Resumo: Uma justificação racional sobre a fundamentação dos direitos sociais do homem tem relação com o problema da efetividade destes direitos, sobretudo da efetividade da própria dignidade da pessoa humana. Uma melhor forma de proteger os direitos humanos não é somente contar com as técnicas jurídicas que os garantam e, com circunstâncias sociais, econômicas, culturais e políticas favoráveis a eles; senão, também, estar respaldado por bons argumentos para fundamentá-los e defendê-los racionalmente, para não somente incrustá-los em folhas de papel, mas na consciência de seus povos
Sumário: I. Introdução; II. O plano teórico de fundamentação; III. Plano da interpretação jurídica; IV. Plano da política legislativa; V. Conclusão.
I – Introdução[1]
Norberto Bobbio em conhecida passagem do livro A Era dos Direitos, afirmou “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-lo, mas de protegê-lo.[2]” O respeitado filósofo italiano não está errado, mas não está totalmente certo. A razão humana é mutante, não é um produto acabado e bem delineado, ao contrário, é efêmera, circunstancial, subjetiva. Quanto mais corre a evolução, ou para muitos uma desenvolução, há menos respostas e mais perguntas e, talvez, cada vez menos certezas. Hoje, na era das incertezas, até mesmo as ciências antes exatas como a matemática e a física já são um tanto quanto relativas, ou, se poderia dizer, inexatas[3].
O embate do homem com sua própria a razão, e com a razão de outros, é no mínimo desproporcional. Esta luta é travada contra verdadeiros gigantes que não são moinhos de vento (Cervantes). Mas, agora, parafraseado outro poeta (Fernando Pessoa), como navegar é preciso e viver não é preciso, o combate deve continuar; mesmo sabendo o quão frágil é a razão, enfim; o quão frágil é o homem, também. Como em qualquer duelo, como é e sempre foi, o uso de armaduras e proteções traz uma vantagem que não pode ser desmerecida por qualquer combatente. Assim, perscrutar os fundamentos, as referências éticas subjacentes na cultura de povos e nações, e em direitos historicamente consignados em cada documento escrito, mormente na Constituição material[4] para aqueles Estados que a adotam[5], têm vital importância.
Uma justificação racional sobre a fundamentação dos direitos sociais do homem tem relação com o problema da efetividade destes direitos, sobretudo da efetividade da própria dignidade da pessoa humana. Uma melhor forma de proteger os direitos humanos não é somente contar com as técnicas jurídicas que os garantam e, com circunstâncias sociais, econômicas, culturais e políticas favoráveis a eles; senão, também, estar respaldado por bons argumentos para fundamentá-los e defendê-los[6] racionalmente, para não somente incrustá-los em folhas de papel, mas na consciência de seus povos.
Neste trabalho a análise dos fundamentos se dará em três planos: o primeiro é o teórico, depois partiremos para o plano da interpretação jurídica, e por último veremos ainda o plano da política legislativa[7]. Estes planos a serem estudados não pretendem ser exaustivos, ao contrário, são escolhas possíveis de pontos de partida para uma longa caminhada a empreender, na qual se visa obter algum êxito reflexivo, mas sem ponto qualquer de chegada. Com isso queremos dizer que qualquer uma chegada não será nada mais que um novo ponto de partida, e também não se trata de um movimento circular, uma mera tautologia, enfim, contudo um caminhar conteudístico que se pretende, sobretudo, racional, progressivo e realista.
II – O plano teórico de fundamentação
Neste contexto tricotômico, o primeiro plano a ser analisado é o plano teórico da fundamentação, e nele a referência aos filósofos ditos clássicos ou dos modernos, e mesmo daqueles que ainda estão no mundo dos vivos, será entabulada com ressalvas, com os pés bem fincados na realidade, seja daquela que lhes é própria, seja da nossa de um país de modernidade tardia. Esta menção é digna de passagem, pois que muitos autores brasileiros, e talvez isso seja mesmo um aspecto cultural terceiro mundista, por vezes, têm o “hábito” de simplesmente importar filosofias ou idéias prontas sem o devido refino necessário e detido dos diferentes contextos históricos, antropológicos, sociais e econômicos qualificativos de cada uma das sociedades.
