O surgimento do imposto sobre movimentação financeira
O IPMF/CPMF é com certeza um dos mais polêmicos tributos instituídos no Brasil. Começou a ser discutido no âmbito da proposta de criação do Imposto Único em janeiro de 1990, quando propus um novo modelo tributário para o país[1]. Segundo aquele projeto, passaria a existir apenas um imposto de características arrecadatórias, incidente sobre movimentação bancária. Os demais tributos caracteristicamente fiscais seriam eliminados gradativamente, permanecendo em vigor apenas os tributos essencialmente extra-fiscais, ou seja, aqueles que têm como finalidade precípua servirem de instrumentos de regulação ou de intervenção do poder público no funcionamento da economia, como por exemplo o imposto de importação ou o imposto territorial rural, ambos marcadamente extra-fiscais. A proposta do Imposto Único elegeu como fato gerador básico o conceito do pagamento monetário ou, mais modernamente, da transação financeira realizada por meio do sistema bancário.
Vale fazer um breve histórico do conceito do Imposto Único para se entender as razões que levaram ao surgimento do imposto sobre movimentação financeira.[2].
A idéia do imposto único é secular. Surgiu no século XVIII com os fisiocratas, que defendiam a taxação da terra como única fonte de extração de receita para o governo. A explicação de seu ressurgimento no Brasil três séculos mais tarde advém de razões históricas concretas e objetivas.
Ainda que o Imposto Único tenha uma longa e respeitável tradição na evolução do pensamento econômico ele nunca pode se materializar, pois em nenhuma circunstância histórica uma sociedade reuniu a condição básica essencial para sua efetiva operacionalização, ou seja, a existência de uma base tributável ampla o bastante a ponto de gerar receita suficiente para o poder público, sem necessidade de alíquotas confiscatórias. Tal base nunca foi encontrada, e assim o conceito do Imposto único assumiu ares de utopia. Contudo, modernamente o conceito da transação financeira como base impositiva tornou-se viável, e faz duas exigências intransponíveis para ser concretizado, e que felizmente são satisfeitas no Brasil. A primeira é a existência de um sistema bancário altamente informatizado, com um sistema nacional de compensação de cheques e documentos. A segunda é a predisposição cultural da sociedade de não usar moeda manual, substituindo-a pelas mais variadas formas de moeda escritural.
Apenas o Brasil preenche plenamente esses dois quesitos. Possui um dos sistemas bancários mais desenvolvidos e informatizados em todo o mundo, com padrões tecnológicos superiores aos encontrados em países desenvolvidos, como os EUA ou a UE. Em realidade, o “Brasil é referência mundial na tecnologia bancária”.[3] Além disso, é uma das economias mais desmonetizadas do mundo, e que, culturalmente, já absorveu a inevitável substituição da moeda manual pela moeda escritural, principalmente pela moeda eletrônica.[4]
O impacto gerado pela proposta do Imposto Único nos primeiros anos da década de noventa deflagrou em todo o país um grande movimento em prol de mudanças na estrutura de impostos. A corrente favorável a um sistema de tributos não-declaratórios abraçou o projeto do Imposto Único, enquanto defensores dos impostos declaratórios passaram a desqualificá-lo, enfatizando problemas que sua implantação poderia ensejar.
O imposto único traz inúmeras vantagens inquestionáveis. A fiscalização torna-se mais simples; os critérios de taxação ficam mais evidentes, os custos para o poder público, e também para o setor privado tornam-se mais leves. A simplificação do processo fiscal é evidente quando toda a arrecadação se concentra em um único tributo, incidente sobre uma única base.
Imediatamente após o surgimento desta proposta ela foi apresentada na Câmara dos Deputados pelo então Deputado Federal Flávio Rocha como emenda à constituição, a PEC 17/91. Houve enorme polêmica sobre o tema, principalmente por ter inaugurado uma fase de intensas discussões sobre a urgente necessidade de uma reforma tributária no Brasil.
Na esteira desta discussão, durante o governo Collor, foi criada em 1991 a Comissão Ary Osvaldo Mattos Filho, incumbida de elaborar um modelo de reforma tributária para o país. A Comissão, composta por notáveis tributaristas brasileiros endossou oficialmente a criação de um tributo sobre movimentação bancária com o intuito de financiar a seguridade social.
Em 1992 o governo Itamar Franco, cujo ministro da Fazenda era Fernando Henrique Cardoso, instituiu o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF), que vigiu entre agosto de 1993 e dezembro de 1994. Em 1996, já como presidente da República, Fernando Henrique Cardoso criou a CPMF, Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, que perdura até o presente momento.
Apesar de toda a polêmica jurídica e econômica que a cercou, esta nova espécie tributária vem se mostrando um dos mais robustos e produtivos tributos em uso no país. Ainda que perdure com a nomenclatura de “provisório” esta forma de tributação vem se consolidando como um tributo que, ao sofrer constantes aperfeiçoamentos, deverá tornar-se um componente permanente no sistema tributário brasileiro.
Vale lembrar que tributos sobre movimentação financeira, ou sobre movimentação bancária, já vem sendo utilizado na Austrália desde 1982, ainda que de forma muito mais restrita que no Brasil. Também na Argentina o imposto sobre cheques foi importante coadjuvante na política de estabilização adotada pelo então ministro Domingo Cavallo.[5] Também foi aplicado, com menor sucesso em vários países, entre eles Colômbia, Chile, Equador, Peru e Venezuela.
Apesar de não ser uma experiência pioneira, a aplicação de um imposto sobre movimentação financeira no Brasil se notabilizou por duas características em seu processo de implantação: a primeira, altamente negativa, é ter sido utilizado como um tributo adicional dentro do rol de tributos em uso no país, descaracterizando a intenção original de seus defensores de ser um tributo único. Como disse Roberto Campos “o uso do imposto sobre movimentação bancária só seria revolucionário se o imposto fosse único, e não um imposto a mais”[6]; em segundo lugar, e esta é uma observação positiva, a experiência brasileira se notabilizou por ser a mais ampla, duradoura e abrangente aplicação desta nova espécie tributária no mundo. Pelo êxito de sua aplicação, a tributação das movimentações bancárias vem sendo observada com enorme curiosidade e interesse pelos tributaristas interessados em reforma tributária em vários países[7].
