A reação internacional à mudança climática: o Protocolo de Quioto e seus mecanismos de mercado para o enfrentamento do aquecimento global

Resumo: O tema fundamenta-se no aprofundamento das discussões acerca da reação internacional à alteração climática. Enfocaremos a análise no Protocolo de Quioto que, ao instituir mecanismos de mercado, propõe reduzir e estabilizar dos níveis de gases de efeito estufa na atmosfera.  O intuito desta discussão é, pois, expandir a compreensão acerca dos acordos atinentes às mudanças do clima ao lançar um olhar sobre o conteúdo jurídico do Tratado de Quioto.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1. A CONFERÊNCIA DE ESTOCOLMO E A CONVENÇÃO-QUADRO SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS: a reação internacional à mudança climática. 1.1. A importância das Conferências Internacionais. 1.2. A Conferência do Rio. 2. O PROTOCOLO DE QUIOTO. 2.1. As principais características do Acordo. 2.2. Os objetivos do Protocolo de Quioto. 2.3. A Eficácia Jurídica das Normas do Protocolo de Quioto. 2.4. O Protocolo de Quioto e o Desenvolvimento Sustentável. 2.5. Os Mecanismos de Flexibilidade e o “Direito de Poluir”. 2.5.1. Implementação Conjunta, Comércio de Emissões e Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. 2.5.2. O Mercado de Carbono. 3. A QUESTÃO DO CLIMA E O MERCADO DE CARBONO: um debate necessário. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

A temática do meio ambiente, nas últimas décadas, tem despertado a atenção da sociedade contemporânea, ante a evidente crise ecológica global, que se manifesta em um conjunto de fenômenos ambientais transnacionais. Esses acontecimentos, de cadeia complexa, intensificados pela Revolução Industrial, desde fins do século XVIII, vão desde a diminuição da camada de ozônio, a perda de diversidade biológica, a desertificação, a poluição das águas até o aquecimento da Terra. As promessas da modernidade, que sugeririam uma superação dos limites impostos por outras épocas e a consecução da felicidade humana, desaguam em um cenário deveras contraditório.

As mudanças climáticas apresentam-se como uma das mais graves crises a ser enfrentada coletivamente, dada a sua natureza planetária. Decorrência do aumento vertiginoso dos níveis de emissão dos gases de efeito estufa na atmosfera, determinado em grande medida pelo nosso modelo industrial que se sustenta no aproveitamento prolongado de energia fóssil, a queima de florestas, a agricultura e a pecuária, o aquecimento global desafia as estruturas políticas, econômicas e jurídicas. Interroga as forças da sociedade industrial sobre o que se esperará do dia de amanhã, ao revelar um futuro catastrófico já anunciado, caso não sejam adotadas medidas capazes de superar essa problemática ambiental efetiva e eficazmente.

Nessa linha argumentativa, o escopo deste estudo é analisar as discussões acerca do aquecimento global, uma das faces da crise ecológica, no âmbito do Direito Internacional do Meio Ambiente, tendo como pano de fundo o Protocolo de Quioto.

Sob os auspícios de uma nova sistemática normativa, que envolve mecanismos flexíveis e se apóia no princípio do desenvolvimento sustentável, a partir da compreensão de que não se poderia atingir um desenvolvimento sem a preservação, recuperação e proteção do meio ambiente, o Tratado apresenta-se como o primeiro documento internacional a considerar mecanismos de mercado como alternativa para a solução de problemas mundiais do meio ambiente.

1. A CONFERÊNCIA DE ESTOCOLMO E A CONVENÇÃO-QUADRO SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS: a reação internacional à mudança climática

1.1. A importância das Conferências Internacionais

A proteção do meio ambiente em nível internacional ganhou nítidos contornos com a realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano que estabeleceu os fundamentos da política ambiental contemporânea, em junho de 1972 na cidade de Estocolmo. Inexistia, “nas relações globais, um mecanismo de consultas diplomáticas ou de decisões sobre as grandes linhas políticas e normativas quanto aos temas do meio ambiente internacional” (GUIDO,2003: 36). A problemática ambiental não mais recebeu o tratamento esporádico, pontual, ad hoc, que lhe era destinado até então.

A Declaração Final contém um conjunto de direitos e obrigações de governos e indivíduos referentes à preservação de meio ambiente, entre outros, o direito a um meio ambiente de qualidade (Princípio 1), a responsabilidade em relação às gerações futuras (Princípios 1, 2, 5), a cooperação internacional (Princípio 24).

Quanto ao reconhecimento do problema da mudança do clima, este somente viria a ocorrer alguns anos depois, em 1979, na primeira Conferência do Clima, ante o fortalecimento das pesquisas cientificas que identificavam a interferência humana no sistema climático e a crescente preocupação pública com as questões ambientais. Em declaração, afirmou a necessidade de os Estados agirem de forma preventiva na identificação e no combate a atividades antrópicas que contribuíam para a referida mudança.

Nos anos subseqüentes, compreendidos entre o final dos anos 80 e início dos anos 90, outras conferências foram realizadas à evidência científica crescente do câmbio climático, o que resultou em maior interesse da comunidade internacional sobre esta questão e crescente visibilidade da mesma. Os principais eventos desse período foram a Conferência de Villach (outubro/1985), a Conferência de Toronto (junho/1988), a Conferência de Otttawa (fevereiro/1989), a Conferência de Tata (fevereiro/1989), a Conferência e Declaração de Haia (março/1989), a Conferência Internacional de Noordwijk (novembro/1989), a Compact de Cairo (dezembro/1989), a Conferência de Bergen (maio/1990), a Segunda Conferência Mundial do Clima (novembro de 1990).

Em 1988, por iniciativa da Organização Meteorológica Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, é formado o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. A partir de informações científicas, econômicas, sociais e técnicas, o Painel tem por fim colaborar com a mitigação do aquecimento global, promovendo a formação de um consenso científico dos riscos inerentes às mudanças do clima por ocasião das atividades antrópicas.