Com este pensamento, tentaremos empreender uma idéia reflexiva do estudo filosófico elaborado por alguns autores clássicos e filtrá-los numa tentativa de aplicabilidade ao modelo brasileiro. Não há a menor pretensão aqui de produzir um modelo qualquer de todo abrangente capaz de tirar os pecados do mundo. Se a globalização como um todo trouxe alguma vantagem para a humanidade em contraponto a tantas desvantagens tão manifestamente presentes, como o aumento das desigualdades mundiais que vêm vitimizando as populações mais carentes reféns do capital especulativo internacional, esta se poderia dizer que é, sem sombra de dúvida, a emergência de uma inescapável e resistível diversidade humana. É o que se convenciou chamar de multiculturalismo e foi muito bem compreendido pelo autor canadense Will Kymlicka[8], que aliás vive em um país com uma formação multidimencional de raças e povos.
Da mesma forma como não existem soluções globais para problemas locais, não existe pensamento setorial que resolva problema local. Cada vez mais o conhecimento necessita de maior abrangência para uma melhor compreensão e resolução dos desafios impostos à vida humana, sejam eles regionais ou globais, ou as duas coisas. O mesmo ocorre com o Direito, o qual necessita de uma simbiose com outros campos da ciência, assim como eles próprios, para ser efetivo. Não deve ser assim para deixar de ser Direito, para não perder suas características fundamentais, senão para ser mais verdadeiro como produto da inteligência humana. Não para sobreviver, mas para viver e deixar viver. Não para conformar, mas para mudar. O Direito como a vida humana necessita de adaptações constantes e freqüentes, caso contrário, como a história já demonstrou, a esterilização do Direito leva ao distanciamento da realidade, acaba por contaminar a si próprio pela falta de efetividade (para dizer o mínimo), e perder sua função de construção de uma sociedade livre e justa, transformando-se apenas em um servo, um instrumento de controle de muitos por poucos.
Dentro desta linha de raciocínio, no pós-moderno Estado Democrático de Direito no qual os diretos fundamentais têm importante papel transformador, estes perdem seu caráter meramente estéril formal para adquirir novos conteúdos e se materializarem sob a forma de liberdades e igualdades reais.[9]
Este novo paradigma transformador deve ser justificado racionalmente para responder ao questionamento de Ingo Sarlet de como os direitos sociais devem ser reconhecidos[10] para serem verdadeiramente eficazes.
Todavia, como será que os direitos sociais terão sua eficácia efetivada? A esta pergunta, há, para começo de conversa, uma resposta bem plausível: não será através de uma teoria que trate da dicotomia entre liberdade e igualdade, mas de uma trate os dois ideais de justiça dentro de um equilíbrio harmônio de modo a permitir o contínuo progresso humano que a sociedade brasileira tanto necessita.
Neste trabalho não se defende uma teoria abarcante posto que não existem teorias totalizantes que sigam tendo esta característica todo o tempo. Efetivamente existem pensadores que desenvolvem idéias pretensamente gerais, mas que no fundo não espelham mais do que opiniões fundadas em histórias de vida pessoais as quais influenciaram e influenciam de maneira singular seus modos de raciocínio[11]. Realidades individuais coletivizadas, envoltas na psique subjetiva, que tencionam apenas resolver problemas de suas próprias sociedades às quais pertencem seu próprio eu, individual e coletivo. Neste ponto, é importante asseverar que nossa crítica não desconstrói teorias universalizantes[12], ela apenas pretende desprender-se da idéia de que a totalidade é uma totalidade em si mesma. O que de fato ocorre, são as aplicações e implicações de certas dimensões de totalidade[13]. A complexidade da ciência do Direito não admite mais soluções simplistas, ao contrário o novo pede uma diferente forma de ordenar o pensar, cujo avanço congregador é mais importante que a ruptura de paradigmas.
Em razão desse novo modo de pensar, não se pode quer com isso chegar ao ponto reducionista extremado de afirmar que “[…] a justiça é antes uma questão de interpretação cultural do que de argumentação filosófica.”[14]. A justiça não é só isso, é isso e mais muita coisa. O que não se pode fazer é alçar dimensões as teorias filosófico-jurídicas que elas realmente não têm. O tempo, o modo, as pessoas, os lugares são diferentes. Estes aspectos têm uma preponderância interpretativa relacional e racional-reflexiva incontornáveis, que não podem ser desmerecidos.
De fato, as teorias filosóficas são realmente pedras fundamentais de qualquer complexo quebra cabeças a ser construído. No entanto, os encaixes do jogo devem ser feitos inseridos em cada abordagem social, em determinado contexto social, e em dado momento. Neste jogo, também há de se ter cuidado. Assim, a título de exemplo, querer fazer caber a “Teoria da Justiça” de John Rawls na realidade brasileira sem qualquer influência do pensamento e da realidade tupiniquim é, para dizer o mínimo, um atentado a moral cultural e a realidade nacionais.
