Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar o instituto da delação premiada à luz da Constituição Federal Brasileira de 1988. A partir de uma abordagem crítica dos pilares cognitivos que sustentam o instituto, busca-se compreender a sua correlação com o agir do Estado, bem como o estudo de sua constitucionalidade, a partir de abordagens que interagem alguns conceitos, inclusive os de moral e ética, com os princípios formadores do arcabouço de nossa Carta Política.
Palavras-chave: Delação premiada. Ética. Moral. Constitucionalidade.
Abstract: This article aims to analyze the institution of the whistleblower award in light of the Brazilian Constitution of 1988. From a critical approach to cognitive pillars that support the institute, we seek to understand their correlation with the act of the State, as well as the study of its constitutionality, from approaches that some concepts interact, including moral and ethical with the principles that form the framework of our Charter Policy.
Keywords: Whistleblower award. Ethics. Moral. Constitutionality.
Sumário: Introdução. 1. A inconstitucionalidade. Conclusão.
Introdução
O instituto da delação premiada é inconstitucional. Alicerçado, pois, sobre bases contrárias, sobretudo, ao arcabouço principiológico constitucional, a delação premiada não tem o amparo da Carta Política de 1988. Pelos preceitos trazidos em nossa Constituição Federal, e pela forma em que contextualizasse em nosso ordenamento, o instituto em estudo não tem respaldo em nossa Lei Maior.
O ordenamento jurídico de um Estado reflete muito de seus anseios sociais, políticos, econômicos e culturais. Formalizado, pois, a partir de um complexo de regras e princípios, a Constituição espelha as aspirações de uma sociedade num dado momento histórico. Assim, elaborada num contexto de ruptura com antigo regime e a construção de novos paradigmas, o Brasil deu origem, em 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil, no intuito de estabelecer uma nova ordem constitucional, contrária a que até então vigia, e que marcava o período de ditadura militar do Brasil.
Dessa forma, diante dos novos paradigmas que foram consagrados, calcados sobre valores éticos e morais, que preconizam a humanização, a solidariedade e a compaixão, torna-se dificultoso admitir que a Carta Política de 1988 possa ter recepcionado a delação premiada, instituto consubstanciado na traição entre dos homens, gesto rechaçado pela humanidade.
Nesse sentido, não nos resta dúvida que a manutenção do instituo objeto de estudo deste trabalho seja uma solução encontrada pelo legislador pátrio para preencher um campo lacunoso deixado pela inoperância estatal diante da solução de crimes. Em meio a respostas que tenha que oferecer, bem como resultados que tenha que demonstrar à prática criminosa, o Estado, portanto, mitigou valores que se conformam como espírito da Constituição, para poder inseri-lo em nosso ordenamento jurídico.
Buscamos, assim, na construção desse trabalho, uma visualização mais clara e transparente desse instituto, no intuito de melhor compreender a sua utilização, não obstante a sua flagrante inconstitucionalidade.
Salienta-se, que não se discute no teor dessa obra a eficácia da delação premiada, mas sim a sua inconstitucionalidade bem como a sua correlação com o agir do Estado.
1. A inconstitucionalidade
Toda e qualquer sociedade clama por regras de condutas para garantir a sua sobrevivência. O ser humano, neste sentir, requer a existência de normas para viver em sociedade, exige a criação de uma ordem superior para que possa harmonizar as mais diversas relações que se debruçam sobre o seio social. Faz nascer, assim, o Direito, contextualizado sobre um panorama social, refletor de toda a dinamização da sociedade.
Nesse contexto, pois, nasceu no Brasil, a delação premiada, que em termos amplos, pode ser definido como benefício oferecido pelo Estado ao infrator que preste informações capazes de identificar outros infratores ou desvendar a prática de infrações.
Fora na Idade Média, durante a Santa Inquisição, que se editara regra que hoje denominamos de delação premiada, permitindo que o herege tivesse penitencia mais leve, ao delatar outro herege e confessar o seu pecado.
Recepcionada pelo ordenamento jurídico pátrio, inicialmente, pelas as Ordenações Filipinas, mais especificamente em seus Títulos VI e CXVI, hoje o instituto da delação premiada encontra-se disposta sobre os mais diversos dispositivos legais, despertando inúmeras discussões a seu respeito.
Nesse sentido, muitos questionamentos são suscitados ante a sua inconstitucionalidade, indagando, na oportunidade, sobre os motivos que perfazem a sua existência, permitindo que ainda vingue em nosso Direito.
Disposto como benefício oferecido pelo Estado, que garante ao indiciado ou réu que contribuem com a Justiça, prestando-lhe informação para a resolução de crime, a redução da pena e até mesmo o perdão judicial, percebe-se claramente que o instituto ora em foco, incita o homem à prática de uma conduta repelida pela humanidade, qual seja, a traição, a perfídia, a deslealdade.
Traição como ato de atraiçoar, de ser infiel, bem como, o egocentrismo, calcado no amor excessivo ao bem próprio, sem consideração aos interesses alheios, por mais vantajosas que sejam os seus resultados diante do contexto em que se personifica é inadmissível em qualquer ordenamento jurídico, sobretudo no Direito brasileiro, ancorado sobre os mais consagrados valores morais e éticos.
Ao confrontar a essência do instituto em epígrafe com a Carta Política de 1988, vemos uma total incongruência entre a norma infraconstitucional com os valores consagrados por nossa Constituição.
Caminhando sobre à ética e a moral de um povo, que se incorporam à Constituição pelo diálogo que ela estabelece com a sociedade, resta farto que a delação premiada não tem amparo em nossa Lei Maior.
