Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar a prática ilegal de venda casada. Serão discutidos aspectos penais e cíveis sobre tema, sob o prisma do Código de Defesa do Consumidor.
Palavras-chave: Direito do Consumidor; Venda Casada, Ilegalidade.
Abstract: This paper aims to analyze the illegal practice of tying. It will be discussed aspects of criminal and civil matter, through the prism of the Consumer Defense Code.
Keywords: Consumer Law; tying, Illegality.
Sumário: Introdução. 1. Venda Casada: Conceito. 2. Disposições Legais e Jurisprudência. 3. Venda Casada Legal. Considerações Finais. Bibliografia.
Introdução
Quem nunca foi a alguma casa de entretenimentos noturnos como bares, restaurantes, casas de shows e se deparou com cobrança da famosa “consumação mínima“?
Quem nunca ouviu um relato sobre alguma escola que, para efetuar a matrícula do aluno, exigia que o material escolar fosse obrigatoriamente adquirido no seu estabelecimento?
Quem nunca soube de um cinema onde somente era permitido adentrar a sala de exibições com guloseimas adquiridas no próprio estabelecimento?
Quem nunca teve notícia de agência de viagens que somente comercializava pacotes turísticos fechados, sem possibilidade de adquirir os serviços de traslados terrestres e aéreos separadamente?
Se o consumidor comum nunca vivenciou alguma das situações descritas acima, certamente não escapará desta, que é infalível: quem necessita de um empréstimo bancário, muito provavelmente vai se deparar com um gerente solícito que o esclarecerá que o empréstimo seria apenas aprovado desde que se adquirisse também outro produto, como um título de capitalização ou um seguro de vida.
O que todas as situações acima têm em comum? Todas são exemplos de uma prática comercial abusiva e criminosa, proibida pelo Código de Defesa do Consumidor e pela Lei 8137/90, denominada popularmente de “venda casada”.
1. Venda Casada: Conceito.
Venda Casada é a prática que os fornecedores têm de impor, na venda de algum produto ou serviço, a aquisição de outro não necessariamente desejado pelo consumidor. Esse tipo de operação pode também se dar quando o comerciante impõe quantidade mínima para a compra. No que diz respeito ao exercício proibido de venda casada, a Secretaria de Acompanhamento Econômico, ligada ao Ministério da Fazenda, corrobora tal conceito:
“Prática comercial que consiste em vender determinado produto ou serviço somente se o comprador estiver disposto a adquirir outro produto ou serviço da mesma empresa. Em geral, o primeiro produto é algo sem similar no mercado, enquanto o segundo é um produto com numerosos concorrentes, de igual ou melhor qualidade. Dessa forma, a empresa consegue estender o monopólio (existente em relação ao primeiro produto) a um produto com vários similares. A mesma prática pode ser adotada na venda de produtos com grande procura, condicionada à venda de outros de demanda inferior”.[1]
O que o Código de Defesa do Consumidor prescreve é que o consumidor deve ter ampla liberdade de escolha quanto ao que deseja consumir.
Assim, não pode o fornecedor fazer qualquer tipo de imposição ao consumidor quando da aquisição de produtos ou serviços, nem mesmo quando este adquire outros produtos ou serviços do mesmo fornecedor.
A doutrina costuma classificar a prática de venda casada em strico sensu e lato sensu.
A venda casada stricto sensu é aquela em que o consumidor fica impedido de consumir, a não ser que consuma também outro produto ou serviço.
Na venda casada lato sensu, por sua vez, o consumidor pode adquirir o produto ou serviço sem ser obrigado a adquirir outro. Todavia, se desejar consumir outro produto ou serviço, fica obrigado a adquirir ambos do mesmo fornecedor, ou de fornecedor indicado pelo fornecedor original.
Tanto a venda casada stricto sensu quanto a lato sensu são consideradas práticas abusivas, pois interferem indevidamente na vontade do consumidor, que fica enfraquecido em sua liberdade de opção.
2. Disposições Legais e Jurisprudência.
O que diz a Lei a respeito do tema venda casada? O Código de Defesa do Consumidor, artigo 39, esclarece de forma inequívoca:
“Art. 39 – é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas
Inciso I: “condicionar o fornecimento de produtos ou serviços ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”.
Geraldo Magela Alves explica tal preceito legal:
“Quer-se evitar que o consumidor, para ter acesso ao produto ou serviço que efetivamente deseja, tenha de arcar com o ônus de adquirir outro, não de sua eleição, mas imposto pelo fornecedor como condição à usufruição do desejado”.[2]
No que se refere a limite quantitativo, entende-se que diz respeito ao mesmo produto ou serviço. No entanto, neste caso, o Código Consumerista não estabeleceu uma proibição absoluta. Assim o limite quantitativo é admissível desde que haja justa causa para imposição.
A justa causa, porém, só tem aplicação aos limites quantitativos que sejam inferiores à quantidade desejada pelo consumidor, isto é, o fornecedor não pode obrigar o consumidor a contratar a maior ou menor do que as suas necessidades.