Como toda teoria geral e abstrata, a de Rawls também não é ilesa de críticas. Talvez seja injusto como o renomado filósofo americano que já foi tão atacado por mais esta utopia da qual fez uso, contudo, utilizaremos o trecho que trata da posição original calcada sob o véu da ignorância na deliberação dos princípios de justiça para demonstrar como um complexo quebra cabeças não se pode construir com apenas poucas pedras.
Dessa forma, na busca de uma possível análise de problemas brasileiros, não se pode querer unicamente fazer uso a ferro e a fogo ao Brasil, ou a qualquer outro lugar, de uma teoria calcada numa realidade que é totalmente diferente daquela vivida pelos analisados. Cabe lembrar que a base da Teoria da Justiça parte da denominada posição original, situação hipotética na qual as partes contratantes, livres e iguais, escolhem, sob um “véu da ignorância”, os princípios de justiça que devem governar a “estrutura básica da sociedade”. Como aplicar uma teoria cujos dois princípios de justiça são, a grosso modo, que cada pessoa deve ter a mais ampla liberdade política compatível com uma igual liberdade para todos; e que as desigualdades em termos de poder, riqueza, renda e outros recursos não devem existir a não ser na medida em que favoreçam o benefício absoluto dos membros em pior situação na sociedade[15]?
Ronald Dworkin explicando Rawls aduz que idéia de uma posição original desempenha seu papel em um equilíbrio reflexivo, e que certos arranjos ou decisões políticas, como juízos convencionais, são justos, e outros, como a escravidão, são injustos. Além disso, supõe que cada um de nós é capaz de dispor dessas intuições ou convicções intuitivas em uma ordenação que designe algumas delas como mais corretas que outras[16].
Se por um lado Rawls foi utópico, por outro, os dois autores norte-americanos citados em suas obras clássicas são sensíveis realistas ao conceder uma especial ênfase à idéia da liberdade. Isto pode ser explicável pela análise contexto histórico e socio-cultural nos quais eles estavam envoltos. Rawls publicou sua famosa obra “Teoria da Justiça” em 1971, e segundo ele próprio, esta foi o resultado de uma somatória de estudos empreendidos mais de uma década antes da publicação[17], já Ronald Dworkin editou o “Levando os Direitos a Sério”, um pouco mais tarde em 1977. Na década que antecedeu as publicações citadas, a América do Norte, apesar da sustentada expansão econômica, passou pelo turbilhão de intensos movimentos de luta pelas liberdades civis, empreendidos principalmente pelos americanos de origem africana, e em prol das liberdades das mulheres[18].
Estes movimentos sociais surgiram como uma resposta ao racismo e desrespeito às liberdades das mulheres. De fato, nos anos que antecederam as revoltas populares, sem citar o caso feminino, atrocidades repugnantes foram praticadas contra a população negra norte americana. Eram rotineiros os linchamentos, enforcamentos, corte de órgãos genitais, retalhamento de orelhas, queima de pessoas, amputação de dedos e, às vezes, decepação de pedaços do coração e do fígado e sua distribuição às pessoas importantes que participavam do macabro ritual. A hediondez não parava aí, visto que todas as cenas eram fotografadas e distribuídas como souvenir para modelar a educação racista praticada na época[19].
Diante deste quadro, não havia como ficar alheio aos fatos que ressonavam na sociedade norte americana naquele momento. Um contraste evidente da maneira como dois filósofos americanos contemporâneos foram reativos em prol dos anseios das massas nacionais, os filósofos clássicos aparentemente não percebiam que tinham escravos humanos a lhes servir.
Ora, hoje há um consenso de que a escravidão é injusta. No entanto, na antiguidade, especialmente durante a recém criada democracia dos filósofos gregos clássicos, a escravidão era uma prática social bem aceita naquela sociedade. Até mesmo Platão e Aristóteles tinham escravos particulares[20]. Incrível como tanta inteligência não poderia perceber iniqüidades presentes a sua própria volta.
Ainda na esteira das influências do contexto sobre as idéias, John Finnis[21], filósofo australiano, cujo livro “Lei Natural e Direitos Naturais” foi gestado no continente africano, diferentemente dos autores estado-unidenses, atribui uma outra importância à idéia de igualdade. Segundo este autor o conceito de justiça abarca três elementos necessários para qualquer avaliação em termos de justiça/injustiça. O primeiro deles é chamado de “voltado-a-outrem” já que a justiça tem relação com a pessoa e com o modo como ela lida com as outras (intersubjetividade). É seguido pelo “dever” para com o outro e da “igualdade” de forma que seja produzido um equilíbrio. A partir desses elementos Finnis diz que se pode chegar a uma análise da razoabilidade prática, segundo a qual a pessoa deve favorecer e promover o bem comum de sua comunidade. O entendimento da comunidade, portanto, se volta ao exame dos requisitos da justiça. Ainda de acordo o filósofo[22]:
“Justiça, enquanto qualidade de caráter, é, em seu sentido geral, sempre uma disposição prática a favorecer e fomentar o bem comum de suas comunidades, e a teoria da justiça é, em todas as suas partes, a teoria do que em linhas gerais é requerido para esse bem comum”.