A forma de sua implantação no Brasil, contudo, não poderia ter sido mais antipática aos olhos dos técnicos e da opinião pública. Implantado como uma solução emergencial para gerar caixa para o orçamento federal, tendo em vista a rápida e constante deterioração da capacidade arrecadatória dos tributos convencionais, o IPMF/CPMF teve suas receitas vinculadas (inicialmente a programas habitacionais e depois ao custeio da seguridade social e do SUS). Ademais, não foi partilhado com os demais entes federados, e desrespeitou a anterioridade constitucional, e a não-cumulatividade. Ademais, deu início ao uso abusivo de contribuições não compartilhadas, tendência que perdura até o momento.
Vários destes questionamentos foram devidamente respondidos, do ponto de vista jurídico. Outros foram eliminados por meio de alterações e aperfeiçoamentos para atenuar seus impactos econômicos indesejáveis, como as isenções para operações em bolsas e em movimentações tipificadas como operações financeiras. Outras, ainda, revelaram-se críticas destituídas de fundamentos sólidos, como o temor de excessiva verticalização da produção, desintermediação bancária, uso de circuitos financeiros off-shore ou informais, iniqüidade, e regressividade. A crítica mais resiliente, a da cumulatividade, vem se revelando frágil, tanto teórica como empiricamente.
A questão jurídica da vedação constitucional de criação de tributos cumulativos foi prontamente rechaçada pela constatação de que não se tratava de criação de novo tributo pelo Poder Legislativo no exercício de sua competência residual, mas sim de opção exercida pelo Congresso Nacional munido de seu poder constituinte derivado.
Da mesma forma, não há que se falar em tributação sobre base já tributada (bis in idem). É verdade que o novo tributo compõe um conjunto de incidências sobre a circulação de mercadorias e de valores que acumularão a carga tributária e formarão o preço final de bens ou serviços transacionados no mercado. Mas, o tributo incide especificamente sobre o débito bancário, base de incidência não tributada anteriormente.
Mas superadas estas questões, perduraram fortes críticas de conteúdo essencialmente econômico.
Desde cedo, ainda durante a discussão sobre o IPMF no Supremo Tribunal Federal, o Ministro Marco Aurélio de Mello apontou a inquestionável existência de cumulatividade no imposto sobre movimentação financeira. O ministro Ilmar Galvão, igualmente crítico do IPMF, chegou a conclusões esdrúxulas, como a de que a cascata implica o desrespeito ao princípio do não-confisco, ofendendo assim o direito fundamental da propriedade.
Ora, trata-se de tributo real, que incide apenas no caso da materialidade de débitos bancários. Não existindo tais ações, pois dependem apenas da vontade do detentor de contas bancária, o tributo não incide, e portanto desmonta, em princípio, a tese do confisco e da violação do direito à propriedade. Ademais, não é a técnica de tributação, cumulativa ou não-cumulativa, que poderia eventualmente implicar incidência excessiva ou confiscatória, mas sim o tamanho da alíquota aplicada. Alíquotas elevadas podem gerar confiscos tanto com tributos cumulativos quanto com tributos sobre valor adicionado. O uso de um tributo em cascata com baixas alíquotas pode implicar menor arrecadação do que alíquotas elevadas em tributos não-cumulativos. Daí o non-sequitur nas considerações do ministro.
Mas vai além o Ministro Ilmar Galvão quando afirma que o tributo não respeita a capacidade contributiva do cidadão ao incidir sobre “a singela utilização, pelo correntista, de sua própria reserva de dinheiro…simples fato social, irrelevante para o Direito e para a Economia, sem valia, portanto, para servir como fato gerador de tributo”.[8]
Mas qual a diferença entre a utilização de recursos bancários para o atendimento das necessidades pessoais do contribuinte, e para o qual recolhe impostos, e a incidência, por exemplo, de qualquer outro imposto, como o ICMS, IPI ou o ISS sobre circulação de bens ou serviços de uma empresa? Uma operação mercantil pode ser até mesmo gravosa, com valia econômica negativa, e mesmo assim ser base legítima para a exação tributária. A movimentação de recursos bancários reflete sempre a busca de utilidade econômica pelo correntista, caso contrário não seria feita, e, portanto jamais serão “atos desvestidos de qualquer repercussão econômica ou jurídica”, como afirma o ministro.
A movimentação financeira reflete capacidade contributiva até mais prontamente do que outros indícios aparentes, como a mera posse de bens ou de riqueza. Esta última pode não revelar qualquer valia econômica a seu proprietário (um imóvel vago, por exemplo) e mesmo assim servir como inquestionável base imponível. Como afirma o Ministro Carlos Velloso “o IPMF, longe de violar o princípio da capacidade contributiva (C.F.,art.145,§ 1º) a este presta obséquio”. [9]
É igualmente inverídica a afirmação contida no voto do ministro de que “nenhuma legislação do mundo, por mais atrasada que pudesse ser, jamais concebeu um tributo sobre a emissão de cheques e ordens de pagamento”[10], como vimos acima.
Vê-se, assim, que o IMPF/CPMF vem afastando as objeções de ordem legal e econômica que se antepuseram à sua implementação. Seus méritos, e a contemporaneidade de suas formulação conceitual o credenciam para se tornar “um tributo do século XXI”, como afirmou a Professora Maria da Conceição Tavares, e como realçaremos adiante.
Globalização e informatização: “a cashless society”
A crescente intensidade na movimentação de mercadorias e capitais impõe novos parâmetros de comportamento nos setores privado e governamental. A automação e as sofisticadas formas de gestão, sobretudo nas empresas transnacionais, aumentaram vertiginosamente a produtividade e geraram escalas mundiais de produção. As empresas passaram a realizar planejamento estratégico num contexto global, padronizando produtos e práticas administrativas por todos os países onde atuam. As transnacionais desenham seus produtos, compram insumos, produzem, vendem e aplicam recursos financeiros em escala mundial, independentemente da localização física de suas matrizes e filiais. Os circuitos financeiros internacionais movimentam somas estonteantes de recursos a cada dia, tornando praticamente impossível a tarefa de acompanhar, controlar e classificar tais fluxos e suas representações materiais para poderem servir de base para um sistema tributário convencional.
