Resumo: Trata da Lei 11.698/2008, que institui a guarda compartilhada.
Palavras-chave: Direito de família – Filhos – Guarda compartilhada – Lei 11.698/2008.
Sumário: I. Introdução. II. A quem compete a guarda compartilhada pela nova lei. III. Fatores para atribuição da guarda unilateral. IV. O art. 1.583, parágrafo 3º: extensão e a questão da responsabilidade do genitor pelo abandono moral. V. Conclusão.
I. Introdução
1. O novo diploma legal veio regulamentar instituto que, já há algum tempo, fazia parte do cenário jurídico nacional, com alguma aceitação por nossos Tribunais[1].
Entretanto, reconhece-se que ainda havia acentuada resistência de juízes e de alguns tribunais na sua implementação. Tratando-se de tema sensível (guarda de filhos) e sendo a lei lacunosa, predominava a insegurança, motivando a não aplicação da guarda compartilhada.
II. A quem compete a guarda compartilhada pela nova lei
A nova redação do artigo 1.583, parágrafo 1º, do Código Civil, conceitua a guarda unilateral e a guarda compartilhada, dizendo ser esta a “responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”.
À primeira vista, a redação do dispositivo restringe aos genitores o exercício da guarda compartilha, no que, a nosso sentir, a lei poderia ter sido mais clara.
Também a nova redação do artigo 1.584, incisos I, II e parágrafos 1º, 2º, reforçariam a opção de restringir aos pais o exercício da guarda compartilhada.
Fez-se, é verdade, uma ressalva no parágrafo 5º, nos seguintes termos:
“Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade”,
sem, contudo, expressa referência à guarda compartilhada.
Desse modo, a leitura isolada do parágrafo 5º pode dar a entender que, em se tratando de guarda atribuída a pessoa diversa dos genitores, não seria possível o compartilhamento.
E mais: a interpretar-se de maneira isolada o parágrafo 1º do artigo 1.583, a conclusão seria, de fato, no sentido de que o legislador quis restringir aos genitores o exercício da guarda compartilhada. É que, ao definir a guarda unilateral, utilizou a expressão “Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, parágrafo 5º)” (grifamos), ao passo que, definindo a guarda compartilhada, não se valeu do complemento “ou alguém que o substitua”.
Contudo, tal interpretação não deve prevalecer.
Primeiro porque o parágrafo se interpreta em conjunto com a cabeça do artigo e nesta está dito: “Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:” (grifamos).
Segundo porque nada justificaria semelhante solução. Ora, são inúmeras as hipóteses em que as circunstâncias do caso concreto ditarão a necessidade e a conveniência de que se amplie o compartilhamento da guarda a outras pessoas além dos genitores. Exemplificativamente, poderão ser chamados a exercer a guarda compartilhada:
a) Um dos genitores e os avós, maternos ou paternos;
b) Um dos genitores e um dos avós, materno ou paterno;
c) Um avô materno e uma avó paterna;
d) Uma avó materna e um avô paterno;
e) Um dos genitores e a ex-mulher ou ex-companheira daquele genitor;
f) Um dos genitores e outro parente ligado por laços de afinidade ao menor;
g) Um dos genitores e terceira pessoa, não parente, mas ligada ao menor por fortes laços de afetividade e afinidade;
Assim, o legislador fez “vista grossa” ao sem-número de especificidades envolvidas no tema da guarda de filhos, esquecendo-se de que estes estão inseridos não apenas no formato tradicional de família (pai-mãe-filhos), mas também nas suas demais variantes, como chamadas “famílias flutuantes” ou eudemonistas, oriundas parcialmente de várias outras[2]. Enfim, negligenciou o fato de que a família constitui verdadeiro caleidoscópio de relações, que muda no tempo de sua constituição e consolidação em cada geração, que se transforma na evolução da cultura, de geração para geração, conforme feliz definição de GISELE GROENINGA.
Não se está defendendo que o legislador fizesse expressa menção a esses novos institutos no texto legal – o que, aliás, não seria de boa técnica.