Exposto isto, seguindo a linha traçada por Finnis, fica patente, observado o contexto brasileiro, com características mais ou menos americanas e mais ou menos africanas, a relevância da percepção de que não se pode mesmo separar a teoria da realidade prática. A adoção desta postura sectária puramente teórica, oposta ao conhecimento sensível, revelaria, nos dias de hoje, uma verdadeira incongruência intelectual por parte de seu criador.
Neste prisma, passando ao caso brasileiro de participação popular no contrato social, há alguns nós górdios a serem cortados. Um deles passa pelo seguinte questionamento. Como dotar de capacidade intelectual e força participativa de consenso, cidadãos que passam fome? Sim, porque muitos no Brasil, em pelo século vinte e um, ainda não têm suas necessidades mais básicas de sobrevivência atendidas. Por outro lado, não se quer com isso, escapar das idéias da concordância contratual de Rawls. Ao contrário, o que se apresenta são realidades distintas que merecem ser consideradas ao serem interpretados os pensamentos do filósofo.
Ora, é banal, mas precisa ser lembrado que um indivíduo com fome não consegue pensar em liberdade. Antes, precisa suprir uma necessidade maior, uma carência corporal humana, o alimento. Assim, a assistência na efetivação da igualdade se mostra, neste aspecto em especial, então, essencial. Somente depois de supridas as necessidades básicas, saúde, moradia, educação, segurança, trabalho, o homem poderá participar reflexivamente do contrato. Um trabalho somente pode ser escrito porque naquele momento o corpo está em equilíbrio para produzir um raciocino, e da mesma forma, o leitor, para compreender um texto, também precisa do mesmo equilíbrio prévio essencial.
Um relato muito interessante de como a fome, necessidade humana tão básica, afeta o raciocínio, está presente nos diários dos que participaram de expedições realizadas na então recém descoberta terra por portugueses e espanhóis em 1535 pelo Rio da Prata. As descrições de um faminto soldado, cuja expedição subia o rio, são tão sucintas quanto são suas poucas alternativas alimentares[23]:
“Dos timbus, foram aos corandás, que “também vivem de pescado e carne (…) e compartilharam conosco sua escassez”. Rio acima estavam os quiloaças, que “comem pescado e carne”. Mais dezesseis dias de navegação e o grupo chegou aos mocoretás, “que não têm para comer outra coisa que carne e pescado, sobretudo pescado”. Em seguida, encontraram os chanás, cuja dieta era mais variada: “Comem a carne de veados, uma ratazana grande, salvo que não têm cauda. Permanecemos com eles uma noite, pois não tinham nada que comer.”
Para resumir a história, até este ponto o soldado apenas descrevia a dieta de “pescados e carne” de dez povos diferentes. A partir do momento em que a oferta alimentar se modifica, passa a ser outra também a narrativa, e revela o contraste evidente:
“Viemos a dar com uma nação que se chama carijós. Ali nos ajudou Deus Todo-poderoso com sua graça divina, pois entre os carijós ou guaranis achamos trigo turco ou milho, mandioquinha, batatas, mandioca-brava, mandioca-mansa, pescado, carne, veados, porcos selvagens, avestruzes, ovelhas índias, galinhas e gansos, e outros animais selvagens que agora não posso descrever. Também há abundância de um mel do qual se faz vinho e eles têm em suas terras muito algodão.”
Diante do que foi exposto, defendemos momentos em que a igualdade deve vir antes da liberdade, e nem por isso, uma tornará a outra mais ou menos relevante. Uma dicotomia criada e propagada como inconciliável merece ser modificada para uma transformadora unidade. Num país onde se troca o voto pela dentadura[24] equações pré-moldadas por vezes não se encaixam perfeitamente ao bem comum, tão somente ao bem de poucos.