O avanço tecnológico e a revolução da informática começam agora a alterar em profundidade as formas como as trocas se realizam nas economias contemporâneas. O dinheiro de papel será substituído pelas mais variadas formas de moeda escritural, dentre elas o cheque, o dinheiro de plástico e a moeda eletrônica.
Em breve as economias modernas serão totalmente desmonetizadas. A desconfortável moeda manual, anti-higiênica e de custosa manipulação, que, como lembrado por Keynes, é uma relíquia bárbara dos tempos em que os meios de troca eram mercadorias com valor intrínseco, irá desaparecer. O termo cashless society, cunhado pela revista The Economist resume um novo ambiente econômico em gestação no mundo moderno. Os sistemas tributários convencionais exigirão enormes esforços para adaptarem-se a esta mudança, pois já começam a mostrar suas fragilidades para enfrentarem estes novos desafios.
O desaparecimento da moeda manual ocorreu precocemente no Brasil, induzido pela inflação crônica que durou cerca de 40 anos. Estimulada pela corrosão do valor da moeda manual, a sociedade brasileira investiu pesadamente no sistema bancário e deixou de usar dinheiro vivo. O sucedâneo encontrado foi o cheque. Trata-se de moeda escritural que vem se tornando obsoleta, pois ainda implica utilização física de papel. O Brasil se antecipou a uma tendência mundial e já opera com taxas de 3% de monetização (papel-moeda em poder do público) em relação ao PIB, certamente a mais baixa do mundo entre as economias ocidentais.
Nesse complexo cenário, cabe indagar sobre os impactos gerados na administração tributária. Qual o efeito desse fenômeno sobre os contribuintes?
Os atuais sistemas tributários estão estruturados sobre bases convencionais de incidência. A renda pessoal, o lucro das empresas, o consumo e o patrimônio são as formas predominantes de exação. Mas cada uma delas assume características distintas frente à globalização.
Profissionais altamente qualificados, com elevado nível de renda, passaram a ter uma mobilidade que jamais tiveram. É o caso dos grandes artistas, esportistas e magnatas, que subitamente passaram a ser estrelas mundiais, em vez de brilharem apenas em seus âmbitos locais e regionais. Esses definem seus domicílios fiscais e investem seus rendimentos em países onde a tributação é menor. Tornam-se alvos voláteis para os fiscos de seus respectivos países.
No caso dos lucros das empresas, a mobilidade é ainda mais acentuada. As grandes empresas multinacionais dispõem de modernos instrumentos que permitem reduzir seus desembolsos tributários. A utilização dos preços de transferências e a livre escolha na localização de suas sedes operacionais são ações implementadas como forma de minimizar suas obrigações fiscais.
A facilidade no transporte de pessoas por todo o mundo também afeta a tributação do consumo. Comerciantes e turistas podem adquirir produtos de elevado valor agregado em países que oferecem preços mais reduzidos. Além disso, nota-se que a expansão acelerada do comércio eletrônico dificulta a tributação por meios convencionais declaratórios, que se tornam incapazes de identificar os locais de origem e destino da operação.
A utilização de sistemas tributários convencionais dentro desse contexto de dramáticas mudanças de paradigmas comportamentais e administrativos é caldo de cultura propício para o surgimento de “paraísos fiscais”. Há dezenas espalhados pelo globo. Os privilégios tributários proporcionados pelas “offshore companies” criadas nessas ilhas ou países permitem a montagem de complexas operações envolvendo fundações familiares, sociedades de serviços especializados, “trading companies” e administração de carteiras de investimentos. Criam-se, assim, dificuldades enormes para a gestão de estruturas tributárias ortodoxas baseadas em impostos tradicionais.
Nota-se, portanto, acentuada deterioração na capacidade de tributação dos governos nacionais. As atuais estruturas fiscais vivem em constante ameaça em função de decisões tomadas por pessoas e empresas em diferentes partes do mundo e sobre as quais os governos nacionais possuem escassa possibilidade de controle. Tal situação leva o poder público a buscar compensação pela degradação de sua capacidade de tributar. Em geral, são os contribuintes que não conseguem se inserir plenamente no processo de integração que acabam suportando o ônus desse ajuste, como os assalariados do setor formal. Por sua vez, essa compensação estimula os setores que se sentem prejudicados a sonegarem.
As empresas se modernizam, a até mesmo os métodos de controle e fiscalização do fisco são modernos, mas o sistema tributário e seus modos de ação continuam estruturalmente arcaicos. As formas de tributação não se ajustaram à realidade do novo modo de produção que surge no mundo moderno, e ainda seguem os antigos preceitos da primeira metade do século passado.
O paradigma “fordista” de produção facilitava a fiscalização tributária. Isto levou ao desenvolvimento de métodos de arrecadação e controle tributários baseados no sistema “auto-declaratório com auditoria”, ou seja, o próprio contribuinte declarava sua movimentação física , econômica ,e financeira, e oferecia ao fisco os resultados obtidos em sua atividade produtiva.
A mudança do paradigma “fordista” para o paradigma moderno, cada dia mais calcado no tempo real e no espaço virtual ainda não foi plenamente entendido pelos tributaristas.
Ainda hoje um quilo de salsicha que sai de Chapecó, em Santa Catarina, é acompanhado fisicamente pela fiscalização desde o momento que sai da fábrica, com sua nota fiscal discriminando tipo, peso, embalagem, valor etc., até seu destino final. Ao chegar em algum supermercado em qualquer ponto do país, o produto é conferido, fiscalizado, e visualmente inspecionado.
Se isto fazia sentido no passado, tal método tornou-se hoje um exercício de patente futilidade. Não há como aplicá-lo, por exemplo, às centenas de milhões de transações realizadas diariamente em economias modernas como o Brasil, ou a um consultor que envia suas recomendações a seu cliente, em outro continente, por email, de sua residência. Nada mais ineficaz.