Deveria, apenas, ter se valido, já no artigo 1.583, de uma cláusula aberta, definindo a guarda compartilhada como “a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai, da mãe, de um deles e alguém que o substitua ou de duas ou mais pessoas aptas que os substituam e que não vivam sob o mesmo teto, nos casos previstos em lei e conforme prudente avaliação do juiz”.
A propósito, o Código Civil em vigor é repleto de exemplos em que o legislador se valeu de cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados, concretizáveis pelo juiz à vista do caso concreto. È característica integrante do espírito da nova codificação que bem poderia ter sido seguida pela legislação reformadora.
Ora, e se os pais não mais viverem ou se um deles não mais viver? Fica proibida a guarda compartilhada? Imagine-se, hipoteticamente, a hipótese narrada no item “e”, acima. O menor, há anos, vive em companhia de um dos genitores e da mulher ou companheira deste – a quem o costume atribuiu a pecha pejorativa de “madrasta”, mas que, em muitos casos, desenvolve com o enteado forte relação de afeto. O menor, tal o grau de afinidade, chama-a por “mãe”, especialmente naqueles casos em que o convívio se estabelece com a criança desde a mais tenra idade. Muitas vezes, a mãe ou o pai biológicos são falecidos, ausentes ou irresponsáveis no exercício do poder familiar, pois negligenciam afeto ao filho com quem não vivem ou coabitam.
Nesses casos, a “madrasta” ou o “padrasto” tornam-se autênticos “pais de fato” ou “pais sócio-afetivos”. Seria razoável negar-lhes a possibilidade de exercício da guarda compartilhada em caso de separação ou dissolução de união estável? Francamente, não. Aliás, a leitura correta das expressões “pai” e “mãe” nos referidos dispositivos deve ser ampla, para compreender, além dos pais biológicos (genitores) e aqueles que adquiriram essa qualidade pela adoção, os pais por afeição, isto é, os pais sócio-afetivos. Trata-se de interpretação conforme a Constituição Federal (princípio da dignidade da pessoa humana: art. 1º, inciso III).
Evidentemente, há vários registros de casos em que o Judiciário, acolhendo essa tese, mesmo antes da Lei nº 11.698/2008, estabeleceu a guarda compartilhada a pessoa diversa dos genitores, como se constata no seguinte julgado do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que a Corte estabeleceu o compartilhamento da guarda entre um dos genitores e a avó da menor:
Apelação nº 5123364600; Relator(a): Marco César. Data de registro: 10/09/2007. “Ação de regularização de guarda de menor impúbere proposta pela avó materna à mãe da criança – Oposição trazida peto pai – Julgamento de procedência, estabelecendo a guarda compartilhada entre a autora e o opoente – Apelo da ré improvido.”
Portanto, o Código Civil – seja na redação revogada, seja na atual – não fecha questão. Em matéria de guarda de filhos, o critério dos critérios continua sendo o maior interesse do menor, que, no sistema atual, constitui tanto “critério de controle como critério de solução”[3].
Assim, tudo estará a depender das circunstâncias do caso concreto e, notadamente, do atendimento ao melhor interesse do menor.
Tal critério constitui, a bem da verdade, mais que apenas um critério. Trata-se de verdadeiro princípio universal quando se trata de filhos e, de maneira geral, de crianças e adolescentes, aplicável a todas, absolutamente todas suas relações familiares e sociais (“best interest of children”, do direito anglo-saxão; “migliori interessi dei bambini”, do direito italiano; “interés de los hijos”, do direito espanhol etc.).
E, indo além, pode-se dizer que tal princípio foi alçado, em nosso sistema jurídico (Constituição Federal, Código Civil, Estatuto da Criança e do Adolescente etc.) ao status de meta-princípio ou de postulado normativo em matéria de criança e adolescente, exercendo função de controle, regulação e resolução de conflitos entre outros princípios[4]. Pode-se mesmo dizer, fazendo uma comparação, que o postulado do melhor interesse do menor está para o direito da criança e do adolescente assim como os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade estão para todo o direito público.