Alguns autores nacionais vêem na teoria rawlsiana a defesa do mínimo existencial, ou seja, um direito às condições mínimas de uma existência humana digna que requer uma prestação estatal positiva no sentido de implementá-la e, negativa impedindo a intervenção nesta promoção. Um expoente desta doutrina é o professor Ricardo Lobo Torres[25]. No entanto ele mesmo faz a ressalva de que: “Despe-se o mínimo existencial de conteúdo específico.”, “[…] não é mensurável […]”. Ora, sem estas características o que é o mínimo existencial?
Uma possível resposta acerca da identificação do mínimo existencial, talvez esteja na descrição narrativa de nosso faminto soldado pós-medievo. Talvez seja apenas “pescado e carne”. Com toda a certeza a sobrevivência humana está garantia com esta ração mínima. Todavia, será que só de pescado e carne vive o homem? No relato trazido, há a clara demonstração de que uma vida pretensamente digna precisa muito mais do que apenas o mínimo. De fato, o equilíbrio está muito além da mera manutenção da existência. A dignidade humana não pode ser confundida com a mera sobrevivência. A dignidade humana é vida a ser vivida em sua plenitude de corpo e mente. Se não há igualdade real também não há liberdade real. A realidade em desequilíbrio transforma a liberdade, qualquer que seja ela, imediatamente em moeda de troca, como se pode perceber do exemplo já citado (voto x dentadura).
O equilíbrio digno da humanidade é alcançado por Aristóteles. Uma das principais contribuições do estudo da virtude na ética aristotélica é sua famosa afirmação segundo a qual a virtude está no meio. O homem virtuoso deve assim conhecer o ponto médio, a justa medida das coisas, e agir de forma equilibrada de acordo com a prudência e a moderação[26], que pode ser entendida como a própria caracterização do saber prático[27].
Está-se a perceber a militância também em favor de uma ética intimamente ligada ao Direito, em conformidade com a matriz Kantiana[28]. Adota-a porque com ela se quer manifestar uma possível universalidade moral de direitos a toda pessoa. Estes direitos morais devem ser garantidos e reconhecidos pela sociedade, além de estarem intimamente relacionados à idéia de dignidade humana, oferecendo, ainda, condições para o seu pleno desenvolvimento.
O pleno desenvolvimento da idéia de dignidade humana, neste prisma, é essencial para a efetivação dos direitos fundamentais sociais. Segundo Vicente Barretto[29], a partir do imperativo da moralidade formulado por Kant de que: “seres racionais estão pois todos submetidos a esta lei que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins”, pode-se evidenciar como a fundamentação ética do autor tedesco aponta para a natureza social do ser humano. Entretanto, é preciso fazer uma ressalva, não se está desconstruindo o que foi dito linhas acima acerca da impossibilidade da prática/teórica das teorias globalizantes totais, ao contrário, o que se está ora a perquirir são idéias responsivas a um modelo abarcante flexível, sem desconstrução de tudo o que foi produzido, apenas, estamos a produzir reinterpretações.
Neste ponto, há, portanto, uma aproximação da moral exatamente por ser alternativa, e não meramente objetiva descritiva, mas, com o porém, de não ter pretensão totalizante, de formar uma teoria pura assim como pretendeu Kelsen[30]. Modernamente, não se requer muito esforço interpretativo a verificar que a “Teoria Pura do Direito” do doutrinador austríaco merece temperamentos, e existem argumentos de peso que, neste ponto, invalidam a tese de Kelsen.
Neste giro, merece ser levantada uma crítica à “pureza” de Kelsen. Javier Esquivel[31] se referiu aos valores ao criticar o pensamento kelseniano num artigo que teve como título “Juízos de valor, positivismo jurídico e relativismo moral”. Nele, mostrou como certos erros na distinção entre o descritivo e o valorativo, ou entre o descritivo e o prescritivo, influíram nos postulados do positivismo jurídico, e concretamente na teoria do relativismo moral. Esquivel pondera em seu artigo que é menos clara a diferenciação do que supôs Kelsen, e que se deveria abandonar sua exposição tradicional. Utiliza como exemplo, a distinção taxativa entre o descritivo (verdade-falsidade) e o valorativo, sendo outra tese equivocada àquela distintiva da razão e da vontade. Voltando as distinções anteriores, para Kelsen o Direito é prescritivo, enquanto que a ciência jurídica é descritiva. As normas jurídicas que os homens estabelecem para regular as sociedades constituem valores relativos e arbitrários. Os juízos de valor nem proporcionam conhecimentos nem se pode discutir racionalmente sobre eles.
Na crítica de Esquivel, a negação dos valores absolutos é, pois, perfeitamente compatível com uma tese objetivista que rechaça o relativismo moral. Tanto na ciência como na moral há um campo intermediário entre a infalibilidade e o ceticismo, precisamente na discussão racional.