O Brasil precisa adequar seu sistema tributário ao mundo contemporâneo. A informatização dos bancos e a predominância da moeda eletrônica convergem para a adoção de um sistema de impostos baseado na movimentação financeira.
Reforma tributária urgente
Roberto Campos foi um ardoroso defensor do imposto eletrônico, do imposto único e dos impostos não-declaratórios[11]. Tal postura pode surpreender os que afirmam que ele era um conservador empedernido. Estão errados. Ele foi sempre original, um iconoclasta, um criador de paradigmas.
Entre 1964 e 1967, foi o responsável pela reforma que criou as bases do atual sistema tributário. A partir dos anos 80, o político Roberto Campos passou a criticar a administração pública brasileira. Dizia, “continuamos longe demais da riqueza atingível e perto demais da pobreza corrigível”, e apontava o sistema tributário como um dos maiores obstáculos a serem removidos pelo país. No debate sobre o tema, entre as reformas simplificadoras e as inovações revolucionárias, Roberto Campos preferiu ficar com as últimas. Passou a defender o imposto único e os impostos não-declaratórios.
Ele percebeu que os tributos sobre valor agregado, os IVAs, tidos como justos e eficientes, escondiam uma outra realidade, bem menos atraente, e cujas deformações eram ampliadas em países com organização federativa. O resultado era a exacerbação burocrática, a galopante corrupção, a exasperadora complexidade, os proibitivos custos de arrecadação, a irresistível evasão, e a convidativa sonegação.
Em 3/11/1991, em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, intitulado “Reforma ou revolução”, Roberto Campos afirmou que a ética fiscal brasileira fora destruída. Dizia ele que pagar impostos no Brasil é comprar chateação e que apenas as empresas organizadas do setor privado e os assalariados com carteira assinada é que pagavam tributos diretos. Os outros dois terços, que sonegavam, eram classificados por ele como delinqüentes.
E prosseguia dizendo naquele memorável artigo que, “em matéria fiscal, o país tem chance de uma experiência pioneira com o imposto único. Isso pela coincidência de circunstâncias inexistentes alhures: a) tanto a ética como a estrutura fiscal entraram em colapso; b) a economia está desmonetizada -o papel-moeda em poder do público é de 1% do PIB; c) o sistema bancário é surpreendentemente eletronificado para um país do Terceiro Mundo”. Campos completou, afirmando: “A meu ver, as características de uma revolução fiscal seriam: 1) um fato gerador suficientemente amplo e simples para elidir a fronteira entre contribuintes e delinqüentes; 2) alíquotas suficientemente baixas para tornar ridícula a engenharia da sonegação; 3) coleta automatizada para tornar dispensáveis as três burocracias do fisco; e 4) repasse instantâneo aos beneficiários, evitando-se as complicações da indexação dos tributos. Todas essas condições são satisfeitas pela proposta do professor Marcos Cintra e por nenhuma das propostas reformistas”
Desde então Roberto Campos se tornou um guerrilheiro da reforma tributária e dos impostos sobre movimentação financeira.
A forma desastrada de implantar o IPMF/CPMF proporcionou aos críticos uma oportunidade valiosa para satanizar aquele tributo. Criou-se o mito de que, por ser cumulativo, ou em cascata, ele seria necessariamente de baixa qualidade, e por isso deveria ser combatido.
A sonegação, essa sim a principal anomalia do sistema tributário brasileiro, foi relegada a um segundo plano. A sonegação cria uma vantagem comparativa perversa. Permite a sobrevivência de empresas ineficientes na produção, desde que ousadas na sonegação; e deixa morrer as que são competitivas na produção, mas tímidas na evasão.
Com sarcasmo, Roberto Campos distinguia dois tipos de cascata, uma maligna e outra benigna. A primeira compreende tributos como o PIS e a Cofins (que ainda eram cobrados em cascata), de recolhimento inevitável. A segunda diz respeito aos impostos que reduzem as obrigações fiscais, tais como o Simples e o Imposto de Renda sobre o lucro presumido. As críticas são sempre dirigidas ao primeiro grupo. Assim, quando a carga tributária pode ser reduzida, a cascata é considerada benigna até pelos ferrenhos críticos da cumulatividade. Contudo, quando a cascata implica carga tributária alta, torna-se diabólica. Exemplo claro e inegável se dá com respeito às críticas à CPMF, em razão de esse tributo ter se mostrado insonegável.
As discussões em torno da reforma tributária em 1999 dentro da Comissão Especial da Reforma Tributária da Câmara dos Deputados deram origem a uma proposta excessivamente conservadora, que Roberto Campos classificou de “aperfeiçoamento do obsoleto”.[12]Dizia ser a reforma tributária uma demanda fundamental para nos aproximarmos da “riqueza atingível” e para combatermos a “pobreza corrigível”. E o instrumento seria um tributo sobre movimentação financeira nos moldes da CPMF, por ser um tributo universal, insonegável, e capaz de alcançar todos os agentes econômicos, eliminando a iniqüidade dos impostos declaratórios que permitem que alguns contribuintes sejam fortemente onerados, ao passo que os sonegadores tenham cargas tributárias individuais sensivelmente mais baixas. Com alíquota de apenas 0,38%, e praticamente sem custos para o governo, arrecada a cada ano mais do que impostos de alta complexidade e elevados custos operacionais como o IPI e a CSLL.
A CPMF tem um mérito inegável, convenientemente ignorado por vários de seus críticos: o de eliminar do atual sistema tributário sua maior aberração, qual seja, as diferenças artificiais de custos de produção causadas pela ampla e generalizada sonegação de impostos no país. A forma pela qual a evasão de impostos distribui a atual carga tributária implica distorção econômica mais grave do que a alegada alteração nos preços relativos que um turnover tax, como a CPMF, poderia estar causando na economia brasileira.
No mundo global e informatizado não se deve imaginar que os impostos convencionais e ortodoxos gerados na era do papel, dos livros contábeis, das barreiras físicas de transporte e de comunicação, do isolacionismo econômico, e da fragmentação política, serão capazes de evitar a generalizada evasão tributária, e de servirem de base para a urgente reforma tributária que o país necessita.