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas se subdivide em quatro grupos de trabalho que fornece informações acerca do conhecimento e consensos científicos a respeito da mudança do clima. O primeiro se volta aos aspectos científicos da mudança climática e ao sistema climático; o segundo, à análise da vulnerabilidade dos ecossistemas e dos sistemas socioeconômicos em decorrência das alterações climáticas, as conseqüências positivas e negativas de tais alterações e as alternativas de adaptação; o terceiro, ao estudo das opções para restringir as emissões de gases de efeito estufa e mitigar o câmbio climático; e o Grupo Especial destinado ao desenvolvimento dos inventários nacionais de gases de efeito estufa (EGUREN, 2004).

O Painel publicou o seu primeiro relatório de análise em 1990, afirmando que a ação humana poderia potencializar o efeito estufa, a mudança climática se constituía em uma ameaça e, diante de tal constatação, a urgência de um acordo global para tratar do problema. O segundo relatório de avaliação do PIMC concluiu que o aumento verificado na temperatura era conseqüência das ações humanas combinadas com os efeitos naturais de variação.

1.2. A Conferência do Rio

Em 1992, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima foi assinada, vinte anos após a Conferência de Estocolmo, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, reconhecendo a mudança climática como uma preocupação comum da humanidade, a atmosfera como patrimônio mundial e, por conseguinte, a necessidade de preservar o seu equilíbrio.

Inexistia convicção suficiente ou mesmo consenso sobre como proceder em relação às mudanças climáticas e, em razão disso, adotou-se um tratado de alcance universal e geral, de princípios e instituições, que possibilitou dar início a um processo de negociação que, posteriormente, poderia ser aprofundado a partir de novas descobertas cientificas. É o que se depreende da leitura do artigo 17 do Acordo do Clima, que prevê a possibilidade de se adotar protocolos e ajustes com o objetivo de tornar os procedimentos mais direcionados, semelhante a estrutura  seguida pela Convenção para a Proteção da Camada de Ozônio. Com uma estrutura flexível, a Convenção-Quadro, enunciando os grandes princípios da ação, permitiria tornar os deveres mais ou menos rigorosos por meio de disposições mais específicas (KISS, 1996), conforme as novas descobertas científicas e a disposição da comunidade internacional.

Ao estabelecer parâmetros para as discussões sobre o efeito estufa e as medidas a serem adotadas para o seu controle, a Convenção-Quadro é a estrutura jurídica base na luta contra os gases de efeito estufa. Na exposição de motivos desse acordo internacional multilateral estão fixados três posicionamentos essenciais (GAZANI; FONSECA; AZEVEDO, 2001):

a) a tomada de posição científica, com reconhecimento da interligação entre a atividade antrópica e a elevação sensível dos níveis de concentração de gases de efeito estufa na atmosfera;

b) a tomada de posição econômica, com o reconhecimento de que as medidas para combater as mudanças climáticas podem, em si mesmas, encontrar sua justificativa econômica e contribuir na solução de outros problemas ambientais;

c) a tomada de posição política, com o reconhecimento das responsabilidades diferenciadas entre os países ricos e pobres em virtude do papel preponderante dos primeiros na emissão dos gases.

Esse acordo voluntário entrou em vigor em 1994, com o propósito de reduzir a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera e controlar o aquecimento global. É o que se depreende do próprio texto convencional que assim dispõe:

“O objetivo final da Convenção e de quaisquer instrumentos jurídicos com ela relacionados que adote a Conferência das Partes é o de alcançar, em conformidade com as disposições pertinentes desta Convenção, a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópica perigosa no sistema climático. Esse nível deverá ser alcançado num prazo suficiente que permita aos ecossistemas adaptarem-se naturalmente à mudança do clima, que assegure que a produção de alimentos não seja ameaçada e que permita ao desenvolvimento econômico prosseguir de maneira sustentável.” (CONVENÇÃO-QUADRO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MUDANÇA DO CLIMA, 1992).

Desta maneira, a Convenção do Clima constituiu um regime jurídico internacional com fito de estabilizar a concentração dos gases que provocam o efeito estufa em níveis que não causem efeito danoso sobre o sistema climático, em prazo aceitável para que os ecossistemas possam se adaptar às novas condições climáticas, conciliando os interesses sociais e econômicos de desenvolvimento, em benefício das gerações presentes e futuras da humanidade (GAZANI; FONSECA; AZEVEDO, 2001).

Na busca da consecução de tal objetivo, alguns institutos foram criados, quais sejam:

a) Conferência das Partes (COP) – autoridade máxima da Convenção, abarca as nações que ratificaram a Convenção e um grupo de observadores convidados – organizações internacionais como UNCTAD, IEA, UNEP, WMO, OCDE, ONG’s credenciadas – com reuniões anuais, cuja função é promover e revisar a implementação do Acordo, revisar os compromissos das partes e os instrumentos estabelecidos na Convenção, divulgar pesquisas científicas e verificar a efetividade dos programas de mudanças climáticas nacionais;

b) Corpo Subsidiário para Conselho Científico e Tecnológico (CSCCT) – fornecer a COP informações em assuntos científicos e tecnológicos;

c) Corpo Subsidiário de Implementação (CSI) – corpo permanente estabelecido para ajudar os participantes da Convenção a avaliar e implementar a mesma;

d) Fundo Global para o Meio Ambiente (FGMA) – mecanismo financiador do Tratado;

e) Painel Intergovernamental em Mudanças Climáticas (PIMC) – corpo de cientistas responsável pelas avaliações técnicas e científicas, através da elaboração anual de relatórios de avaliação referentes às mudanças climáticas e seus possíveis impactos globais, no apoio a Convenção do Clima.

Tanto a Declaração Rio 92 quanto a Declaração de Estocolmo determinaram um conjunto de princípios que levam a cabo a lista de orientações para alcançar o escopo último do Tratado do Clima, que entrou em vigor no ano de 1994. A orientação é dada a partir de “princípio da precaução”, “princípio da equidade”, “princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, “princípio do desenvolvimento sustentável”, “princípio da participação”, “princípio da informação” e demais princípios que tratam de financiamento e transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento na luta contra o aquecimento global, dispostos no artigo 3° da Convenção-Quadro, viabilizando a estabilização dos níveis dos gases de efeito estufa.