Utilizando-se dos argumentos acima narrados, Eusébio Fernandez[32] conclui o raciocínio antes formulado, advogando pelo surgimento de uma nova e diferente postura existente entre o absolutismo moral e o relativismo moral, que poderia denominar-se objetivismo moral. Nesta terceira postura, argumenta o autor, é possível uma discussão racional sobre os valores, cujas distintas concepções devem ser avaliadas racionalmente e, continua, afirmando que o interesse que isto tem para a filosofia prática é evidente. Valores como a paz, a tolerância, a liberdade ou a igualdade, e a dignidade humana, formariam parte do conteúdo deste objetivismo moral. O tema é importante para assuntos da atualidade como a questão do fundamento e a realização efetiva dos direitos humanos.
No entanto, como as idéias não são descartáveis e, não seguem a mesma sorte dos pós modernos e, por hora, inservíveis bens de consumo, gastos ou defasados pela velocidade tecnológica da sociedade de massas capitalista em que vivemos, não se pode perder o conceito de Kelsen sobre eficácia. No compreender do autor austríaco a eficácia é a norma jurídica que, entrando em vigor, é seguida e aplicada[33].
Feito o parênteses, cabe voltar novamente a Fernandez para quem uma teoria geral do direito deve construir um aparato conceitual para poder entendê-lo e avaliá-lo criticamente. Os conceitos jurídicos fundamentais devem ser vistos não só como categorias formais que captam as estruturas das normas e do sistema jurídico, mas também como noções que têm conteúdos e funções valorativas. Estas últimas funções são levadas a cabo por uma série de conceitos vinculados com a Filosofia do Direito, a justiça, a igualdade, a liberdade, que tomam a atenção dos autores contemporâneos.
Perceba-se com isso que não pretendemos fazer com que o Direito seja um elixir para todos os males utilizando os perfis objetivos e subjetivos[34] do mesmo Direito. Esta ciência não é a única existente e, deve fomentar a discussão entre todas as demais para a efetivação dos direitos sociais, através do caminho do equilíbrio harmônico entre a liberdade e a igualdade, bem como, com os deveres.
Nesta mesma linha de raciocínio, Finnis é taxativo ao afirmar que o uso moderno do discurso sobre direitos enfatiza a igualdade mantendo a justiça no primeiro plano das considerações, suplantando os cálculos dos consequencialistas e, ampliando a referência indiferenciada ao bem comum detalhando os componentes necessários do modo de vida em comunidade. E prossegue explanação afirmando que a busca de qualquer forma de comunidade na qual os direitos humanos estejam protegidos pela imposição de deveres irá necessariamente envolver a seleção de algumas e a rejeição de outras concepções de bem comum.
Ainda na esteira do pensamento de Finnis[35], este autor entende, juntamente com os utilitaristas, que não há direitos humanos absolutos. Os valores básicos consistem em aspectos do real bem-estar de indivíduos. Os correspondentes deveres desprovidos de exceção são direitos de reivindicar absolutos. São direitos de reivindicar relacionados estritamente a deveres acarretados pelo requisito da razoabilidade prática. Neste contexto, não pode ser desmerecido o papel dos deveres no equilíbrio harmônico entre os direitos e deveres, porquanto estes são o limite daqueles.
Entretanto, qual a razão da defesa de direitos sociais que já nascem limitados? Talvez, somente a ética racional fundamentada em liberdades e igualdades reais sustentáveis e dinâmicas seja capaz de responder a esta pergunta. Uma resposta que não pode ser produzida antecipadamente. Talvez, somente exista mesmo um norte, que é a idéia da dignidade humana. O ideal de justiça como a busca do equilíbrio perdido será construído dentro da dinâmica das possibilidades reais e contextuais brasileiras.
O último aspecto a ser abordado neste plano da fundamentação teórica dos direitos fundamentais sociais é a análise da falácia do custo dos direitos sociais, de que somente os direitos sociais são direitos econômicos, e restritos pela financeira “reserva do possível”. Cass Sunstein e Stephen Holmes[36] debateram o tema em sua obra “O custo dos direitos” e, resumidamente, partem da desmistificação do dualismo existente entre os direitos negativos (prescindem da atuação positiva do Estado) em contraposição aos direitos ditos positivos (aqueles carentes da atuação positiva estatal para serem implementados). No entendimento dos autores estado-unidenses todos os direitos, sejam eles quais forem, demandam algum tipo de prestação pública do Estado para a sua efetivação, segundo eles:
“A consciência de que os direitos custam implica ipso facto a conscientização de que as pessoas somente possuem direitos na medida em que um Estado responsavelmente recolha recursos junto aos cidadãos igualmente responsáveis para custeá-los, mostrando ser incorreta a tese atomista de que os direitos inculcam a irresponsabilidade para com os deveres sociais. Ao revés, os direitos, corretamente compreendidos, promovem a responsabilidade no respectivo exercício.”