Recentemente, iniciou-se no mundo o que vem sendo chamado de “flat-tax revolution”. Vários países do leste europeu vêm implementando significativas mudanças em seus sistemas tributários. A unificação de impostos foi adotada em 1994 pela Estônia, que criou uma alíquota de 26% sobre a renda para substituir quatro tributos. Em seguida, seguiram a mesma diretriz Lituânia, Letônia, Rússia, Sérvia, Ucrânia, Eslováquia, Geórgia e Romênia.
A simplificação tributária do leste europeu é um exemplo que vem despertando interesse em todo o mundo. Conduzir a simplificação à sua conseqüência lógica, unificando impostos em uma única base real, exigiria identificar uma base ampla para permitir alíquotas marginais módicas para evitar a evasão e a sonegação.
A partir dos anos oitenta tornou-se evidente que a base mais ampla possível é o fluxo monetário. No Brasil, com a ampla e sofisticada informatização do sistema bancário e a predominância da moeda escritural sobre a moeda manual, é fácil concluir que a base não-declaratória da movimentação financeira seria a mais adequada para implantar um sistema simplificado, barato e imune à clandestinidade econômica.
Uma autêntica reforma tributária deveria juntar a ousadia simplificadora das experiências do leste europeu com a eficiência técnica do modelo da CPMF brasileira. No entanto, a tendência predominante é a adoção de bases tradicionais como a renda, o lucro e o valor agregado.
Há propostas que unificam vários tributos (ICMS, IPI, ISS, PIS,Cofins, e contribuições ao INSS) tomando o valor adicionado como fato gerador, uma espécie de IVA único. Como pude demonstrar no artigo “IVA único serve para o Brasil?”, publicado na Gazeta Mercantil em 29/3/2005, a alíquota necessária para gerar a mesma arrecadação que todos os tributos extintos será próxima de 40%. É evidente que, como a evasão varia na proporção direta da alíquota nominal do imposto, surgirá um grande estimulo à sonegação, o que irá agravar profundamente as atuais mazelas do sistema tributário atual.
No Brasil, o padrão de incidência tributária atual é caótico, imprevisível, devastador, a ponto de poder fazer quebrar uma empresa eficiente que paga impostos, e de fazer sobreviver uma ineficiente, que sonega e saqueia seus concorrentes. A CPMF neutraliza esta anomalia. Em geral, o custo da evasão acaba superando a própria economia tributária. Esta é a vantagem de um imposto não-declaratório, que por ser insonegável permite alíquotas baixas, porém universais.
Paralelamente à idéia de se criar no Brasil um imposto único sobre as transações financeiras, em um seminário realizado na Argentina no final de 1989, o economista da Universidade de Wisconsin, Edgard L. Feige apresentou estudo intitulado Taxing All Transactions: The Automated Payment Transaction Tax System.
Os estudos de Feige sobre a informalidade em vários países ao redor do mundo apontaram os enormes malefícios que a economia informal e a evasão de impostos vêm causando. O professor Feige concluiu que a tributação sobre as transações bancárias pode atenuar as distorções causadas pela economia subterrânea, e descreve a proposta como um sistema de impostos para o século 21.[13]
Recentemente recebi um e-mail de um amigo que, indignado com a CPMF, dizia “pago imposto quando remeto dinheiro para minha filha que estuda em outra cidade, e ela paga de novo quando o retira para usar. Não faz sentido”.
A questão é clara: a CPMF é justa? Mas não seria ainda mais injusta a alternativa de tributar a renda dos agentes econômicos com alíquotas superiores aos atuais 27,5% de IR para gerar a arrecadação necessária. Maior injustiça é a evasão dos impostos declaratórios, como o IR ou o ICMS, que não são pagos pelos grandes sonegadores. Maior iniqüidade é permitir que as empresas multinacionais usem os preços de transferência para enviarem seus lucros aos paraísos fiscais, e que não paguem tributos no Brasil, ainda que exijam serviços públicos aqui para gerarem os lucros que enviam ao exterior. Não é justo que as alíquotas dos impostos aumentem a cada ano que passa para compensar a perda de arrecadação causada pelos esquemas cada vez mais sofisticados, e cada dia mais incontroláveis, dos grandes evasores de impostos.
Como disse o saudoso Prof. Mário Henrique Simonsen, “imposto justo é o que se consegue cobrar”.
Críticas e respostas
Tornou-se moda acusar a CPMF de uma série de defeitos que não poderiam, por lógica ou por justiça, serem atribuídos a ela, ou apenas a ela. Mas nenhum governo abre mão deste tributo.
Impostos sobre movimentação financeira possuem qualidades. Apesar das usuais acusações de cumulatividade, impossibilidade de desoneração nas exportações, regressividade e outras distorções, a CPMF vem se firmando como um tributo confiável, robusto e, sobretudo, justo, por ser insonegável. Apesar de ser sempre enxovalhada, a CPMF é a única espécie tributária que sobrevive incólume aos intensos debates sobre como reformar o sistema tributário brasileiro. Criticada, tornou-se, porém indispensável.
Mas, se uma mentira repetida muitas vezes acaba virando verdade, já é hora de questionar muitas das alegações que vêm sendo feitas sobre a CPMF antes que se tornem universalmente tidas como verdadeiras.
Afirmam que a CPMF, por ser um tributo cumulativo, é um imposto burro. Mais à frente rebateremos este argumento. Mas cumpre dizer, desde já que impostos em cascata não são necessariamente ruins. As recentes teorias da tributação ótima, juntamente com postulados da teoria do second-best, de safra mais antiga, já deveriam ter convencido os economistas de que nada se pode concluir a priori. Um tributo em cascata com alíquotas baixas pode ser melhor, do ponto de vista alocativo, que tributos sobre valor agregado com alíquotas altas. E no Brasil foi gerado um círculo vicioso: o governo aumenta alíquotas para compensar a enorme evasão tributária. Isso, contudo, estimula ainda mais a evasão e suscita novas rodadas de aumentos de impostos.
