesmente chancelar o enriquecimento injustificado, é ser conivente com a injustiça”.

Nessa linha de intelecção, em caso emblemático, considerou o Supremo Tribunal Federal a união homoafetiva como entidade familiar, conferindo-lhe efeitos semelhantes à união estável. Leia-se fragmento do julgado:

“[…] 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão família, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por“intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas […]” (STF, ADI 4277 DF, REL. MIN. AYRES BRITTO, DJ 13/10/2011)

Posto isto, o pluralismo das entidades familiares justifica o reconhecimento pelo Estado das mais diferentes conformações de famílias, o que garante a ampliação de direitos e o encorajamento ao advento de novos núcleos formados pela afetividade entre os indivíduos.

1.2.6 Princípio da afetividade

Por fim, mas não menos importante, incumbe salientar o princípio da afetividade como fonte do Direito das Famílias, bem assim deste trabalho.

É bem verdade que as relações interpessoais, antes de mais nada, fundam-se no afeto instaurado entre seus indivíduos. A família não haveria de se distanciar disso.

Muito embora o Direito, de há muito, haja agasalhado tão somente os laços consanguíneos como forma de família, fato já largamente discutido neste estudo, as contemporâneas entidades familiares, que não aquelas formadas por vínculo de sangue, tornaram o afeto ponto de enlace em suas constituições e, portanto, princípio base das relações em família.

Na mesma toada, Villela apud Tartuce (2012, p. 1038) aduz:

“A paternidade em si mesma não é um fato da natureza, mas um fato cultural. Embora a coabitação sexual, da qual pode resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico como no tendencial, a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação. As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso, para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável esforço ao esvaziamento biológico da paternidade”.

Assim, vê-se que apesar de não se originar da ciência biológica, os laços afetivos se formam não do sangue, mas da convivência familiar, e desembocam na felicidade como maneira de reconhecimento jurídico do afeto, assim o é, por exemplo, na paternidade socioafetiva[1] e na posse do estado de filho[2], gerando consequências legais e fáticas similares aos vínculos sanguíneos e outorgando direitos aos indivíduos, especialmente de personalidade.

1.3 DIREITOS DA PERSONALIDADE

Abordados em amplitude no Código Civil de 2002, o qual os concedeu capítulo exclusivo, os direitos da personalidade, embora não largamente explorados como o fez a legislação infraconstitucional, já vieram dispostos na Constituição Federal de 1988 quando ali se trataram os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos (art. 5º, CRFB/1988).

Conforme preleciona Tartuce (2012, p. 87),

“[…] os direitos da personalidade têm por objeto os modos de ser, físicos ou morais do indivíduo. O que se busca proteger com tais direitos são os atributos específicos da personalidade, sendo esta a qualidade do ente considerado pessoa. Em síntese, pode-se afirmar que os direitos da personalidade são aqueles inerentes à pessoa e à sua dignidade” (art. 1º, III, da CF/1988)

A melhor doutrina considera que os direitos de personalidade são, em base, seis, quais sejam: vida; integridade física e psíquica; nome; imagem; honra; e intimidade.

Os citados direitos garantem às pessoas o mínimo jurídico existencial, indicando os caracteres essenciais à individualização e salvaguarda de cada ser.

Conforme aponta Tartuce (2012, p. 88), “na visão civil-constitucional, assim como os direitos da personalidade estão para o Código Civil, os direitos fundamentais estão para a Constituição”, sendo o rol de direitos da personalidade meramente taxativo, de acordo inteligência do Enunciado 274, da IV Jornada de Direito Civil[3].

Sendo assim, toda pessoa inserida no seio familiar deve ostentar com plenitude os direitos da personalidade, sob pena de violação ao princípio da dignidade da pessoa.

1.4 RELAÇÕES DE PARENTESCO

O Código Civil Brasileiro de 2002 resguardou às relações de parentesco capítulo específico, o qual compreende os arts. 1.591 a 1.595, relacionando ali quem são os parentes, como se classifica o parentesco e indicando, acima de tudo, ausência de distinção entre parentesco formado por vínculo de sangue ou por afeto.