Em outras palavras, o legislador também quis coibir aquela prática denominada “consumação mínima”. Então, nenhum fornecedor pode condicionar a entrada de um consumidor em seu recinto ao pagamento de certa quantia mínima, determinando-lhe previamente quanto tem de pagar. Permite-se apenas a cobrança fixa de ingresso de entrada, ou qualquer valor sob rubrica semelhante.
O cliente tem direito de consumir apenas alguma ínfima parcela dos produtos vendidos pelo fornecedor, e, em conseqüência, de pagar só aquilo que consumir.
Se a consumação mínima for apresentada para pagamento, incluída na nota de débito, o consumidor tem todo o direito de se recusar ao pagamento.
Aliás, a prática da consumação mínima se traduz em enriquecimento sem causa do estabelecimento comercial, pois permiti a este cobrar por produto ou um serviço não consumido pelo cliente.
Eventual quantia paga pelo consumidor a tal título enseja a este o direito à repetição em dobro do que desembolsou, corrigido monetariamente e acrescido dos juros legais.
Nesse diapasão, importante mencionar as palavras de Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin:
“O fornecedor não pode obrigar o consumidor a adquirir quantidade maior que as suas necessidades. Assim, se o consumidor quer adquirir uma lata de óleo, não é lícito ao fornecedor condicionar a venda à aquisição de duas outras unidades. A solução também é aplicável aos brindes, promoções e bens com desconto. O consumidor sempre tem o direito de, em desejando, recusar a aquisição quantitativamente casada, desde que pague o preço normal do produto ou serviço, isto é, sem desconto.”[3]
Aponte-se, todavia, que a imposição de limite máximo como justa causa em caso de promoções tem sido aceita pela jurisprudência, sob o argumento de que a compra de todo o estoque por apenas um consumidor prejudicará outro que tenha interesse na promoção. Nesse sentido:
“RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. DANO MORAL. VENDA DE PRODUTO A VAREJO. RESTRIÇÃO QUANTITATIVA. FALTA DE INDICAÇÃO NA OFERTA. DANO MORAL. INOCORRÊNCIA. QUANTIDADE EXIGIDA INCOMPATÍVEL COM O CONSUMO PESSOAL E FAMILIAR. ABORRECIMENTOS QUE NÃO CONFIGURAM OFENSA À DIGNIDADE OU AO FORO ÍNTIMO DO CONSUMIDOR. 1. A falta de indicação de restrição quantitativa relativa à oferta de determinado produto, pelo fornecedor, não autoriza o consumidor exigir quantidade incompatível com o consumo individual ou familiar, nem, tampouco, configura dano ao seu patrimônio extra-material.
2. Os aborrecimentos vivenciados pelo consumidor, na hipótese, devem ser interpretados como “fatos do cotidiano”, que não extrapolam as raias das relações comerciais, e, portanto, não podem ser entendidos como ofensivos ao foro íntimo ou à dignidade do cidadão. Recurso especial, ressalvada a terminologia, não conhecido”. (REsp 595.734/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 02.08.2005, DJ 28.11.2005 p. 275)
Em continuidade ao tema, a Lei 8137/1990 tipificou a prática de venda casada como crime, no seu art. 5º, incisos II e III:
“Art. 5º Constitui crime da mesma natureza:
II – subordinar a venda de bem ou a utilização de serviço à aquisição de outro bem, ou ao uso de determinado serviço;
III – sujeitar a venda de bem ou a utilização de serviço à aquisição de quantidade arbitrariamente determinada;
Pena: detenção de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa”.
Mencione-se ainda que a Lei nº 8.158 (lei da defesa da concorrência) de 08 de outubro de 1991, já revogada, também prescrevia a venda casada como infração penal de abuso do poder econômico, conforme disposição de seu artigo 3º, inciso VIII.
Para sedimentar a noção legal de venda de casada, eis o balizado ensinamento Cláudia Lima Marques:
“Tanto o CDC como a Lei Antitruste proíbem que o fornecedor se prevaleça de sua superioridade econômica ou técnica para determinar condições negociais desfavoráveis ao consumidor. Assim, proíbe o art. 39, em seu inciso I, a prática da chamada venda “casada, que significa condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço. O inciso ainda proíbe condicionar o fornecimento, sem justa causa, a limites quantitativos”.[4]
O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou sobre a questão:
“São direitos básicos do consumidor a proteção contra práticas abusivas no fornecimento de serviços e a efetiva prevenção/ reparação de danos patrimoniais (CDC, art. 6º, IV e VI), sendo vedado ao fornecedor condicionar o fornecimento de serviço, sem justa causa, a limites quantitativos (…)” (STJ, REsp. 655.130, Rel. Min. Denise Arruda, 1ª T.,j. 03/05/07, DJ 28/05/2007).
“A prática abusiva revela-se patente se a empresa cinematográfica permite a entrada de produtos adquiridos nas suas dependências e interdita o adquirido alhures, engendrando por via oblíqua a cognominada ‘venda casada’, (…)” (REsp. 744.602, Rel. Min. Luiz Fux, j. 01/03/07, DJ 15/03/07).