Outra crítica comum é factual. Afirma-se que a cumulatividade da CPMF, e da Cofins e do PIS quando ainda eram cumulativas, atinge, em apenas oito etapas de produção, carga de impostos de 25% no preço final. Trata-se de um equívoco numérico elementar. O conceito de número finito de etapas de produção é destituído de sentido. O processo de produção é circular. O número de etapas é infinito para qualquer produto.
Simulações utilizando uma matriz de insumo-produto para 33 setores de produção, fornecida pelo IBGE, comprovam que a carga tributária é inferior a 9% em todos os setores da economia. Foi tomado por base o imposto único de 1% em cada lançamento bancário.
Há quem diga que a CPMF vai contra todos os modernos princípios da ciência tributária e contraria tudo o que fazem os outros países. A primeira parte da crítica é falsa e a segunda, irrelevante.
Políticos, economistas e tributaristas de boa estirpe no Brasil e no mundo apóiam impostos sobre transações financeiras e os recomendam em seus trabalhos e estudos. Entre os economistas, James Tobin (Prêmio Nobel), Rudiger Dornbusch, Roberto Campos, Ary Oswaldo Mattos Filho (presidente da Comissão de Reforma Tributária no começo dos anos 90) Maria da Conceição Tavares e o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel. Entre os políticos, Flávio Rocha, Luiz Roberto Ponte (autor de emenda de grande popularidade no Congresso), Luiz Carlos Hauly (autor de outra respeitada proposta), e os senadores Paulo Octávio e Jefferson Peres, dentre inúmeros outros.
Não importa se outros países não se valem de impostos como a CPMF. É possível que não tenham atingido as mesmas condições materiais para desenvolvê-la, como generalizada desmonetização e sofisticada informatização bancária. Mas mesmo que pudessem utilizá-la, porque deveríamos copiá-los, e não nos anteciparmos a eles, como se faz agora? A CPMF é um imposto moderno, produto da era da informática, sendo inevitável que sua futura utilização em outros países do mundo.
No entanto, persistem temores acerca dos impactos da CPMF nos mercados financeiros e nas exportações.
Nos mercados financeiros e de capitais temia-se que a CPMF aumentasse os custos das aplicações financeiras, reduzindo sua rentabilidade de curto prazo. Temia-se, ainda, que a incidência do tributo sobre as operações em bolsa poderia afugentar os fundos estrangeiros, podendo até levar à mudança do centro de liquidez das ações brasileiras para o exterior. Estas críticas são pertinentes, porém perfeitamente administráveis.
A isenção da CPMF, inicialmente aos investidores estrangeiros nas bolsas de valores a partir de 2001 deu início a uma série de necessários aperfeiçoamentos na regulamentação desse imposto. Explicitou a urgência em isentar também todas as movimentações financeiras estritamente dentro do mercado financeiro e de capitais, o que ocorreu recentemente através da lei 10892/04, que criou a conta-investimento, desonerando o principal das aplicações financeiras.[14]
Contudo, a cumulatividade ainda é a crítica mais freqüente. Teme-se que a cascata provoque impacto indesejado nos preços e prejudique a produção e a exportação
Em realidade, qualquer imposto, seja ele cumulativo, ou não, terá impacto no preço final do produto e, portanto, “prejudica” a produção. O que nem sempre é notado, no entanto, é que um imposto em cascata com alíquota baixa (como a CPMF) pode ser preferível que um imposto sobre valor agregado com alíquota alta (como o ICMS). A grande atratividade da CPMF é que por ser insonegável, admite alíquota nominal baixa para um dado nível de arrecadação, ao passo que os impostos declaratórios convencionais, por serem fortemente sonegados, exigem alíquotas altas para arrecadarem o mesmo valor. Vê-se, portanto, que ao contrário da afirmação dos críticos, a CPMF prejudica menos a produção, e consequentemente as exportações, que os impostos convencionais.
O que faz as exportações brasileiras perderem competitividade é a parafernália de impostos e contribuições cobrados atualmente, muitos deles incidentes sobre o valor agregado em cada etapa da produção. Vale lembrar que apenas uma parte dos impostos cobrados na cadeia de produção das exportações é de fato desonerada. O Brasil exporta todos os demais tributos. A CPMF, nesse aspecto, não se diferencia dos demais impostos. Basta desonerá-los para que as exportações adquiram maior competitividade.[15]
Não é a técnica de cobrança de um imposto que prejudica as exportações, mas sim o fato do comércio externo não ser devidamente desonerado.
Cumulatividade[16]
O escritor inglês C. C. Colton afirmou que “há enganos tão bem elaborados que seria estupidez não ser enganado por eles”. A mitificação da superioridade da não-cumulatividade sobre os tributos em cascata é um desses trágicos enganos.
Há alguns anos a bandeira da não-cumulatividade foi transformada em dogma, dando-se início a uma guerra santa contra tributos cumulativos como o PIS, a Cofins e a CPMF.
A cumulatividade sempre esteve presente no sistema tributário brasileiro. Mesmo com a forte campanha anti-cumulatividade encetada pelas principais lideranças empresariais e pelo governo, os tributos cumulativos podem causar menos impactos negativos, e portanto, serem preferíveis aos impostos sobre valor agregado (IVAs).
É curioso também que importantes tributos cumulativos como o Simples, o Imposto de Renda cobrado sobre lucro presumido, o ISS e até mesmo extravagâncias como o ICMS cumulativo (por exemplo, quando cobrado sobre faturamento no setor de alimentação em São Paulo), entre inúmeros outros casos, não são criticados. As objeções se restringem à CPMF, e ao PIS-Cofins cumulativo.
A crítica da cumulatividade foi colocada com clareza por Delfim Netto no trecho reproduzido abaixo.[17]
“O sistema tributário deve ser o mais neutro possível com relação às distorções que sempre produz sobre os preços relativos”. É por isso que um sistema com tributação sobre o valor adicionado é considerado melhor do que o que utiliza o imposto em cascata….. Não existe nenhum teorema de finanças públicas que demonstre esse fato.”
“Sabemos, sim, que o critério da cobrança em cascata introduz profundas distorções nos preços relativos (em geral, não se conhecem a direção nem a dimensão das distorções). O professor Marcos Cintra tem estudado teórica e empiricamente esses problemas e seus trabalhos merecem atenção porque diminuem a potência da crítica superficial à cascata. Pena que ele não esteja no Congresso para enriquecer os debates.”