Nos dizeres de Dias (2013, p. 350),

“As relações de parentesco são identificadas como vínculos decorrentes da consanguinidade e da afinidade, ligando as pessoas a determinado grupo familiar […] Além de um vínculo natural, o parentesco também é um vínculo jurídico estabelecido por lei, que assegura direitos e impõe deveres recíprocos. São elos que não se constituem nem se desfazem por ato de vontade.”

Nesse sentido, a doutrina passou a classificar as relações de parentesco em natural (vínculos de consanguinidade) e civil (vínculo de adoção); biológico (descendentes uns dos outros ou com ascendentes em comum) e por afinidade (decorre do afeto); linha reta (leva em consideração ascendência e descendência) e linha colateral (tronco comum, não descendendo uns dos outros); maternal e paternal.

A partir de tal classificação e das constantes alterações no seio da família, percebeu-se que o parentesco, diferentemente do que apontava o Código Civil de 1916, espalhava-se a toda relação familiar, inclusive àquela formada por adoção ou afeto gerando, em consequência, os mesmos ônus legais daquela constituída por consanguinidade, em homenagem ao princípio da afetividade.

Conforme aduz Dias (2013, p. 350-351),

“As profundas alterações que ocorreram na família se refletem nos vínculos de parentesco. A própria Constituição encarregou-se de alargar o conceito de entidade familiar ao não permitir distinções entre filhos, afastando adjetivações relacionadas à origem da filiação (CF 227 § 6º). Ocorreu verdadeira desbiologização da paternidade-maternidade-filiação e, consequentemente, do parentesco em geral. Assim, deve-se buscar um conceito plural de paternidade, de maternidade e de parentesco em sentido amplo, no qual a vontade, o consentimento, a afetividade e a responsabilidade jurídicas terão missões relevantes.”

Nesses termos, influência direta possui a relação de parentesco nas novas conjunturas de famílias do século, sobretudo quando se tratam de garantias basilares dos indivíduos como nome, registro, sucessão e diversos outros direitos assegurados pela legislação aos parentes e, em especial, aos filhos.

2 DA FILIAÇÃO

2.1 A FILIAÇÃO NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL

Objeto de intenso estudo no Direito das Famílias, a filiação, diante das modernas estruturas familiares, assumiu papel de relevância na ciência jurídica, importância ressaltada pela Constituição Federal de 1988.

A antiquada legislação de civil de 1916, como já dito, demonstrava clara cisão de direitos entre os filhos, fossem eles havidos do casamento ou não, outorgando àqueles direitos infinitamente maiores que a estes.

Pois bem, posta a evolução social, o constituinte de 1988 elegeu novas orientações a pautarem as relações de filiação, considerando, destacadamente, a ausência de diferenciação entre os filhos gerados ou não do vínculo matrimonial, outorgando-lhes idênticos direitos sejam patrimoniais ou pessoais, fato que consagrou o princípio da isonomia entre os filhos.

Apontam Farias e Rosenvald (2012, p. 617) que

“[…] com a normatividade isonômica constitucional, encartada na sua própria tábua axiológica (dignidade da pessoa humana, solidariedade social, igualdade e liberdade), infere-se, com tranquilidade, que o direito filiatório infraconstitucional está submetido necessariamente a algumas características fundamentais: i) a filiação tem de servir à realização pessoal e ao desenvolvimento da pessoa humana (caráter instrumental do instituto, significando que a filiação serve para a afirmação da dignidade do homem); ii) despatrimonialização das relações paterno-filiais (ou seja, a transmissão de patrimônio é mero efeito da filiação, não marcando a sua essência); iii) a ruptura entre a proteção dos filhos e o tipo de relacionamento vivenciado pelos pais. Vale, aqui, pontuar o exemplo dos filhos socioafetivos que, embora não mencionados em qualquer texto legal, merecem a mesma proteção e não podem ser discriminados em relação aos filhos biológicos.”

Da leitura do quanto transcrito, observa-se que as modernas orientações a respeito da filiação indicam que qualquer dos filhos, sejam eles havidos ou não do matrimônio, decorrentes de vínculo sanguíneo ou por afeto, possuem os mesmos direitos frente ao ordenamento jurídico, oponíveis erga omnes, como forma de busca da felicidade pelo indivíduo e salvaguarda da dignidade humana.