No que concerne às obrigações admitidas pelos Estados Partes, destacam-se a adoção de programas nacionais de mitigação da mudança climática, a promoção de tecnologia, práticas e processos limpos (que ajudem na redução antrópica da emissão dos gases de efeito estufa), a promoção da gestão sustentável, a necessidade de levar em conta as implicações de suas políticas sociais, econômicas e ambientais para o clima. Assim como, as obrigações exclusivas dos países desenvolvidos (Artigo 4.2.3.4.5), balizadas pelo princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, como o dever de adotar políticas e medidas para a redução de suas emissões de gases efeito estufa para os níveis de emissão do ano de 1990 até o ano 2000.

A Convenção sobre mudanças climáticas dispõe que os países pobres e emergentes têm o direito ao desenvolvimento econômico e o direito de ampliar suas parcelas de emissões de gases de efeito estufa na medida em que desenvolvam suas indústrias para melhorar as condições sociais e econômicas de seus habitantes (FURRIELA, 200-).

Reforça a necessidade, através do princípio do desenvolvimento sustentável, de a sociedade mundial trilhar caminhos de desenvolvimento que resguardem “o sistema climático em benefício das gerações presentes e futuras da humanidade”. (CONVENÇÃO-QUADRO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MUDANÇA DO CLIMA, 1992).

A Convenção-Quadro, ao reconhecer a alteração climática como um problema, estabelece um marco e um processo para possibilitar a adoção de acordos de ações específicas.

A despeito das qualidades supracitadas, o Tratado do Clima, “não compreendeu nenhum compromisso legal vinculante sobre redução de emissões. Tampouco reconheceu o papel da indústria, sobre o consumo e sobre as políticas de livre comércio que prejudicam o câmbio climático”. (CARBON TRADE WATCH/TNI, 2003, p. –, tradução nossa).

Bem assim, tal Acordo é desprovido de qualquer elemento de responsabilização das Partes pela inexecução de seus dispositivos. Abrange tão somente um sistema multilateral para dissolver possíveis questões atinentes à implementação da Convenção e um instrumento para solucionar polêmicas referentes à interpretação e aplicação da mesma. Inexiste, pois, um regime particular para a responsabilização quando do não cumprimento das assertivas do Tratado do Clima.

Doutra feita, a recomendação de os países desenvolvidos reduzirem as suas emissões aos níveis de 1990 até o ano de 2000 restou sem efeito. As metas de redução não foram alcançadas e, em determinados casos, houve até um aumento das emissões (MAY, 2003).

2. O PROTOCOLO DE QUIOTO

2.1. As principais características do Acordo

O Protocolo de Quioto de 1997 (COP 3), primeiro ajuste formal na adoção de ações que contribuam para a estabilização do clima do Planeta, é o resultado da ineficiência dos compromissos firmados na Convenção do Clima, seja porque esse documento carece de instrumentos mais precisos que determinem, pragmaticamente, como enfrentar o problema climático seja porque, por se tratar de compromissos voluntários, inexista uma obrigatoriedade de os Estados-Membros cumprirem o que acordaram.

Neste ponto, torna-se inevitável indagar como exigir que um Estado cumpra o acordo internacional sem que este possua cláusulas mandatórias? Ao refletir sobre a primeira indagação, é a própria estrutura do tratado quadro, que nos permite traçar algumas considerações a indicar o caminho que responde em termos referida questão, vez que essa “nova engenharia normativa” (SOARES, 2005) concebe a convenção, como ato geral, flexível que permite a adição de protocolos, espécies de tratado com ações mais concretas, com regras mais bem delineadas.

A eficácia da norma jurídica internacional tradicionalmente é determinada pela importância dada pelos Estados Membros à implementação de sua substância; por não possuir um caráter coercitivo, um jus congens, que assevere a implementação das regras ambientais, necessita da cooperação entre os Estados.

Diferentemente dos tratados normativos que “criam normas gerais em termos de asserções jurídicas que regem a conduta futura das partes, sendo as obrigações basicamente às mesmas para todas as partes” (BROWNLIE, 1997: 24), a convenção-quadro adota uma nova engenharia normativa do Direito Internacional, que admite ulterior regulação por meio de outros instrumentos jurídicos sucessivos, como, por exemplo, o Protocolo de Quioto. A força dos mecanismos de implementação e de controle das normas ambientais garante um aumento do caráter cogente destas normas.

Dentro da sistemática do tratado-quadro, o Protocolo de Quioto é um acordo adicional à Convenção-Quadro do Clima; ato específico determinado pela própria Convenção que prevê a possibilidade de se adotar outros meios jurídicos para consecução de seu objetivo final. Ou seja, o Protocolo estabelece objetivos específicos, adicionais ao principal, com vistas a atingir o objetivo último da Convenção-Quadro.

2.2. Os objetivos do Protocolo de Quioto

A meta fundamental do Protocolo de Quioto, definida em seu artigo 3 – que exprime, simultaneamente, o principal avanço das negociações internacionais, até então, no que concerne a luta para estabilizar os gases geradores do efeito estufa – é a quantificação das reduções e das limitações de emissões dos países agrupados no Anexo I. Em breve síntese, as Partes do Anexo I se comprometem a atingir o objetivo, fixado no Anexo B, de redução e limitação de suas emissões antrópicas dos gases de efeito estufa, com o fim de que seja, no mínimo, reduzida em 5,2% a emissão total desses gases, entre os anos de 2008 e 2012 (primeiro período de cumprimento do Protocolo de Quioto), em relação ao coeficiente do ano de 1900. Importa destacar que, em virtude do acordo de Bonn, o corte das emissões baixou, na prática, de 5,2% para 2,0%, numa tentativa de “salvar” o Protocolo e gerar um maior consenso entre as Partes.

Não há no Protocolo a previsão obrigacional de os países em desenvolvimento reduzir ou estabilizar os GEE por eles emitidos. Os gases a serem controlados estão dispostos no Anexo A do Protocolo, a saber: gás carbônico (CO2), metano (CH 4), óxido nitroso (N2O), hidrofluorcarbono (HFC), perfluorcarbono (PFC) e hexaflorito sulfuroso (SF 6).

Em virtude de sua natureza, a de reforçar e tornar mais definidas as obrigações adotadas na Convenção-Quadro, o artigo 2 do Protocolo determina medidas a serem adotadas para a satisfação do pacto de redução assumido, reafirmando a necessidade de desenvolvimento sustentável.