“Uma coisa é certa: a sua pregação teve um efeito importante sobre a Receita Federal, como se pode deduzir das posições assumidas pelo ilustre ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel”.
“Nós continuamos com a “crença” de que o sistema de valor adicionado é superior (do ponto de vista alocativo, isto é, do desenvolvimento econômico) ao de cascata. Isso não implica ignorar a necessidade de políticas públicas que estimulem a produção e a sua melhor distribuição geográfica.”
Como se vê, economistas, políticos, tributaristas e empresários acreditam que a cumulatividade é a fonte dos males do sistema tributário brasileiro. Os críticos dos tributos em cascata defendem os impostos sobre o valor agregado (IVA) afirmando ser essa forma de cobrança neutra, justa e eficiente.[18]
A alegação de que a CPMF é ruim porque é cumulativa é um puritanismo hipócrita, porquanto não existe imposto perfeitamente não-cumulativo, um ideal teórico e jamais encontrado na vida real. Ademais, por ser a CPMF um tributo insonegável, não causa as imensas distorções de preços relativos e, portanto, alocativas, que a sonegação, estimulada pelos tributos convencionais, introduz na matriz interindustrial brasileira. Essa, sim, é uma perversidade, uma aberração, que seria amplamente evitada com o uso de tributos eletrônicos como a CPMF. Em várias simulações publicadas, mostrei que um imposto cumulativo sobre as movimentações financeiras, com baixa alíquota, provoca menos distorções sobre os preços relativos do que um IVA sonegável com alíquota elevada.[19]
A alegação de que o IVA provoca menos distorção nos preços relativos pode ser verdadeira quando avaliada sob a condição “ceteris paribus” e considerando a hipótese de sonegação zero. Ou seja, teoricamente a aplicação do IVA será vantajosa em uma situação onde os demais fatores atuantes sobre a economia permaneçam inalterados, com todos os contribuintes pagando seus tributos.
Entretanto as hipóteses que confirmam a vantagem do IVA não são observadas na prática. A sonegação é um fenômeno disseminado na economia brasileira e a aplicação de um sistema de cobrança sobre o valor agregado, ao exigir uma alíquota absurdamente elevada, irá incentivá-la.
Ademais, a suposta vantagem do imposto sobre valor agregado em relação ao menor impacto sobre os preços relativos é baseada na aceitação de que os mercados são competitivos perfeitos. Sabe-se, contudo, que os mercados não satisfazem essa hipótese. Nessas condições a teoria do “second best” revela que se torna impossível criar uma situação de ordenamento confiável de situações alternativas do mercado sem uma análise pontual e específica de cada cenário.
A única base tributária capaz de enfrentar a sonegação é a movimentação financeira. Mesmo sendo cumulativo, esse imposto, ao permitir a aplicação de uma alíquota reduzida sobre um sistema não-declaratório e automático, minimiza a sonegação, criando um sistema mais justo, e reduz os custos administrativos para os agentes públicos e privados.
No tocante às distorções nos preços relativos, apresento na tabela abaixo o resumo de um ensaio que produzi, utilizando a matriz insumo-produto do IBGE, para apurar o impacto sobre os preços de 42 setores de um imposto sobre a movimentação financeira (IMF) comparativamente a um sistema com ICMS, IPI, INSS e ISS. Reunindo os setores em cinco grandes grupos, mostro que o impacto de um IMF, com alíquota de 5,3% dividida no débito e no crédito de cada lançamento bancário (que geraria a arrecadação equivalente), faz os preços pós-impostos se distanciarem dos preços sem impostos entre 11,3% e 18,5%. Já o IVA causa elevações de 32% a 50,9%. Analisando os desvios nos preços relativos setoriais causados por cada um desses dois modelos, nota-se que foram de 4,4% no caso do IMF e de 8% no sistema tradicional.
Impacto do IMF e do sistema tributário tradicional nos preços relativos setoriais
Setor | IMF (5,3%) | ICMS + IPI+ INSS +ISS |
Agropecuária | 18,5% | 50,9% |
Indústria | 18,0% | 47,3% |
Transportes e Comunicações | 12,3% | 43,7% |
Comércio | 14,0% | 42,4% |
Serviços | 11,3% | 32,0% |
Máximo para 42 setores | 22,5% | 65,2% |
Mínimo para 42 setores | 6,4% | 19,9% |
Desvio para 42 setores | 4,4% | 8,0% |
Nota: A metodologia do cálculo e o impacto para cada um dos 42 setores sob hipóteses alternativas podem ser consultados em CINTRA (2003) pp. 167-173; disponível também em http://www.marcoscintra.org/novo/default.asp?idSubSecao=24&idSecao=2
Portanto a cumulatividade não é o problema a ser enfrentado na construção de um sistema tributário mais eficiente, já que as distorções nos preços relativos são bem menores que as causadas por um IVA. O foco deve ser a eliminação da sonegação, a redução do custo operacional e a ampliação da base tributária imponível.[20]
José Roberto Affonso e Érika A. Araújo, afirmam que os tributos cumulativos “são mais fáceis de serem cobrados e serem pagos…”, ao passo que os sobre valor adicionado são “mais complexos de serem apurados e mesmo compreendidos”.[21]
Em sua argumentação contra os impostos cumulativos, os autores dizem que os tributos cumulativos são “os mais danosos à competitividade da produção nacional, pela dificuldade em eliminar integralmente sua incidência sobre um bem exportado e pela vantagem que oferecem às importações que, em regra geral, não se sujeitam ao mesmo tratamento no país de origem”.