2.2 PODER FAMILIAR

Sendo decorrência lógica da filiação, o poder familiar, atualmente assim denominado, sofreu grandes modificações no decorrer do tempo, assumindo feição completamente diversa daquela existente em tempos arcaicos (Código Civil de 1916), nos quais era identificado como “pátrio poder” (poder do pai de dirigir a família), fonte de uma sociedade machista e conservadora.

Instituída a família e adquiridos os filhos, é consequência natural, uma vez que é múnus, que os pais lhes garantam o mínimo necessário à vida, orientando-os, auxiliando-os e exercendo sobre eles poder de controle pessoal e patrimonial, à vista dos princípios da proteção integral e do melhor interesse dos filhos. É sob tal prisma que se conceitua o poder familiar.

Em igual linha de raciocínio pontua Lôbo (2012, p. 297):

“A evolução gradativa, ao longo dos séculos, deu-se no sentido da transformação de um poder sobre os outros em autoridade natural com relação aos filhos, como pessoas dotadas de dignidade, no melhor interesse deles e da convivência familiar. Essa é sua atual natureza. Assim, o poder familiar, sendo menos poder e mais dever, converteu-se em múnus, concebido como encargo legalmente atribuído a alguém, em virtude de certas circunstâncias, a que se não pode fugir. Para Carbonnier, é um direito-função, suscetível de abuso se ele for desviado de sua finalidade, que é a proteção do filho, para sua segurança, saúde e moralidade. O poder familiar – ou autoridade parental – “assume mais uma função educativa que propriamente de gestão patrimonial, e é ofício finalizado à promoção das potencialidades criativas dos filhos”, onde não é possível conceber um sujeito subjugado a outro”.

Consoante o anteriormente exposto, é de se dizer que o poder familiar representa o dever dos pais de exercer sobre os filhos, seja de que origem forem (biológicos ou afetivos), a obrigação de educar, cuidar, ter em companhia e representá-los, até que atinjam idade suficiente a agirem por si sós, nos moldes do quanto dispõe o art. 1.634, do Código Civil.

O poder familiar, assim, tem recebido especial atenção ao longo dos anos. A moderna jurisprudência pátria, diante da proteção integral e melhor interesse da criança, admite, inclusive, adoção de enteado por padrasto com a destituição do antigo poder familiar, haja vista o real exercício por aquele das funções paternais. Leia-se transcrição de julgado:

“SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA. ADOÇÃO. FALTA DE CONSENTIMENTO DO PAI BIOLÓGICO. ABANDONO. SITUAÇÃO DE FATO CONSOLIDADA EM BENEFÍCIO DA ADOTANDA. HOMOLOGAÇÃO. 1. Segundo a legislação pátria, a adoção de menor que tenha pais biológicos no exercício do pátrio poder pressupõe, para sua validade, o consentimento deles, exceto se, por decisão judicial, o poder familiar for perdido. Nada obstante, o STJ decidiu, excepcionalmente, por outra hipótese de dispensa do consentimento sem prévia destituição do pátrio poder: quando constatada uma situação de fato consolidada no tempo que seja favorável ao adotando (REsp n. 100.294-SP). 2. Sentença estrangeira de adoção assentada no abandono pelo pai de filho que se encontra por anos convivendo em harmonia com o padrasto que, visando legalizar uma situação familiar já consolidada no tempo, pretende adotá-lo, prescinde de citação, mormente se a Justiça estrangeira, embora tenha envidado esforços para localizar o interessado, não logrou êxito. 3. Presentes os demais requisitos e verificado que o teor da decisão não ofende a soberania nem a ordem pública (arts. 5º e 6º da Resolução STJ nº 9/2005). 4. Sentença estrangeira homologada.” (STJ – SEC: 259 HK 2009/0130933-1, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julgamento: 04/08/2010, CE – CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 23/08/2010)

Posto isto, analisa-se que os Tribunais Pátrios, entendida a importância do poder familiar e da proteção plena à criança e adolescente, estendem às novas formas de famílias também o exercício de poder familiar, vistas as possibilidades fáticas do caso, o que garante o melhor interesse do menor, em qualquer situação.

2.3 CRITÉRIOS PARA A FILIAÇÃO

Como à filiação não poderia ser diferente, tratando-se de instituto jurídico que gera direitos e obrigações, ao mesmo não faltaria o estabelecimento de critérios à sua existência.