Inclusive sobre a ótica criminal:
“A figura típica descrita no artigo 5º, II, da Lei 8137/90, é crime de mera conduta, que não depende da concretização da venda ou da prestação do serviço para a sua consumação, bastando, para tanto, que o agente subordine, ou sujeite a venda ou prestação de serviço, a uma condição” (STJ, RHC 12.378, Rel. Min. Felix Fisher, 5ª. T., p. 24/06/02).
Assim, a venda casada é vedada em todas as transações, inclusive quando se tratar de estabelecimento que preste serviço, a exemplo de um cinema. O STJ já decidiu sobre o tema, nesse sentido:
“ADMINISTRATIVO — APLICAÇÃO DE SANÇÃO PECUNIÁRIA POR OFENSA AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR — OPERAÇÃO DENOMINADA ‘VENDA CASADA’ EM CINEMAS — VEDAÇÃO DE CONSUMO DE ALIMENTOS ADQUIRIDOS FORA DAS CASAS DE EXIBIÇÃO DE FILMES — VIOLAÇÃO EVIDENTE DA CONSUMERISTA — DESPROVIMENTO DO APELO”. RECURSO ESPECIAL Nº 744.602 — RJ (2005/0067467-0)
A orientação para os consumidores que se deparam com a prática da venda casada é, naturalmente, denunciar aos órgãos de defesa do consumidor como Procon, Ministério Público, Delegacia do Consumidor, que adotarão as medidas pertinentes de punição.
Em algumas situações, porém, o consumidor pode aceitar a imposição adicional e, em seguida, cancelar a parte da transação que não lhe interessa.
A título de exemplo temos o caso em que, após o recebimento do empréstimo, o consumidor envia uma carta de notificação ao banco informando que o seguro de vida que foi imposto como condição à operação de crédito não lhe interessa,. Neste caso, tal cláusula deve ser cancelado por ser uma prática abusiva vedada pelo CDC. Nestes casos de venda casada, a jurisprudência é dominante:
“Ação anulatória e revisional- contratos de empréstimo, pecúlio e seguro- venda casada. Atividades que envolvam crédito constituem relação de consumo.A exigência de contratar pecúlio e seguro de vida para concessão de empréstimo, usualmente denominada “venda casada”, é prática expressamente vedada pelo art.39,I do CDC ( TJRS, AP.CÍV.70005954235, REL.DES. ANA MARIA NEDEL.J.16.10.2003).
3. Venda Casada Legal
Atente-se, porém, que algumas situações de venda casada são legais. A loja de ternos masculinos que não vende a calça sozinha não comete prática abusiva, assim como o fabricante de sorvete que comercializa o seu produto em potes de dois litros e não vende apenas a “bola” do sorvete, também não pratica ato ilícito, por razões óbvias[5].
Leonardo de Medeiros Garcia nos traz ensinamento sobre venda casada permitida:
“[…] a possibilidade também existe, por exemplo, nas vendas promocionais do tipo “pague 2 e leve 3”, desde que o consumidor possa adquirir, caso queira, o produto singular pelo preço normal. Nesses casos de imposição limite mínimo, sobretudo por serem situações mais delicadas, deverá o intérprete analisar se há razoabilidade ou não na limitação, de forma a evitar os abusos, tanto pelo fornecedor como pelo consumidor.”[6]
De fato, o autor explica que o consumidor pode cometer abusos nesse contexto. O exemplo dado é do cliente que vai a bares e restaurantes que estipulam um limite mínimo de 300 gamas de carne e insiste que quer consumir apenas 10 gramas com o argumento de que o estabelecimento não pode limitar a aquisição.
Garcia atenta ainda para as decisões do Superior Tribunal de Justiça que vem considerando legal a cobrança de tarifa mínima, tanto de água como telefonia, mais conhecida como tarifa de assinatura básica ou mensal, ainda que o consumidor não tenha utilizado o serviço ou o tenha utilizado abaixo do limite. Segundo a Egrégia Corte, essa cobrança é justificada pela necessidade da concessionária de manter o serviço contínua e ininterruptamente ao consumidor.[7]
Considerações Finais
Para se afastar a hipótese de venda casada, deve o juiz, na aplicação da lei, aferir as finalidades da norma, para que, diante do caso concreto, consiga definir, quando manifesta, a prática abusiva.
No entanto, não se deve esquecer o papel da sociedade consumidora que deve lutar pelo respeito à lei, tanto aos dispositivos da Lei Maior, quanto do CDC, exercendo plenamente a cidadania através de denúncia ao PROCON e ao Ministério Público, bem como com ajuizamento de ações no sentido de combater a venda casada.
raduado em Direito pela Universidade Católica de Salvador (2001). Advogado com experiência na área de Direito Civil e do Consumidor. Sócio-Diretor do Escritório de Advocacia Henrique Guimarães Advogados Associados. Membro da Comissão de Direito do Consumidor OAB/BA
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