O artigo 4, por conseguinte, tem o condão de ratificar compromissos enunciados na Convenção-Quadro para todas as Partes integrantes do Protocolo, bem assim incluir obrigações pertinentes à cooperação tecnológica, às pesquisas tecno-científicas, a programas destinados a abrandar as mudanças climáticas e à elaboração de inventários de emissões. O Tratado é apontado como um incentivo à utilização de fontes renováveis de energia e ao crescimento da sua presença na matriz energética mundial, em prejuízo das energias fósseis (PEREIRA; ROVERE, 2003).

2.3 A Eficácia Jurídica das Normas do Protocolo de Quioto

Um tratado internacional pode encerrar ou não teor jurídico vinculante. Quando é desprovido de conteúdo que obriga, ou seja, não-vinculantes, soft law, versa em forma de dispositivos programáticos, princípios e declarações sem implicar no dever de cumpri-los – são as obrigações de conduta ou meio, flexíveis, não vinculantes. Diferentemente do tratado que aborda obrigações de resultado certo, preciso, determinável ou mesmo determinável, hard law, que guarda em si o imperativo de cumprimento de tais obrigações.

Os tratados que contêm disposições de conduta determinam aos seus destinatários um comportamento específico; aqueles que convencionam deveres de resultado impõem obrigações que devem dirigir a um determinado fim (SOARES, 2005). Estas distintas realidades, soft law e hard law, por si só, não tornam segura a efetividade do acordo.

Entrevendo o Protocolo de Quioto – um acordo de natureza vinculante, de obrigação de resultados – o seu sistema de cumprimento normativo procura facilitar a implementação das metas não poluidoras de produção, do desenvolvimento sustentável e aplicar sanções em caso de desrespeito às metas impostas.

O Tratado prevê um sistema de apoio aos países em desenvolvimento, que em tese não haveriam de meios suficientes para implementar as normas acordadas, para que as cumpram. Há dois subsídios, o que contém assistência técnica e financeira, transferência de tecnologia, treinamento e educação e o de ajuda à mitigação dos custos de redução de emissões de gases de efeito estufa.

2.4. O Desenvolvimento Sustentável e o Protocolo de Quioto

Na sistemática da Convenção-Quadro sobre mudanças climáticas, as quotas de emissões de carbono divergem, em função do grau de desenvolvimento dos Estados Partes. A justificativa fica a cargo do artigo 3.1 e 3.2 do Tratado que dispõe acerca da responsabilidade comum, porém diferenciada e da equidade entre as nações quanto a suas contribuições na consecução dos objetivos do mesmo ao estabelecer obrigações diferenciadas para do Estado.

“Artigo 3.1 – As Partes devem proteger os sistemas climáticos em benefício das gerações presentes e futuras da humanidade com base na equidade e em conformidade com suas responsabilidades comum, mas diferenciadas, e respectivas capacidades. Em decorrência, as Partes-países desenvolvidos devem tomar a iniciativa no combate à mudança do clima e seus efeitos.

Artigo 3.2 – Devem ser levadas em plena consideração as necessidades específicas e circunstâncias especiais das Partes-países em desenvolvimento, em especial aqueles particularmente mais vulneráveis aos efeitos negativos da mudança do clima, e das Partes, Partes-países em desenvolvimento, que tenham que assumir encargos desproporcionais e anormais sobre esta Convenção.”

Esta linha de raciocínio é acompanhada pelo Protocolo de Quioto. Uma aparente alusão à necessidade de se oferecer um tratamento especial e sem reciprocidade em benefício dos países pobres, já que estes não acompanharam os padrões de crescimento dos países centrais, em decorrência, sobretudo, da condição que lhes foi imposta de colônias de exploração. A não-reciprocidade é acatada devido à posição desigual do estágio de desenvolvimento dos países.

A responsabilidade diferenciada entre as nações acompanha a idéia de desenvolvimento sustentável presente nos tratados de combate ao câmbio climático. A proteção do clima se relaciona tanto com a necessidade de se manter uma qualidade de vida para as sociedades presentes quanto às futuras. Só que os países não devem nem podem contribuir para o equilíbrio da biosfera em igualdade. Destaca-se um progresso em Quioto, quando comparado a outros acordos internacionais, ao estabelecer a exclusão dos países pobres das metas de redução dos gases que provocam o aquecimento global.

O princípio da responsabilidade comum, porém diferenciada aprecia os conflitos de relação Norte/Sul, as desigualdades existentes entre esse binômio e as peculiaridades dos países periféricos, ao reconhecer a maior responsabilidade das nações ricas na contribuição para o aquecimento global e na constituição de um desenvolvimento de bases sustentáveis.

O aparelho normativo acata o entendimento de que são os países centrais, que ao longo da história contribuíram mais efusivamente para a emissão de gases de efeito estufa, que devem ter as responsabilidades de redução. A equidade também é pensada sob o prisma de que os países pobres, que também são os mais vulneráveis aos efeitos do aquecimento global, tenham o direito de atingir outros patamares de desenvolvimento.

Neste ponto, acompanhando o princípio das responsabilidades comum, porém diferenciadas aparece o princípio do desenvolvimento sustentável, artigo 3.4 da Convenção do clima.

“Artigo 3.4 – As Partes têm o direito ao desenvolvimento sustentável e devem promovê-lo. As políticas e medidas para proteger o sistema climático contra mudanças induzidas pelo homem devem ser adequadas às condições específicas de cada Parte e devem ser integradas aos programas nacionais de desenvolvimento, levando em conta que o desenvolvimento econômico é essencial à adoção de medidas para enfrentar a mudança do clima.”

Os acordos do clima mantêm a concepção de que é imprescindível a proteção dos sistemas climáticos em benefício das gerações atuais e seguintes e, através do desenvolvimento de base sustentada, é possível contribuir para proteção e mantê-la.

Há no Protocolo de Quioto a previsão de algumas medidas com vista a contribuir com o desenvolvimento sustentável como a indicação de se buscar tecnologias limpas e alternativas, a transferência de tecnologia, a assistência técnica aos países subdesenvolvidos, a cooperação internacional.

No artigo 2, encontramos referências ao desenvolvimento sustentável como uma dos objetivos essenciais do acordo.