Aliás, como bem pondera “LUIZ ZANÓN MASDEU”[5]:
“El interés de los hijos constitye el principio básico de informador, debiendo de acudir a otros principios supletores para indagar dicho interés, a saber: 1. Impedir separar a los hermanos (Artículo 92 del Codigo civil). 2. Tener presente la opinión de los hijos (Artículo 92 y 104 del Codigo civil.). 3. Servirse el Juez de informes de especialistas o psicoasistenciales (Artículo 92 del Codigo civil.).” (grifamos)
O princípio (ou postulado), também conta com ampla aceitação na Jurisprudência, a exemplo do que se vê nos seguintes julgados do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
Relator(a): Natan Zelinschi de Arruda. Apelação Sem Revisão 5462914300. Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 04/06/2008. “Modificação de guarda. Estudos social e psicológico concluíram que a criança manifestou a vontade de permanecer convivendo com o pai. Interesse do menor deve sobressair. Genitor está apto a exercer a guarda. Inconformismo da ré não tem amparo técnico, mesmo porque, na ocasião oportuna não houve impugnação dos trabalhos apresentados pelas assistentes social e psicóloga. Prova oral não trouxe nenhum obstáculo para que o pai exercesse a guarda da prole. Apelo desprovido.”
Relator(a): Francisco Loureiro. “GUARDA DE MENOR – Decisão agravada que suspendeu o direito da mãe de ter seu filho nos dias estipulados no compartilhamento da guarda – Psicóloga que denuncia estar o menor sofrendo surras, falta de cuidados, bem como desabonando a conduta da mãe – Relatório subscrito por profissional sem compromisso judicial – Prova unilateral – Fase processual que autoriza a valoração pelo Juiz de relatório assinado por profissional, que responderá nas esferas civil, penal e administrativa caso fraude a verdade – Elementos dos autos que recomenda, no momento, a suspensão do regime de guarda compartilhada – Fatos narrados pelo agravado que, se verdadeiros, poderão comprometer de modo irremediável a incolumidade física e emocional da criança – Prevalência do melhor interesse da criança – Alteração do regime de visitas, permitindo à mãe, até que se esclareça a situação, visitar o filho aos domingos, nas 9:00 às 18:00 horas – Necessidade de imediata realização do estudo interdisciplinar, com psicólogo e assistente social- Recurso provido em parte, com observação.”
III. Fatores para atribuição da guarda unilateral
2. Outra observação sobre a nova lei diz respeito ao parágrafo 2º do artigo 1.583, verbis:
“§ 2o A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores:
I – afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar;
II – saúde e segurança;
III – educação.”
Apesar dos nobres objetivos do legislador, tem-se por equivocada essa “enumeração” de fatores a serem observados na atribuição da guarda unilateral, pois é impossível estabelecer uma gradação, em importância, como parece ter sido o objetivo do dispositivo: primeiro viria o afeto, depois saúde e segurança e, por fim, educação.
Como dosar esses fatores para estabelecer a quem atribuir a guarda? Exemplo: um genitor muito rico que se separa da genitora, deixando esta em situação econômica muito inferior, porque sempre serviu à família e, por isso, afastou-se do mercado de trabalho. Agora passará a viver de pensão alimentícia, tendo de enfrentar o périplo de repetidas “ações de execução de alimentos” para poder sobreviver. Casos como esse são diariamente analisados por juízes e Tribunais. É evidente que o genitor rico poderá, sem sombra de dúvidas, fornecer com maior efetividade saúde, segurança e educação, embora, no critério afeto, a genitora possa estar em vantagem. Com um “placar” de 2 x 1 em favor do genitor, indaga-se: este sagra-se vencedor ou a mãe deve ficar com a guarda, porque está em vantagem no fator “afeto”, localizado topograficamente em primeiro lugar na ordem do art. 1.583, parágrafo 2º? Em outras palavras: deve haver uma ordem de importância entre esses fatores?