Investindo neste aspecto do custo dos direitos, verificam ainda os autores que os direitos têm dentes quando reconhecidos por um ordenamento jurídico, ao passo que os direitos meramente morais são banguelas. Atento a este fato, não se pode negar a importância da positivação dos direitos para sua efetivação.
O equilíbrio prévio essencial entre os valores da liberdade e da igualdade numa sociedade profundamente marcada pela desigualdade social mostra-se, então, uma questão de justiça. Questão esta analisada sob o plano da interpretação e da política legislativa.
III – Plano da interpretação jurídica
Kant[37] ensinou que uma doutrina do direito despido da moral seria como a cabeça de madeira da fábula de Fedro, uma cabeça possivelmente bela, mas infelizmente sem cérebro. As duas metáforas utilizadas pelos diferentes autores nos parágrafos anteriores leva a conclusão de que um direito moral sem seu correspondente positivo não tem efetividade.
Também discorrendo sobre a relação entre moral racional e direito positivo, Habermas[38] assevera que por possuírem traços em comum, a moral autônoma e o direito positivo encontram-se numa relação de complementação recíproca, e ressalta que o conceito de autonomia precisa ser delineado abstratamente para poder assumir a figura do principio moral, e do princípio da democracia. Distinguem-se prima facie, porque a moral pós-tradicional representa apenas uma forma do saber cultural, ao passo que o direito adquire obrigatoriedade também no nível institucional. O Direito, portanto, não seria apenas um sistema de símbolos, mas também um sistema de ação.
Um sistema de ação para ser aplicado precisa de recursos para conformar a situação de fato com a proposição jurídica e especificar o conteúdo da norma a ser aplicada, um destes recursos é a interpretação. Nas palavras do autor tedesco Karl Larenz[39] o processo interpretativo ocorre da seguinte maneira:
“No começo, está o texto da lei – só aparentemente claro e fácil de aplicar – e no final – se este existe -, entretecida em torno do texto, uma teia de interpretações, restrições e complementações, que regula a sua aplicação no caso singular e que transmudou amplamente o seu conteúdo, a ponto de em casos extremos quase o tornar irreconhecível. Com efeito, um estranho resultado daquele processo que o jurista se habituou a denominar simplesmente de “aplicação das normas”.”
Larenz continua explicando que o resultado da interpretação deu azo a que Gadamer[40] colocasse em evidência o “significado exemplar da hermenêutica jurídica” para a hermenêutica geral. Ele o vê na circunstância de que a aplicação é um momento inerente a todo o compreender, é um elemento tão integrante do processo hermenêutico como o compreender ou o interpretar.
O pensamento orientado a valores na prática jurídica do contexto germânico levou ao que se convencionou chamar lá de jurisprudência dos valores, o que Larenz[41] traduziu da seguinte forma:
“[…] compreender uma norma jurídica requer o desvendar da valoração nela imposta e o seu alcance. A sua aplicação requer o valorar do caso a julgar em conformidade com ela, ou, dito de outro modo, acolher de modo adequado a valoração contida na norma e julgar o caso.”
Os tribunais superiores brasileiros parecem estar bem atentos a esta doutrina e vêm aplicando uma interpretação notadamente voltada a percepção dos valores, como foi o caso do emblemático julgamento das células tronco embrionárias[42].
IV – Plano da política legislativa
Passando ao último plano a ser examinado neste trabalho, cabe agora beber novamente na doutrina kantiana, para verificamos que a legislação externa da moral e a legislação interna[43] podem ser fruto da vontade de todos expressada através do processo democrático no pós-moderno Estado Democrático de Direito.
Importante notar desde logo, que Habermas neste particular do processo democrático, coloca todas as suas fichas na política legislativa, no poder legislativo, ao contrário do caminho seguido pela teoria substancialista de Dworkin que agrega muito valor ao papel do judiciário tratando o juiz metaforicamente como um Hércules na busca da resposta certa. Na teoria procedimental de Habermas, o autor quase que esteriliza o poder judiciário renegando-o a um mero papel instrumental de defensor do processo democrático. A assertiva é verificável através da distinção por ele entabulada entre o agir comunicativo e o agir estratégico; de fato, fica difícil perceber no processo judicial, cujos interesses são contrapostos, a possibilidade real de se verificar a ocorrência de um agir comunicativo no qual impere a boa-fé. O processo judicial não é consensual via de regra.