“Artigo 2.1 – Cada parte incluída no Anexo I […] a fim de promover o desenvolvimento sustentável devem:

a) Implementar e/ou aprimorar políticas e medidas de acordo com suas circunstâncias nacionais […].

b) Cooperar com outras Partes incluídas no Anexo I no aumento da eficácia individual e combinada de suas políticas e medidas adotadas segundo este Artigo […].”

O desenvolvimento sustentável também é enfocado no artigo 10, que se refere aos programas nacionais

“Artigo 10 – Todas as Partes, levando em conta suas responsabilidades comum mas diferençadas e suas prioridades de desenvolvimento [..] mas reafirmando os compromissos existentes no Artigo 4, parágrafo I, da Convenção, e continuando a fazer avançar a implementação desses compromissos a fim de atingir o desenvolvimento sustentável devem:

a) Formular, quando apropriado e na medida do possível, programas nacionais e, conforme o caso, regionais adequado, eficazes em relação aos custos, para melhorar a qualidade dos fatores de emissão, dados de qualidade e/ou modelos locais que reflitam as condições socioeconômicas de cada Parte […].”

O Protocolo, no artigo 12, prevê um mecanismo específico, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, analisado no ponto seguinte, para auxiliar os países subdesenvolvidos no alcance do desenvolvimento sustentável. É o que se depreende da leitura do artigo.

“Artigo 12.2 – O objetivo do mecanismo de desenvolvimento limpo deve ser assistir às Partes não incluídas no Anexo I para que atinjam o desenvolvimento sustentável e contribuam para o objetivo final da Convenção […].”

A concepção do Protocolo de Quioto, na esteira da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, é a de que manifestações de desenvolvimento insustentáveis colaboram com a restrição das liberdades das próximas gerações, o que se constituiria um contra senso, vez que o desenvolvimento antevê a ampliação dessas liberdades. Impossível, pois, nessa linha argumentativa, um desenvolvimento outro que não o sustentável (VARELLA, 2004).

O regime recepcionado pelo Acordo procura unir o liberalismo de mercado, que tende a favorecer os mercados globais livres, com o desenvolvimento sustentável (DRIESEN, 2006) na consecução do escopo de redução e estabilização dos níveis de gases de efeito estufa na atmosfera.

2.5. Os Mecanismos de Flexibilidade e o “Direito de Poluir”

O Tratado de Quioto viabiliza um aparelho normativo internacional de caráter vinculativo. A partir de metas legalmente vinculativas de reduções e limitações de emissões, estabelece um sistema de cumprimento com vistas a assegurar a execução das obrigações estabelecidas para cada país abrangido pelo Anexo I, embora tais valores fixados sejam apontados como “muito modestos, mesmo para manter os atuais níveis de emissão” (FARIA; JURAS, 1999: 71), de impacto reduzido e que, em termos de eficácia quanto ao enfrentamento da crise do aquecimento global, fica aquém do que seria suficiente para afrontá-la.

No entanto, esse sistema de cumprimento confere ao Protocolo Quioto uma natureza de acordo com vistas a mitigar o efeito estufa e a combater as alterações climáticas ou uma natureza de mecanismo de legitimação dos interesses dos países desenvolvidos em perpetuar o seu modelo desenvolvimentista? Refletir sobre essa questão é imprescindível diante dos mecanismos de flexibilização recepcionados pelo Tratado.

2.5.1. Implementação Conjunta, Comércio de Emissões e Mecanismo de Desenvolvimento Limpo

Um aspecto de destaque do Tratado de Quioto é a adoção de três mecanismos de mercado, também denominados mecanismos flexíveis, cuja finalidade é alcançar os objetivos da redução de forma mais eficiente, sem, no entanto, prejudicar o objetivo ambiental em questão, a estabilização da temperatura global. Esses mecanismos de mercado permitem a esses países ricos cumprir com as exigências de redução de emissões, fora de seus territórios, e estão dispostos no Acordo em três modalidades: Implementação Conjunta (IC), Comércio de Emissões e Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). As atividades compreendidas nos mecanismos mencionados devem ser realizadas adicionalmente às ações desenvolvidas pelos países industrializados dentro de seus próprios territórios.

O Protocolo é o primeiro documento internacional a considerar mecanismos de mercado como alternativa para a solução de problemas mundiais de meio ambiente a partir da criação de bases formais (artigos 6º, 12 e 17) de um mercado mundial de carbono (GUTIERREZ, 2007).

A Implementação Conjunta (artigo 6º) permite que países do Anexo I implementem em conjunto projetos de redução de emissões ou que absorvam essas emissões no território de outro país do Anexo I; é a troca interna de Partes do Anexo I que acordaram em adimplir conjuntamente uma meta.

O Comércio de Emissões (artigo 17) possibilita que um país compre de outro, ambos integrantes do Anexo I, cotas de redução num sistema global de compra e venda denominado de Leilão de Certificado de Emissões. A transferência de determinado montante de unidades é possível desde que sejam satisfeitas as obrigações metodológicas e de notificação previstas no Protocolo, como também se prove que essa transferência constitui um complemento às iniciativas domésticas.

O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, por seu turno, está diretamente relacionado aos países em desenvolvimento não pertencentes ao Anexo I. O MDL tem uma função tríplice: 1) ajudar as Partes do Anexo I a atingir as suas cotas de redução através de investimentos em projetos de redução em países em desenvolvimento signatários do Protocolo 2) promover o desenvolvimento sustentável nos países hospedeiros dos projetos e, por fim, 3) atingir os objetivos definidos pela Convenção do Clima. Esse mecanismo tem sido alvo de intensos debates no cenário internacional, constitui-se num dos assuntos mais discutidos do Tratado. Bem por isso, dedicaremos os parágrafos seguintes para trazer algumas questões pertinentes sobre o MDL.

O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo é o principal instrumento de participação dos países em desenvolvimento no enfrentamento às mudanças climáticas. Por meio dele, os países do Anexo I podem cumprir seus compromissos qualificados de limitação e redução de emissões de gases de efeito estufa.

O MDL surge dentro de um contexto que permite aos países ricos atingem as suas metas de redução, sem, no entanto, onerar o seu modelo produtivo, bem assim adquirir direito de emissões adicionais correspondentes a essas emissões evitadas. Objetiva promover o desenvolvimento sustentável de Partes não-incluídas no Anexo I e possibilitar as Partes do Anexo I o cumprimento de parte de suas metas de redução, através do financiamento de projetos de desenvolvimento sustentável nos países emergentes e pobres. É o critério da adicionalidade requisito básico: o projeto deve adicionar alguma vantagem ao meio ambiente que inexistiria na ausência dele.