Ao falarmos sobre ética, adentramos sobre um território ingerido sobre uma atmosfera de estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana do ponto de vista do bem e do mal, nos levamos à apreciação de um conjunto de normas e princípios que norteiam a boa conduta do ser humano, caminhamos, segundo Eduardo C.B. Bittar (1995, pág. 03), no “fino equilíbrio sobre a modulação e a dosagem dos comportamentos”. Assim, dentro de acepções éticas, é inconsistente que pensemos que o ser humano possa admitir como boa conduta, aquela exarada pelo alcagüete, em benefício dele mesmo. Dentro de valores éticos, portanto, podemos concluir que o ser humano não agrega à sua forma de agir, ou mais especificamente ao “bom agir”, a perfídia, o egoísmo.
Por sua vez, no campo da moral, o estudo do comportamento humano se perfaz diante de regras, normas e leis sociais, amparadas por valores éticos, incorporadas pelos sujeitos na busca um convívio social harmonioso. A moral é, portanto, o conjunto de normas, regras e leis que indicam o caminho pelo qual devem seguir a vida dos indivíduos e grupos na sociedade, de modo a delinear o cunho da sociedade, bem como a forma com que se vive e com que se desenvolvem as relações intersubjetivas. Dessa maneira, pois, salientando que o Direito reflete os anseios sociais e que o ordenamento jurídico consagra-se em meios aos valores morais da sociedade, vislumbra-se que a delação premiada, assim como é constituída, pautada na traição e em valores egocêntricos, é inconciliável com espírito da Constituição, que trazida como resposta a ditadura militar, consagrou valores outrora mitigados, como a humanização, a solidariedade e a compaixão.
Ao viajarmos sobre princípios constitucionais, sejam eles explícitos ou implícitos, transitamos sobre trilhos construídos e embasados sobre valores que registram a ética e moral de um povo. Os princípios como elemento diretivo do sistema jurídico, como integradores dos preceitos que conduzem a nossas ações, estão, portanto, enraizados numa dimensão refletora da vontade do povo, dos valores morais e éticos que norteiam a sociedade.
A partir do instante que compreendemos que a Carta Magna exterioriza em seu corpo o contexto social sobre o qual é celebrado, que a Constituição, segundo palavras de Pinto Ferreira (2001, pág. 08), “se modela por influência de fatores e circunstancias da sociedade, refletindo os usos e costumes dominantes, as tradições religiosas e culturais, o sistema de forças produtivas, uma série de fatores econômicos e culturais que lhe imprimem a sua marca indelével”, fica evidente que a delação premiada é inconstitucional. Isso porque, como refletora de nossos valores, a Constituição não albergaria instituto jurídico, como já visto, fundado na traição e no egoísmo, uma vez que estes não se compatibilizam com a acepção que fazemos acerca de uma conduta ética e moral.
Na medida em que a Carta Magna nos traz inúmeros mandamentos de índole humanista, voltado à solidariedade, ao altruísmo, à compaixão com o ser humano, como evidente, a título de exemplo, pela leitura do artigo 3, sobretudo o inciso I, que versa sobre objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, fica explicito que em hipótese alguma, o Legislador Constituinte, atento ao que a sociedade, em razão da sua forma de agir, faz exigir, albergaria nas entrelinhas da Constituição, a admissibilidade de normas que fomentem a traição e o egoísmo. Seria, pois, inconstitucional o instituto da delação premiada, na medida em que diverge, vai de encontro aos princípios constitucionais que se consubstanciam nos valores de ética e moral da sociedade. Nesse sentido, sábia são as palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello (1995, pág. 538), ao dizer que “é o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes dos componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa a insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumelia irremissível a seu arcabouço e corrosão de sua estrutura mestra”.
Ao albergar em nosso sistema a delação premiada, estamos, pois, protegendo um instituto que afronta os princípios constitucionais, que vai de encontro ao espírito da Carta Política, restando-o como tal, inconstitucional.
Conclusão
Ao traçarmos os nossos anseios numa conduta ética e moral, e entendendo que a nossa Carta Política é o espelho de nossas vontades, por silogismo, se percebe que os valores de moral e ética, que nos indicam a forma de agir, transpassam ao texto de lei, enraizando-se em suas entrelinhas. Fica claro, pois, que a delação premiada trata-se de instituto jurídico inconstitucional, por ir de encontro aos ideais que circundam todo o ordenamento jurídico.
A sua inconstitucionalidade vai além da literalidade do texto Constitucional, ele se circunscreve ao espírito de nossa Lei Maior, representativo de nossas vontades e ideologias.
Ao conceber uma Constituição voltada aos ideais de civilidade, fulcrada na humanidade, na solidariedade, na filantropia, na compaixão entre os sujeitos, fica visível que os princípios que a norteiam são incompatíveis com o instituto em epígrafe.
O que se percebe, diante de toda conjuntura sobre o qual se enrijece o instituto da delação premiada, é que ele tem se consagrado como importante instrumento encontrado pelo Estado para suprir a sua incapacidade de solucionar os crimes no caso concreto. Nesse sentido já dizia Renato Flávio Marcão (1995), mestre em Direito Penal, que “a simples adoção desse instituto já expõe o reconhecimento da incapacidade do Estado frente as mais variadas formas de ações criminosas, demonstra a aceitação de sua ineficiência ao apurar ilícitos penais, notadamente perpetrados por associações criminosas, grupos, organizações criminosas, quadrilha ou bando, alicerçados em complexidade organizacional que não são alcançadas pelo próprio Estado”.
Enfim, consagrado num contexto que revela a incompetência do Estado no desvendamento de crimes, não podemos punir a sociedade com a adoção de institutos jurídicos que subvertam seus valores. Eivado de vícios de natureza constitucional, deve, portanto, a delação premiada ser rechaçada de nosso ordenamento jurídico.
Referência
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Analista judiciário – área judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 4 Região. Especialista em Direito Público.
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