Neste agir estratégico judicial, os advogados das partes utilizam o discurso com o objetivo de persuadir, como prática para influenciar e não convencer no sentido dado por Perelman[44]. Daí, para Habermas, na interpretação ora empregada, não se poderia através do processo judicial, dada a forma pela qual é conduzido, se chegar à verdade. Perelman[45], não atentando a esta secção, considera que o filosoficamente justo não se confunde com o politicamente justo, e exorta a discussão racional sobre a justiça e considera possível que em todo o caso o diálogo filosófico atue na aproximação progressiva ao conhecimento de valores universalmente válidos, e após reconhece seus limites ao afirmar que nenhum filósofo pode produzir nenhuma obra definitiva e perfeita.
Seguindo a linha empreendia acima, Habermas[46] trata da fundamentação dos direitos pelo caminho da teoria do discurso, como princípio do discurso, forma do direito e princípio da democracia no processo legislativo. Aduz ele que, abordando o aspecto relacionado às normas produzidas, merece ser salientada a diferença entre normas jurídicas e as demais normas de ação. O princípio da democracia orienta produção do próprio medium do direito, enquanto o principio moral se estende a todas as normas de ação justificáveis pela moralidade.
Atentando para tudo o que foi dito nos outros planos de estudo, e dentro da perspectiva habermansiana na qual se deixa praticamente de lado o judiciário, que não serviria para se alcançar a verdade mas apenas para garantir os processos inerentes ao processo democrático legislativo, seria incoerente defender uma teoria apenas procedimentalista nestes moldes inserida no contexto brasileiro. Isto ocorre porque na posição original para o discurso no plano político legislativo há de haver igualdade de dignidades para se produzir um discurso que pretenda-se minimamente dialético. Sem tal possibilidade, o processo discursivo democrático torna-se somente um monólogo e o seu resultado, como já disse Lassale, uma mera folha de papel, o resultado da dominação de muitos por poucos.
V – Conclusão
À guisa de conclusão procuramos, inicialmente, demonstrar a incompletude inata da razão humana, que perpassa as gerações de pensadores. Neste quadro de mutabilidade constante, o estudo busca uma fundamentação ética racional dos direitos sociais, direitos estes que se pretendem garantidos para um ideal de dignidade humana efetiva. Com a clara noção de que a existência humana não se coaduna com pontos de chegada, apenas com razoáveis pontos de partida e novas caminhadas, empreendemos este trabalho em três planos: o teórico, o interpretativo, e o político legislativo.
A abordagem do plano teórico se deu com a verificação inicial do quanto de influências externas são recepcionadas pelos autores e suas obras, ainda que de maneira irreflexa, levando a impossibilidade da importação de idéias prontas pela insuperável resistência da diversidade humana, uma verdadeira limitação a teorias abarcantes.
Como modelo de teorias pretensamente totalizantes, não propriamente por seus criadores, mas para seus incautos intérpretes, foi trazido o emblemático caso do ícone filosófico moderno, o norte americano John Rawls. Neste sentido, a fundamentação teórica dos diretos sociais à dignidade perde seu caráter meramente estéril formal para adquirir novos contornos conteudísticos e, se materializar, no caso brasileiro, sob a forma de liberdades e igualdades reais, tendo ainda, um importante papel transformador no pós-moderno Estado Democrático de Direito de sociedades diferentes e reais.
O equilíbrio prévio essencial entre os valores da liberdade e da igualdade numa sociedade profundamente marcada pela desigualdade social mostra-se, então, como uma questão de justiça, que ainda deverá equilibrar harmoniosamente e, de maneira sustentável, os direitos com seu contraponto, os deveres. Questão esta analisada sob o plano da interpretação e da política legislativa, para se concluir que o agigantamento do poder judiciário nos dias de hoje no Brasil é fruto de uma desigualdade complexa desgraçadamente entranhada na realidade, e por isso este poder insiste em assumir papéis no Estado Democrático de Direito para açambarcar competências que originalmente não deveriam ser seus, mas que assim se fazem pela verdadeira crise de representatividade democrática vivida pelo parlamento brasileiro, fruto da ausência de efetividade dos direitos fundamentais. Talvez o equilíbrio entre os poderes somente volte a prevalecer quando seja realizada a igualdade no contexto brasileiro, posto que aí sim poderá o legislativo ser representativo.
Procurador Federal, Mestrando em direito pela UNESA
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