O princípio que orienta este mecanismo é o da eficiência econômica. As reduções ocorrem, no primeiro momento, nas localidades em que o custo de abatimento é menor – nos países em desenvolvimento (PEREIRA; MAY, 2003). Funciona como alternativa para reduções mais caras em seus próprios territórios.

O MDL permite o investimento das Partes do Anexo I em projetos instalados em países subdesenvolvidos, que se proponham a atingir as metas de estabilização e redução dos níveis de emissão dos gases de efeito estufa a baixo custo para a obtenção de créditos de redução. Bem por isso, minimizar os cortes que teriam que ser feitos na própria economia dessas Nações desenvolvidas, ao argumento de que os países em desenvolvimento também se beneficiam do aumento do fluxo de investimentos, da compensação de emissões de GEE e do desenvolvimento sustentável (MOTA et al., 2004). Diferentemente dos outros mecanismos, o MDL permite contabilizar as reduções a partir do ano de 2000, sem se limitar aos cinco anos do primeiro período de compromisso.

2.5.2. O Mercado de Carbono

Os créditos de carbono podem ser gerados tanto a partir de projeto de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo como a partir dos dois outros mecanismos de flexibilização, a Implementação Conjunta e o Mercado de Emissões. As empresas de países ricos adquirem esses ativos com o propósito de compensar a desigualdade entre as suas reais emissões e os limites impostos pelos governos. Esses instrumentos estão provocando o aparecimento de um mercado mundial que se denomina, popularmente, mercado de carbono.

“O mercado de crédito de carbono movimentou US$ 30 bilhões em 2006, o triplo do ano anterior, segundo um relatório do Banco Mundial. Cerca de 83% desse valor (quase US$ 25 bilhões) foi originada de programas implantados na União Européia, e US$ 5 bilhões vieram de países em desenvolvimento.” (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2007).

Embora incipiente, já é “saudado por comerciantes, burocratas e ambientalistas como uma maneira de frear o aquecimento global com a arte do capitalismo” (TIMMONS, 2007), como o acordo mais ousado no campo ambiental e no desenvolvimento sustentável (PNUMA; UNFCCC, 2003).

Dentro da sistemática do Protocolo, é fixado um valor financeiro para cada tonelada de carbono que deixa de ser emitida ou retirada da atmosfera “envolve negociações individuais, a nível de projetos conjuntos de redução de emissões, ou de mercado” (DIAS; RAMOS, 1999: 02) que pode ser adquirida pelas Partes que tem meta de redução a serem atingidas, mas que não as alcançaram de forma direta, gerando créditos de carbono a ser comercializado no Mercado de Carbono (COSTA, 2006).

Aponta-se o alcance da meta de redução a um custo mínimo como a vantagem fundamental da utilização de mercados na consecução dos objetivos de salvaguarda do meio ambiente, na perspectiva de que políticas baseadas no mercado podem permitir tanto a redução de emissões dos gases de efeito estufa quanto a geração de ganhos econômicos, como maior velocidade na inovação tecnológica, sistemas de energia mais eficientes, redução de gastos com subsídios impróprios, ao diminuir os custos da adaptação às mudanças do clima.

A conveniência de se utilizar instrumentos de mercado como mecanismos de política ambiental se funda, em particular, na viabilidade de consecução do objetivo ambiental a um custo mínimo (ATKINSON; TIETENBERG, 1991), além do argumento de que a flexibilidade e eficiência do mercado garantirão reduzir as emissões de carbono o mais rápido possível e com eficácia.

Nesse contexto, o Protocolo de Quioto a partir de seus instrumentos de mercado procuraria trabalhar sob dois prismas: o interesse da coletividade internacional de proteger a atmosfera de um efeito estufa potencializado e a formulação de políticas de mercado para geração de lucro com o comércio de créditos de carbono (CALSING, 2005).

Cabe destacar que não se poderia entender o mercado de carbono como um único mercado, com um único produto ou um único sistema de compradores e vendedores, mas como um conjunto de transações, no qual se compram e se vendem créditos de emissões de carbono (LECOCQ; CAPOOR, 2004). Sem embargo, as transações de carbono estão se desenvolvendo em duas esferas distintas. Uma em que se busca cumprir com as metas de redução estabelecidas no Protocolo de Quioto; outra de iniciativas paralelas de comércio fora do Protocolo (EGUREN, 2004).

Entretanto, a análise desses mecanismos de mercado não pode ser empreendida sem a preocupação da extensão e complexidade que envolve o assunto. É necessário ter em conta outros elementos que transcendem a perspectiva financeira. Há uma problemática ambiental, o aquecimento global acelerado pelas atividades antrópicas, que tem que estar no centro do debate. Ao incluir esses instrumentos jurídicos de mercado como caminhos de viabilizar o processo de mitigação das mudanças climáticas, entrevemos um possível deslocamento de foco, já que a questão ambiental está perdendo espaço para as discussões de cunho econômico-financeiro.

Nessa linha argumentativa, procuraremos demonstrar, através da análise do mercado de carbono, os contornos que está se dando ao debate do clima. Cabe ressalvar que a apreciação se restringe ao  período de 2005 a 2007, ainda não é o oficial já que o primeiro período de compromisso de Quioto é 2008 até 2012.

3. A QUESTÃO DO CLIMA E O MERCADO DE CARBONO: um debate necessário

Há dois tipos de política ambiental: as de restrição e as de mecanismos de mercado. Enquanto aquelas são instrumentos tradicionais de regulação direta, as de mecanismos de mercado se colocam no intuito de alinhar os benefícios privados com os benefícios sociais e os custos privados com os custos sociais para que as externalidades cheguem a ser parte da tomada de decisões (FONSECA, 2004).

Externalidades são umas das falhas de mercado que se caracterizam pelos prejuízos suportados por terceiros, alheios ao processo econômico, em virtude da utilização de determinados recursos naturais. Há de se salientar que os custos das externalidades não se mostram de forma linear. Em regra são exponenciais, demandando uma internalização progressiva bem complexa (STAHEL, 1995).