Além disso, é claro que os incisos I, II e III não esgotam os fatores que devem ser observados pelo juiz na atribuição da guarda. Afeto, saúde, segurança e educação: são os únicos direitos da criança e do adolescente? São os mais importantes? E outros, como esporte, lazer, profissionalização, cultura, alimentação, liberdade (artigo 4º da Lei 8.069/90), não devem ser levados em consideração? Estão compreendidos nos demais?
Por tudo isso, bastaria que o legislador tivesse dito: “§ 2o A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la, atendendo, sempre, ao melhor interesse dos filhos”, sem qualquer enumeração de fatores.
Aliás, é assim que deve ser lido o dispositivo. A enumeração nele contida em nada influenciará o julgador, que continuará a considerar todas as circunstâncias que o caso concreto oferecer, sem qualquer ordem de importância entre fatores, mas levando em conta a melhor solução para o interesse global da criança ou adolescente.
Também não se entende por que o legislador só se referiu à guarda unilateral no parágrafo segundo. Não deveriam ser esses mesmos fatores levados em consideração na fixação da guarda compartilhada?
IV. O art. 1.583, parágrafo 3º: extensão e a questão da responsabilidade do genitor pelo abandono moral
3. Finalmente, chama a atenção o disposto no parágrafo 3º do artigo 1.583, com o seguinte teor:
“§ 3o A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos.”
A depender da interpretação que os Tribunais farão do dispositivo, poderá haver profundas repercussões no campo da responsabilidade civil dos pais em relação aos atos dos filhos menores.
É que, atualmente, predomina na jurisprudência, ao menos do Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de que o pai que não exerce a guarda do filho não deve ser responsabilizado por atos por ele praticados, salvo se, quando de sua ocorrência, o menor se encontrava sob sua responsabilidade direta (exemplo: pai que exercia direito de visitas no final de semana em que o filho, dirigindo seu veículo, acidentou-se e provocou danos a terceiros). Nesse sentido, narrou-se no Informativo 0196 do Superior Tribunal de Justiça:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE. TRÂNSITO. VEÍCULO DIRIGIDO POR MENOR. A Terceira Turma decidiu que, ocorrendo acidente de trânsito com veículo dirigido por menor, prevalece a responsabilidade presumida, no caso de pais separados, daquele que detenha a guarda do filho, de acordo com o art. 1.521, I, do CC/1916. REsp 540.459-RS, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, julgado em 18/12/2003.”
Questiona-se se ao parágrafo 3º deve-se atribuir tamanha extensão, responsabilizando o genitor que não detém a guarda por atos praticados pelo filho menor. Não parece tenha sido essa a intenção do legislador ao lhe conferir o dever de “supervisionar os interesses dos filhos”.
O que se quer estabelecer, na verdade, é um dever genérico de cuidado material, atenção e afeto, por parte do genitor a quem não se atribuiu a guarda, estando implícita a intenção de evitar o que a doutrina convencionou chamar de “abandono moral”.
O dispositivo, assim, poderá lançar novas luzes à discussão relativa à responsabilidade civil do genitor ausente, que atualmente encontra-se com o seguinte posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 757.411/MG, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 29.11.2005, DJ 27.03.2006 p. 299)”
V. Conclusão
4. Em conclusão, pode-se dizer que o grande mérito da Lei nº 11.698/2008 é de cunho pedagógico, no sentido de “dar o recado” de que é efetivamente possível e, mais que isso, recomendável, o estabelecimento da guarda compartilhada em detrimento da guarda unilateral, pois a primeira propicia ao menor permanecer em companhia de todos aqueles com quem mantém efetivos laços de afeto, sem que esses laços sejam prejudicados por fatos como a separação judicial ou a dissolução da união estável.
São Paulo, 04 de julho de 2008.
Bacharel em Direito pela PUC/SP. Pós-graduado em Direito Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Autor de artigos nas áreas de Direito Civil, Direito de Família e Direito Processual Civil. Advogado em São Paulo.
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