Segundo a doutrina, são basicamente três os critérios determinantes da filiação, quais sejam: legal ou jurídico (funda-se em presunção relativa imposta pelo legislador); biológico (funda-se na ascendência e descendência, relacionando-se à genética); e socioafetivo (baseado na afetividade, amor e solidariedade entre pai e filho, representando a principal característica das famílias multifacetadas).

Embora se tenha estabelecido critérios para a filiação, a sociedade hodierna, diante das constantes mudanças e aparecimento de diversas espécies de famílias, deve admitir as mais amplas possibilidades de considerar a existência de relação pai-filho na comunidade, consoante ensinam Farias e Rosenvald (2012, p. 640).

“Vencida a fase matrimonialista e patriarcal que subjugou o Direito das Famílias brasileiro, acolhe-se a pluralidade filiatória, sem discriminações. Com isso, o termo filiação apresenta sentido plural, rico em variações e nuances, caracterizado por um verdadeiro mosaico de possibilidades, que vão desde a origem genética até a convivência cotidiana, digna do estabelecimento de uma relação firme e inabalável. São os múltiplos e variados meios de estabelecer a relação paterno-filial.”

Pelo apresentado, em verdade, considera-se filiação todo o vínculo de paternidade, seja genético ou decorrente de convivência, no qual se exerça de fato o poder familiar e haja relação de afetividade, solidariedade e respeito mútuo entre os chefes da família e os filhos.

2.4 EFEITOS JURÍDICOS DA FILIAÇÃO

 Considerando-se instituto jurídico que desemboca na outorga de direitos e deveres a seus titulares, a filiação, assim como os demais institutos, possui efeitos tanto de natureza patrimonial quanto pessoal, seja ela reconhecida voluntariamente pelos pais ou forçosamente pelo Poder Judiciário.

Os vínculos de afinidade e afeto, basilares na relação de paternidade, são os principais efeitos do estado de filiação e, a partir deles, abre-se o leque de direitos e deveres decorrentes da relação pai-filho.

Alimentos, cuidado e proteção, guarda, administração de bens, educação, respeito, nome e identidade moral são considerados pela doutrina os principais efeitos obrigacionais que decorrem da filiação, sendo, nesse sentido, vias de mão-dupla. Enquanto ao pai incumbe educar, por exemplo, ao filho cabe usufruir ao máximo da educação adequada; enquanto ao pai incumbe administrar os bens, ao filho cabe deles usar e gozar quando capaz.

Embora grande parte dos efeitos se trate de obrigações dirigidas ao patrimônio, é de se dizer que o reconhecimento da condição de filho pelo pai seja a mais importante das decorrências jurídicas do estado de filiação.

2.5 RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO

A antiga legislação civil de 1916, de acordo o já dito, demonstrava límpida distinção entre filhos conforme fosse sua origem, não cogitando, sequer, a possibilidade de admissão de filiação fundada na afetividade entre o chefe da família e o filho.

A evolução social, entretanto, fez urgir a necessidade de consideração de iguais direitos entre os filhos, alargando o conceito de reconhecimento de filiação para abarcar as novas entidades familiares surgidas no século.

Havendo o constituinte de 1988 abolido qualquer distinção entre os filhos havidos ou não do casamento ou decorrentes de adoção (art. 227, § 6º, CRFB), consagrando, nesse diapasão, o princípio da igualdade entre os filhos, o que possibilitou, inclusive, a paternidade socioafetiva e a aquisição da posse de estado de filho, o dilema do reconhecimento de filiação ganhou elevada discussão no meio jurídico, ampliando as probabilidades de criação de vínculos de parentesco entre os indivíduos, seja por ato de vontade ou forçosamente.

De acordo conceituam Farias e Rosenvald (2012, p. 679),

“O reconhecimento de filhos é um ato, voluntário ou forçado, através do qual se estabelece a relação de parentesco em primeiro grau na linha reta. Pode decorrer de um ato espontâneo praticado pelos genitores ou mesmo contra sua vontade, através de decisão do Poder Judiciário, proferida em ação investigatória de paternidade.”

A este estudo cabe realçar o reconhecimento voluntário da filiação, especialmente diante das atuais formas de famílias concebidas.