À justificação de que a contribuição ao efeito estufa independe de onde se está localizado, ou seja, as conseqüências das emissões dos GEE não se circunscrevem à região do emitente – independentemente da emissão de GEE serem realizados na América Latina, Ásia ou Europa ou em qualquer outra localidade do globo terrestre, as implicações são suportadas por todas as espécies do Planeta. O que se que dizer com essa afirmativa é que os problemas ambientais não respeitam as fronteiras políticas; as conseqüências são globais. Quioto deu preferência aos instrumentos de mercado em prejuízo aos mecanismos de política ambiental (GUTIERREZ, 2007).

Os mecanismos de flexibilização do Protocolo de Quioto, inspirados no Mercado de Chuvas ácidas dos Estados Unidos da América, criado em 1990, permite, pela primeira vez em nível global, a utilização de mecanismos financeiros para resolver problemas ambientais. E, embora não seja o percussor do comércio de emissões na esfera do meio ambiente, não tem precedente quanto ao tamanho e escala (CARBON TRADE WATCH; TNI, 2003).

Em virtude da orientação para o mercado, dado que tende a estabelecer um sistema de comercialização de compra e venda de emissões de carbono, Quioto está sendo alvo de severas críticas (MOVIMIENTO MUNDIAL POR LOS BOSQUES TROPICALES, 2000 ).

Toda a sistemática jurídica instituída pela Convenção do Clima e pelo Protoloco de Quioto, distante de representar opções orientadas por uma nova concepção de enfrentamento do problema, denota a preferência por instrumentos proveniente do sistema capitalista, ao colocar o controle das emissões dos gases de efeito estufa sob a dinâmica do mercado. Esse ordenamento prescinde de uma reflexão crítica e direta sobre o paradigma produtivo atual e seu padrão de crescimento.

O primeiro aspecto para ponderar é a aproximação do mercado de emissões de carbono com os mercados financeiros tradicionais. Isso porque estão sujeitos as mesmas pressões do mercado de capitais e seus modelos de (des)regulamentação. Sob a égide da lex mercatoria, o incentivo à redução das emissões se situa no âmbito da minimização dos custos. Há uma pressão para superestimar reduções e subestimar emissões (GRUBB, 2006; GODOY, 2007), permitindo, em alguns casos, a vendagem de créditos e o levantamento de dinheiro artificialmente, ante a inexistência de trabalho real para redução de emissões ou melhora da eficiência dos objetivos de Quioto (CARBON TRADE WATCH; FASE-ES; TNI, 2003; TIMMONS, 2007).

Os créditos de carbono, provenientes de projetos de energia renovável, a título ilustrativo, representam uma parcela ínfima de 10% de todos os projetos negociados no âmbito do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (CDM WATCH, 2003). Esta constatação corrobora com o entendimento deturpado da utilização desses mecanismos, na medida em que a maior parte dos projetos se limita à geração de grandes volumes de créditos de emissões baratos, obtidos por meio de projetos de sumidouros, reflorestamento, em detrimento da fomentação de projetos de energia mais limpas e renováveis que permitiriam promover mudanças no uso e na produção energética.

Esses sumidouros são, em maioria, plantações de monocultura. Representam um colonialismo do século XXI – o Colonialismo do Carbono – segundo o qual recursos (as terras usadas para as plantações) são usados para manter o alto nível de privilegio material (energia) dos países desenvolvidos (BACHRAM, 2004; SMITH, 2007), provocando gravíssimos impactos ambientais e sociais na região que hospeda o projeto (FASE-ES; CARBON TRADE WATCH; TNI, 2003). As objeções aos sumidouros, na esfera de MDL, prosseguem afirmando que esses projetos “dariam espaço a um uso das terras às expensas dos habitantes do lugar, acelerariam o desmatamento, diminuiriam os recursos hídricos e aumentariam a pobreza” (FASE-ES; CARBON TRADE WATCH; TNI, 2003, 2003: 25, tradução nossa), sem contribuir com o desenvolvimento sustentável, contrariando o próprio texto convencionado. Ao consentir com a compra de créditos baratos de emissões pelos países ricos, o Protocolo de Quioto, através do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, está construindo o colonialismo do carbono.

Um outro aspecto que se apresenta como indispensável à reflexão é a lógica que está impregnada nesses instrumentos de mercado, eis que viabiliza que os países desenvolvidos permaneçam com os tradicionais paradigmas produtivos, ecologicamente insustentáveis e, para além, continuem a ratificar a superprodução e o padrão de consumo.

Os instrumentos flexíveis seriam artifícios jurídicos de legalização do direito de emitir gases de efeito estufa, na tentativa de amenizar o aquecimento global sem, no entanto, representar um caminho viável para solucionar o problema do clima que está intrinsecamente inter-relacionado com a crise civilizatória pluridimensional.

Uma das críticas mais pertinentes ao Protocolo de Quioto e seus mecanismos de flexibilização é a formação de um “mercado do direito de poluir” (MUYLAERT, 2000) que favorece sobremaneira os Estados ricos, principalmente quando se trata do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, o de maior repercussão, pois, por meio dele, esses países podem, em grande medida, manter o seu padrão de desenvolvimento anterior, ao evitar a alteração radical de seu estilo de vida. Há no Protocolo os países constantes do Anexo I, que estão obrigados a reduzir as suas emissões de gases, e os que não estão obrigados a reduzi-las. Assim, na intenção de conservar o seu sistema produtivo, os Estados do Anexo I se valem dessas “permissões para poluir”.

Os mercados, enquanto sistemas abertos com fartura de recursos possíveis de serem utilizados individual ou competitivamente, diferem dos bens comuns. Estes são recursos fechados nos quais os recursos tais como o ar, os oceanos, o espectro eletromagnético da terra são usados indivisivelmente. Normalmente, a razão econômica somente reconhece esses bens comuns como administrados racionalmente caso sejam por alguém como “propriedade comum”. À vista disso, conta com a posse privada e com esquemas de direitos de propriedade, e faz lobbies por regulamentos, impostos e subsídios baseados no mercado, ou licenças para poluir comercializáveis (HENDERSON, 1996).