No tocante a essa observação é interessante notar a reação do Professor José Alexandre Scheinkman ao ser convidado a proferir palestra sobre competitividade comercial e harmonização tributária. Disse ele: “competitividade é uma noção que não faz nenhum sentido para um país como um todo. Todos os países têm maior competitividade ou menor competitividade em produtos diferentes”. E complementa: “a idéia de que a estrutura tributária… afeta a competitividade, a meu ver não faz sentido”.[22]
O Professor Scheinkman demonstra com precisão que os fatores que deprimem a produtividade em uma economia são a sonegação e a economia informal. Se o sistema tributário induz altas taxas de sonegação e elisão, a produtividade deixa de guardar correlação com os investimentos em tecnologia e com eficiência administrativa e gerencial. Uma empresa de baixos custos de produção pode não ser “competitiva” frente a uma outra que sonegue os tributos, ainda que os custos de produção da empresa sonegadora sejam mais elevados. Isso estimula a sobrevivência de empresas ineficientes e deprime a produtividade econômica do país.
Em outras palavras, a remoção da cumulatividade não aumentará a produtividade da economia, pois dela resultarão aumentos das alíquotas dos impostos convencionais e, portanto, maior sonegação. O grande vilão do sistema tributário atual não é a cumulatividade, mas sim a sonegação resultante da complexidade e das altas alíquotas implícitas nos modelos tributários declaratórios atuais.
Finalmente, cumpre esclarecer que a verdadeira prova de eficiência de um sistema tributário é sua capacidade de arrecadar. De nada adianta um tributo ser teoricamente neutro, justo, e eficiente, se na prática não consegue arrecadar o esperado, ou então se gera padrões de comportamentos nos contribuintes que neutralizam, e muitas vezes até revertem suas anunciadas qualidades.
Visões românticas enxergam na cobrança de tributos a expressão do espírito cívico do cidadão cônscio de seus direitos e deveres. Humanitários passaram a acreditar que a única maneira de redistribuir riqueza e renda é através da cobrança punitiva de impostos dos mais eficientes e mais abastados. Economistas e líderes políticos buscam nos impostos, ou na isenção deles, o caminho para estimular o desenvolvimento econômico. Ecologistas e sanitaristas usam o sistema tributário como forma de proteção do meio ambiente e de punição para infratores de suas regras conservacionistas. Planejadores urbanos e regionais utilizam-nos como mecanismos de indução para alcançar objetivos socialmente desejáveis. Agricultores querem a reforma agrária pela tributação dos latifúndios.
Em suma, todos procuram no sistema tributário a solução para seus problemas. Como afirmou Everardo Maciel, “isso serve apenas para demonstrar que o debate sobre matéria tributária pode tomar rumos imprevisíveis, ditados por razões fortuitas ou motivos insondáveis”.[23] A multiplicidade de objetivos a serem atingidos pelo sistema tributário tornou-o altamente complexo, burocratizado, caro, ineficiente, altamente corrupto e fortemente indutor das mais variadas formas de evasão.
O formalismo teórico, tão grato aos economistas de gabinete, que buscam identificar nos impostos seus impactos alocativos e distributivos com milimétrica precisão, revela-se cada vez mais ilusório, dado que a realidade econômica não se ajusta aos precisos modelos econômicos construídos no campo da alta abstração. Nas palavras de Mangabeira Unger, a visão acadêmica desdobra-se em meio a “ilusões edificantes e tranqüilizadoras”. Mas “o mundo é selvagem e obscuro”.[24] Não existe o mundo da competição perfeita.
Na mesma linha e raciocínio, Delfim Netto declara que a ciência econômica deixa a impressão de ser: “um corpo de conhecimento progressivo, uma ‘ciência dura’”. Prossegue o autor: “o que toda essa sofisticação esqueceu é que ela está apoiada em dois postulados implícitos: 1) que não existe sonegação, isto é, que todo o cidadão é prisioneiro de normas sociais rígidas, que lançam o opróbio sobre o sonegador e 2) que o recolhimento desses impostos não tem custo, isto é, eles saem direto do livro texto para a caixa do tesouro… ‘Quando se leva em conta a falsidade desses dois postulados, começa-se a duvidar da qualidade das recomendações sugeridas e a ter mais respeito intelectual pelas propostas dos ‘ ‘impostos não-declaratórios’ …” [25]
O resgate do conceito da arrecadação como meta fundamental e prioritária do sistema tributário encontra respaldo também em UNGER (1998) onde ele confirma a necessidade de se resgatar a função arrecadatória dos impostos ao escrever que impostos indiretos, mesmo cumulativos, podem “gerar muito dinheiro com pouco desarranjo econômico”, ao passo que impostos diretos e progressivos, tão caros a economistas em suas torres de marfim, “como o Imposto de Renda sobre a pessoa física, não produz a receita necessária. Nem pode fazê-lo, por enquanto, sem acarretar desincentivos, fugas e evasões devastadoras”. Unger vai além e diz que o essencial é gerar “dinheiro para o Estado investir no social”.
Finalizo este texto reproduzindo o pensamento de Paulo Rangel[26], brilhante consultor legislativo na Câmara dos Deputados, sobre a polêmica do imposto sobre movimentação financeira.
“A tributação das movimentações financeiras é ainda um tema infreqüente na literatura especializada. Atualmente o Brasil é o detentor da primazia na mais rica, ampla e bem sucedida experimentação no campo dessa peculiar técnica tributária.”
“Nessa matéria, não há socorro disponível em inglês, francês, alemão, japonês ou italiano. Por uma vez, somos o único referencial de nossas próprias reflexões, e a experiência brasileira é a referência básica para os estudiosos estrangeiros.“
Doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA); Professor-titular e Vice-presidente da Fundação Getulio Vargas;
Foi Deputado Federal (1999-2003) e atualmente é Secretário de Finanças do Município de São Bernardo do Campo-SP.
e-mail: mcintra@marcoscintra.org
O Benefício de Prestação Continuada (BPC), mais conhecido como LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social),…
O benefício por incapacidade é uma das principais proteções oferecidas pelo INSS aos trabalhadores que,…
O auxílio-reclusão é um benefício previdenciário concedido aos dependentes de segurados do INSS que se…
A simulação da aposentadoria é uma etapa fundamental para planejar o futuro financeiro de qualquer…
A paridade é um princípio fundamental na legislação previdenciária brasileira, especialmente para servidores públicos. Ela…
A aposentadoria por idade rural é um benefício previdenciário que reconhece as condições diferenciadas enfrentadas…