Segundo Dias (2013, p. 388),

“O reconhecimento voluntário da paternidade independe da prova da origem genética. É ato espontâneo, solene, público e incondicional. Como gera o estado de filiação, é irretratável e indisponível. Não pode estar sujeito a termo, sendo descabido o estabelecimento de qualquer condição (CC 1.613). É ato livre, pessoal, irrevogável e de eficácia erga omnes […]”

Tratando-se de ato jurídico que não exige origem genética, o reconhecimento da filiação nas mais variadas instituições familiares recebe guarida na jurisprudência que tem decidido pela possibilidade de reconhecimento da paternidade socioafetiva e da posse de estado de filho, tudo fundado nas circunstâncias fáticas, na afetividade existente no seio familiar e na convivência entre pai e filho, mesmo em detrimento da paternidade biológica. Leiam-se as anotações dos julgados:

“DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. AUSÊNCIA DE VÍNCULO BIOLÓGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO. "ADOÇÃO À BRASILEIRA". IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. A chamada "adoção à brasileira", muito embora seja expediente à margem do ordenamento pátrio, quando se fizer fonte de vínculo socioafetivo entre o pai de registro e o filho registrado, não consubstancia negócio jurídico vulgar sujeito a distrato por mera liberalidade, tampouco avença submetida a condição resolutiva consistente no término do relacionamento com a genitora. 2. Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva. 3. No caso, ficou claro que o autor reconheceu a paternidade do recorrido voluntariamente, mesmo sabendo que não era seu filho biológico, e desse reconhecimento estabeleceu-se vínculo afetivo que só cessou com o término da relação com a genitora da criança reconhecida. De tudo que consta nas decisões anteriormente proferidas, dessume-se que o autor, imbuído de propósito manifestamente nobre na origem, por ocasião do registro de nascimento, pretende negá-lo agora, por razões patrimoniais declaradas. 4. Com efeito, tal providência ofende, na letra e no espírito, o art. 1.604 do Código Civil, segundo o qual não se pode "vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro", do que efetivamente não se cuida no caso em apreço. Se a declaração realizada pelo autor, por ocasião do registro, foi uma inverdade no que concerne à origem genética, certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com o infante vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade social em si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da alegação de falsidade ou erro. 5. A manutenção do registro de nascimento não retira da criança o direito de buscar sua identidade biológica e de ter, em seus assentos civis, o nome do verdadeiro pai. É sempre possível o desfazimento da adoção à brasileira mesmo nos casos de vínculo socioafetivo, se assim decidir o menor por ocasião da maioridade; assim como não decai seu direito de buscar a identidade biológica em qualquer caso, mesmo na hipótese de adoção regular. Precedentes. 6. Recurso especial não provido”. (STJ – REsp: 1352529 SP 2012/0211809-9, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 24/02/2015, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/04/2015)

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. ALEGAÇÃO DE INDUÇÃO EM ERRO AO DECLARAR-SE PAI. INOCORRÊNCIA. RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO DE PATERNIDADE E ISENTO DE QUALQUER VÍCIO. IRREVOGABILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.609 DO CCB. POSSE DE ESTADO DE FILIAÇÃO OSTENTADA POR MAIS DE 10 ANOS. 1. O reconhecimento voluntário de paternidade é ato irrevogável, nos termos do art. 1.609 do CCB, somente podendo ser desconstituído mediante comprovação de vício (erro, dolo ou coação) na sua origem. Nesse contexto, evidenciado que o reconhecimento operado pelo autor decorreu de ato unilateral de vontade praticado de forma livre e consciente, não cabe sua anulação. 2. Outrossim, indubitavelmente consolidou-se vínculo parental socioafetivo entre os agora litigantes, pela posse de estado de filiação – caracterizada pela ostentação dos elementos nome, tratamento e fama -, por ao menos 10 anos, devendo ser prestigiado tal vínculo em detrimento da verdade biológica. 3. À míngua de prova de qualquer vício de consentimento que viesse a macular o reconhecimento voluntário de paternidade operado, bem como diante da evidente posse de estado de filiação consolidada, não merece reparos a sentença de improcedência. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME.” (TJ-RS – AC: 70053663449 RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 02/05/2013, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 08/05/2013)

Sendo assim, vê-se que o reconhecimento de filiação, analisadas as novas conjunturas sociais e familiares, deve possuir a mais ampla avaliação, possibilitando que as famílias, inclusive as recompostas, diante das circunstâncias fáticas, possam reconhecer seus filhos e conceder aos mesmos todos os direitos inerentes à espécie, sobretudo quando assumida a posse do estado de filho com nome, fama e tratamento.