Aqueles que estão obrigados a reduzir as emissões podem realizar também as suas obrigações de abatimento em outros países, sem reduzir as suas emissões em seu próprio território. E assim os moldes desenvolvimentistas são mantidos e a poluição provocada por esses países, idem. “Será que a disseminação de um mercado chamado direito de poluir, ou mercados da norma de emissão, não representa eternizar a miséria de muitos em proveito dos países já desenvolvidos?”. (MACHADO, 2002: 31).

Esse “direito de poluir” é uma das contradições do Protocolo de Quioto; ao mesmo tempo em que esse acordo fixa, por exemplo, na COP 7, as diretrizes de substituição das matrizes energéticas por fontes limpas ou ambientalmente corretas e necessidade de promover o seqüestro de carbono, protegendo florestas ou implementando o reflorestamento, permite às Partes do Anexo I a negociação através dos mecanismos de troca, “permissões para poluir”, entre elas mesmas ou com países em desenvolvimento, amortecendo as suas obrigações sem necessariamente interferir no seu modo de produção, nas suas fontes energéticas, no seu padrão de desenvolvimento.

Os mecanismos de mercado também acarretam o deslocamento da tomada de decisão da esfera pública, despolitizando, desse modo, o debate ambiental (BEDER, 2001). O que se está fomentando é a imposição de um modelo de preservação do meio ambiente de livre mercado, que despreza os debates complexos e os reduz a uma hermenêutica estritamente econômico-finaneira. Nesse sentido, as oportunidades para empreendimentos econômicos se sobrepõem à meta ambiental aspirada e ignora as conseqüências sociais acarretadas pelas mudanças climáticas.

A política neoliberal, que entrega às leis de mercado a solução de questões ambientais, desobriga os Estados de exercer o controle ambiental e promover o desenvolvimento sustentável, apresenta-se como uma estratégia equivocada. O alcance da resposta ao aquecimento global não deve ficar restrito a soluções firmadas no mercado. O mercado de carbono não é a saída para se enfrentar a questão do câmbio do clima, pois não provoca mudança relevante no cenário mundial das emissões (LOHMANN , 2006).

As medidas de mercado afastam o problema da ação política coletiva ao se aproximarem da lógica da mão invisível que perpetua as relações de exploração entre os paises ricos e os pobres. A doutrina da mão invisível trabalha numa lógica de legitimação do liberalismo econômico, que entende os instrumentos de mercado como eficientes meios de sanção social e a maneira mais apta de dirigir o desenvolvimento.

A mão invisível do mercado não é o meio mais eficaz de enfrentar as mudanças climáticas. Converter o carbono numa mercadoria é, em ampla medida, privatizar a atmosfera, reparti-la entre os países desenvolvidos para que mantenham o seu padrão de desenvolvimento (DURBAN GROUP FOR CLIMATE JUSTICE, 2004).

Ao reduzir as questões do aquecimento global a um conjunto de cálculos monetários de simples análise de custo-benefício, a um estratagema contábil, o comércio de carbono desvia a atenção da inviabilidade de combater as alterações climáticas dentro dos modelos paradigmáticos tradicionais.

O comércio de emissões e a geração de créditos de carbono, por meio de projetos, não são as respostas mais eficazes. Essa técnica de contrabalançar é um retardo perigoso. De igual sorte, funciona de modo a desviar a atenção de estratégias de solução verdadeiramente efetivas. Alimentar a cultura da compensação de emissões de gases de efeito estufa é reduzir paulatinamente o debate das alterações climáticas, pois representa uma pretensão de se relacionar com o aquecimento global sem empreender esforços reais para o enfrentamento de tal fenômeno climático que, à evidência cientifica crescente, mostra-se cada vez mais nefasto às condições de vida no Planeta Terra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A resposta está num processo efetivo de descarbonização a partir de uma independência dos combustíveis fósseis, num desenvolvimento efetivamente sustentável. Adotar políticas de redução de emissões em sua origem, e não num sistema de compensação ou comercialização de emissões, no qual há cláusulas de salvaguarda que ratificam a lógica do capitalismo predatório, do crescimento econômico e do livre mercado.

É imprescindível transformar o estilo de vida, tanto no domínio coletivo quanto no individual, reestruturar a sociedade e a economia, distanciando-as do cenário habitual do uso massivo dos combustíveis fósseis. Cabe aos Estados reduzir e eliminar os sistemas produtivos e de consumo insustentáveis, em concordância com o Princípio 8 da Declaração do Rio 92 que afirma que para alcançar o desenvolvimento sustentável e uma qualidade de vida mais elevada para todos, os Estados devem reduzir e eliminar os padrões insustentáveis de produção e consumo, e promover políticas demográficas adequadas (MACHADO, 2002).

A resposta à questão do aquecimento global pretendida pelo Protocolo de Quioto se revela insuficiente. A racionalidade do Capital aceita o discurso ecológico, conjugado à dinâmica da economia de mercado, tão somente até o momento no qual permanecem intactos seus pressupostos fundamentais. Motivações econômicas prevalecem em detrimento dos benefícios que uma mudança efetiva nos meios de produção e na matriz energética mundial poderia proporcionar à humanidade e ao meio ambiente como um todo.

O regime recepcionado pelo Acordo procura unir o liberalismo de mercado, que tende a favorecer os mercados globais livres, com o desenvolvimento sustentável, regime esse que, na prática, está se revelando equivocado por não responder adequadamente aos anseios de mitigar e estabilizar as emissões de gases de efeito estufa.

Embora saibamos que são os pequenos passos que dão início a grandes transformações, principalmente quando se estar diante de questões de tamanha complexidade e que envolvem incertezas (DESOMBRE, 2004), não coadunamos com a tese de que o Tratado do Clima caminharia rumo ao combate do aquecimento global.  Aos efeitos potencialmente catastróficos do aquecimento global, a comunidade internacional apresenta respostas lentas e nada efetivas.

Mais do que representar uma tragédia, o acordo deveria representar um importante e decisivo processo das presentes gerações na realização das etapas iniciais de uma ação coletiva para que tanto essas gerações quanto as futuras pudessem viver em um Planeta equilibrado. Revela-se, desafortunadamente, como um tímido passo na direção incorreta.

Referências
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Informações Sobre o Autor

Mariana Bezerra Salamé

Bacharel em Direito e estudante de Administração de Empresas.

Equipe Âmbito Jurídico

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