3 DA PLURIPARENTALIDADE

3.1 DELINEAMENTOS GERAIS

Como fato social, a família, célula-mãe da sociedade, assumiu numerosas faces ao logo do tempo, comportando as mais variadas conformações possíveis, admitindo uma reestruturação suficiente a acolher todo e qualquer tipo de núcleo no qual o afeto e a convivência, e não necessariamente o sangue, representem o ponto nodal de sua constituição; é a família plural.

O pluralismo nas relações familiares, antes entendido como abominação ao Direito, alçou o grau de norma constitucional, recebendo proteção do constituinte de 1988, o qual, desde então, admitiu ser família não só aquela instituída pelo vínculo matrimonial.

Segundo Dias (2013, p. 41),

“O pluralismo das relações familiares – outro vértice da nova ordem jurídica – ocasionou mudanças na própria estrutura da sociedade. Rompeu-se o aprisionamento da família nos moldes restritos do casamento, mudando profundamente o conceito de família. A consagração da igualdade, o reconhecimento da existência de outras estruturas de convívio, a liberdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento operaram verdadeira transformação na família. O alargamento conceitual das relações interpessoais acabou deitando reflexos na conformação da família, que não possui mais um significado singular. A mudança da sociedade e a evolução dos costumes levaram a uma verdadeira reconfiguração quer da conjugalidade, quer da parentalidade […] “

É nesse sentido que se insere a família reconstruída, bem a assim a multiparentalidade.

3.2 FAMÍLIA RECONSTRUÍDA

Também chamada de composta, recomposta, ensamblada, ou mosaico, a família reconstruída representa o modelo familiar formado a partir da convivência amorosa, na qual coabitam sob um mesmo teto pais separados que se uniram em novo par e vivem com filhos comuns e filhos de uniões passadas, formando uma nova estrutura familiar originada de outra que se desfez.

Muito embora seja fato social e jurídico já aceito, há quem se oponha a considerar a família reconstruída entidade familiar, uma vez que, segundo eles, o requisito da afetividade, essencial a tal espécie de família, não se estabelece, posta a existência de duas famílias monoparentais, fundando-se o citado entendimento no art. 1.636, do Código Civil[4].

Óbvio que não haveria o cônjuge separado, contraente de nova união, de perder o poder familiar sobre sua prole pelo simples fato de estar separado e novamente constituir família; óbvio também é que a legislação nem sempre acompanha os fatos sociais e o jurista deve estar constantemente atento às mudanças, visto o caso concreto. Tais simples indicações levam à completa bancarrota os argumentos traçados por aqueles contrários à consideração da família reconstruída como entidade familiar.

Justamente pelo fato de se unirem duas famílias monoparentais é que se admite a existência da família mosaico, espécie de família fundada no afeto e na convivência contínua, autorizando, em igual sentido, que os filhos, de fato, possuam mais de um pai ou mais de uma mãe, haja vista a reconstrução da família sem a quebra de vínculo de paternidade com a anterior.

3.2.1 Filhos pluriparentais

Pluriparental ou multiparental é todo aquele que estabelece um vínculo parental com mais de duas pessoas (duas paternidades), vínculo este que se dá por meio de concepção geneticamente assistida ou aquisição de nova união por pai separado.

Segundo Dias (2013, p. 385),

“Para o reconhecimento da filiação pluriparental, basta flagrar o estabelecimento do vínculo de filiação com mais de duas pessoas. Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos, mais do que apenas um direito, é uma obrigação constitucional reconhecê-los, na medida em que preserva direitos fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo dignidade e a afetividade da pessoa humana. Esta é uma realidade que a justiça já começou a admitir. No dizer de Belmiro Welter, não reconhecer as paternidades genética e socioafetiva, que fazem parte da trajetória da vida humana, é negar a existência tridimensional do ser humano, pelo que se devem manter incólumes as duas paternidades”

A esta análise vale destacar a pluriparentalidade no seio da família mosaico.

3.3 RECONHECIMENTO E EFEITOS JURÍDICOS DA PLURIPARENTALIDADE NA FAMÍLIA RECONSTRUÍDA

Como brilhantemente apontado alhures por Maria Berenice Dias, tendo alcançado elevada importância no Direito das Famílias, a paternidade socioafetiva fez com que se reconhecesse a validade da família reconstruída e, em consequência, admitisse-se a pluriparentalidade.

De igual modo, a posse do estado de filho (nome, fama e tratamento), como condição fundamental à socioafetividade, foi responsável por inúmeras modificações, inclusive legislativas, no que concerne à família ensamblada e à multiparentalidade.

Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 642-643) traçam as seguintes considerações a respeito:

“A idéia já consagrada, há algum tempo, na sabedoria popular, na afirmação, tantas vezes ouvida, de que “pai é quem cria”. E é isso mesmo. PAI ou MÃE, em sentido próprio, é quem não vê outra forma de vida, senão amando seu filho. Independentemente do vínculo sanguíneo, o vínculo do coração é reconhecido pelo Estado com a consagração jurídica da paternidade socioafetiva […] O outro lado da moeda da paternidade socioafetiva é a figura da posse do estado de filho, em que, exteriorizando-se a convivência familiar e a afetividade, admite-se o reconhecimento da filiação […] É o famoso “filho de criação”, cuja adoção não foi formalizada, mas o comportamento, na família, integra-o como se filho biológico fosse.”

Nesse sentido, doutrina e jurisprudência já reconheceram variadas consequências jurídicas da pluriparentalidade inserida na família mosaico, reafirmando o seu reconhecimento pelo Direito das Famílias, em atenção aos princípios da dignidade humana, proteção integral e melhor interesse da criança, afetividade e convivência familiar. Exemplifiquem-se algumas das incursões jurídicas no tema:

I) admissão pela lei de registros públicos de inclusão do sobrenome do padrasto no registro do enteado, sem excluir o nome do genitor, atendendo à posse do estado de filho (art. 57, § 8º, da Lei 11.924/09);

II) adoção unilateral pelo companheiro do cônjuge do genitor, com a autorização deste (art. 41, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente);

III) paternidade alimentar, reconhecendo-se ao padrasto o dever de prestar alimentos, comprovada a existência de vínculo afetivo entre ambos.

De igual modo, pela socioafetividade, é efeito jurídico da multiparentalidade a guarda, conforme já apontou a jurisprudência:

“PATERNIDADE SOCIOAFETIVA – PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE – MANTENÇA DA GUARDA COM O CASAL QUE VEM CRIANDO A MENOR – ARTIGOS 6º E 33 DO ECA – PEDIDO INICIAL PARCIALMENTE PROCEDENTE – ÔNUS SUCUMBENCIAIS MODIFICADOS – RECURSO PROVIDO. Tendo como foco a paternidade socioafetiva, bem como os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e do melhor interesse do menor, cabe inquirir qual bem jurídico merece ser protegido em detrimento do outro: o direito do pai biológico que pugna pela guarda da filha, cuja conduta, durante mais de três anos, foi de inércia, ou a integridade psicológica da menor, para quem a retirada do seio de seu lar, dos cuidados de quem ela considera pais, equivaleria à morte dos mesmos. Não se busca legitimar a reprovável conduta daqueles que, mesmo justificados por sentimentos nobres como o amor, perpetram inverdades, nem se quer menosprezar a vontade do pai biológico em ver sob sua guarda criança cujo sangue é composto também do seu. Mas, tendo como prisma a integridade psicológica da menor, não se pode entender como justa e razoável sua retirada de lugar que considera seu lar e com pessoas que considera seus pais, lá criada desde os primeiros dias de vida, como medida protetiva ao direito daquele que, nada obstante tenha emprestado à criança seus dados genéticos, contribuiu decisivamente para a consolidação dos laços afetivos supra-referidos”. (TJSC. Apelação Cível n. 2005.042066-1. Rel. Des. Sérgio Izidoro Heil. Julg. 01/06/2006)

Ressalte-se, também, que o direito à herança, embora limitado pelo art. 1.829, do Código Civil[5], pode ser considerado efeito jurídico da pluriparentalidade. Em defesa de tal posicionamento, apontam Farias e Rosenvald (2012, p. 678):

“A decorrência da admissibilidade desta tese seria a multi-hereditariedade, na medida em que seria possível reclamar herança de todos os seus pais e de todas as suas mães. Isto sem esquecer a possibilidade de pleitear alimentos, acréscimo de sobrenome, vínculos de parentesco…”

Enfim, como demonstrado, é fato que o Direito já reconheceu a multiparentalidade no interior da família reconstruída, não havendo que existir qualquer discussão a respeito de sua impossibilidade, embora inexista na legislação previsão expressa da mesma.

CONCLUSÃO

Por tudo o quanto discutido neste ensaio e vastamente apresentado, com a evolução social não mais se admite um modelo estanque de família, devendo ser considerada entidade familiar toda aquela formada com base no afeto e convivência entre os indivíduos.

A família reconstruída, fonte, nesse sentido, de intervenções na realidade social hodiernamente vivida, assim, acolhida pela doutrina, recebendo contínua guarida na jurisprudência pátria, já foi reconhecida no meio jurídico, tanto é que a posse do estado de filho e, em consequência, a paternidade socioafetiva, são tidas como valores familiares.

Em igual linha de raciocínio, não há nada a se opor à pluriparentalidade.

A filiação, hoje baseada mais na afetividade que nos próprios vínculos biológicos, tomou por base as relações de amor para gerar a parentalidade, decorrendo disso todos os efeitos jurídicos necessários.

Padrastos e madrastas assumiram um papel muito mais primário que de segundo plano, tornando-se, de fato, verdadeiros pais, assumindo as responsabilidades naturais do múnus, alimentando, vestindo, educando, pondo em segurança e orientando, por isso mesmo que até a legislação, conforme dispôs a Lei nº 11.924/09, autorizou a inserção do nome destes no registro de nascimento da criança e adolescente.

Sendo assim, muito mais que mera relação genética, família é afeto, amor, união de seus componentes e, indubitavelmente, tem recebido “especial proteção do Estado”, como apontou a Constituição de 1988. Inexiste diferença entre as espécies de família, o que torna límpido e indiscutível o reconhecimento da família mosaico e da multiparentalidade, com todos os seus efeitos.

 

Referências
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 16 fev. 2016.
BRASIL. Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Institui o Código Civil de 1916. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em 13 fev. 2016.
BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Institui o Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em 03 mar. 2016.
BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil de 2002. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em 13 fev. 2016.
BRASIL. Lei 11.924, de 11 de abril de 2009. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11924.htm>. Acesso em 03 mar. 2016.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 4277/DF. Brasília, DF, 13/10/2011. Disponível em:<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20627227/arguicao-de-descumprimento-de-preceito-fundamental-adpf-132-rj-stf>. Acesso em 20 fev. 2016.
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BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível 70053663449 RS. Porto Alegre, RS, 02/05/2013. Disponível em:<http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/112853134/apelacao-civel-ac-70053663449-rs>. Acesso em 24 fev. 2016.
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FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. 4. ed. 6. vol. Salvador: JusPodvim, 2012.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. 2. ed. 6. vol. São Paulo: Saraiva, 2012.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 9. ed. 6. vol. São Paulo: Saraiva, 2012.
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TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 2. ed. São Paulo: Método, 2012.
Notas
[1] Conceito jurídico que estabelece a relação de parentesco baseada na convivência e na afetividade existentes entre pai e filho, sem que seja levada em consideração herança biológica.
[2] Condição daquele que, mesmo não detendo vínculo sanguíneo, recebe a condição de filho por laços de afetividade e convivência, assumindo nome, tratamento e fama da relação parental.
[3] Enunciado 274, IV Jornada de Direito Civil – Art. 11. Os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação.
[4] Art. 1.636. O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência o novo cônjuge ou companheiro.
[5] Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais.

Informações Sobre o Autor

Horígenes Fontes Soares Neto

Advogado. Graduado pela União Metropolitana de Educação de Cultura – UNIME. Especializando em Prática Trabalhista e Processual Civil pela Faculdade Independente do Nordeste – FAINOR


Equipe Âmbito Jurídico

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